Acórdão - Recurso extraordinário n.º 8/95 - Fixação de Jurisprudência
Acórdão - Recurso extraordinário n.º 8/95
(Decisão n.º 7262/94)
1 - O Sr. Ministro da Saúde vem interpor recurso extraordinário, ao abrigo do artigo 6.º da Lei 8/82, de 26 de Maio, da decisão em epígrafe, que recusou o visto ao contrato de avença celebrado entre a Maternidade de Júlio Dinis e Maria Celeste Gomes Oliveira.
Funda o recurso na oposição dessa decisão com outra que concedeu o visto em 16 de Junho de 1994 ao contrato de avença celebrado com António Manuel Ribeiro Almeida Tavares.
Oposição de decisões quanto à mesma questão fundamental, no domínio da mesma legislação, razão por que pede a procedência do recurso e a concessão do visto ao respectivo contrato de avença.
2 - Admitido liminarmente o recurso e cumprido o n.º 2 do artigo 9.º da Lei 8/82, apenas o representante do Ministério tomou posição quanto ao fundo da questão, concluindo o seu douto parecer com a proposta do seguinte acórdão de fixação de jurisprudência:
Nos termos do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei 146-C/80, a urgente conveniência de serviço só pode ser declarada em relação a diplomas ou despachos relativos a admissões de pessoal na função pública ou em relação a diplomas ou despachos relativos a situações de que resulte a mudança jurídico-funcional desse mesmo pessoal.
Corridos os vistos legais, impõe-se, antes do mais, verificar a existência dos pressupostos de prolação de acórdão de fixação de jurisprudência [artigo 24.º, alínea g), da Lei 86/89, de 8 de Setembro, na redacção da Lei 7/94, de 7 de Abril].
3 - A decisão de 29 de Dezembro de 1994, ora recorrida (processo 97110/94), assentou na seguinte factualidade:
Contrato de avença para prestação de serviços de consultadoria jurídica, compreendendo o patrocínio judiciário, com honorários de 80000$00 mensais;
Início da produção de efeitos por urgente conveniência de serviço desde 29 de Setembro de 1994;
Celebração do contrato por ajuste directo em 3 de Outubro de 1994 e entrado no Tribunal em 10 de Novembro de 1994.
3.1 - A recusa do visto fundamentou-se, em síntese:
Tratando-se de um contrato de prestação de serviços e não de trabalho, o regime aplicável é não o do artigo 3.º mas sim o do artigo 4.º do Decreto-Lei 146-C/80, de 22 de Maio, pelo que a invocação da urgente conveniência de serviço e a consequente produção de efeitos antes do visto são ilegais;
Atento o valor anual do contrato, deveria, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 211/79, de 12 de Julho, aplicável por força do artigo 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro, ter sido antecedido de concurso, sendo ilegal o ajuste directo.
3.2 - Por seu turno, a decisão de concessão do visto, pretendida em oposição com a ora recorrida, tirada em sessão diária de 16 de Junho de 1994 (processo 49039), assentou na seguinte factualidade:
Contrato de avença para prestação de serviços de consultadoria jurídica, compreendendo o patrocínio judiciário, com honorários de 80000$00 mensais e pelo prazo de um ano renovável;
Início da produção de efeitos por urgente conveniência de serviço a partir de 3 de Maio de 1994;
Celebração do contrato em 5 de Maio de 1994 e entrada no Tribunal em 19 de Maio de 1994;
Não comprovação da precedência de concurso.
Todavia, a decisão que concedeu o visto afirmou a conformidade legal do contrato.
3.3 - Verificam-se assim os pressupostos que viabilizam a fixação de jurisprudência, uma vez que, tendo transitado a decisão que concedeu o visto, há oposição entre ela e a ora recorrida quanto a duas questões fundamentais de direito, ambas foram proferidas no domínio da mesma legislação (Decretos-Leis n.os 41/84, 146-C/80 e 211/79) e perante idêntica situação factual (cf. Assento 1/87, Diário da República, 1.ª série, de 26 de Março de 1987).
A primeira questão fundamental de direito consubstancia-se na possibilidade de o contrato de avença poder produzir efeitos antes do visto por via da declaração da urgente conveniência de serviço, nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei 146-C/80.
3.4 - O contrato de avença, nos termos do artigo 17.º, n.os 1 e 3, do Decreto-Lei 41/84, está sujeito «ao regime previsto na lei geral quanto a despesas públicas em matéria de aquisição de serviços» e «tem por objecto prestações sucessivas no exercício de profissão liberal».
É manifesto, face àquela disposição legal, que o contrato de avença tem por objecto uma aquisição de serviços.
Na aquisição de serviços o prestador organiza (a sua actividade intelectual ou técnica) com autonomia, sem subordinação jurídica à direcção, ordens ou fiscalização da adquirente, obrigando-se perante este apenas a dar-lhe o resultado dessa actividade (cf. artigo 1154.º do Código Civil; Monteiro Fernandes, Noções Fundamentais de Direito do Trabalho, p. 49; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Fevereiro de 1994, in Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 391, p. 901).
O conceito de serviços é muito amplo e de definição residual por contraposição à aquisição de produtos, à empreitada e ao trabalho subordinado (cf. artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 211/79, de 12 de Julho; considerandos da Directiva n.º 92/50/CEE, de 18 de Junho, onde se afirma que «a melhor forma de descrever o domínio dos serviços é subdividi-lo em categorias»).
O conceito de trabalho independente, integrável naquele, é mais restrito, conforme decorre do artigo 5.º do Decreto-Lei 328/93, de 25 de Setembro.
Mais restrito ainda é o conceito de profissão liberal, integrável naqueles dois outros.
Numa primeira aproximação, em princípio, a profissão liberal implica uma actividade autónoma e independente «por conta própria», de carácter científico, artístico ou técnico, no âmbito de profissões cujo exercício pressupõe uma habilitação específica.
É o que decorre do artigo 3.º, n.os 1, alínea a), e 2, em contraposição com o n.º 4 do artigo 3.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e lista anexa.
Na verdade, todas as profissões constantes desta lista têm em comum o seu carácter técnico, artístico ou intelectual, para além do seu exercício «por conta própria».
Em contrapartida, e como categoria diversa, embora integrada no «trabalho independente», o n.º 4 daquele normativo reporta-se ao «exercício, por conta própria, de uma actividade exclusivamente de prestação de serviços não compreendida noutras categorias, sempre que o sujeito passivo não tenha nenhum empregado ou colaborador ao seu serviço».
Estas duas categorias de «trabalho independente» subsumem-se nos conceitos de «profissão liberal» e outras prestações de serviço por pessoas individuais.
Embora elaboradas para efeitos fiscais, aquelas categorias não podem deixar de constituir significativos subsídios para o recorte jurídico do conceito de «profissão liberal» como elemento integrante de contrato de avença para efeitos financeiros, tal como vem definido nos artigos 17.º do Decreto-Lei 41/84 e 7.º do Decreto-Lei 409/91.
3.5 - Por contraposição, no contrato de trabalho subordinado a termo certo, um dos três modos típicos da constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública (artigos 5.º e 9.º do Decreto-Lei 184/89, de 2 de Julho, e 14.º, n.º 2, 18.º, n.º 1, e 43.º, n.º 1, do Decreto-Lei 427/89, de 7 de Dezembro), o objecto é a própria actividade do trabalhador, a exercer sob a autoridade e direcção do empregador, numa relação de dependência integradora na organização e cadeia hierárquica da empresa, e do organismo ou serviço da Administração Pública.
Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Fevereiro de 1994, in Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 391, p. 901, são índices dessa subordinação jurídica:
A vinculação do trabalhador a horário de trabalho;
A existência de local de trabalho nas instalações do empregador ou em local por ele designado;
A retribuição certa, à hora, dia, semana ou mês;
A exclusividade da actividade laborativa em benefício de uma só entidade;
O regime fiscal e de segurança social.
3.6 - Decorre do artigo 3.º do Decreto-Lei 146-C/80 que nenhum diploma ou despacho podem produzir efeitos antes do visto do Tribunal de Contas, salvo se implicam a admissão ou mudança da situação jurídico-funcional do pessoal e tiver sido declarada a urgente conveniência de serviço.
Por seu turno, o artigo 4.º estabelece que «nenhum contrato pode produzir efeitos em data anterior à do visto».
Estes normativos têm de ser lidos consignadamente com as alíneas d) e g) do n.º 1 do artigo 1.º, que sujeitam a visto «os contratos de qualquer natureza ou valor» e «os diplomas ou despachos que envolvam abonos de qualquer espécie».
Estas duas alíneas com igual redacção constavam já do antecedente Decreto-Lei 22257, de 25 de Fevereiro de 1933 [artigo 6.º, n.º 2, alíneas e) e g)], e mesmo dos diplomas que o precederam.
3.7 - A doutrina e jurisprudência pacífica (cf. Trindade Pereira, O Tribunal de Contas, p. 115; Joaquim Delgado, Legislação do Tribunal de Contas, 2.ª ed., pp. 42 e 43) era no sentido que as expressões «diplomas e despachos» compreendiam as colocações, comissões retribuídas e «contratos individuais para o exercício de alguma função», isto é, «todas as formas usadas na lei para o provimento de cargos públicos».
Eram também por isso os contratos de pessoal, por contraposição aos contratos de material - obras, aquisição de bens e serviços -, sujeitos a visto, por força da outra alínea citada.
Face ao artigo 13.º, n.º 1, alíneas b) e f), da Lei 86/89, esse mesmo entendimento foi mantido pelo acórdão proferido no A. R. n.º 38/89, publicado na Revista do Tribunal de Contas, n.º 516, p. 183.
Que o contrato de trabalho a termo certo é uma forma de admissão de pessoal resulta igualmente claro do artigo 23.º do Decreto-Lei 247/92, de 7 de Novembro.
Impõe-se por isso concluir que o contrato de avença:
É um contrato de aquisição de serviços inerentes a uma profissão liberal;
Como tal, está sujeito a visto, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, alínea b), da Lei 86/89;
Daí que só possa produzir quaisquer efeitos jurídico-financeiros após o visto, por imperativo do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 146-C/80;
Consequentemente, não é um contrato de trabalho, logo não é um «diploma ou despacho» de admissão de pessoal (artigos 14.º, n.º 2, 18.º, n.º 1, e 43.º, n.º 1, do Decreto-Lei 427/89), pelo que não lhe é aplicável o regime da urgente conveniência de serviço do artigo 3.º do Decreto-Lei 146-C/80.
4 - O artigo 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei 41/84, ao mandar aplicar aos contratos de avença o regime da lei geral quanto a despesas públicas em matéria de aquisição de serviços, remete necessariamente para o regime do Decreto-Lei 211/79, de 12 de Julho (hoje, Decreto-Lei 55/95, de 29 de Março).
Diploma que, no seu artigo 5.º, n.os 1, alíneas b), e 2, alínea b), obrigava a concurso limitado as aquisições de serviços de valor superior a 800 contos e inferior a 4000 contos.
Ora, o valor anual do contrato era de 960 contos, pelo que deveria ter sido precedido daquela forma de concurso, com a tramitação adaptada do Decreto-Lei 405/93, então vigente (hoje, Decreto-Lei 55/95, por se tratar de aquisição de serviços).
Não o tendo sido, é também por isso ilegal o contrato, como bem se decidiu.
4.1 - Pelo que se deixa expendido, procedem inteiramente os vícios que fundamentaram a recusa de visto ao contrato de avença constante da decisão ora recorrida.
Vícios esses que também ocorreram no contrato de avença com António Manuel Almeida Tavares (processo 49039), cujo termo, aliás, deu origem à celebração do contrato a que foi recusado o visto.
Não obstante, aquele contrato foi visado pela decisão n.º 3152/94.
Não pode deixar-se passar em claro que o novo regime consagrado pela Reforma do Tribunal de Contas (Lei 86/89) no n.º 3 do artigo 25.º possibilita tais contradições de julgados.
Com efeito, ao arrepio do anterior regime (artigo 19.º, § 1.º, do Decreto 18962, de 25 de Outubro de 1910; artigos 52.º, § 2.º, e 58.º, § 2.º, do Decreto 1831, de 17 de Agosto de 1915), em que a recusa do visto só tinha lugar em sessão plenária do Tribunal por deliberação maioritária, aquele normativo viabiliza tal decisão em sessão diária desde que os dois juízes de turno estejam de acordo.
A quantidade cada vez maior dos processos submetidos a sessão diária de visto e a diversidade da composição dos turnos de juízes propiciam contradições de julgados como a ora em apreço.
O que torna mais frequentes os recursos extraordinários para fixação de jurisprudência.
O regime anterior - recusa de visto, por maioria do plenário do Tribunal (hoje da 1.ª Secção)- possibilitava uma jurisprudência uniformizadora e estável de grande utilidade não só para a Administração Pública como para os próprios serviços de apoio do Tribunal.
4.2 - Não merecendo reparo a legalidade da decisão recorrida e estando ela em contradição, quanto às mesmas questões de direito, com a anterior, impõe-se decidir e fixar jurisprudência.
Termos em que acordam os juízes do plenário geral do Tribunal de Contas em:
a) Julgar improcedente o recurso e manter a decisão n.º 7262/94, que recusou o visto ao contrato de avença com Maria Celeste Gomes Oliveira;
b) Fixar a seguinte jurisprudência:
1 - O contrato de avença tem por objecto uma aquisição de serviços e não pode produzir quaisquer efeitos antes do visto do Tribunal de Contas, por força do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 146-C/80, de 22 de Maio, sendo-lhe inaplicável o regime da urgente conveniência de serviço do artigo 3.º do mesmo diploma.
2 - Se o valor da aquisição de serviços for superior a 800 contos, deverá ser precedido de concurso, nos termos do artigo 5.º, n.º 4, alínea b), do Decreto-Lei 211/79, de 12 de Julho, vigente até à entrada em vigor do Decreto-Lei 55/95, de 29 de Março, por força do artigo 17.º, n.º 1, do Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro.
Cumpra-se o disposto no artigo 11.º da Lei 8/82, de 26 de Maio.
Lisboa, 16 de Outubro de 1995. - João Pinto Ribeiro, Presidente em exercício - Alfredo José de Sousa (relator) - Ernesto Luís Rosa Laurentino da -Cunha - Carlos Manuel Botelheiro Moreno - José de Oliveira Moita - Alípio Duarte Calheiros - José Alves Cardoso (votei o acórdão nos termos da declaração de voto anexa) - João Manuel Fernandes Neto - Manuel António Maduro - Manuel Cruz Pestana de Gouveia - Arlindo Ferreira Lopes de Almeida - Maria Adelina de Sá Carvalho - José Faustino de Sousa - Fernando José de Carvalho Sousa - Alfredo Jaime Menéres Correia Barbosa - José Manuel Peixe Pelica - Manuel Raminhos Alves de Melo - José Alfredo Mexia Simões Manaia. - Fui presente. José Manuel da Silva Pereira Bártolo.
Declaração de voto
Votei o acórdão, aplaudindo a decisão nele implícita de se reconhecer a oposição de julgados e, consequentemente, se ter conhecido de mérito.
Com efeito, era bem menos evidente neste caso do que em outros (como o do recurso extraordinário n.º 6/94 julgado nesta mesma sessão) que as decisões implícitas na decisão fundamento (a decisão n.º 3152) - de aceitar a produção de efeitos antes do visto e de admitir o regime da urgente conveniência de serviço em processos de avença - «se puseram» ao tribunal para chegar àquela decisão.
Na verdade, no processo relativo à referida decisão fundamento, a Contadoria limitou-se a suscitar a dúvida da necessidade ou não da documentação da precedência de concurso e o texto integral da decisão é apenas o seguinte:
Decidido em s. d. v. visar o presente contrato, por se encontrar em termos.
No tocante à redacção do assento, omitiria, no seu n.º 1, a referência à não produção de efeitos antes do visto, por se tratar de mera consequência legal da inaplicabilidade do regime da urgente conveniência de serviço.
José Alves Cardoso.