Acórdão 254/90
Processo 321/88
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - O Procurador-Geral da República, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Constituição (na versão da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro), veio requerer a declaração da inconstitucionalidade e da ilegalidade, com força obrigatória geral, de todas as normas que integram o Regulamento dos Concursos de Habilitação para o Grau de Chefe de Serviço Hospitalar da Carreira Médica Hospitalar e dos Concursos de Provimento dos Lugares de Chefe de Serviço Hospitalar da Mesma Carreira dos Quadros dos Estabelecimentos Dependentes da Secretaria Regional dos Assuntos Sociais, aprovado por despacho conjunto dos Secretários Regionais dos Assuntos Sociais e da Administração Pública do Governo Regional dos Açores de 3 de Fevereiro de 1987, publicado (sem número e sem data) no Diário da República, 2.ª série, de 4 de Março de 1987, e (com a epígrafe «Despacho Normativo 16/87») no Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores, 1.ª série, de 24 de Fevereiro de 1987, quer na sua versão originária, quer na que resultou da alteração da redacção do n.º 19 da secção VI do capítulo I do Regulamento em causa, operada pelo despacho conjunto dos mesmos Secretários Regionais de 7 de Maio de 1987, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 20 de Maio de 1987, e (com a epígrafe «Despacho Normativo 74/87») no Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores, 1.ª série, de 19 de Maio de 1987, com base no seguinte quadro argumentativo:
1.º Compete às região autónomas legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania [artigo 229.º, alínea a), da Constituição] e, bem assim, regulamentar as leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar [artigo 229.º, alínea b), segunda parte da Constituição], sendo óbvio que quanto a esta competência regulamentar valem também os limites e pressupostos gerais da competência legislativa regional, a saber: respeito da Constituição, das leis gerais da República e da reserva de competência dos órgãos de soberania e confinamento da intervenção à matéria de interesse específico regional.
O exercício destas duas atribuições é da exclusiva competência da assembleia regional (artigo 234.º) e deve revestir sempre a forma de decreto legislativo regional [artigo 34.º, n.º 1, referido às alíneas c) e i) do n.º 1 do artigo 32.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores - Lei 39/80, de 5 de Agosto, revista pela Lei 9/87, de 26 de Março].
São leis gerais da República as leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolva a sua aplicação sem reservas a todo o território nacional (n.º 4 do artigo 115.º da Constituição).
Segundo pacífica orientação da jurisprudência constitucional, constituem matéria de interesse específico de uma região as que lhe respeitem exclusivamente ou que nela exijam um especial tratamento por aí assumirem especial configuração.
Consideram-se matérias reservadas à competência legislativa própria dos órgãos de soberania, quanto à Assembleia da República, as elencadas nos artios 164.º, 167.º e 168.º da Constituição, e, quanto ao Governo, as indicadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 201.º da Constituição, pese embora as conhecidas divergências existentes a propósito da competência para emitir legislação de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam.
Refira-se, por último, que estes diplomas de desenvolvimento devem invocar expressamente a lei de bases ao abrigo da qual são aprovados (n.º 3 do artigo 201.º da Constituição) e que os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão (n.º 7 do artigo 115.º da Constituição).
2.º O Regulamento em causa é:
a) Inconstitucional, porque não versa matéria de interesse específico para a Região, assim violando o artigo 229.º, alíneas a) e b), da Constituição;
b) Inconstitucional, porque, visando regulamentar uma lei geral da República, foi emitido por órgão constitucionalmente incompetente, o governo regional, assim violando o artigo 234.º da Constituição;
c) Ilegal, por violação, pelo mesmo motivo, do artigo 26.º, n.º 1, alínea d), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na redacção originária da Lei 39/80, de 5 de Agosto, ao tempo vigente.
3.º O despacho que aprovou o Regulamento em causa, bem como o despacho que posteriormente alterou um dos seus preceitos, pretenderam expressamente ter sido emitidos «ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º do Decreto Legislativo Regional 16/83/A, de 28 de Abril».
Este Decreto Legislativo Regional 16/83/A, por seu turno, visou adaptar à Região Autónoma dos Açores o Decreto-Lei 171/82, de 10 de Maio, que estabelecera o regime geral de recrutamento e selecção de pessoal dos quadros dos serviços e organismos da Administração Pública, adaptação prevista no artigo 1.º, n.º 2, deste decreto-lei. Nos termos do artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do Decreto Legislativo Regional 16/83/A - norma idêntica, salvo adaptações impostas pela realidade política regional, ao preceito com o mesmo número do Decreto-Lei 171/82 - as operações de recrutamento e selecção de pessoal e os programas das provas serão estabelecidos, quando não se trate de lugares de ingresso das carreiras comuns à Administração, em regulamento aprovado, mediante despacho conjunto, pelo membro do Governo Regional competente e pelo Secretário Regional da Administração Pública.
Foi, como se disse, com invocação expressa desta norma que foram emitidos os despachos conjuntos que aprovaram e alteraram o Regulamento ora impugnado. Mas tal invocação é incorrecta.
Desde logo, porque o Decreto-Lei 171/82 (a cuja adaptação regional visou o Decreto Legislativo Regional 16/83/A) foi entretanto revogado e substituído pelo Decreto-Lei 44/84, de 3 de Fevereiro, que veio definir o regime geral do recrutamento e selecção de pessoal e do processo dos concursos na função pública. A sua adaptação à Região Autónoma dos Açores, consentida pelo seu artigo 1.º, n.º 2, foi tentada através do Decreto Legislativo Regional 8/87, aprovado na Assembleia Regional dos Açores em 7 de Abril de 1987, o qual, porém, em sede de fiscalização preventiva de constitucionalidade, mereceu pronúncia negativa por parte do Tribunal Constitucional (Acórdão 109/87, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 2 de Julho de 1987).
Confirmado o diploma, após o veto do Ministro da República, viria a ser publicado como Decreto Legislativo Regional 18/87/A, de 18 de Novembro, mas contra o mesmo - e, bem assim, contra a norma constante do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 44/84, ao abrigo da qual fora emitido - foi apresentado, pelo procurador-geral da República, pedido de apreciação e declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade, ainda não julgado pelo Tribunal Constitucional.
Porém, enquanto não for declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do Decreto Legislativo Regional 18/87/A, o mesmo permanece actuante, designadamente nas partes em que revoga o Decreto Legislativo Regional 16/83/A (artigo 54.º, n.º 1) e em que, por declaração de aplicação dos artigos 2.º a 5.º do Decreto-Lei 44/84 (artigo 1.º), possibilita a existência de processo de concurso próprio para o recrutamento e selecção do pessoal médico (artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei 44/84).
O certo, porém, é que mediante o Regulamento em causa não se regulamentou o Decreto Legislativo Regional 16/83/A - que não se configura como lei materialmente habilitante do questionado Regulamento -, mas antes o Decreto-Lei 310/82, de 3 de Agosto, que estabeleceu o regime dos concursos das carreiras médicas, com saliência para os da carreira médica hospitalar, e foi a disciplina geral destes concursos que o Regulamento ensaiou desenvolver e concretizar.
Ora, o Decreto-Lei 310/82 deve considerar-se lei geral da República, com nítida vocação espacial indiferenciada a todo o território, de que nenhuma porção se aliena, pelo que a sua regulamentação na Região Autónoma dos Açores competia exclusivamente à Assembleia Regional, estando o regulamento respectivo sujeito à forma de decreto legislativo regional e, bem assim, à assinatura e à eventual iniciativa de controlo da constitucionalidade do Ministro da República.
Acresce que o Decreto-Lei 310/82, reservara, no seu artigo 12.º, n.º 7, a regulamentação dos concursos ao Governo da República, pelo Ministro dos Assuntos Sociais (mais tarde, Ministro da Saúde), tornando assim constitucional e estatutariamente indisponível para a Região a mesma regulamentação.
Por último, não se divisa, na matéria do regulamento regional, um interesse específico do arquipélago dos Açores, pelo que assim se inobservou outro limite ao poder regulamentar regional.
Anexou-se ao pedido cópia do parecer 93/87, de 11 de Março de 1988, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, com a menção de que daquele deveria ser considerado parte integrante.
2 - Em obediência ao disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, foi notificado o Presidente do Governo Regional dos Açores a fim de, no caso de assim ser julgado conveniente, se pronunciar sobre o pedido, havendo produzido a resposta que consta dos autos e cujo quadro conclusivo se apresenta do seguinte teor:
1.º É ao Governo Regional, como órgão superior da Administração Regional [alínea d) do artigo 229.º da Constituição], que cabe a gestão dos serviços regionais e a prática de todos os actos relativos aos funcionários regionais [cf. alíneas c) e d) do artigo 44.º do Estatuto da Região não revisto], nomeadamente a abertura e realização de concursos;
2.º Nesta conformidade, o Decreto-Lei 310/82 - aplicável à Região por força do n.º 3 do artigo 75.º do Estatuto não revisto - tem de ser lido de acordo com as competências atrás mencionadas;
3.º O Decreto-Lei 310/82 jamais refere no seu articulado - máxime no seu artigo 4.º, que estabelece o âmbito de aplicação - as regiões autónomas;
4.º Dessa omissão, porém, não pode concluir-se pela inexistência de competências administrativas regionais nesta matéria, sob pena de ofensa dos preceitos constitucionais e estatutários referidos;
5.º O artigo 12.º do Decreto-Lei 310/82 limita-se a regular aspectos muito específicos dos regulamentos dos concursos para as carreiras médicas;
6.º O seu n.º 7 tem de ser lido de acordo com o âmbito de aplicação do diploma e, assim, não estabelece qualquer reserva de poder regulamentar, limitando-se a regular o modo de aprovação dos regulamentos de concursos no âmbito dos serviços dependentes do Ministério da Saúde ou outros ministérios;
7.º Aquela norma - o mesmo n.º 7 do artigo 12.º do Decreto-Lei 310/82 - assume-se como norma especial face ao regime geral de recrutamento e selecção constante do Decreto-Lei 171/82, de 10 de Maio, adaptado à Região pelo Decreto Legislativo Regional 16/83/A, de 28 de Abril, nos termos dos quais as carreiras médicas não estão excluídas do seu âmbito de aplicação;
8.º Considerando que em tudo que o regime especial não preveja se aplica o regime geral e porque a aprovação dos regulamentos dos concursos das carreiras médicas para os serviços regionais é justamente um dos aspectos não contemplados no artigo 12.º do Decreto-Lei 310/82, a esta matéria há-de, pois, aplicar-se a alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º do Decreto Legislativo Regional 16/83/A;
9.º Além disso, a gestão dos serviços regionais, bem como do respectivo pessoal, são da exclusiva competência da Administração Regional, pelo que se trata de matéria que necessita de tratamento exclusivo na Região;
10.º Segue-se, assim, que o Despacho Normativo 16/87 se limitou a regulamentar o Decreto Legislativo Regional 16/83/A, no uso da competência prevista na alínea b) do artigo 229.º da Constituição, e foi proferido, ao abrigo da correspondente lei habilitante, com respeito de todos os limites constitucionalmente impostos aos regulamentos regionais.
Termos em que, com o necessário suprimento, deve ser indeferido o pedido, com todas as consequências legais.
Tudo visto, cabe agora apreciar e decidir.
II - A fundamentação
1 - Liminarmente, importa assinalar qual a exacta dimensão do thema decidendum e estabelecer as conexões normativas do Regulamento em que aquele se inscreve.
Vejamos então.
Por despacho conjunto dos Secretários Regionais dos Assuntos Sociais e da Administração Pública do Governo Regional dos Açores de 3 de Fevereiro de 1987 (Diário da República, 2.ª série, de 4 de Março de 1987, e Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores, 1.ª série, de 24 de Fevereiro de 1987), foi aprovado o Regulamento dos Concursos de Habilitação para o Grau de Chefe de Serviço Hospitalar e dos Concursos de Provimento dos Lugares de Chefe de Serviço Hospitalar da Mesma Carreira dos Quadros dos Estabelecimentos Dependentes da Secretaria Regional dos Assuntos Sociais, nele se aduzindo como justificação preambular o seguinte quadro argumentativo:
Considerando que o Decreto-Lei 310/82, de 3 de Agosto, criou na carreira médica hospitalar o grau de chefe de serviço hospitalar, a adquirir através de concurso de habilitação;
Considerando que o mesmo diploma prevê o concurso de provimento com vista ao preenchimento dos lugares de chefe de serviço hospitalar dos quadros de pessoal;
Considerando que o Decreto Legislativo Regional 16/83/A, de 28 de Abril, tornou obrigatório o recurso à forma de despacho conjunto para regulamentar os concursos das carreiras médicas, aprova-se o seguinte regulamento [...]
Este Regulamento, expedido ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º, do Decreto Legislativo Regional 16/83/A, desenvolvia-se ao longo de 2 capítulos e 14 secções, concebidas do modo seguinte:
Capítulo I - Do concurso de habilitação.
Secção I - Da validade, abertura e tipo de organização do concurso.
Secção II - Do aviso de abertura.
Secção III - Apresentação das candidaturas.
Secção IV - Admissão a concurso.
Secção V - Do júri.
Secção VI - Da prova.
Secção VII - Da elaboração da lista de classificação final, diploma e restituição de documentação.
Capítulo II - Dos concurso de provimento.
Secção I - Da abertura, validade e tipo do concurso.
Secção II - Do júri.
Secção III - Do aviso de abertura.
Secção IV - Apresentação de candidaturas.
Secção V - Admissão a concurso.
Secção VI - Selecção de concorrentes. Apreciação curricular.
Secção VII - Da elaboração da lista de classificação final. Opção e provimento.
Entretanto, por despacho conjunto dos mesmos Secretários Regionais (Diário da República, 2.ª série, de 20 de Maio de 1987, e Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores, 1.ª série, de 19 de Maio de 1987), procedeu-se à reformulação do n.º 19 da secção VI do capítulo I do Regulamento em causa, uma vez que o texto da sua versão originária havia suscitado algumas dúvidas.
2 - O Decreto-Lei 171/82, de 10 de Maio, considerando que a melhoria da eficiência da Administração está condicionada, designadamente, pela qualidade dos indivíduos que lhe prestam serviço ou actividade, a qual é por sua vez função dos métodos de recrutamento e selecção utilizados, veio estabelecer o regime geral de recrutamento e selecção do pessoal dos quadros dos serviços ou organismos da Administração Pública, instituindo o sistema de concurso como forma de provimento de todos os lugares de ingresso e de acesso da função pública, com excepção dos cargos de direcção.
No artigo 1.º, n.º 1, integrou no seu âmbito de aplicação o pessoal dos quadros dos serviços ou organismos da administração central e dos institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos, dispondo no n.º 2 que tal regime poderia ser aplicado, com as necessárias adaptações, «ao pessoal das regiões autónomas, mediante decreto regional».
E, na sequência desta estatuição, foi editado o Decreto Legislativo Regional 16/83/A, definindo os princípios gerais enformadores do recrutamento e selecção de pessoal dos quadros e serviços ou organismos da administração regional autónoma dos Açores e dos institutos públicos regionais que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos.
Em conformidade com o disposto no artigo 7.º deste diploma regional, os prazos de validade e o regime geral de tramitação dos concursos haveriam de constar de portaria a aprovar pelo Secretário Regional da Administração Pública, vindo tal regulamentação a ser concretizada através da Portaria 62/83, publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores, 1.ª série, de 16 de Agosto de 1983.
Todavia, logo a seguir, intentando-se definir «os princípios gerais enformadores do recrutamento e selecção de pessoal e do processo de concurso na Administração Pública, em ordem a pôr em prática uma política de recursos humanos equilibrada», foi publicado o Decreto-Lei 44/84, de 3 de Fevereiro, que no seu artigo 54.º, n.º 1, revogou o já referenciado Decreto-Lei 171/82.
Aquele diploma, a propósito do objecto e âmbito da sua aplicação, estatuía no artigo 1.º, n.º 2, que o regime nele estabelecido, com observância do disposto nos artigos 4.º e 5.º - princípios obrigatórios a respeitar no recrutamento e selecção de pessoal e obrigatoriedade de concursos -, se aplicaria às regiões autónomas, mediante diploma das respectivas assembleias regionais, que o regulamentariam, tendo em conta a realidade insular.
Por outro lado, no seu artigo 2.º excluía daquele regime o recrutamento de pessoal dirigente abrangido pelo Decreto-Lei 191-F/79, de 26 de Junho, bem como os concursos abertos antes da sua entrada em vigor e até ao termo do período da sua validade, e autorizava que o recrutamento e selecção de pessoal docente, de investigação, médico, de enfermagem e administradores hospitalares pudesse obedecer a processo de concurso próprio, com observância do disposto nos artigos 4.º e 5.º (itálicos acrescentados).
A aplicação do Decreto-Lei 44/84 à Região Autónoma dos Açores, em consonância com a estatuição ali contida no artigo 1.º, n.º 2, só veio a ser efectuada através do Decreto Legislativo Regional 18/87/A, de 18 de Novembro, cujo processo de formação legislativa se revestiu, aliás, de particulares vicissitudes.
Com efeito, após a aprovação pela Assembleia Regional dos Açores, em sessão plenária de 7 de Abril de 1987, o texto então registado como Decreto Legislativo Regional 8/87/A, foi enviado ao Ministro da República para assinatura, havendo este, porém, requerido ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de todas as suas normas.
Este Tribunal, pelo Acórdão 190/87, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 2 de Julho de 1987, pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade de todas as normas do Decreto Legislativo Regional 8/87/A, por globalmente infringirem o disposto no artigo 229.º, alínea b), em articulação com os artigos 114.º, n.º 2, 201.º, n.º 1, alínea c), e 229.º, alínea a), todos da Constituição.
Simplesmente, na sequência do veto de constitucionalidade oposto pelo Ministro da República, a Assembleia Regional dos Açores confirmou o diploma, que veio a ser editado como Decreto Legislativo Regional 18/87/A, diploma este que revogou, no seu artigo 54.º, o Decreto Legislativo Regional 16/83/A e a Portaria 62/83.
3 - Ainda no domínio das conexões normativas do Regulamento em causa, importa ter presente o Decreto-Lei 310/82, de 3 de Agosto, que veio regular as carreiras médicas, ao qual se faz referência na respectiva justificação preambular (na actualidade o regime das carreiras médicas acha-se disciplinado pelo Decreto-Lei 73/90, de 6 de Março).
Naquele diploma, depois de se ponderar o facto de se encontrar bastante dispersa e nalguns aspectos desactualizada a legislação que institucionaliza e regulamenta a carreira médica, considera-se «muito conveniente não só actualizar princípios e normas de procedimento como também reunir num único diploma o essencial sobre o assunto, sem descurar a relativa flexibilidade que a especial delicadeza do problema vem a exigir» (cf. respectivo preâmbulo).
A instituição das carreiras médicas dotadas de natureza idêntica à das carreiras profissionais visa a legitimição, a garantia e a organização do exercício da actividade médica nos serviços públicos de saúde, com base nas adequadas habilitações profissionais e sua evolução em termos de formação permanente e prática profissional (artigos 2.º e 3.º).
Como instrumento privilegiado na consecução destes objectivos, foi prevista a realização de concursos de habilitação - destinados, numa única época anual, a conceder graus de carreira mediante a realização de provas - e de concurso de provimento - e normalmente documentais, podendo embora, em determinados casos, envolver prestação de provas, destinados a recrutar os profissionais previamente habilitados com o respectivo grau, em ordem ao preenchimento das vagas existentes em lugares dos quadros e constantes dos respectivos avisos de abertura dos concursos. O regulamento dos concursos será aprovado por portaria do Ministro dos Assuntos Sociais (artigo 12.º).
As carreiras médicas estruturam-se a nível nacional e em graus - títulos que hierarquizam na carreira, legitimam o exercício profissional e conferem a expectativa de ocupação de lugares e cargos dos estabelecimentos e serviços de saúde, não constituindo por si só vinculação à função pública -, dispondo também de amplitude nacional e validade das graduações nelas alcançadas (artigo 14.º).
São reconhecidas três carreiras médicas - saúde pública, clínica geral e hospitalar - reflectindo esta distinção a correspondente diferenciação profissional, sem prejuízo, porém, da intercomplementaridade de formação e da devida cooperação profissional, em termos coerentes com a integralidade das prestações de saúde e com a unidade sistemática dos serviços de saúde (artigo 13.º).
A carreira médica hospitalar, aquela que aqui mais importa considerar, é tratada especificamente no capítulo IV, onde são definidos o perfil profissional do médico desta carreira (artigo 23.º), os graus que ela comporta - assistente hospitalar e chefe de serviço hospitalar -, podendo candidatar-se a este último grau, mediante concurso com prestação de provas, os assistentes hospitalares com, pelo menos, cinco anos de exercício correspondentes a este grau (artigo 24.º) e as condições de formação (artigo 25.º). [Presentemente, o Decreto-Lei 73/90 faz compreender na carreira médica hospitalar as categorias de assistente, assistente graduado e chefe de serviço (artigo 26.º), sendo certo que a habilitação profissional dos médicos hospitalares para efeitos de ingresso e acesso na carreira é constituída pelos graus de especialista e consultor, representando estes um título de habilitação profissional que é requisito de provimento em categorias de carreira, não conferindo por si só vinculação à função pública (artigos 29.º e 6.º)].
Os capítulos subsequentes do Decreto-Lei 310/82 são dedicados à regulação do exercício profissional (capítulo V), dos regimes de trabalho (capítulo VI), do provimento (capítulo VII), das remunerações (capítulo VIII), das normas de transição (capítulo IX), das disposições finais e transitórias (capítulo X) e da vigência e execução (capítulo XI).
De assinalar que no articulado do Decreto-Lei 310/82 não é feita qualquer referência às regiões autónomas ou a qualquer particularidade específica de que nelas se possam revestir as carreiras médicas. Ao contrário, no quadro III a ele anexo (referido no artigo 36.º) compendia-se uma classificação em quatro categorias dos concelhos da República - do continente e das regiões autónomas, indiferenciadamente - estabelecendo-se aí certas condições de preferência na colocação de clínicos gerais.
4 - Entretanto, em cumprimento do disposto no artigo 12.º, n.º 7, do diploma que definiu o regime legal das carreiras médicas - o regulamento dos concursos deveria ser aprovado por portaria do Ministro dos Assuntos Sociais -, foi publicada a Portaria 1103/82, de 23 de Novembro, contemplando a matéria respeitante aos concursos para os graus e lugares da carreira médica hospitalar (assistente hospitalar e chefe de serviço hospitalar), considerada de regulamentação particularmente urgente, segundo a respectiva nota preambular, a fim de se possibilitar a abertura de concursos numa área que, pela sua importância, se pretendia adaptar o mais rapidamente possível ao espírito da nova legislação.
A disciplina atinente aos concursos de habilitação e de provimento para o grau de chefe de serviço hospitalar - as únicas que na situação aqui em presença importa considerar - veio a ser objecto de modificação pela Portaria 58/83, de 25 de Janeiro, sendo, porém, ambos os diplomas, na parte respeitante a estas matérias - capítulos III e IV da Portaria 1103/82 e n.os 7.º e 8.º da Portaria 58/83 -, objecto de revogação pela Portaria 231/86, de 21 de Maio, a qual aprovou um novo Regulamento do Concurso de Habilitação para o Grau de Chefe do Serviço Hospitalar da Carreira Médica Hospitalar e dos Concursos de Provimento dos Lugares de Chefe de Serviço Hospitalar da Referida Carreira dos Quadros ou Mapas dos Estabelecimentos Dependentes do Ministério da Saúde.
De harmonia com este Regulamento, o concurso de habilitação para chefe de serviço hospitalar destina-se à concessão do respectivo grau, que tem validade nacional (n.º 1).
A competência para autorizar a abertura do concurso pertence ao Ministro da Saúde, podendo ser delegada no director-geral dos Hospitais (n.º 2).
Sob a supervisão da Direcção-Geral dos Hospitais às comissões inter-hospitalares caberá, como órgãos de coordenação regional de assistência hospitalar, programar, dirigir e executar o concurso pelos meios e através das acções previstos no Regulamento (n.º 3).
Por cada área profissional haverá uma única época anual, devendo o concurso realizar-se com um ou mais júris, consoante o número de candidatos, sem prejuízo da sua validade nacional, realizando-se o concurso por regiões hospitalares sempre que haja necessidade de mais de um júri (n.os 4 e 4.1).
O tipo de organização do concurso será definido em despacho do director-geral dos Hospitais, a publicar simultaneamente com o despacho de constituição dos júris na 2.ª série do Diário da República (n.os 5 e 16).
A abertura do concurso é obrigatoriamente tornada pública mediante aviso publicado no Diário da República, 2.ª série, e sempre que for considerado conveniente através de órgãos de comunicação social de expansão nacional (n.º 6).
Ao concurso podem candidatar-se os assistentes hospitalares com, pelo menos, cinco anos civis de exercício correspondente a este grau em estabelecimentos oficiais de saúde (n.os 12 e 13).
Às comissões inter-hospitalares compete afixar as listas provisórias dos candidatos admitidos, admitidos condicionalmente e excluídos, podendo os excluídos levar recurso, com efeito suspensivo, ao Ministro da Saúde (n.os 13 e 13.1).
Terminadas as provas, o júri elaborará a lista da classificação final, sujeita a homologação pelo director-geral dos Hospitais e publicada no Diário da República, cabendo dela recursos para o Ministro da Saúde (n.os 22, 23 e 24).
A Direcção-Geral dos Hospitais emitirá o diploma comprovativo do grau de chefe de serviço hospitalar (n.º 25).
Este grau constitui condição especial para o provimento no lugar de chefe de serviço hospitalar, representando um dos requisitos imprescindíveis na admissão ao concurso de provimento respectivo (n.os 27 a 56).
5 - Chegados ao fim do percurso que se seguiu ao longo do texto que vem de ser apreciado, não pode deixar de se sublinhar a flagrante afinidade, formal e de conteúdo, que se verifica entre o regulamento aprovado por despacho conjunto dos Secretários Regionais dos Assuntos Sociais e da Administração Pública do Governo Regional dos Açores de 3 de Fevereiro de 1987 (alterado por despacho conjunto dos mesmos Secretários Regionais de 7 de Maio de 1987) e a Portaria 231/86, com especial destaque para os diversos actos do concurso de habilitação para o grau de chefe de serviço hospitalar da carreira médica hospitalar que vêm de se referir, merecendo destaque algumas diferenças verificadas, pelo particular significado que revestem na situação em apreço.
Vejamos.
As competências atribuídas na portaria ao Ministro da Saúde [autorização para a abertura do concurso (n.º 2); recurso dos candidatos excluídos (n.os 13.1 e 13.2); recurso da lista da classificação final (n.º 24)] pertencem, no Regulamento, ao director-geral dos Assuntos Sociais (n.os 2, 13.1, 13.2 e 24, respectivamente).
As competência do director-geral dos Hospitais [autorização, por delegação, para a abertura do concurso (n.º 2); tipo de organização do concurso (n.º 5); homologação da lista da classificação final (n.º 23)] aparecem cometidas ao director regional de Saúde (n.os 2, 5 e 23, respectivamente).
As competências das comissões inter-hospitalares [programação, direcção e execução do concurso (n.º 3); afixação das listas provisórias e definitivas (n.os 13 e 14)] e da Direcção-Geral dos Hospitais [emissão do diploma comprovativo do grau (n.º 25)] transitaram, no diploma questionado, para a Direcção Regional de Saúde (n.os 3, 13, 14 e 25, respectivamente).
A publicação da abertura do concurso e da lista da classificação final há-de ter lugar, obrigatoriamente, de acordo com a portaria, na 2.ª série do Diário da República, (n.os 6 e 23), enquanto, segundo o Regulamento, deve verificar-se no Jornal Oficial da Região (n.os 6 e 23).
Não obstante a mera dimensão regional do Regulamento, nele se atribui, talqualmente na portaria, ao concurso de habilitação para chefe de serviço hospitalar para concessão do respectivo grau validade nacional (n.º 1).
Encerrado que se mostra este ciclo, na busca da exacta dimensão do thema decidendum e das conexões normativas do Regulamento sob sindicância (cf. supra, II, n.º 1), é tempo de, com base nos elementos materiais até agora recolhidos, partir ao encontro das diversas questões postas no pedido do Procurador-Geral da República.
Comecemos então.
6 - Sustenta-se no requerimento inicial que «mediante o Regulamento em causa não se regulamentou o Decreto Legislativo Regional 16/83/A - que não se configura como lei materialmente habilitante do questionado Regulamento -, mas antes o Decreto-Lei 310/82, de 3 de Agosto, que estabeleceu o regime dos concursos das carreiras médicas, com saliência para os da carreira médica hospitalar, e foi a disciplina geral destes concursos que o Regulamento ensaiou desenvolver».
Ora, prossegue-se naquele petitório, «o Decreto-Lei 310/82 deve considerar-se lei geral da República, com nítida vocação espacial indiferenciada a todo o território, de que nenhuma porção se aliena, pelo que a sua regulamentação na Região Autónoma dos Açores competia exclusivamente à Assembleia Regional, estando o regulamento respectivo sujeito à forma de decreto legislativo regional e, bem assim, à assinatura e à eventual iniciativa de controlo da constitucionalidade do Ministro da República».
Acresce ainda, no entendimento do signatário da petição, «que o Decreto-Lei 310/82 reservara, no seu artigo 12.º, n.º 7, a regulamentação dos concursos ao Governo da República, pelo Ministro dos Assuntos Sociais (mais tarde, Ministro da Saúde), tornando assim constitucional e estatutariamente indisponível para a Região a mesma regulamentação».
E por último, aduz-se naquela peça, não se divisa «na matéria do regulamento regional, um interesse específico do arquipélago dos Açores, pelo que assim se inobservou outro limite ao poder regulamentar regional».
Mas será efectivamente assim?
Antes de responder a esta interrogativa, cabe abordar uma questão preliminar que, de algum modo, com ela se interliga e a condiciona.
Dispõe-se no artigo 115.º, n.º 7, da Constituição que «os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão», sujeitando-se assim todo e qualquer regulamento, independentemente do órgão ou autoridade donde tiver dimanado, à imposição ali contida.
Deste modo, compreendem-se no âmbito de previsão daquela regra constitucional todos os regulamentos, nomeadamente os que provenham do Governo [artigo 202.º, alínea c)], dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas [artigo 229.º, n.º 1, alínea d) - artigo 229.º, alínea b), na versão da Lei 1/82, de 30 de Setembro] e dos órgãos próprios das autarquias locais (artigo 242.º).
Assim sendo, todos estes regulamentos hão-de estar necessariamente associados a uma lei, à lei que precede cada um deles e que, por força daquele comando constitucional, tem de ser obrigatoriamente citada no próprio regulamento aquando da sua expedição.
E como bem se extrai do referido artigo 115.º, n.º 7, nem sempre é o mesmo o papel dessa lei precedente:
1) Umas vezes a lei a referir é aquela que o regulamento visa regulamentar - será o caso dos regulamentos de execução stricto sensu ou dos regulamentos complementares;
2) Outras vezes a lei a indicar é aquela que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
Na verdade, acompanhando o ensino de Afonso Queiró, «Teoria dos Regulamentos», in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, p. 19, deve dizer-se que «cada autoridade ou órgão só pode elaborar os regulamentos para cuja feitura a lei lhe confira competência, não podendo invadir a de outras autoridades ou órgãos (competência subjectiva); na sua elaboração deverá ser observado o processo administrativo aplicável em cada caso; na sua feitura deverá visar-se o fim determinante da atribuição do poder regulamentar (competência objectiva); e na sua edição deverá adoptar-se a forma prescrita pelo direito vigente».
O princípio da primariedade ou precedência da lei é claramente afirmado naquele artigo 115.º, n.º 7, onde se estabelece:
1) A precedência da lei relativamente a toda a actividade regulamentar;
2) O dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos.
O Regulamento em causa, muito embora faça referência, na sua nota preambular, ao Decreto-Lei 310/82, o certo é que, como dele próprio se extrai, foi aprovado ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do Decreto Legislativo Regional 16/83/A.
Todavia, resulta manifesto de toda a precedente explanação que este último normativo, ao dispor que «as operações de recrutamento e selecção de pessoal e os programas das provas serão estabelecidos em regulamento aprovado pelo membro do Governo Regional competente e pelo Secretário Regional da Administração Pública, mediante despacho conjunto, no tocante aos lugares que não sejam de ingresso nas carreiras comuns à Administração» não detém a virtualidade de lei habilitante daquele Regulamento, pois que, para além do mero fundamento formal nele recebido - despacho conjunto de dois secretários regionais -, é inteiramente alheio à disciplina dos concursos das carreiras médicas, em especial aos concursos de habilitação e provimento da carreira médica hospitalar, que naquele acto normativo se desenvolve.
A matriz dessa disciplina, como já houve ensejo de se acentuar, compendiava-se no Decreto-Lei 310/82, também referido na justificação preambular do Regulamento, devendo como tal dele se considerar lei precedente, atenta a materialidade e o conteúdo da disciplina jurídica nela contida.
7 - As regiões autónomas gozam de autonomia político-administrativa, tendo o poder de «legislar», com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania [artigo 229.º, n.º 1, alínea a)].
O poder legislativo regional há-de, pois, depender da concorrência de dois parâmetros:
a) As matérias a tratar hão-de ser de interesse específico para a região;
b) Tais matérias não podem estar reservadas à competência própria da Assembleia da República ou do Governo.
Por outro lado, ao tratar estas matérias, os órgãos legislativos regionais - para além de haverem de obedecer à Constituição - não podem estabelecer disciplina que contrarie as «leis gerais da República».
Não é tarefa fácil definir, dentro do quadro categorial acima enunciado, o que deve entender-se por «matérias de interesse específico para as regiões», desde logo porque a Constituição não as tipifica nem fornece qualquer critério ou tópico para a sua qualificação, e as achegas em tal sentido fornecidas pelos estatutos das regiões autónomas [Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril (Madeira), e Lei 39/80, de 5 de Agosto, revista pela Lei 9/87, de 26 de Março (Açores)], são nulas ou de diminuto conteúdo.
No campo doutrinal merecem citação, a propósito deste tema, Fernando Amâncio Ferreira, Regiões Autónomas na Constituição Portuguesa, pp. 83 e segs.; Jorge Miranda, «A autonomia legislativa regional e o interesse específico das regiões autónomas», in Estudos sobre a Constituição, vol. I, pp. 307 e segs.; e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., 2.ª ed., pp. 358 e segs., e, no domínio jurisprudencial, diversos acórdãos da Comissão Constitucional e do Tribunal Constitucional, destacando-se, por todos, os Acórdãos deste Tribunal n.os 91/84 e 42/85, in Diário da República, 1.ª série, de 6 de Outubro de 1984 e de 6 de Abril de 1985.
E neste último aresto escreveu-se a este respeito do modo seguinte:
Toda esta jurisprudência é marcada por uma preocupação dominante: a de procurar o justo equilíbrio entre os interesses autonómicos e as exigências da unidade nacional e dos laços de solidariedade que hão-de unir todos os portugueses e que sempre devem sair reforçados, para aí surpreender o núcleo essencial do que seja a especificidade insular.
E a finalizar:
Em síntese, e apenas como critério de orientação interpretativa, poderão tipicizar-se como de interesse específico das regiões aquelas matérias que lhes respeitem exclusivamente ou que nelas exijam um especial tratamento por ali assumirem peculiar configuração.
Deste modo, o poder legislativo regional está limitado, negativamente e positivamente, uma vez que não pode versar matérias reservadas à competência dos órgãos de soberania (limite negativo), e só pode regular as matérias que sejam de interesse específico das regiões autónomas (limite positivo), matérias estas que, como se viu, a Constituição não enuncia nem define.
Mas além de limitado quanto às matérias sobre que poder exercer-se, aquele poder legislativo não só está submetido à Constituição, que, aliás, lhe fixa limites específicos (artigo 230.º) - sendo naturalmente inconstitucionais os diplomas regionais que a desrespeitem -, e ao próprio estatuto regional respectivo - sendo ilegais os decretos regionais que o ofendem -, mas também tem de respeitar-se as leis gerais da República, ou seja, aquelas leis ou decretos-leis «cuja razão de ser envolva a sua aplicação ser reservada a todo o território nacional» (artigo 115.º, n.os 3 e 4).
8 - À luz destes princípios e dos desenvolvimentos feitos a propósito das conexões normativas do Regulamento sob sindicância, pode agora ser respondida a interrogação que atrás se deixou em aberto (cf. supra, II, n.º 6).
O Decreto-Lei 310/82, enquanto diploma que contém uma disciplina material, mais ou menos desenvolvida, de interesses globais extensivos a todo o território nacional, deve haver-se como lei geral da República, para os efeitos normativos aqui relevantes.
Na verdade, a sua disciplina, longamente apreciada em passos anteriores (cf. supra, II, n.os 3 e 4), é expressão jurídico-material de interesses respeitantes a todo o território nacional, de que nenhuma parcela se exclui, expressamente ou pela natureza própria da normação instituída, regulando as carreiras médicas com vocação espacial indiferenciada.
Assim sendo, a sua regulamentação na respectiva região autónoma competiria exclusivamente à Assembleia Regional, ficando sujeita à forma de decreto legislativo regional [cf. os artigos 234.º da Constituição e 32.º, n.º 1, alínea i), e 34.º, n.º 1, do Estatuto, na redacção da Lei 9/87].
Todavia, acresce que aquele diploma legal expressamente reservou no seu artigo 12.º, n.º 7, a regulamentação dos concursos de habilitação e de provimento das carreiras médicas (entre as quais se integra a carreira médica hospitalar) ao Governo da República, pelo Ministro dos Assuntos Sociais, hoje Ministro da Saúde, tornando assim constitucionalmente indisponível para a Região a regulamentação ali contemplada [cf. artigo 229.º, n.º 1, alínea d) - artigo 229.º, alínea b), na versão da Lei 1/82].
Poderia ajuntar-se, ainda que lateralmente, não existir no tema do Regulamento sob sindicância qualquer matéria própria da Região Autónoma dos Açores, na justa medida em que a disciplina dos concursos de habilitação e provimento da carreira médica hospitalar se há-de revestir, talqualmente se encontra estruturada, de uma perspectiva nacional.
Aliás, que isto assim é resulta com toda a clareza do facto de o Regulamento em apreço ter, verdadeiramente, procedido a um decalque do texto aprovado pela Portaria 231/86, não se observando ali diferença alguma de previsão ou estatuição reveladora de qualquer hipotética particularidade insular a ter em conta no respectivo acto normativo.
Na sequência do exposto, nomeadamente porque o Decreto-Lei 310/82 reservou a regulamentação dos concursos de habilitação e de provimento das carreiras médicas para o próprio Governo, não pode deixar de se concluir no sentido da inconstitucionalidade daquele regulamento regional.
9 - O Procurador-Geral da República sustentou no requerimento inicial que o Regulamento em causa, além de inconstitucional, é também ilegal por violação do artigo 26.º, n.º 1, alínea d), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na redacção originária da Lei 39/80, de 5 de Agosto, ao tempo vigente.
É sabido que a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral tem, num e noutro caso, os mesmos efeitos, como resulta do artigo 282.º da Constituição.
Concorrendo os dois vícios numa mesma situação material, a inconstitucionalidade, com vício mais grave, que põe em causa a própria Constituição, prejudicará, por via de regra, o conhecimento da ilegalidade, vício menos grave.
Assim não haverá de ser se os vícios de inconstitucionalidade e de ilegalidade tiverem diversa dimensão temporal (ilegalidade originária e inconstitucionalidade superveniente), situação em que, porventura, se configurará uma excepção àquela regra.
Na presente situação, tanto a inconstitucionalidade como a ilegalidade são referidas como originárias, razão pela qual, tendo-se já concluído no sentido da inconstitucionalidade de todas as normas daquele Regulamento, assim expurgadas do ordenamento jurídico, não importa ainda, por manifesta ausência de interesse jurídico relevante, passar agora à apreciação da eventual ilegalidade de que as mesmas normas fossem portadoras.
10 - Em conformidade com o disposto no artigo 282.º da Constituição, e não obstante a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produzir, em princípio, efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, pode o Tribunal Constitucional, «quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, fixar os efeitos da inconstitucionalidade com alcance mais restrito».
Na situação do Regulamento dos Concursos de Habilitação e de Provimento do Grau de Chefe de Serviço Hospitalar da Carreira Médica Hospitalar dos Quadros dos Estabelecimentos da Secretaria Regional dos Assuntos Sociais torna-se manifestamente aconselhável, ao abrigo daquela norma constitucional (artigo 282.º, n.º 4), por razões de segurança jurídica, proceder a uma limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por forma a proteger as situações concretas que se tenham constituído à sombra daquele bloco regulamentar, e isto independentemente de saber se tal protecção não decorreria já de um certo entendimento do que se dispõe no artigo 282.º, n.º 3, da Constituição.
III - A decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do Regulamento dos Concursos de Habilitação para o Grau de Chefe de Serviço Hospitalar da Carreira Médica Hospitalar e dos Concursos de Provimento dos Lugares de Chefe de Serviço Hospitalar da Mesma Carreira dos Quadros dos Estabelecimentos Dependentes da Secretaria Regional dos Assuntos Sociais, aprovado por despacho conjunto de 3 de Fevereiro de 1987 (Diário da República, 2.ª série, de 4 de Março de 1987), quer na sua versão originária quer na que resultou do despacho conjunto de 7 de Maio de 1987 (Diário da República, 2.ª série, de 20 de Maio de 1987), por violação do disposto no artigo 229.º, alínea b), da Constituição, na versão da Lei 1/82, de 30 de Setembro;
b) Limitar os efeitos da inconstitucionalidade, por forma a salvaguardar as situações constituídas ao abrigo daquele Regulamento, até à data da publicação do presente acórdão no Diário da República.
Lisboa, 12 de Julho de 1990. - Antero Alves Monteiro Dinis - António Vitorino - José de Sousa e Brito - Bravo Serra - Vítor Nunes de Almeida - Alberto Tavares da Costa - Fernando Alves Correia - Messias Bento - Maria da Assunção Esteves - Mário de Brito (com a declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Está em causa a constitucionalidade do Regulamento dos Concursos de Habilitação para o Grau de Chefe de Serviço Hospitalar da Carreira Médica Hospitalar e dos Concursos de Provimento dos Lugares de Chefe de Serviço Hospitalar da Mesma Carreira dos Quadros dos Estabelecimentos Dependentes da Secretaria Regional dos Assuntos Sociais, aprovado pelo Despacho Normativo 16/87, de 3 de Fevereiro, dos Secretários Regionais dos Assuntos Sociais e da Administração Pública da Região Autónoma dos Açores.
Embora se diga nesse despacho que o Regulamento é aprovado «ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º do Decreto Legislativo Regional 16/83/A, de 28 de Abril» - diploma que «tornou obrigatório o recurso à forma de despacho conjunto para regulamentar os concursos das carreiras médicas» -, conclui-se no presente acórdão que tal decreto «não detém a virtualidade de lei habilitante daquele Regulamento», devendo antes considerar-se «lei precedente» do mesmo Regulamento o Decreto-Lei 310/82, de 3 de Agosto, que regula as carreiras médicas.
Ora, sendo assim, e porque as regiões autónomas, nos termos do artigo 229.º, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (na redacção que lhe foi dada pela Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro), têm o poder de regulamentar as «leis gerais emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder regulamentar» - competência que é exercida através das respectivas assembleias regionais (Constituição, artigo 234.º) - e o referido Decreto-Lei 310/82, ao dizer, no n.º 7 do artigo 12.º, que «o regulamento dos concursos será aprovado por portaria do Ministro dos Assuntos Sociais» (hoje Ministro da Saúde), reservou para o Governo a competência nessa matéria, o regulamento em apreciação é inconstitucional, por violação desses preceitos.
Não haveria, pois, que fazer apelo à falta de «interesse específico» da Região Autónoma dos Açores ou à inexistência de «matéria própria» dessa Região para chegar, no caso, ao juízo de inconstitucionalidade que o despacho em questão mereceu do Tribunal. - Mário de Brito.