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Acórdão 496/2008, de 11 de Novembro

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Sumário

Não julga inconstitucional o artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Burgau-Vilamoura (Regulamento do POOC), aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33/99, de 27 de Abril, em conjugação com os artigos 9.º, n.º 2, e 91.º desse mesmo Regulamento e com o artigo 105.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro (na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 310/2003, de 10 de Dezembro)

Texto do documento

Acórdão 496/2008

Processo 523/2007

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Em 5 de Maio de 2003 Alphine Creek, Limited, interpôs, no Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário de Estado Adjunto e do Ordenamento do Território, de 4 de Março de 2003, que determinou a demolição da moradia pertencente à recorrente, construída no Lote n.º 78, na Praia da Falésia, em Várzeas de Quarteira, Albufeira.

Por Acórdão de 11 de Novembro de 2004, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso contencioso. Considerou, então, o seguinte, na parte ora relevante:

5 - Alega ainda a recorrente que, a considerar-se a prevalência das citadas disposições do POOC sobre o PROTAL, as mesmas seriam inconstitucionais por violação dos artigos 2º, 61º n.º 1, 62º, n.º 1 e 165º, nº1, al. b) da CRP, pelo que o despacho recorrido seria nulo por se basear em normas feridas de inconstitucionalidade.

Mais uma vez carece de razão.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem decidido reiteradamente que a nossa lei fundamental não tutela o direito à edificação como elemento necessário e natural do direito fundiário, e que a necessidade do licenciamento não afronta ô direito de propriedade tal como está gizado na Constituição da República (art. 62º, n.º 1), devendo o direito de construir ser sempre exercido dentro dos condicionamentos urbanísticos legalmente estabelecidos, de molde a não serem afrontados outros direitos e deveres também constitucionalmente consagrados (cf. os Acs. de 01.04.2004 - Rec. 1.550/03, de 16.01.2003 - Rec. 1.316/02, e do Pleno de 31.03.2004 - Rec. 35.338 e de 02.12.2001 - Rec. 34.981).

E isto porque, como expressivamente se sublinha no Ac. de 02.07.96 - Rec. n.º 32.459:

"O direito de propriedade só tem natureza análoga aos direitos fundamentais, nos termos previstos no artigo 62º/1 da Constituição da República Portuguesa, enquanto categoria abstracta, entendido como direito à propriedade, ou seja, como susceptibilidade ou capacidade de aquisição de coisas e bens e à sua livre fruição e disponibilidade, e não como direito subjectivo de propriedade, isto é, como poder directo, imediato e exclusivo sobre concretos e determinados bens.

[...]

Está em causa, pois, o direito de construção e a sujeição deste a normas de licenciamento, ou seja, uma componente do direito de propriedade que não integra o seu núcleo essencial, não gozando pois do regime de tutela dos direitos, liberdades e garantias."

Assim sendo, a entidade recorrida, ao considerar as referidas normas do POOC violadas pelo acto de licenciamento, não afrontou as citadas disposições da CRP.

Improcedem deste modo as conclusões 6.ª, 8.ª e 9.ª

6 - Por fim, alega a recorrente que a ordem de demolição é injusta, desproporcionada e discriminatória em relação a outras situações vizinhas idênticas.

Ora, como é sabido, e constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo, os princípios constitucionais da igualdade, da justiça e da proporcionalidade, funcionam como limites da discricionariedade, só neste domínio encontrando a sua justificação, ou seja, tais princípios só se configuram como fonte autónoma de invalidade quando a Administração goze de liberdade para escolher o comportamento a adoptar, não relevando no domínio da actividade vinculada (cf. Acs. de 22.04.2004 - Rec. 1.200/03, de 05.12.2002 - Rec. 1.130/02, de 13.01.2000 - Rec. 36.585, de 13.05.99 - Rec. 42.161, de 20.02.97 - Rec. 36.676, e do Pleno de 20.01.98 - Rec. n.º 34.779).

Como se refere no citado aresto do Pleno:

"Os princípios da igualdade e da justiça constituem postulados ou normas de actuação a serem observados no exercício da actividade discricionária da Administração, na qual esta detenha liberdade para escolha de alternativas comportamentais, funcionando pois como limites internos dessa actividade, não relevando pois no domínio da sua actividade vinculada, consistente esta na simples subsunção à previsão normativa dos comandos legais vigentes de um dado caso concreto."

E assim, esses princípios, segundo a jurisprudência citada, só têm autonomia e só relevam juridicamente no âmbito da actividade discricionária, confundindo-se, no domínio da actividade vinculada, traduzida na mera subsunção da situação concreta a uma previsão normativa, com o princípio da legalidade.

Ora, como é bom de ver, a situação a que os autos se reportam configura, sem sombra de dúvida, uma actuação vinculada da Administração, por referência ao conteúdo normativo dos diplomas legais e regulamentares citados, pelo que não poderia a mesma incorrer na violação dos citados princípios constitucionais, directa ou indirectamente acolhidos nos apontados preceitos da lei fundamental.

Improcede, assim, a conclusão 7.ª

2 - Inconformada, a recorrente intentou interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o qual, todavia, não foi admitido com fundamento em que do aludido acórdão, proferido em primeiro grau de jurisdição, cabe recurso ordinário para o Pleno da Secção, nos termos do disposto no artigo 24.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Decreto-Lei 129/84).

3 - Após vicissitudes processuais, o requerimento apresentado a fl. 306 foi admitido como recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, sustentando a recorrente nas conclusões das alegações que apresentou:

1 - O acórdão recorrido deveria ter conhecido da alegação formulada pela ora recorrente de que a "licença de construção deveria ser considerada também válida ao abrigo do POOC Burgau Vilamoura (Resolução do Conselho de Ministros n.º 33/99, de 27 de Abril), se prevalecesse a interpretação das normas pertinentes deste (artigos 9.º, 20.º, n.º 1 e 91.º) implicitamente sempre atribuída pela Câmara de Albufeira e em certo momento perfilhada (aparentemente) pela DRAOT".

2 - O acórdão recorrido deveria ter reconhecido a existência de situações jurídicas tuteladas pelo direito através do instituto dos direitos adquiridos, reconhecendo, designadamente uma direito adquirido à não alteração essencial das condições de licenciamento da construção, ou um direito adquirido à obtenção de uma licença de construção desde que respeitados os termos essenciais do quadro jurídico vigente à altura do loteamento.

3 - Dos artigo 23.º, n.º 2, e 25.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 390/99, de 22 de Setembro, resulta a regra da coordenação dos instrumentos de ordenamento do território, com prevalência de princípio dos planos regionais sobre os planos especiais, admitindo porém que estes possam excepcionalmente revogar ou alterar regras daqueles, desde que o façam com indicação expressa. Modo expresso esse que, no caso sub judice, não se verifica.

4 - Se se entendesse que a lei aplicável (artigos 20.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do POOC, 91.º do mesmo POOC e, especialmente, 105.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 380/99, de 22 de Setembro), resulta inexoravelmente que a única decisão legalmente permitida é a ordem de demolição, essas normas, particularmente a última, violariam o princípio da proporcionalidade.

5 - Porém, na melhor interpretação, o 105.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 380/99, de 22 de Setembro, não consagra um poder vinculado de demolição.

6 - Sendo assim, o acto de demolição só poderia ser praticado se fosse proporcional, isto é se o fim não pudesse ser atingido através de meio menos gravoso. No caso vertente, havia alternativas menos gravosas, pelo que o acto administrativo de demolição viola o princípio da proporcionalidade.

7 - O acto administrativo de demolição viola o princípio da igualdade (art.º 262.º, da CRP), uma vez que a autoridade administrativa deu ao imóvel e à situação da recorrente tratamento diferente do dado a outras situações idênticas na vizinhança.

8 - As disposições habilitadoras do acto administrativo de demolição são inconstitucionais por violação dos artigos 2.º, 61.º, n.º 1, 62.º, n.º 1, al. b) e 165.º, n.º 1, al. b), da CRP).

Por Acórdão de 6 de Março de 2007 foi negado provimento ao recurso, tendo o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo considerado o seguinte no ponto 5. da inerente fundamentação:

5 - Vejamos, finalmente, a invocada inconstitucionalidade das disposições habilitadoras do acto administrativo de demolição por violação dos artigos 2, 61, n.º 1, 62, n.º 1, e 165, n.º 1, al. b), da CRP. Relembremos que, sendo o quadro jurídico o que se deixou apontado, estamos perante uma ordem de demolição de obra construída em desrespeito frontal a um plano especial de ordenamento do território, o POOC Burgau-Vilamoura, e portanto, com fundamento na nulidade do acto de licenciamento. O artigo 2 define o Estado de direito democrático, o artigo 61, n.º 2, consagra a liberdade de iniciativa económica privada, o artigo 62, n.º 1, consagra o direito à propriedade privada e, finalmente, o artigo 165, n.º 1, b) atribui competência exclusiva à Assembleia da República para legislar sobre direitos, liberdades e garantias. O sentido da decisão recorrida, que ora se reafirma, no contexto do presente recurso é o único que resulta da aplicação em concreto dos princípios enunciados no citado artigo 2, garantia de todos os direitos dos intervenientes, separação de poderes e respeito pelas normas emitidas pelos órgãos competentes para as emanarem. Não transparece de nada do que se decidiu a mínima lesão de qualquer direito que conforme o livre exercício da actividade privada (no sentido comum de liberdade de agir no campo económico com vista à obtenção de lucro). O que resta de substancial desta alegação prende-se com os contornos do jus aedificandi.

A constatação de que o jus aedificandi não integra o conteúdo essencial do direito de propriedade, constatação repetidamente afirmada pela jurisprudência deste Tribunal e do Tribunal Constitucional, tem-se como inquestionável. Com efeito, se assim não fosse, isto é, se esse direito integrasse o núcleo do direito de propriedade, qualquer cidadão poderia edificar o que quisesse, como quisesse, quando quisesse bastando que o fizesse em parcela sua, o que não seria aceitável nos padrões civilizacionais actuais. O que a consagração constitucional do direito de propriedade visa é, por contraposição aos sistemas políticos em que essa propriedade inexiste, afirmar que é garantido aos cidadãos, a todos os cidadãos, o acesso à apropriação privada de quaisquer bens móveis e imóveis (nem todos, pois alguns há que são insusceptíveis de apropriação privada). Todavia, como é sabido, qualquer direito com protecção constitucional pode ser comprimido (observe-se que a primeira restrição consta do próprio n.º 1, pois a protecção é concedida nos termos da Constituição, e também do n.º 2 que logo prevê a requisição e a expropriação) e essa compressão impõe-se pelo facto de vivermos em comunidade e de termos de fazer a compatibilização dos direitos individuais de todos os sujeitos que a integram. A utilização irrestrita dos direitos individuais inviabilizaria a vida em sociedade como hoje a conhecemos. Como resulta de tudo o que ficou dito atrás, nos pontos anteriores, e que a recorrente na verdade reconhece tanto que requereu o necessário licenciamento e respeitou as imposições que lhe foram sendo impostas e não se abalançou a construir sem qualquer subordinação às regras vigentes, a área do urbanismo é uma daquelas em que o interesse público mais releva, relevância que se tem acentuado a ritmo acelerado nos últimos anos, e onde essa compressão do direito de propriedade se mostra mais visível. Veja-se a proliferação dos diversos planos gerais e especiais, os PDM, as medidas provisórias, a rede natura, a reserva ecológica, a reserva agrícola, etc., etc., etc., instrumentos sempre acompanhados de inúmeras restrições construtivas. De resto, isto mesmo é afirmado por Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", edição 1993, 333, "Limites particularmente intensos a este aspecto do direito de propriedade são os que ocorrem no domínio urbanístico e do ordenamento do Território, a ponto de se questionar se o direito de propriedade inclui o direito de construir - jus aedificandi - ou se este radica antes no acto administrativo autorizativo (licença de construção)". No sentido de que o "jus aedificandi não possui tutela directa no direito (constitucional) de propriedade" podem ver-se, entre outros, os acórdãos do TC de 1.6.88 no P. 88-0013, de 18.11.87 no P. 87-0010, de 13.4.94 no P. 93-0002, de 10.12.86 no P. 84-0111, de 29.6.88 no P. 88-0003 e de 28.10.93 no P. 92-0397. No sentido de que "O jus aedificandi não se inclui no direito de propriedade privada, a que se refere o artigo 62 da CRP, sendo antes o resultado de uma atribuição jurídica decorrente do ordenamento jurídico urbanístico pelo qual é modelado, só podendo ser exercido se se contiver dentro dos limites de tal modelação e respeitar as restrições por ela impostas, que em nada contende com a matéria relativa à iniciativa económica privada e ao seu livre exercício, consagrado no n.º 1 do artigo 61 da CRP" podem ver-se os acórdãos STA de 11.1.05 no recurso 560/04, de 18.5.04 no recurso 167/05, de 14.3.06 no recurso 762/05, de 14.12.05 no recurso 807/05, de 14.12.05 no recurso 883/03 e de 19.10.05 no recurso 767/05, entre muitos outros.

Não integrando o jus aedificandi o núcleo do direito de propriedade também se não integra na protecção que a Constituição concede a esse direito quando lhe manda aplicar o regime dos direitos liberdades e garantias por considerar o direito de propriedade como direito análogo aos direitos fundamentais (art.º 17). Nessa vertente, só tem natureza análoga a garantia de acesso à apropriação privada de quaisquer bens, no dizer do acórdão STA de 2.7.96 proferido no recurso 32.459, "O direito de propriedade só tem natureza análoga aos direitos fundamentais, nos lermos previstos no artigo 62º, 1 da Constituição da República Portuguesa, enquanto categoria abstracta, entendido como direito à propriedade, ou seja, como susceptibilidade ou capacidade de aquisição de coisas e bens e à sua livre fruição e disponibilidade, e não como direito subjectivo de propriedade, isto é, como poder directo, imediato e exclusivo sobre concretos e determinados bens."

O Diploma legal que incluía a norma a coberto da qual foi ordenada a demolição do construído em desconformidade com o quadro legal aplicável (art.º 105, n.º 1, b), do DL 380/99, de 22.9), por violação frontal de um POOC, não afrontava esse núcleo essencial do direito de propriedade de modo que também se não incluía na reserva relativa de competência da Assembleia da república, nos termos do artigo 165, n.º 1, a) da CRP, que assim, também não foi violada. De resto, o DL 380/99 foi ele mesmo emitido "No desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei 48/98, de 11 de Agosto ", que assim seria a base habilitadora, o que só por si afastaria a apontada inconstitucionalidade.

4 - Trouxe então Alphine Creek, Limited, recurso ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), invocando que "(a)s normas cuja constitucionalidade vem sendo colocada em dúvida no âmbito deste processo pela recorrente e cuja apreciação se solicita são as do artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Burgau-Vilamoura (Regulamento do POOC), aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33/99, de 27 de Abril, em conjugação com os artigos 9.º, n.º 2, e 91.º desse mesmo Regulamento do POOC e com o artigo 105.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 380/99, de 22 de Setembro, na interpretação que lhes foi conferida pelo tribunal recorrido." Ainda nos termos do requerimento de interposição de recurso, "(a)s normas constitucionais violadas são as dos artigos 2.º, 18.º, n.º s 2 e 3, 61.º, n.º 1, 62.º, n.º 1 e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP)."

5 - Admitido o recurso, concluiu assim a recorrente as suas alegações:

1 - As normas dos artigos 20.º, n.º 1, alínea b), 9.º e 91.º do Regulamento do POOC de Burgau-Vilamoura e do artigo 105.º, n.º 1, alínea b, do Decreto-Lei 380/99, de 22 de Setembro, se interpretadas conforme o STA interpretou, violam o artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP, uma vez que, afectando o direito de propriedade, direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, infringem a reserva de lei da AR.

2 - A disposição do 20.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento do POOC, contraria também o artigo 62.º, em articulação com os artigos 17.º e 18.º n.º 3, todos da CRP, na medida em que diminui a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito de propriedade.

3 - Eventualmente, é posto em causa o próprio direito de iniciativa económica privada da recorrente, consagrado no artigo 61.º, n.º 1 da CRP.

4 - Afigura-se excessiva ou desnecessária a solução normativa que opta simplesmente pela imediata demolição.

5 - Mostra-se, outrossim, lesado o princípio da segurança jurídica que, conforme tem sido reconhecido pelo Tribunal Constitucional, aflora em vários preceitos constitucionais e subjaz à própria noção de Estado de direito democrático adoptada pela Constituição (designadamente, artigo 2.º).

Por sua vez, o Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional apresentou contra-alegações, onde concluiu:

i) Não advém à recorrente qualquer «direito adquirido a construir», ou ofensa ao seu «direito de propriedade privada» - seja por força do PROT(AL), seja da sua licença de construção (datada de 2001), seja de qualquer outro instrumento legal - que lhe permita arredar as disposições imperativas do POOC de Burgau-Vilamoura, nomeadamente as que dispõem que:

"Os espaços naturais de arribas são constituídos por zonas particularmente sensíveis..., incluindo as arribas e faixas superiores associadas..." (art. 19º); e que,

"Nos espaços naturais de arribas são interditas "novas construções, incluindo piscinas, terraços e outras superfícies impermeabilizadas ainda que afectas a edifícios residenciais... (art. 20.º/1 b));

ii) As normas dos artigos 20º, n.º 1, alínea b), 9.º e 91º do Regulamento do POOC de Burgau-Vilamoura, aprovado pela Res. CM 33/99, de 27.4, e do artigo 105º, n.º 1, alínea b), do DL n.º 380/99, de 22 de Setembro, interpretadas como o STA as interpretou, afigura-se-nos acertada, não violando qualquer norma da CRP, nomeadamente as dos artigos 61º, 62º, e 165º, n.º 1, al. b).

iii) Termos em que, e tudo considerado, haverá de improceder o expendido pela recorrente, tanto no articulado, como nas conclusões enunciadas sob os n.º 1 a 5.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentos. - 6 - O âmbito do pedido:

No presente recurso de constitucionalidade está em juízo, desde logo, a norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Regulamento do Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Burgau-Vilamoura (adiante designado por POOC), aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33/99, de 27 de Abril, que dispõe:

1. Nos espaços naturais de arribas são interditas as seguintes actividades:

(...)

b) Novas construções, incluindo piscinas, terraços ou outras superfícies impermeabilizadas ainda que afectas a edifícios residenciais, hoteleiros ou turísticos ou a equipamentos desportivos.

Pretende a recorrente que o Tribunal aprecie a constitucionalidade desta norma em conjugação com outras: as contidas no n.º 2 do artigo 9.º e no artigo 91.º do Regulamento do POOC, e a contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 105.º do Decreto-Lei 380/99, de 22 de Setembro.

O n.º 2 do artigo 9.º do POOC prevê que a «ocupação das faixas de risco e de protecção das arribas» fique obrigatoriamente sujeita à apresentação, pelos interessados, caso a caso, de «comprovativo das condições de segurança (...), através de estudos específicos (...)». Por seu turno, determina o artigo 91.º do mesmo POOC que as disposições dele constantes não põem em causa direitos adquiridos à data da sua entrada em vigor. Finalmente, e sob a epígrafe «embargo e demolição», determina o n.º 1, alínea b) do artigo 105.º do Decreto-Lei 380/99 (na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 310/2003, de 10 de Dezembro):

Sem prejuízo da coima aplicável, pode ser determinado o embargo de trabalhos ou a demolição de obras nos seguintes casos:

(...)

b) Pelo Ministro das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente, quando violem plano especial de ordenamento do território.

Sustenta a recorrente que este conjunto de normas, «na interpretação que lhes foi conferida pelo tribunal recorrido», lesa os «princípios e normas» consagrados nos artigos 2.º, 18.º, n.º s 2 e 3, 61.º, 62.º e 165.º, n.º 1, alínea b) da Constituição. No entanto, para que se compreenda a questão de constitucionalidade que, por este meio, é colocada ao Tribunal, é necessário que se insira o pedido - assim mesmo feito no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade - no contexto mais vasto da situação fáctica e normativa em que se inscreve.

7 - O contexto da questão

Os 'factos' que envolvem a questão (compreensíveis em parte pelo relato atrás feito) podem ser sintetizados como seguem. A recorrente é proprietária, desde 1998, de um lote de terreno no Concelho de Albufeira, com alvará camarário, datado de 1986, que lhe permitia a construção de uma moradia unifamiliar com o máximo de dois pisos. Nos termos do Decreto-Lei 351/93 - que prevê o regime de «caducidade» de licenças e aprovações urbanísticas incompatíveis com as disposições de um Plano Regional de Ordenamento do Território (PROT) que seja posterior à emissão das mesmas - foi pela recorrente solicitada, e obtida, a declaração de compatibilidade do alvará atrás referido com as regras de uso, ocupação de transformação do solo constantes do Plano Regional de Ordenamento do Território do Algarve (PROTAL), aprovado em 1991. Em consequência, a recorrente endereçou à Câmara Municipal competente um pedido de licenciamento de obra, o qual foi deferido por deliberação camarária em Outubro de 2000. Concluída a obra, foi emitido, em 2002, o correspondente alvará de licença de utilização.

No entanto - e como já se viu - em Abril de 1999 aprovou o Conselho de Ministros, por resolução, o Plano de Ordenamento da Ordem Costeira (POOC) de Burgau-Vilamoura, que veio a proibir (no seu artigo 20.º) novas construções «nos espaços naturais das arribas». Com fundamento em tal proibição - e ao abrigo da habilitação contida no já referido artigo 105.º do Decreto-Lei 380/99 - ordenou o Secretário de Estado Adjunto e do Ordenamento do Território, por despacho datado de 2003, a demolição do já construído pela recorrente. De tal despacho interpôs a Alphine Creek Ltd. recurso contencioso de anulação junto da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo. Sem êxito o fez. Inconformada, recorre então Alphine Creek para o Pleno daquele mesmo Tribunal, que mantém a decisão recorrida.

Nas alegações de recurso (para o Pleno do Supremo Tribunal) arguiu a recorrente a inconstitucionalidade das «disposições habilitadoras do acto administrativo de demolição», arguição essa que é largamente desatendida pelo Supremo Tribunal (fls. 538 e ss. dos autos). É, pois, desta última decisão de aplicação de «norma», cuja inconstitucionalidade, antes, se suscitara, que se interpõe o presente recurso de constitucionalidade.

8 - As normas sob juízo e as questões de constitucionalidade

Nas alegações de recurso para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo a recorrente identificou as «disposições habilitadoras do acto administrativo de demolição» - disposições essas cuja inconstitucionalidade arguía - como sendo uma «conjunto» ou uma «solução normativa» integrada essencialmente pelas seguintes normas:

1.ª A norma relativa à proibição de novas construções nos espaços naturais de arribas (artigo 20.º, n.º 1, alínea b) do POOC Burgau-Vilamoura), interpretada de tal modo que:

2.ª Se não permita aos interessados a demonstração da existência de condições de segurança das novas edificações naqueles espaços, conforme - no seu entender - possibilitaria o disposto no artigo 9.º, n.º 2 do POOC;

3.ª Se não salvaguarde o direito ao já construído (nas condições verificadas in casu), conforme - no seu entender - decorreria do disposto no artigo 91.º do POOC;

4.ª Se não entenda que o poder de ordenar a demolição [de obras que sejam construídas em violação do disposto em planos especiais], conferido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 105.º do Decreto-Lei 380/99 à autoridade administrativa, é um poder de exercício discricionário e não vinculado.

Como acima se viu, é justamente esta a «solução normativa» - que o Supremo Tribunal Administrativo efectivamente aplicou - que forma o objecto do presente recurso de constitucionalidade.

São de dois tipos as razões invocadas pelo recorrente para sustentar a inconstitucionalidade deste «conjunto de normas», ou desta «solução normativa», na interpretação que lhe foi conferida pela sentença recorrida. O primeiro tipo de razões é de natureza orgânica ou competencial. Começa, com efeito, a recorrente por sustentar que é organicamente inconstitucional - por violação da reserva de lei parlamentar fixada na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição - a «solução normativa» que habilitou o acto administrativo de demolição, por se traduzir ela numa «restrição» a um direito, liberdade e garantia que só poderia vir a ser regulada por lei do Parlamento. Depois, continua a sustentar-se a inconstitucionalidade destas mesmas «normas», na sua «dimensão aplicativa concreta», por lesão (substancial) da garantia constitucional da propriedade, consagrada no artigo 62.º da CRP; do direito à iniciativa económica privada, consagrado no artigo 61.º; e dos subprincípios da proporcionalidade e da tutela da confiança, decorrentes do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º

Vejamos então se procede alguma destas razões.

9 - Da questão de constitucionalidade orgânica

Alega antes do mais a recorrente que é organicamente inconstitucional a «solução normativa» agora em juízo por ser ela integrada por normas decorrentes de regulamentos administrativos e de acto legislativo governamental num domínio em que só a lei parlamentar deveria reger, por ser a «matéria» em causa respeitante a direitos, liberdades e garantias, conforme o previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.

Para justificar semelhante alegação são apresentados três argumentos essenciais. Primeiro, diz a recorrente, à «solução normativa» agora em juízo é conferido um sentido ablativo da propriedade, ou, pelo menos, um sentido justificativo da ablação de faculdades já consolidadas e inerentes ao direito de propriedade; segundo, o direito a não ser privado da sua propriedade, inscrito no artigo 62.º da CRP, é um direito fundamental, de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, pelo que - terceiro argumento - se lhe aplicará o especial estatuto que a Constituição confere a este tipo de direitos, e no qual se integra a necessidade de intervenção de lei parlamentar para a sua regulação.

Para fundamentar este raciocínio invoca a recorrente a jurisprudência do Tribunal Constitucional. Mas - e diga-se desde já - sem nenhuma razão o faz.

É verdade que o Tribunal tem dito, em jurisprudência firme, que o direito de propriedade privada, apesar de vir inserto no Título respeitante aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, tem uma estrutura de tal modo complexa que nela se incluirão, por certo, alguns direitos e faculdades que não deixarão de apresentar natureza análoga à dos Direitos, Liberdades e Garantias; e que, entre tais direitos e faculdades análogos se contará seguramente o direito de cada um à não privação arbitrária da sua propriedade (neste sentido, vejam-se, entre muitos outros, o Acórdão 491/2002, disponível em www.tribunalconstitucional.pt e ainda os Acórdãos n.º s 431/94 e 267/95, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente, 28.º Vol., p. 7 ss., 31.º Vol., p. 305 ss.)

No entanto, para que se entenda, como pretende a recorrente, que é este o direito que está em causa no caso concreto - de modo tal que a «solução normativa» agora em juízo deva ser considerada como parte integrante da reserva de competência legislativa do Parlamento, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da CRP, por dela decorrer um efeito «ablativo» de faculdades contidas em direito análogo a um direito, liberdade e garantia - fundamental é que se prove que a Constituição tutela o direito a construir como elemento integrante da propriedade, oponível enquanto tal ao legislador ordinário. Quer isto dizer que a questão de constitucionalidade orgânica colocada pela recorrente só pode ser resolvida se se resolver antes a primeira das questões de constitucionalidade substancial que foi suscitada: como se afirma na decisão recorrida (fls. 538 dos autos), «o que resta de substancial [da alegação apresentada] prende-se com os contornos do jus aedificandi».

Deste tema se tratará em seguida.

10 - Das questões de constitucionalidade substancial

10.1 - Alega a recorrente que são inconstitucionais «as normas habilitadoras do acto administrativo de demolição» por lesarem elas substancialmente a garantia constitucional da propriedade, consagrada no artigo 62.º da CRP.

Sobre o que seja, rigorosamente, esta garantia - ou em que é que consista o seu conteúdo e alcance - se tem ocupado, abundantemente, a jurisprudência do Tribunal. No já citado Acórdão 491/2002, e também no Acórdão 187/2001 (igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt) o Tribunal disse, em consonância com toda a sua jurisprudência anterior, que a garantia constitucional da propriedade deveria ser entendida de acordo com alguns postulados essenciais.

Primeiro, de acordo com o princípio da não identificação entre o conceito civilístico de propriedade e o seu correspondente conceito constitucional. Com efeito, o bem jurídico que a Constituição protege no artigo 62.º é um bem diverso daquele outro que é tutelado pela lei civil, quando configura tipicamente os direitos reais ou, em especial, o direito real máximo. Ao «garantir» a existência da propriedade, a Constituição protege antes do mais a faculdade que têm os particulares de aceder a bens susceptíveis de apropriação (res intra commercium), e de usar e dispor deles nos termos fixados por toda a ordem jurídica, constitucional e infraconstitucional. Assim sendo - e este é o segundo postulado que decorre de toda a interpretação que tem sido feita sobre o conteúdo deste específico parâmetro constitucional - o artigo 62.º da CRP consagra, não apenas direitos fundamentais (com estrutura análoga à dos direitos, liberdade e garantias), mas também uma importante garantia institucional.

Os direitos que aqui vão reconhecidos são, quer o já analisado direito de cada um à não privação arbitrária da propriedade (especificamente tutelado pelo n.º 2 do artigo 62.º), quer o direito de cada um de aceder aos bens susceptíveis de apropriação, e de deles fruir e dispor - inter vivos e mortis causa - nos termos do disposto por todo o ordenamento jurídico (direito especificamente tutelado pelo n.º 1 do artigo 62.º). Mas, por causa da existência destes direitos - e por causa do específico conteúdo que lhes deve ser reconhecido - a «garantia» da propriedade que vai consagrada no artigo 62.º da CRP tem ainda uma importante dimensão objectiva ou institucional, que se traduz em certas imposições que são endereçadas ao legislador ordinário. Negativamente, este está desde logo proibido de «afectar», ou «aniquilar», o núcleo essencial do instituto (infraconstitucional) da «propriedade», nos termos do qual se exercerão os direitos reconhecidos constitucionalmente; mas, para além disso - e positivamente, - está também o legislador obrigado a conformar, no âmbito da sua acção reguladora, o conteúdo definitivo e certo que tal instituto possa vir a ter.

Esta obrigação positiva do legislador ordinário, compreendida na «ordem de regulação» da «propriedade» que a Constituição lhe endereça, deve ser cumprida nos termos da Constituição. É isto que se diz na parte final do n.º 1 do artigo 62.º Tal significa que, neste domínio, a liberdade de conformação legislativa se encontra particularmente vinculada ao cumprimento de certos limites constitucionais: o poder legislativo está obrigado pela CRP a «conformar» a «propriedade», mas só o pode fazer nos «termos» por ela mesma definidos, ou seja, tendo em linha de conta o sistema constitucional no seu conjunto.

Alega a recorrente que foi, in casu, violada a garantia constitucional da propriedade. Ao dizê-lo, está portanto a mesma recorrente a sustentar que as normas de direito ordinário que lhe interditavam a construção que efectuou não foram emitidas pelo 'legislador' nos «termos da Constituição», visto que violaram os limites, dispostos pelo sistema constitucional no seu conjunto, à acção legislativa de conformação da propriedade.

No entanto, e como sempre tem dito o Tribunal (vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos n.º s 329/99, 149/99, 517/99 e 723/2004, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) é esta uma conclusão que nada permite retirar.

A interdição de construção foi fixada por norma de um plano especial de ordenamento do território, aprovado por Resolução do Conselho de Ministros, em harmonia com o previsto, desde logo, pela lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei 48/98, de 11 de Agosto), e pelo Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei 380/99, de 22 de Setembro, que veio desenvolver a lei de bases).

A emissão, por parte do 'legislador' ordinário, de todas estas normas, corresponde desde logo ao cumprimento do disposto no artigo 9.º, alínea e) da Constituição, que identifica como tarefa fundamental do Estado, para além da defesa da natureza e do ambiente, o «assegurar» de um «correcto ordenamento do território». Por outro lado, no artigo 65.º, a Constituição consagra o direito à habitação e ao urbanismo, cujo cumprimento obriga o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais à definição das «regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro de leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo» (n.º 4); como obriga a satisfação do direito ao ambiente e qualidade de vida (artigo 66.º, n.º 2, alínea b) que o Estado promova o ordenamento do território.

Ao contrário, portanto, do que é alegado pela recorrente, as normas em causa não excederam os limites impostos pela CRP ao legislador, na sua tarefa de «conformação» da «propriedade» nos termos da Constituição. Bem pelo contrário. Dado ser o «correcto ordenamento do território», em geral, uma tarefa fundamental do Estado - e dado corresponder a realização dessa tarefa, além do mais, ao cumprimentos dos deveres estaduais de realização dos direitos à habitação e ao urbanismo, e ao ambiente e qualidade de vida - a elaboração das normas de ordenamento do território que limitam o direito a construir inscrevem-se, de pleno, no núcleo de faculdades conformadoras de que dispõe o legislador, quando regula o modo de acesso, uso, e disposição da «propriedade privada», e o faz - por ordem do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 62.º - «nos termos da Constituição».

Assim sendo, não se pode considerar que o direito a construir seja um elemento integrante da tutela constitucional da propriedade, impondo-se enquanto tal ao legislador ordinário enquanto direito análogo a um direito, liberdade e garantia. Pelo mesmo motivo, não pode também concluir-se que todas as normas que tenham por efeito a «ablação» de um tal direito estejam sob reserva de competência da Assembleia da República, nos termos do artigo 165º, n.º 1, alínea b) da Constituição.

A conclusão é, aliás, extensível à outra alegação do recorrente, segundo a qual as normas em juízo violariam ainda o direito à iniciativa económica privada, consagrado no artigo 61º da CRP.

É certo que, com a consagração de um tal direito - também conhecido por liberdade de empresa - visa a Constituição garantir que, no contexto de uma economia de mercado e de uma sociedade aberta, a produção e distribuição de bens e serviços não sejam coisas vedadas à acção dos privados. Mas também é certo que os limites de uma tal garantia serão aqueles mesmos que decorrerão de todo o sistema constitucional; e se, entre eles, se conta a tarefa fundamental do Estado de assegurar o correcto ordenamento do território (tarefa estadual aliás concretizada nos termos dos artigos 65.º e 66.º da CRP), então, o exercício da liberdade de empresa não poderá deixar de estar limitado pelo valor imperativo das normas urbanísticas. Isto mesmo decorre do preceito constitucional, que diz que a iniciativa económica privada se exerce «nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.» (artigo 61.º, n.º 1)

10.2 - Finalmente, sustenta a recorrente que as normas em juízo, «habilitadoras do acto administrativo de demolição», lesam o princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.

A alegação comporta duas vertentes essenciais. Primeiro, diz-se que é lesado o princípio do artigo 2.º por se ter ofendido in casu a tutela da confiança legítima, sem a qual não é pensável a ordem constitucional de um Estado de direito; depois, invoca-se a violação do parâmetro da proibição do excesso ou da proporcionalidade enquanto vínculo de actuação do Estado, que integra de igual modo - como bem se sabe - a arquitectura essencial do artigo 2.º Vejamos então.

De acordo com a argumentação apresentada pela recorrente, a ofensa, no caso, da tutela da confiança legítima decorreria do 'facto' de se ter interpretado como se interpretou a norma contida no artigo 91.º do POOC de Burgau-Vilamoura, que determina - como já se viu - que «as disposições constante do POOC não põem em causa direitos adquiridos à data da sua entrada em vigor».

Segundo a recorrente, a proibição de construir, fixada pelo artigo 20.º do mesmo POOC, deveria ter sido, in casu, 'lida' à luz deste princípio de salvaguarda dos direitos adquiridos. E isto porque se deveria, no seu entender, tomar como «direitos adquiridos» os relativos a construções já erguidas naqueles espaços [nos espaços referidos pelo artigo 20.º], sempre que essas construções respeitem a lote de terreno integrado em loteamento validamente aprovado, com declaração de compatibilidade com o PROT vigente e estejam cobertas por licenças camarárias de construção e de habitação (fls. 462 dos autos). Se assim se não entender - diz finalmente a recorrente - far-se-á uma interpretação das normas sob juízo que é claramente inconstitucional, por se lesar o princípio da protecção da confiança.

Mais uma vez, porém, não tem razão a recorrente.

De acordo com a jurisprudência do Tribunal relativa à protecção da confiança (e vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos n.º s 287/90, 232/91, 269/2001 e 302/2006, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), para que se possa entender que uma dada actuação estadual - mormente, a actuação normativa, que é aquela que aqui interessa - é lesiva deste subprincípio do Estado de direito dois pressupostos devem ser, sempre, verificados: primeiro, deve o Estado ter iniciado comportamentos (ou tomado decisões) capazes de suscitar nos privados expectativas de continuidade; segundo, devem tais expectativas ser legítimas, ou fundadas em boas razões.

No caso, alega a recorrente que as expectativas quanto ao exercício do seu direito a construir lhe teriam sido conferidas por um comportamento continuado dos poderes públicos, que se traduziu quer na emissão de uma licença de loteamento (i), quer na emissão de uma declaração de compatibilidade dessa licença com o PROTAL (ii); quer, finalmente, na emissão de licenças camarárias de construção de obra e de utilização da mesma (iii).

Sucede, no entanto, que os dois últimos actos foram praticados depois da entrada em vigor da norma urbanística que proibia a realização de «novas construções» nos «espaços naturais das arribas». Como já se viu, e decorre do relato atrás feito, a proibição data de 1999, altura da entrada em vigor do POOC do Burgau-Vilamoura; enquanto as licenças camarárias de construção e utilização de obra datam, respectivamente, de 2000 e de 2002.

Não sendo - como acabou de se ver no ponto anterior - «arbitrária» ou merecedora de qualquer censura constitucional a proibição de construção fixada pelo POOC, as licenças camarárias que se emitiram depois da sua entrada em vigor não poderão ter gerado no recorrente quaisquer expectativas que se possam considerar legítimas, ou fundadas em boas razões. (Recorde-se aliás que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 103º, 2º n.º 1 alínea b) e 3º n.º 2 do Decreto-Lei 380/90, são nulas tais licenças). Como não poderiam ter gerado tais expectativas os actos anteriores, de licença de loteamento e de declaração de compatibilidade com o PROTAL, dada a diferente incidência que tinham quanto à possibilidade de construção.

Por último, invoca a recorrente a violação, in casu, do princípio da proporcionalidade.

É essa invocação que está em causa, quando se diz que, em obediência a tal princípio, o poder de ordenar a demolição de obra (conferido, como vimos, à autoridade administrativa pelo artigo 105.º do Decreto-Lei 380/99) deverá ser entendido como um dever de exercício discricionário e não vinculado; e ainda quando se diz que a proibição de construção fixada no artigo 20.º do POOC deveria ser lida de acordo com o estipulado no artigo 9.º, n.º 2 do mesmo POOC. Subjacente a toda esta argumentação está a ideia segundo a qual, constituindo a demolição de obra um sacrifício grave para o particular, estarão os poderes públicos obrigados a esgotar a possibilidade de adopção de alternativas que, sendo menos gravosas para os privados, realizem no entanto o mesmo fim de interesse público. Como, in casu, se não cumpriu esse dever estadual de adopção do meio mais benigno (correspondente, como se sabe, ao standard de exigibilidade, como segundo elemento do princípio da proporcionalidade), a interpretação normativa feita pela decisão recorrida - diz a recorrente - foi inconstitucional.

É evidente que toda esta argumentação só faria sentido se, no caso, estivesse verdadeiramente em causa a restrição de um direito, liberdade e garantia. Se assim fosse, deveria o legislador (como bem se sabe) ter escolhido o meio mais benigno para a realização do interesse público requerido pela restrição. Só que - e como já se viu - nenhuma das normas sob juízo restringe direito, liberdade e garantia, qualquer ele que seja; assim sendo, não se vê como lhes pode vir a ser aplicável, como parâmetro de validade, um qualquer dever (do legislador) de escolha dos meios de prossecução do interesse público que sejam menos onerosos para os particulares.

III - Decisão. - Pelos fundamentos expostos, decide-se não conceder provimento ao recurso, confirmando-se o juízo da decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.

Lisboa, 9 de Outubro de 2008. - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Gil Galvão - Tem voto de conformidade do Senhor Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha que não assina por não estar presente - Maria Lúcia Amaral.

Anexos

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  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-04-27 - Decreto-Lei 129/84 - Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano

    Aprova o estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (no uso da autorização conferida ao Governo pela Lei n.º 29/83, de 8 de Setembro).

  • Tem documento Em vigor 1990-12-07 - Decreto-Lei 380/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Prorroga o prazo fixado no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 116/90, de 5 de Abril, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 252/90, de 4 de Agosto, para a extinção e entrada em regime de liquidação do Centro Coordenador do Trabalho Portuário de Lisboa.

  • Tem documento Em vigor 1993-10-07 - Decreto-Lei 351/93 - Ministério do Planeamento e da Administração do Território

    ESTABELECE O REGIME DE CADUCIDADE DOS PEDIDOS E DOS ACTOS DE LICENCIAMENTO DE OBRAS, LOTEAMENTO E EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS EMITIDOS ANTERIORMENTE A DATA DA ENTRADA EM VIGOR DE PLANO REGIONAL DE ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO, OS QUAIS PASSAM A ESTAR SUJEITOS A CONFIRMACAO DA RESPECTIVA COMPATIBILIDADE COM AS REGRAS DE USO, OCUPAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DO SOLO, CONSTANTES DE PLANO REGIONAL DE ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO. A REALIZAÇÃO DE OBRAS DE URBANIZAÇÃO E DE CONSTRUCAO EFECTUADAS EM VIOLAÇÃO AO DISPOSTO NO PRESEN (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-08-11 - Lei 48/98 - Assembleia da República

    Estabelece as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo.

  • Tem documento Em vigor 1999-09-22 - Decreto-Lei 380/99 - Ministério do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território

    Estabelece o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial. Desenvolve as bases da política de Ordenamento do Território e de Urbanismo, definindo o regime de coordenação dos âmbitos nacional, regional e municipal do sistema de gestão territorial, o regime geral de uso do solo e o regime de elaboração, aprovação, execução e avaliação dos instrumentos de gestão territorial.

  • Tem documento Em vigor 1999-09-30 - Decreto-Lei 390/99 - Ministério do Ambiente

    Altera o Decreto-Lei n.º 56/99, de 26 de Fevereiro, que transpôs para o direito interno a Directiva n.º 86/280/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 12 de Junho, relativa aos valores limite e aos objectivos de qualidade para a descarga de certas substâncias perigosas, e a Directiva n.º 88/347/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 16 de Junho, que altera o anexo II da Directiva n.º 86/280/CEE (EUR-Lex)). Transpõe para a ordem jurídica interna o disposto na Directiva nº 90/415/CEE (EUR-Lex), de 27 de Julho, que altera o re (...)

  • Tem documento Em vigor 2003-12-10 - Decreto-Lei 310/2003 - Ministério das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente

    Altera pela segunda vez o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro (áreas clandestinas). Republicado em anexo.

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