I - Relatório
1 - O pedido. - O Representante da República para a Região Autónoma dos Açores requer, ao abrigo do n.º 2 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 57.º e seguintes da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), que o Tribunal Constitucional, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, se pronuncie pela inconstitucionalidade das normas contidas nos preceitos a seguir indicados do Decreto 8/2007, sobre Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional, aprovado na sessão de 7 de Março de 2007 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, que lhe foi enviado para assinatura como decreto legislativo regional:Artigos 1.º, n.º 1, segunda parte, 7.º, n.os 1, 10, 12 a 18, 21 a 24, 26, 27, primeira parte, 28 a 31, 32, primeira parte, e 38, este na parte referente à «administração local», 9.º, n.º 1, 10.º, n.os 1 e 2, 15.º a 18.º e 20.º, por violação dos três parâmetros da competência legislativa regional contidos no n.º 4 do artigo 115.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição da República Portuguesa (CRP);
Artigo 10.º, n.º 1, por inconstitucionalidade material decorrente da violação do estatuto constitucional do Primeiro-Ministro, constante dos artigos 182.º, 187.º, n.º 1, e 201.º, n.º 1, conjugados com o princípio da unidade do Estado, consagrado nos artigos 6.º e 225.º, n.º 3, da CRP;
Artigo 10.º, n.º 2, por inconstitucionalidade material decorrente da violação do estatuto constitucional do Representante da República e da Assembleia Legislativa da Região Autónoma, contido nos artigos 230.º, n.º 1, e 231.º, n.os 3 a 5, da CRP.
O pedido, entrado na secretaria do Tribunal Constitucional em 26 de Março de 2007 (segunda-feira) e tendo por objecto diploma recebido no Gabinete do Representante da República para a Região Autónoma dos Açores em 16 de Março de 2007, é tempestivo (artigos 278.º, n.º 3, da CRP, e 56.º, n.º 2, e 57.º, n.º 1, da LTC).
O requerente detém legitimidade para o pedido, atentos o seu objecto (normas constantes de decreto legislativo regional) e fundamento (inconstitucionalidade) artigo 278.º, n.º 2, da CRP.
2 - O objecto do pedido. - O Decreto 8/2007 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores - Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional na Região Autónoma dos Açores (doravante designado por Regime das Precedências Protocolares) -, aprovado em 7 de Março de 2007 e enviado ao Representante da República para a Região Autónoma dos Açores para assinatura como decreto legislativo regional, foi emitido «nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, conjugada com o n.º 4 do artigo 112.º, da Constituição da República Portuguesa e das alíneas hh) do artigo 8.º e c) do n.º 1 do artigo 31.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores», que dispõem:
Constituição da República Portuguesa (redacção da Lei Constitucional 1/2004, de 24 de Julho):
«Artigo 227.º
Poderes das Regiões Autónomas
1 - As Regiões Autónomas são pessoas colectivas territoriais e têm os seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos:a) Legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania;
................................................................................
Actos normativos
................................................................................4 - Os decretos legislativos têm âmbito regional e versam sobre matérias enunciadas no estatuto político-administrativo da respectiva Região Autónoma que não estejam reservadas aos órgãos de soberania, sem prejuízo do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 227.º» Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei 39/80, de 5 de Agosto, alterada pelas Leis n.os 9/87, de 26 de Março, e 61/98, de 27 de Agosto):
«Artigo 8.º
Matérias de interesse específico
Para efeitos de definição dos poderes legislativos ou de iniciativa legislativa da Região, bem como das matérias de consulta obrigatória pelos órgãos de soberania, nos termos do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição, constituem matérias de interesse específico:................................................................................
hh) Outras matérias que respeitem exclusivamente à Região ou que nela assumam particular configuração.
Artigo 31.º
Competência legislativa
1 - Compete ainda à Assembleia Legislativa Regional dos Açores:................................................................................
c) Legislar, com respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para a Região que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania;» Consta do preâmbulo do Decreto 8/2007 (que reproduz a exposição de motivos do projecto de Decreto Legislativo Regional 1/2007, apresentado pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista, que esteve na génese daquele diploma):
«A particular configuração que as regras das precedências protocolares assumem no quadro da autonomia política fundamenta o estabelecimento de um regime específico na Região Autónoma dos Açores, devendo o cerimonial regional reflectir a estrutura constitucional da autonomia e traduzir a percepção que a sociedade tem dos titulares dos diversos órgãos e poderes, relevando a importância protocolar dos titulares dos órgãos de governo próprio.
Afirmando o pluralismo e a dimensão democrática da autonomia, dignifica-se o estatuto da oposição, atribuindo relevância protocolar aos líderes regionais dos partidos da oposição, destacando o papel do líder do maior partido da oposição, o qual é objecto de tratamento diferenciado.
Tipifica-se, ainda, a declaração de luto regional pelo falecimento do Presidente da Assembleia Legislativa, dos membros do Governo Regional, dos antigos Presidentes da Assembleia Legislativa e do Governo Regional, assim como pelo falecimento de personalidade ou ocorrência de evento de excepcional relevância.» Os preceitos que contêm as normas cuja apreciação de constitucionalidade vem solicitada são do seguinte teor integral, assinalando-se a itálico os segmentos questionados:
«CAPÍTULO I
Princípios gerais
Artigo 1.º
Objecto
1 - O presente diploma estabelece o regime protocolar aplicável nas cerimónias regionais, considerando-se como tal as promovidas pelas entidades públicas sediadas na Região Autónoma dos Açores.2 - O presente diploma dispõe, igualmente, sobre a declaração de luto regional.
................................................................................
CAPÍTULO II
Precedências
SECÇÃO I
Hierarquia
Artigo 7.º
Lista de precedências
Para efeitos protocolares, as entidades públicas hierarquizam-se, na Região, pela ordem seguinte:1) Representante da República para a Região Autónoma dos Açores;
2) Presidente da Assembleia Legislativa;
3) Presidente do Governo Regional;
4) Vice-Presidentes do Governo Regional;
5) Secretários e subsecretários regionais;
6) Antigos presidentes da Assembleia Legislativa e antigos Presidentes do Governo Regional;
7) Líder regional do maior partido da oposição;
8) Vice-Presidentes da Assembleia Legislativa e presidentes dos grupos e representações parlamentares na Assembleia Legislativa;
9) Presidentes das comissões parlamentares permanentes da Assembleia Legislativa;
10) Deputados à Assembleia da República eleitos pelo círculo eleitoral dos Açores;
11) Deputados à Assembleia Legislativa;
12) Deputados ao Parlamento Europeu indicados pelas estruturas regionais dos partidos políticos;
13) Juiz Conselheiro da Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas;
14) Procurador-Geral-Adjunto da Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas;
15) Comandante Operacional dos Açores;
16) Juiz presidente e Procurador da República do círculo judicial onde se realiza a cerimónia;
17) Juiz e Procurador da República da comarca onde se realiza a cerimónia;
18) Comandantes das Zonas Militar, Marítima e Aérea dos Açores;
19) Presidentes dos Conselhos de Ilha;
20) Presidente da Associação de Municípios da Região Autónoma dos Açores;
21) Reitor da Universidade dos Açores;
22) Presidentes das câmaras municipais;
23) Presidentes das assembleias municipais;
24) Vereadores das câmaras municipais;
25) Líderes regionais dos partidos políticos com representação na Assembleia Legislativa;
26) Presidentes das estruturas regionais das ordens profissionais;
27) Chefes de Gabinete do Representante da República, do Presidente da Assembleia Legislativa e do Presidente do Governo Regional;
28) Comandantes regionais da Polícia de Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana;
29) Presidentes das juntas de freguesia;
30) Membros das assembleias municipais;
31) Presidentes das assembleias de freguesia e membros das juntas e das assembleias de freguesia;
32) Assessores e adjuntos do Representante da República, do Presidente da Assembleia Legislativa e do Presidente do Governo Regional;
33) Chefes dos gabinetes dos membros do Governo Regional;
34) Directores regionais e presidentes dos institutos públicos, ou sociedades anónimas de capitais públicos, pela ordem dos respectivos departamentos e dentro destes da respectiva lei orgânica;
35) Secretários-gerais da Assembleia Legislativa e da Presidência do Governo Regional;
36) Assessores e adjuntos dos membros do Governo Regional;
37) Líderes regionais dos partidos políticos sem representação na Assembleia Legislativa;
38) Cargos dirigentes, ou equiparados, da administração regional autónoma e da administração local, pela ordem dos respectivos departamentos, ou autarquias, e dentro destes da respectiva orgânica.
................................................................................
SECÇÃO II
Órgãos de governo próprio
Artigo 9.º
Presidente da Assembleia Legislativa
1 - O presidente da Assembleia Legislativa preside sempre às sessões respectivas, bem como aos actos por ela organizados, excepto se estiverem presentes o Presidente da República ou o Presidente da Assembleia da República.2 - O Presidente da Assembleia Legislativa é substituído e pode fazer-se representar, nos termos regimentais, por um dos vice-presidentes, o qual goza, nessas circunstâncias, do estatuto protocolar do presidente.
Artigo 10.º
Presidente do Governo Regional
1 - O presidente do Governo Regional preside às cerimónias oficiais em que não estejam presentes o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Representante da República e o Presidente da Assembleia Legislativa.2 - No caso de a cerimónia ser organizada pelo Governo Regional, o Presidente do Governo Regional precede o Representante da República e o Presidente da Assembleia Legislativa.
3 - O presidente do Governo Regional é substituído e pode fazer-se representar por um membro do Governo da sua escolha, o qual goza, nessas circunstâncias, do estatuto protocolar do presidente.
................................................................................
Artigo 15.º
Deputados
Os deputados à Assembleia da República, à Assembleia Legislativa e ao Parlamento Europeu ordenam-se segundo a representatividade parlamentar decorrida da eleição respectiva.
SECÇÃO III
Poder local
Artigo 16.º
Presidentes de câmara
1 - Os presidentes de câmara dos municípios dos Açores gozam, no respectivo concelho, do estatuto de membro do Governo Regional, seguindo-se-lhes imediatamente em termos de hierarquia protocolar.2 - Os presidentes de câmara presidem às cerimónias realizadas nos paços do concelho ou organizadas pela respectiva câmara, excepto se estiverem presentes o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o Representante da República, o Presidente da Assembleia Legislativa ou o Presidente do Governo Regional.
3 - Nas cerimónias regionais realizadas no respectivo concelho, o presidente da câmara segue imediatamente os membros do Governo Regional.
Artigo 17.º
Presidentes de assembleia municipal
1 - Os presidentes das assembleias municipais, no respectivo concelho, seguem imediatamente o presidente da Câmara.2 - Os presidentes das assembleias municipais presidem sempre às respectivas sessões, excepto se estiverem presentes o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o Representante da República, o Presidente da Assembleia Legislativa ou o Presidente do Governo Regional.
Artigo 18.º
Presidentes de junta e de assembleia de freguesia
Aos presidentes das juntas e das assembleias de freguesia é aplicado o disposto nos artigos anteriores, com as necessárias adaptações, somando-se os presidentes de câmara e de assembleias municipais às entidades a quem devem ceder prevalência.
................................................................................
SECÇÃO IV
Outras entidades
Artigo 20.º
Autoridades universitárias
1 - O reitor da Universidade dos Açores preside aos actos realizados na respectiva instituição, excepto quando estiver presente o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Representante da República, o Presidente da Assembleia Legislativa ou o Presidente do Governo Regional.2 - As deputações do claustro académico que participem em cerimónias oficiais seguem imediatamente o reitor.» 3 - Os fundamentos do pedido. - O pedido desdobra-se num pedido de pronúncia no sentido da «inconstitucionalidade orgânica» das normas constantes dos artigos 1.º, n.º 1, segunda parte, 7.º, n.os 1, 10, 12 a 18, 21 a 24, 26, 27, primeira parte, 28 a 31, 32, primeira parte, e 38, este na parte referente à «administração local», 9.º, n.º 1, 10.º, n.os 1 e 2, 15.º a 18.º e 20.º, e num pedido de pronúncia no sentido da inconstitucionalidade material das normas constantes do artigo 10.º, n.os 1 e 2, do Regime das Precedências Protocolares.
3.1 - Relativamente à questão da «inconstitucionalidade orgânica», sustenta o requerente que as normas impugnadas «extravasam os poderes legislativos das Regiões Autónomas», por não respeitarem «nenhum dos três parâmetros fundamentais pelos quais a Constituição delimita hoje as matérias sobre que pode incidir o exercício das competências legislativas regionais» [e isto «com independência em relação às soluções concretas adoptadas pelo legislador autonómico quanto às posições protocolares destinadas às diferentes entidades oficiais envolvidas e, ademais, sem necessidade de atender à coincidência ou não dessas soluções legais com as prescritas na Lei das Precedências do Protocolo do Estado Português (Lei 40/2006, de 25 de Agosto) - lei esta que, não assumindo valor reforçado, não constitui parâmetro de validade do diploma regional em apreço»].
O desrespeito desses «três parâmetros fundamentais» resulta:
Em primeiro lugar, de as normas em causa não se cingirem verdadeiramente ao «âmbito regional», como é imposto pelo primeiro segmento da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP;
Em segundo lugar, de a normação emanada não se enquadrar em nenhuma das alíneas do artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei 39/80, de 5 de Agosto, alterada pelas Leis n.os 9/87, de 26 de Março, e 61/98, de 27 de Agosto - doravante designado por EPARAA), nem mesmo na alínea hh), sobre «outras matérias que respeitem exclusivamente à Região ou que nela assumam particular configuracão», como deveria suceder por força da interpretação conjugada do segundo segmento da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, do n.º 1 do artigo 228.º, ambos da CRP, e do artigo 46.º da Lei Constitucional 1/2004, de 24 de Junho; e Em terceiro e último lugar, de as disposições em crise invadirem, em contravenção com o terceiro segmento da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, a reserva de competência legislativa da Assembleia da República e, mais precisamente, a alínea m) do artigo 164.º, referente ao «estatuto dos órgãos de soberania e do poder local, bem como dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal», e, ainda, a alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º, todos da CRP, sobre o «Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados».
3.1.1 - Quanto ao primeiro fundamento - ultrapassagem do «âmbito regional» -, o pedido desenvolve a seguinte argumentação:
«III - 1 - As normas acima referenciadas, relativamente às quais é pedida ao Tribunal Constitucional a pronúncia pela inconstitucionalidade, têm em comum o facto de respeitarem a órgãos ou a titulares de órgãos que não integram a pessoa colectiva pública "Região Autónoma dos Açores", mas sim outras pessoas colectivas, nomeadamente o Estado, os municípios e as freguesias dos Açores, a Universidade dos Açores e as ordens profissionais.
Significa isto que o Decreto da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores n.º 8/2007, no que agora nos interessa, não se limita a estabelecer regras disciplinadoras das precedências protocolares aplicáveis nas relações entre os titulares dos órgãos da própria pessoa colectiva Região Autónoma dos Açores - ou seja, dentro dessa entidade pública -, mas pretende valer também nas relações entre esta Região Autónoma e outras pessoas colectivas públicas dela distintas. Em consequência, o dito Decreto 8/2007 determina a posição protocolar dos titulares dos órgãos destas últimas pessoas colectivas "supra e infra-regionais", na sua relação com os titulares dos órgãos da própria Região Autónoma.
Neste sentido, não se pode dizer que as normas estabelecidas correspondam a um regime protocolar regional, por exclusiva referência à pessoa colectiva Região Autónoma dos Açores, antes se traduzindo num regime de precedências protocolares a ser aplicado nos Açores ou, se se preferir, no território daquela Região. Isto mesmo resulta, com relativa clareza, da segunda parte do artigo 1.º do Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional, onde se define o que deve entender-se por "cerimónias regionais": isto é, todas "as promovidas pelas entidades públicas sediadas na Região Autónoma dos Açores", o que naturalmente abarca o Representante da República enquanto órgão residente do Estado, todos os municípios e freguesias dos Açores, a Universidade dos Açores e, mesmo se a palavra "entidades" não estiver, como tudo indica, empregue em sentido jurídico rigoroso -, a Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas, o Comando Operacional dos Açores e os Comandos Regionais dos Açores da Polícia de Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana.
Ora, sendo assim, afigura-se que a Assembleia Legislativa exerceu as suas faculdades normativas fora daquilo a que a alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º designa hoje, após a revisão constitucional de 2004, como o "âmbito regional". De facto, sem prejuízo de esta expressão ter antes de mais um sentido geográfico, traçando os limites espaciais de vigência dos decretos legislativos regionais, ela tem também forçosamente um sentido institucional, que impede os parlamentos insulares de emanar legislação destinada a produzir efeitos relativamente a outras pessoas colectivas públicas que se encontram fora do âmbito de jurisdição natural das Regiões Autónomas - como sucede, sem sombra de dúvida, com o próprio Estado e, bem ainda, com outras pessoas que integram constitucionalmente a administração autónoma territorial e institucional (autarquias locais, associações públicas e universidades). Diga-se, inclusivamente, que se a referência ao "âmbito regional"
tivesse uma conotação exclusivamente geográfica não passaria de uma pura tautologia, em face da territorialidade que caracteriza de raiz tudo o que respeita à autonomia das Regiões insulares.
A conclusão alcançada sai reforçada se a limitação da competência legislativa das Regiões insulares ao respectivo "âmbito regional" for interpretada como uma manifestação do princípio constitucional da unidade do Estado, consagrado no n.º 1 do artigo 6.º e nos n.os 2 e 3 do artigo 225.º Com efeito, é inerente à natureza de um Estado unitário que uma pessoa colectiva pública não soberana não pode ditar, unilateralmente, regras jurídicas vinculativas da pessoa colectiva que detém o monopólio do exercício de poderes soberanos, seja para acrescentar ou diminuir competências dos seus órgãos, seja para interferir com o estatuto jurídico dos titulares dos respectivos órgãos, incluindo aqui naturalmente a posição protocolar. Por conseguinte, num Estado unitário como o português, sempre que emergir a necessidade de regular legislativamente as relações entre o Estado e as Regiões Autónomas, quer se trate de articular competências administrativas, de disciplinar as relações financeiras recíprocas ou de estabelecer precedências protocolares entre titulares de órgãos de ambas as pessoas colectivas, a competência legislativa para o efeito nunca pode, por definição, ser deferida ao ente regional, mas sempre e necessariamente ao ente estadual - ainda que se reconheça àquele um poder de participação na decisão legislativa a este último reservada [alínea v) do n.º 1 do artigo 227.º e n.º 2 do artigo 229.º da Constituição].
Em suma, a Assembleia Legislativa, quando procura regular as relações protocolares entre titulares de órgãos do Estado e titulares de órgãos da própria Região Autónoma, legisla ultra vires, porque não legisla "no âmbito regional". Não se trata, obviamente, de impedir em absoluto a Região Autónoma de intervir na definição de um conjunto de regras específicas em matéria de precedências protocolares, mas apenas de impedir que, a pretexto de uma definição intra muros, se estabeleçam em simultâneo regras sobre precedências que, contas feitas, atingem directamente titulares dos órgãos da pessoa colectiva Estado e de outras pessoas colectivas dotadas constitucionalmente de um significativo grau de autonomia.» 3.1.2 - A imputação da violação do segundo parâmetro de delimitação da autonomia legislativa regional - versar o diploma sobre matéria não enunciada no respectivo Estatuto Político-Administrativo - assenta na seguinte fundamentação:
«2 - O Decreto da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores n.º 8/2007 invoca como norma habilitante da competência exercida a alínea hh) do artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo - certamente por força da disposição transitória constante do artigo 46.º da Lei Constitucional 1/2004 - alínea na qual se estabelece que "constituem matérias de interesse específico" aquelas "outras matérias" não constantes das alíneas anteriores e "que respeitem exclusivamente à Região ou que nela assumam particular configuração". Além disso, no próprio preâmbulo do diploma agora enviado para assinatura do Representante da República invoca-se que "a particular configuração que as regras das precedências protocolares assumem no quadro da autonomia fundamenta o estabelecimento de um regime específico na Região Autónoma dos Açores". Numa palavra, a Assembleia Legislativa procura arrimo para a normação emanada no conceito de interesse específico regional, enquanto limite positivo da respectiva competência.
No entanto, após a revisão constitucional de 2004 e com as mutações por esta provocadas nos parâmetros definidores da competência legislativa regional, não pode ter-se por pacífico - mesmo considerando que o regime hoje vigente, resultante da remissão efectuada pelo artigo 46.º da Lei Constitucional 1/2004, tem natureza transitória - que constitua habilitação bastante para o exercício do poder legislativo regional a circunstância de certa matéria se revestir de interesse específico - o que, aliás, sempre seria necessário demonstrar em concreto.
Na realidade, não é fácil interpretar o completo desaparecimento do conceito de interesse específico das disposições da lei fundamental respeitantes à configuração da competência legislativa regional - o n.º 4 do artigo 112.º, as alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 227.º e o n.º 1 do artigo 228.º -, sendo aí substituído pela expressão "matérias enunciadas no [...] estatuto político-administrativo". Assim sucede porquanto, mais que um verdadeiro limite à legislação regional, o interesse específico sempre se apresentou como o fundamento, por excelência, de todas as competências legislativas regionais e, bem assim, de várias outras competências dos órgãos de governo próprio dos Açores e da Madeira. Daí a utilização da expressão limite positivo para designar o dito conceito de interesse específico - expressão de há muito utilizada na doutrina e na própria jurisprudência constitucional -, que outra coisa não significava senão o fundamento para uma legislação própria, diferenciada da legislação nacional e, por isso, melhor adaptada à realidade insular e às concretas necessidades de desenvolvimento económico e social das Regiões Autónomas. Numa palavra, mais que um simples limite ao poder legislativo regional, o interesse específico surgia, na arquitectura constitucional, como a pedra angular do edifício da autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira, nas suas diferentes vertentes.
Em consequência da revisão constitucional de 2004, pelo menos duas grandes alternativas hermenêuticas parecem hoje perfilar-se quanto ao destino do conceito de interesse específico.
De acordo com uma primeira alternativa, o legislador de revisão constitucional terá eliminado definitivamente o conceito de interesse específico como parâmetro fundante da competência legislativa regional, fazendo tábua rasa de toda a elaboração dogmática e jurisprudencial que, em torno de tal conceito, se tinha vindo a desenvolver desde 1976. O legislador estatutário deverá, em consequência, adoptar na próxima revisão dos Estatutos Político-Administrativos um catálogo taxativo de matérias sobre as quais as Assembleias Legislativas Regionais poderão exercer a sua competência sempre e em quaisquer circunstâncias. Quanto muito, o legislador estatutário poderá, porventura, adoptar um catálogo de matérias não inteiramente fechado, mas em que a respectiva abertura não pode ficar dependente do conceito de interesse específico (ou de outro com características semelhantes).
Já de acordo com a segunda alternativa, o legislador de revisão constitucional ter-se-á limitado a desconstitucionalizar o parâmetro positivo definidor da competência legislativa regional, gozando agora o legislador estatutário - numa veste especialmente qualificada, porque deliberando por maioria de dois terços dos deputados presentes na Assembleia da República, e após iniciativa legislativa reservada das Assembleias Legislativas dos Açores e da Madeira [alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º e n.º 1 do artigo 226.º] - de uma significativa margem de liberdade conformativa, para, considerando os dados jurídicos e fácticos já conhecidos, optar entre diversas técnicas normativas de delimitação das competências legislativas regionais (v. g., manutenção do conceito de interesse específico como critério delimitador decisivo da competência legislativa regional, fazendo-o acompanhar de uma listagem exemplificativa de matérias;
manutenção do conceito de interesse específico, embora apenas como critério complementar de alargamento de um elenco de matérias fixado estatutariamente;
adopção de um critério material novo e mais amplo; ou mesmo fixação de um elenco taxativo de matérias).
Para decidir a questão que nos ocupa de momento, não é absolutamente necessário tomar partido por uma destas duas orientações fundamentais. Indispensável é antes dilucidar o regime transitório constante do artigo 46.º da Lei de Revisão Constitucional n.º 1/2004, uma vez que é este que se encontra presentemente em vigor. Aí se pode ler que "até à eventual alteração das disposições dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas, prevista na alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º, o âmbito material da competência legislativa das respectivas regiões é o constante do artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e do artigo 40.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira".
Ora, também a interpretação do artigo transcrito coloca um verdadeiro dilema hermenêutico.
Numa primeira interpretação, a remissão que o artigo 46.º faz para os artigos 8.º e 40.º, respectivamente, dos Estatutos dos Açores e da Madeira é uma remissão plena, devendo estes continuar a ser interpretados da mesma forma que o eram antes da revisão constitucional. Por conseguinte, durante o período transitório, a competência legislativa regional continua a ser delimitada como anteriormente pelo conceito de interesse específico, tal como delineado nos artigos estatutários, e tendo em conta as enumerações exemplificativas de matérias que aí se podem encontrar. Nesta consonância, permanece válido todo o acervo de decisões do Tribunal Constitucional relativo àqueles preceitos. Continuará, assim, a valer a máxima jurisprudencial segundo a qual o facto de certa matéria estar contida numa das muitas alíneas dos elencos estatutários constitui simples presunção, abstracta, de que essa mesma matéria se reveste de uma especificidade regional, podendo essa presunção ser ilidida, caso a caso, pelo confronto entre a legislação produzida e o sentido substantivo que se extrai do conceito de interesse específico (cf., por todos, o Acórdão 246/2005). E continuará também a valer aquela outra máxima jurisprudencial segundo a qual a legislação regional não poderá ser uma legislação de substituição da legislação nacional, pelo que os preceitos dos diplomas regionais que se limitem a reproduzir legislação nacional sem qualquer especialidade relevante são inconstitucionais, por falta de interesse específico (cf., por todos, o Acórdão 235/94).
Numa segunda interpretação, a remissão que o artigo 46.º faz para os artigos 8.º e 40.º dos Estatutos açoriano e madeirense, respectivamente, é uma remissão parcial, sujeita às adaptações tidas por necessárias, à luz dos novos parâmetros da competência legislativa regional introduzidos em 2004. Efectivamente, pretendendo a revisão constitucional eliminar o conceito de interesse específico como parâmetro aferidor da competência legislativa regional, a remissão para os mencionados artigos 8.º e 40.º não visa recuperar, ainda que transitoriamente, esse conceito, mas apenas servir-se a título instrumental das listas de matérias neles contidas. Em consequência, tais listas de matérias deverão agora ser consideradas como taxativas (ou fechadas), sendo necessário amputá-las das últimas das suas alíneas, uma vez que estas reproduzem a definição doutrinal e jurisprudencial de interesse específico [alínea hh), no caso dos Açores, e alínea vv), no caso da Madeira]. Por outras palavras, o preceito introduzido pelo legislador de revisão constitucional tem por objectivo, tanto quanto possível, antecipar o novo regime constitucional (e estatutário) de delimitação da competência legislativa regional, carecendo para tanto de utilizar listagens de matérias que foram na sua génese, mas não são mais, tidas por matérias de interesse específico.
Nesta situação dilemática - entre a ultra-actividade do regime estatutário (e constitucional) anterior e a aplicação antecipada de um regime constitucional (e estatutário) ainda inacabado -, é no mínimo muito duvidoso que se possa aceitar sem mais o deslizamento da vigência do critério do interesse específico para o período transitório, tanto mais que este tende claramente a prolongar-se no tempo. Se é verdade que a letra do artigo 46.º parece favorecer a primeira interpretação, ao prever, simplesmente, que "o âmbito material da competência legislativa das [...] Regiões é o constante do artigo 8.º do Estatuto", não é possível ignorar que a leitura dos trabalhos preparatórios da sexta revisão constitucional revela uma grande "animosidade" contra o conceito de interesse específico, tido por fonte de constrangimentos e interpretações restritivas jurisprudenciais referentes aos poderes legislativos regionais.
Efectivamente, não obstante algumas vozes que se ergueram nos debates havidos em defesa do conceito de interesse específico, a tese que fez vencimento foi não apenas a que defendeu a completa eliminação deste como parâmetro da competência legislativa regional, mas a que associou essa solução à adopção estatutária (e por maioria reforçada) de uma definição precisa de matérias, por forma a permitir aos legisladores regionais maior segurança e a reduzir, tanto quanto possível, a margem de apreciação do Tribunal Constitucional na verificação dos limites do poder legiferante regional.
Isto posto, não pode deixar de se considerar inusitado que, após semelhante revisão constitucional, se continue a invocar e a aplicar transitoriamente um conceito que foi considerado "defunto" (cf. DAR, II-RC, de 14 de Janeiro de 2004, p. 26) e cuja eliminação foi largamente aplaudida na Assembleia da República, tanto mais que existe uma interpretação alternativa que permite aproximar o regime transitório do regime definitivo pretendido pelo legislador de revisão constitucional. Aliás, não é pelo facto de o artigo 46.º da Lei Constitucional 1/2004 não ter sido integrado no texto constitucional, entre as disposições finais e transitórias, que o mesmo deixa de sofrer o influxo sistemático-teleológico do novo sistema delimitador da competência legislativa insular, constante do n.º 4 do artigo 112.º, da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º e do n.º 1 do artigo 228.º, onde é notória a ausência de qualquer referência ao antigo conceito de interesse específico.
3 - Ainda que se entendesse que, até à alteração do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, prevista na alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º, o conceito de interesse específico sobrevive no artigo 8.º daquele diploma fundamental da autonomia ou, pelo menos, na sua alínea hh), a verdade é que as normas colocadas sub judice não versam matéria de interesse específico.
O simples facto de o Decreto 8/2007 se destinar a regular as precedências protocolares em cerimónias realizadas no território da Região, bem como a circunstância de nos Açores existir um nível de governação e administração que não tem paralelo no continente, não garantem a todas as disposições normativas do Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional a qualificação como matérias de interesse específico.
Bem pelo contrário, as normas em apreço são aqui questionadas quanto à sua constitucionalidade por não respeitarem especificamente à pessoa colectiva pública Região Autónoma dos Açores - à posição protocolar relativa dos titulares dos seus diferentes órgãos -, envolvendo antes os titulares dos órgãos de outras entidades públicas, como o Estado, as autarquias locais açorianas, a Universidade dos Açores e as ordens profissionais. É que, mesmo deixando de lado as normas do Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional que reproduzem com grande proximidade disposições da Lei 40/2006, de 25 de Agosto, apropriando-se do conteúdo da legislação nacional e substituindo-a por legislação regional - numa atitude já várias vezes censurada pelo Tribunal Constitucional -, nunca poderia ser considerado como de interesse específico regional um regime legal de precedências protocolares destinado a vigorar, por exemplo, em cerimónias organizadas na residência oficial do Representante da República, na sede da Secção Regional do Tribunal de Contas ou no Comando Operacional dos Açores. E, de igual forma, também nunca poderia considerar-se de interesse específico regional um regime legislativo que pretende determinar a posição protocolar de titulares de órgãos do Estado - alguns deles titulares de órgãos de soberania, como sucede com os deputados à Assembleia da República, com o juiz conselheiro da Secção Regional do Tribunal de Contas e com os demais magistrados judiciais e de outras pessoas colectivas públicas constitucionalmente dotadas de autonomia, mesmo tratando-se de cerimónias organizadas por entidades regionais.» 3.1.3 - O terceiro fundamento da imputação de «inconstitucionalidade orgânica» às normas questionadas - versarem sobre matéria da reserva de competência legislativa da Assembleia da República - é desenvolvido do seguinte modo:
«4 - Acresce aos fundamentos já apontados que a alínea m) do artigo 164.º reserva em absoluto à competência legislativa da Assembleia da República a matéria do "estatuto dos órgãos de soberania e do poder local, bem como dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal" - o que, naturalmente, exclui a competência da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores no tocante ao estatuto do Representante da República, dos deputados à Assembleia da República, dos deputados ao Parlamento Europeu, do juiz conselheiro da Secção Regional do Tribunal de Contas e dos demais magistrados judiciais, bem como em relação ao estatuto dos titulares dos órgãos das autarquias locais. Por sua vez, a alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º reserva também à competência legislativa da Assembleia da República - reserva relativa não passível de autorização legislativa às Assembleias Regionais - o estatuto dos magistrados do Ministério Público.
A Constituição não estabelece o que deva entender-se por "estatuto" de um órgão de soberania ou de um órgão constitucional, mas, quando as regras sobre precedências protocolares aplicáveis aos respectivos titulares não tenham natureza consuetudinária, vindo a assumir forma legislativa como sucedeu com a recente Lei 40/2006, de 25 de Agosto -, não há razão para que as mesmas sejam desligadas, quanto ao regime constitucional aplicável, das demais normas relativas ao estatuto dos órgãos em causa, designadamente as normas definidoras das competências, das incompatibilidades e impedimentos, dos deveres, dos direitos e das regalias (remunerações e abonos, ajudas de custo, porventura residência e viatura oficiais, passaporte e cartão de identificação especiais, segurança pessoal, etc.).
Na verdade, "a inclusão de qualquer matéria na reserva de competência da Assembleia da República, absoluta ou relativa, é in totum. Tudo quanto lhe pertença tem de ser objecto de lei da Assembleia da República [...] Só não se depara este postulado quando a própria Constituição estabelece diferenciações por falar em 'bases', em 'bases gerais', ou em 'regime geral' das matérias" (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, II, Coimbra, 2006, pp. 516-517).
Ora, no domínio em análise, considerando que tanto a alínea m) do artigo 164.º, como a alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º, consagram matérias em que o alcance da reserva de competência da Assembleia da República não é expressamente encurtado por qualquer referência a "bases", "bases gerais" ou "regime geral", não se vê qualquer outra razão para excluir do estatuto legal dos órgãos de soberania ou dos órgãos constitucionais abrangidos tudo aquilo que diz respeito ao respectivo estatuto protocolar.
Mais ainda, "a reserva de competência é tanto para a feitura de normas legislativas como para a sua entrada em vigor, interpretação, modificação, suspensão ou revogação [...] E é tanto para a feitura de novas normas quanto para a decretação, em novas leis, de normas preexistentes" (Idem, p. 518). Por isso, não serve de argumento contra a invasão das matérias "reservadas aos órgãos de soberania" [parte final da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º] dizer-se que as soluções contidas nas normas em apreciação do Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional são em parte semelhantes às adoptadas pela Lei das Precedências do Protocolo do Estado Português. Não só isso nem sempre acontece - uma vez que aquele Regime promove alterações muito significativas de posições protocolares em clara derrogação a esta Lei, sobretudo no que toca aos membros do Governo Regional (que sobem da posição 32 para as posições 4 e 5) e aos deputados à Assembleia Legislativa (que sobem da posição 33 para a posição 11) -, como, em princípio, a questão da competência para legislar num certo domínio é, nas relações entre o Estado e as Regiões Autónomas e após o desaparecimento da subordinação às leis gerais da República, independente das opções legislativas tomadas: ou se tem competência legislativa numa dada matéria e se beneficia aí de liberdade de conformação quanto às soluções a adoptar;
ou não se possui tal competência, por esta estar reservada ao Parlamento Nacional, sendo então indiferente saber que soluções eram pretendidas pelo legislador regional.
Além disso, sublinhe-se de novo, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores nunca poderia estar autorizada constitucionalmente a voltar a decretar, sob forma de lei regional, um regime nacional preexistente e incluído na reserva de competência da Assembleia da República.
5 - Nem se diga que a argumentação expendida, sobretudo considerando o que acima se disse quando à impossibilidade de continuar a invocar a alínea hh) do artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo, tem por efeito o total afastamento da Assembleia Legislativa da definição do regime jurídico das precedências protocolares nas Regiões Autónomas ou, na melhor das hipóteses, a redução do protocolo regional a algo sem especial interesse prático, uma vez que da disciplina a gizar teriam que ser excluídos todos os órgãos não pertencentes à própria pessoa colectiva pública Região Autónoma.
A objecção improcede em absoluto, e não apenas por apenas valer para o período que decorre até à alteração dos Estatutos Político-Administrativos prevista na alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º Ela improcede porque a participação activa das Assembleias Legislativas na definição do regime das precedências protocolares aplicável nas Regiões Autónomas não tem necessariamente de se fazer mediante a aprovação de um decreto legislativo regional, podendo antes efectuar-se por via do poder de iniciativa legislativa e do poder de participação nas decisões dos órgãos de soberania que digam respeito às Regiões.
Assim, no que toca ao poder de iniciativa legislativa, há que destacar desde logo a reserva de iniciativa das Assembleias Legislativas na alteração dos respectivos Estatutos Político-Administrativos [n.os 1 e 4 do artigo 226.º e alínea e) do n.º 1 do artigo 227.º]. Aliás, considerando que, de acordo com o n.º 7 do artigo 231.º, "o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas é definido nos respectivos Estatutos Político-Administrativos", afigura-se ser esta a sede mais adequada para o tratamento da matéria das precedências protocolares - pelo menos nos seus traços fundamentais -, com a inegável vantagem de, sendo os Estatutos leis parlamentares, não estarem obrigados a cingir o protocolo regional aos titulares dos órgãos da própria Região, podendo fazer o entrosamento entre estes e os titulares de órgãos de outras entidades públicas, desde logo o Estado e as autarquias locais.
Ainda no que refere ao poder de iniciativa legislativa, note-se que nada impede também que as Assembleias Legislativas apresentem à Assembleia da República, nos termos do n.º 1 do artigo 167.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º, uma proposta de lei destinada a alterar ou a complementar o disposto na Lei 40/2006, de 25 de Agosto, que versa sobre as precedências do protocolo do Estado Português, mas que dedica em exclusivo às Regiões Autónomas os seus artigos 17.º e 25.º a 30.º Por sua vez, o direito das Regiões Autónomas a pronunciarem-se, «por sua iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito», previsto na alínea v) do n.º 1 do artigo 227.º e no n.º 2 do artigo 229.º - direito que, presume-se, terá sido exercido durante o processo de elaboração da Lei 40/2006, de 25 de Agosto -, impede também que as mesmas sejam em absoluto afastadas da definição legislativa do regime de precedências protocolares aplicável nas cerimónias regionais. Efectivamente, apesar de os pareceres das Regiões Autónomas - cuja emissão cabe precisamente às Assembleias Legislativas (artigo 79.º do Estatuto dos Açores e artigo 90.º do Estatuto da Madeira) - não assumirem, para a Assembleia da República, natureza vinculativa, a correcta compreensão deste instituto constitucional vincula esta última a um dever de adequada ponderação da opinião e dos fundamentos expressos por aqueles órgãos de governo próprio.
6 - A conclusão alcançada quanto à incompetência da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores para emanar um regime de precedências protocolares que afecte titulares de outros órgãos que não os da própria Região - máxime, órgãos do Estado - nada tem de original no direito comparado.
Basta para tanto verificar, na impossibilidade de alargar a investigação, o que sucede no Estado autonómico Espanhol, em que "para todos os efeitos, a ordenação de autoridades em actos convocados pelas comunidades autónomas deve respeitar o Real Decreto 2099/1983, sobre Ordenação Geral de Precedências no Estado" e em que "as comunidades autónomas têm competências para elaborar as suas próprias normas internas sobre as precedências oficiais, sempre e quando não se regule ou modifique o disposto para as autoridades que não correspondem à comunidade" (Carlos Fuente Lafuente, Protocolo oficial - Las instituciones españolas del Estado y su ceremonial, 3.ª ed., Madrid, 2006, pp. 435-436).
Este entendimento tem, aliás, origem jurisprudencial, uma vez que terá sido a sentença do Tribunal Constitucional n.º 38/1982 (cf. BOE, n.º 169), depois confirmada pela sentença do Tribunal Constitucional n.º 12/1985 (cf. BOE, n.º 55), que fixou a competência do Estado para estabelecer as regras de precedência protocolar entres as entidades oficiais do Estado e as entidades oficiais das comunidades autónomas.
De facto, num processo constitucional destinado a resolver um conflito positivo de competências entre o Estado e a Comunidade Autónoma da Catalunha, em que esta havia emanado um decreto fixando a posição protocolar relativa do Presidente do Tribunal Superior de Justiça nos actos oficiais organizados pela referida Comunidade, os juízes constitucionais concluíram o seguinte: as disposições em causa do Estatuto da Catalunha não permitem aceitar a assumpção por esta de qualquer competência neste domínio, "pois o objecto do conflito não é determinar se a generalidade pode fixar a precedência entre os seus órgãos e autoridades, mas se pode estabelecer a precedência relativa entre estes e os do Estado. A conclusão inicial, portanto, há-de ser a de que esta competência, com carácter geral, corresponde ao Estado. Solução que é lógica, pois concebe também o Estado na Constituição como uma instituição complexa, na qual tomam parte as comunidades autónomas, resultando necessário convir que a regulação da precedência das autoridades e órgãos de distinta ordem nos actos oficiais há-de corresponder aos órgãos gerais e centrais do Estado". Em consequência, o Tribunal Constitucional espanhol declarou a nulidade da "inclusão do Tribunal Superior de Justiça e do seu Presidente" nos artigos do decreto em causa e sublinhou, relativamente a outros preceitos do mesmo decreto que se limitavam a "reflectir a ordenação do Estado actualmente vigente", que "constitui uma técnica legislativa incorrecta a de incluir em disposições a transcrição de preceitos da Constituição e das leis, quando a competência para os ditar não corresponde ao autor da disposicão". Na realidade, esta técnica "introduz um factor de insegurança no ordenamento e de possível confusão acerca do que está vigente em cada momento, ficando tais disposições afectadas em caso de alteração da lei, e ao poder-se introduzir modificações inadvertidas quando a transcrição não é absolutamente literal ou se retira o transcrito do seu contexto".
Por sua vez, a sentença do Tribunal Constitucional n.º 12/1985, tirada também em processo de conflito positivo de competências, em que duas comunidades autónomas questionam a competência estadual para emanar o já referido Real Decreto 2099/1983, sobre Ordenação Geral de Precedências no Estado, vem confirmar a jurisprudência anterior, sublinhando a titularidade estatal da competência controvertida para estabelecer as precedências protocolares em cerimónias em que concorram simultaneamente autoridades regionais e estaduais, sem prejuízo da competência autonómica para "ordenar as suas próprias autoridades e órgãos em actos por elas organizados".» 3.2 - Relativamente à questão da inconstitucionalidade material das normas do artigo 10.º, n.os 1 e 2, do diploma em causa - «porquanto quebram o princípio constitucional da congruência entre a posição protocolar dos titulares de certos órgãos com assento na Constituição e a posição que estes ocupam dentro da estrutura institucional ou do sistema de governo em que se inserem», atendendo a que «a definição legislativa das precedências protocolares não é, sobretudo quando se trata de órgãos que são objecto de regulação directa pela lei fundamental, um domínio em que o legislador possa actuar com absoluta liberdade de conformação, estando antes sujeito a algumas vinculações constitucionais - vinculações essas que, segundo se entende, não foram tidas na devida conta em algumas das soluções gizadas pelo Decreto 8/2007 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores» -, expende o requerente:
«IV - 1 - Como acima se anunciou, além da inconstitucionalidade orgânica das disposições normativas sob apreciação, há ainda a considerar a questão da inconstitucionalidade material dos n.os 1 e 2 do artigo 10.º do Decreto 8/2007, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores: o primeiro número, por omitir entre o Presidente da Assembleia da República e o Representante da República a menção do Primeiro-Ministro, conferindo assim ao Presidente do Governo Regional - senão mesmo também ao Representante da República e ao Presidente da Assembleia Legislativa - precedência protocolar nas cerimónias oficiais realizadas na Região relativamente à terceira figura do Estado Português; o segundo número, por conceder ao Presidente do Governo Regional, nas cerimónias organizadas pelo Governo Regional, precedência relativamente ao Representante da República e ao Presidente da Assembleia Legislativa.
Efectivamente, definindo a Constituição o estatuto de todos os órgãos acabados de referir e situando-os com clareza na estrutura institucional do Estado, por um lado, e no sistema de governo regional, por outro, não parece que a definição legislativa das respectivas posições protocolares possa resultar de uma decisão inteiramente livre do legislador ordinário. Na verdade, parece ser possível encontrar na lei fundamental um conjunto de parâmetros que permitem falar de um princípio de congruência entre a posição protocolar dos órgãos e o respectivo estatuto constitucional - estatuto este que, antes de mais, tem na ordem de tratamento destes órgãos ao longo do articulado constitucional o seu reflexo mais imediato e evidente.
2 - Deste modo, independentemente do alcance e dos limites do mencionado princípio de congruência, não se afigura constitucionalmente aceitável que o Primeiro-Ministro - a quem compete dirigir "o órgão de condução geral do País e o órgão superior da Administração Pública" e que é "nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais» (artigo 182.º, n.º 1 do artigo 187.º e n.º 1 do artigo 201.º) - possa, em qualquer parte do território nacional, perder a posição protocolar que lhe é devida, enquanto membro de um órgão de soberania e terceira figura do Estado.
A simples circunstância de o Primeiro-Ministro se encontrar num evento oficial realizado nos Açores não pode, considerando a natureza unitária do Estado (artigo 6.º e n.os 2 e 3 do artigo 225.º), colocá-lo numa posição inferior à do Presidente do Governo Regional - assim como, embora a interpretação do referido n.º 1 do artigo 10.º não seja absolutamente líquida, numa posição inferior à do Representante da República e do Presidente da Assembleia Legislativa da Região.
Numa palavra, viola pois o princípio constitucional da congruência acima configurado que o Primeiro-Ministro seja a terceira figura da hierarquia do Estado e que, na Região Autónoma dos Açores, venha a ocupar a quarta posição na lista de precedências do protocolo regional, atrás do Representante da República, do Presidente da Assembleia Legislativa e do Presidente do Governo Regional - ou ocupe mesmo a sexta posição, se estiverem presentes o Presidente da República e o Presidente da Assembleia da República.
3 - Por sua vez, no que respeita ao n.º 2 do artigo 10.º do Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional, cumpre referir que a regra segundo a qual "as cerimónias oficiais são presididas pela entidade que as organiza" - regra constante tanto do n.º 1 do artigo 6.º da Lei 40/2006, de 25 de Agosto, como do artigo 6.º do Decreto 8/2007 em apreciação só pode valer na medida em que não decorra claramente da Constituição uma ordenação hierárquica diferente aplicável aos órgãos em questão.
Assim, o Primeiro-Ministro não assume a primeira precedência, relativamente ao Presidente da República e ao Presidente da Assembleia da República, pelo facto de a cerimónia ser organizada pelo Governo da República (n.º 1 do artigo 12.º da Lei 40/2006, de 25 de Agosto). A Constituição é clara: o Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República (n.º 1 do artigo 187.º) e é politicamente responsável perante este e perante a Assembleia da República (artigo 190.º). Conceder-lhe a presidência de uma cerimónia oficial, estando presentes o Presidente da República e ou o Presidente da Assembleia da República, seria subverter a ordem constitucionalmente estabelecida entre estes três órgãos, sendo indiferente saber se é ou não o Governo o organizador da cerimónia.
Pela mesma ordem de razões, também o Presidente do Governo Regional não pode assumir a presidência de cerimónias oficiais realizadas nos Açores, organizadas ou não pelo Governo Regional, sempre que estiverem presentes o Representante da República e ou o Presidente da Assembleia Legislativa da Região. De facto, também aqui a Constituição é clara: além da precedência conferida ao Representante da República relativamente aos órgãos de governo próprio da Região - resultante da nomeação daquele por acto do Presidente da República e traduzida na ordem dos preceitos constitucionais que versam sobre os órgãos em apreço (artigos 230.º e 231.º) -, o Presidente do Governo Regional é nomeado e exonerado pelo Representante da República, tomando posse, juntamente com os restantes membros do Governo Regional, perante a Assembleia Legislativa (n.os 3 e 5 do artigo 231.º);
além disso, sendo o Presidente do Governo Regional nomeado em função dos resultados eleitorais para a Assembleia Legislativa, uma vez em funções, é perante ela politicamente responsável em conjunto com os restantes membros do seu Executivo -, podendo, aliás, a sua demissão ser provocada pela Assembleia Legislativa, através dos mecanismos estatutários da apreciação do programa do Governo, do voto de confiança e da moção de censura (artigos 50.º, 51.º e 52.º do Estatuto Político-Administrativo).
Nesta consonância, a regra segundo a qual as cerimónias oficiais são presididas pela entidade que as organiza, assumindo natureza supletiva e residual, não permite que em todas as cerimónias organizadas pelo Governo Regional o respectivo Presidente tenha a primeira precedência, suplantando o Representante da República e o Presidente da Assembleia Legislativa e postergando com isso a posição que estes dois órgãos ocupam no sistema de governo regional gizado pela Constituição.» 4 - Resposta do autor da norma. - Notificado nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da LTC, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores apresentou resposta na qual comunica que esta Assembleia «subscreve integralmente para todos os efeitos» a motivação e as conclusões de parecer jurídico anexo, cujo conteúdo foi sintetizado nas seguintes conclusões:
«1.ª A determinação constitucional de que a competência legislativa da Assembleia Legislativa da RA é circunscrita ao "âmbito regional" [artigo 227.º, n.º 1, alínea a)] tem como conteúdo útil consagrar a eficácia estritamente territorial - por oposição a pessoal - do direito regional, pelo que a negação da interpretação do Representante da República não o torna um truísmo.
2.ª A leitura de semelhante requisito como corporizando um novo limite positivo à competência legislativa autonómica não é compatível com o sentido da revisão constitucional de 2004, devendo por isso significar produzir direito com validade e eficácia circunscritas às Regiões - o que o decreto em apreciação respeita inteiramente.
3.ª Por outro lado, quando restrita a cerimónias regionais a terem lugar na própria Região (como no caso vertente), a interferência da legislação regional com os órgãos de soberania não é, a se, problemática, mas apenas o conteúdo e a intensidade dessa mesma regulamentação, pelo que não se trata de um problema competencial ou de (in)constitucionalidade orgânica, mas sim de substância (o que transforma a questão num problema de constitucionalidade material).
4.ª A isto acresce que a ideia de que a noção de "âmbito regional" não tem apenas um sentido geográfico, mas também institucional, tem consequências absolutamente inaceitáveis, pois impede a RAA de exercer competências constitucionais relativamente à administração autónoma territorial e institucional aí sediada [artigo 227.º, n.º 1, alíneas l), m) e o), da Constituição].
5.ª O Decreto da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores n.º 8/2007 encontra-se validamente fundado na alínea hh) do artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, preceito apto a constituir norma habilitante para o exercício do poder legislativo regional.
6.ª Ao definir o âmbito material da competência legislativa regional durante o período transitório até à revisão do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, o artigo 46.º da Lei Constitucional 1/2004 não pode ser aplicado como contendo uma remissão meramente parcial para o artigo 8.º desse Estatuto, que afaste a vigência da sua alínea hh).
7.ª Tal interpretação, não só [não] tem qualquer correspondência no texto da disposição transitória, como significaria antecipar uma decisão quanto à eliminação do critério de interesse específico como parâmetro aferidor da competência legislativa regional, que só pode ser tomada pelos intérpretes constitucionais com intervenção nos procedimentos de revisão das leis estatutárias.
8.ª A matéria da hierarquia e do relacionamento protocolar entre as altas entidades públicas nas cerimónias oficiais realizadas na Região Autónoma dos Açores, sobre a qual incide o Decreto Legislativo Regional 8/2007, reveste-se de interesse específico, pois a existência de órgãos de governo próprio, com um âmbito de intervenção limitado ao seu espaço territorial, constitui uma particularidade da Região Autónoma, de carácter orgânico-funcional, que o regime protocolar dos actos oficiais aí realizados tem de traduzir, possibilitando a representação externa da singular estrutura governativa existente.
9.ª A existência de uma especificidade regional justificativa de um tratamento diferenciado das questões protocolares nas cerimónias realizadas nas Regiões é evidenciada, de forma clara, pelo facto de a Lei 40/2006, de 25 de Agosto, que estabelece as precedências do Protocolo do Estado Português, conter uma secção especial respeitante exclusivamente às Regiões Autónomas, a qual define uma diferente hierarquização das altas entidades públicas para os actos protocolares a realizar nas Regiões, relativamente àqueles que se celebram no continente.
10.ª A tensão internormativa existente entre o Decreto Legislativo Regional 8/2007, que regula uma área do interesse específico da Região, e esta Lei 40/2006, que, em espaço virtualmente concorrente, dispõe sobre o mesmo assunto, tem de ser resolvida ao abrigo do princípio da supletividade do direito estadual, consagrado no n.º 2 do artigo 228.º da Constituição, do qual resulta a desaplicação da normação estadual emitida em domínio de competência legislativa regional e a sua substituição pelo regime constante do diploma autonómico, no espaço territorial regional.
11.ª O Decreto Legislativo Regional 8/2007 também não padece de inconstitucionalidade orgânica por invadir o domínio de competência legislativa absoluta da Assembleia da República, conferido pelo artigo 164.º, alínea m), da Constituição ("estatuto dos órgãos de soberania e do poder local, bem como dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal").
12.ª Desde logo, porque a posição protocolar que um determinado titular de órgão de soberania ocupa numa cerimónia oficial não se enquadra em nenhuma das situações jurídicas activas em que se subjectiva o estatuto inerente a esse cargo, não constituindo um direito, regalia ou imunidade daquele titular.
13.ª Acresce que o entendimento sufragado pelo Representante da República - segundo o qual o estatuto de um órgão de soberania integra necessariamente a posição protocolar -, conduziria a um alargamento excessivo do domínio legislativo de reserva absoluta da Assembleia da República previsto na alínea m) do artigo 164.º da Constituição e, simultaneamente, a uma expansão excessiva do conteúdo da reserva de estatuto, em face do n.º 7 do artigo 231.º (implicando, desde logo, a inconstitucionalidade orgânica da Lei 40/2006).
14.ª Na verdade, à luz do critério da essencialidade como instrumento de delimitação da reserva material de lei, verifica-se que a matéria do relacionamento protocolar entre entidades públicas não apresenta uma relevância jusfundamental, que, pela sua essencialidade para o interesse comunitário, possa justificar a obrigatoriedade da intervenção do legislador parlamentar.
15.ª O regime protocolar contém meras regras práticas ou de correcção constitucional, a observar entre os órgãos políticos ou entre os elementos que compõem esses órgãos, os quais não convocam a necessidade de uma legitimação democrática, participação, debate pluralista e transparência que só o processo legislativo parlamentar pode propiciar.
16.ª Quanto à alegada inconstitucionalidade material do artigo 10.º, n.º 2, do decreto em análise pela atribuição, ao Presidente do Governo Regional, de precedência relativamente ao Representante da República e ao Presidente da Assembleia Legislativa, a mesma é desprovida de fundamento.
17.ª Na verdade, o artigo 10.º, n.º 1, da Lei do Protocolo do Estado Português determina que, "na Assembleia da República, o respectivo Presidente preside sempre, mesmo que esteja presente o Presidente da República", o que legitima uma analogia em relação à situação sub judice.
18.ª A referida analogia não é infirmada pelo facto de o Representante da República representar o Estado e, por isso, dever ter uma precedência absoluta e impostergável sobre os órgãos de governo próprio, visto que uma análise atenta do respectivo estatuto constitucional evidencia claramente que a esse papel se deverá acrescentar uma função de tutela da autonomia regional que, mitigando o referido postulado, autoriza uma precedência ad actum, a ter lugar apenas quando o mesmo se realize por organização do Governo Regional.
19.ª Por fim, a inconstitucionalidade material do artigo 10, n.º 2, do presente decreto, derivada da omissão do Primeiro-Ministro entre o Presidente da Assembleia da República e o Representante da República, conferindo assim precedência protocolar ao Presidente do Governo Regional relativamente ao primeiro, não se configura como a questão central que é colocada ao Tribunal Constitucional.
20.º Aliás, a omissão do Primeiro-Ministro (de facto, de muita duvidosa constitucionalidade) parece resultar de um lapso da Assembleia Legislativa, consubstanciando uma lacuna que pode e deve ser suprida por via de uma interpretação conforme à Constituição.
21.ª Para tanto, por força do princípio da supletividade do direito estadual, deverá recorrer-se ao artigo 12.º, n.º 1, da Lei do Protocolo do Estado Português, passando a norma cuja constitucionalidade foi questionada a ter o seguinte conteúdo: "O Presidente do Governo Regional preside às cerimónias oficiais em que não estejam presentes o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, [o Primeiro-Ministro], o Representante da República e o Presidente da Assembleia Legislativa".» 5 - Concluída a discussão do memorando elaborado nos termos do artigo 58.º, n.º 2, da LTC e apurado o vencimento formado relativamente às questões suscitadas, cumpre formular a decisão.
II - Fundamentação
6 - As precedências protocolares, designadamente de altas entidades públicas, em cerimónias oficiais, eram regidas por um conjunto de normas consuetudinárias até que, na sequência de procedimento legislativo desencadeado pela apresentação dos projectos de lei n.os 260/X (PS), 261/X (PSD) e 279/X (CDS-PP) [Diário da Assembleia da República (DAR), X Legislatura, 1.ª sessão legislativa, 2.ª série-A, n.os 114, de 25 de Maio de 2006, pp. 24-29 e 29-37, e 122, de 24 de Junho de 2006, pp. 44-53, respectivamente], a Lei 40/2006, de 25 de Agosto (Lei das Precedências do Protocolo do Estado Português), procedeu à codificação legal da matéria.Na origem dessas iniciativas esteve, por um lado, o reconhecimento da conveniência da substituição de um modelo baseado em «opções consuetudinárias ou casuísticas, de acesso restrito e que não garant[iam], por isso, as necessárias transparência e segurança», por um modelo integrado por um conjunto globalmente articulado de regras públicas, oficiais, objectivas e claras, que, por outro lado, dessem expressão aos valores políticos fundamentais que norteiam o regime democrático. A relevância da matéria, justificadora da intervenção do legislador parlamentar, radicava no reconhecimento de que as regras de precedência protocolar representam «a projecção da representação pública do Estado», consagrando «a arquitectura constitucional vigente» (exposição de motivos do projecto de lei 260/X), pelo que «devem exprimir a própria natureza do Estado democrático» e «têm de decorrer da própria estrutura constitucional do Estado» (exposição de motivos do projecto de lei 261/X). Essa relevância mostra-se actualmente acrescida «dada a exposição mediática que difunde a organização simbólica dos actos cerimoniais do Estado para a sociedade portuguesa» (relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, DAR cit., 2.ª série-A, n.º 123, de 29 de Junho de 2006, pp. 13-17).
No decurso deste processo legislativo foram ouvidos os órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, que efectivamente nele participaram, através da emissão de pareceres do Governo Regional da Madeira, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores e do Governo Regional dos Açores (DAR cit., 2.ª série-A, n.os 122, de 24 de Junho de 2006, pp. 19 e 19-23, e 128, de 15 de Julho de 2006, pp. 26-27, respectivamente).
A Lei 40/2006 explicitamente visa aplicar-se «em todo o território nacional» (artigo 2.º), surgindo os titulares de órgãos regionais hierarquizados na lista de precedências do artigo 7.º (cf. os n.os 14, 15, 32 e 33), e sendo reguladas especificamente as precedências em cerimónias a realizar nas Regiões Autónomas (artigos 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, n.º 2, e 29.º e 30.º) ou nos municípios nas Regiões Autónomas (artigos 31.º, n.os 2, segunda parte, e 4, e 32.º, n.º 2, segunda parte) e respectivas freguesias (artigo 33.º) e o lugar protocolar dos embaixadores estrangeiros acreditados em Lisboa quando em visita oficial às Regiões Autónomas (artigo 36.º, n.º 2).
Foi, assim, num quadro de preexistência de legislação nacional sobre a matéria em causa - legislação essa que, como se viu, explicitamente se destinava a vigorar em todo o território nacional e que conferiu tratamento particular às cerimónias a realizar nas Regiões Autónomas -, que surgiu a iniciativa legislativa regional que originou a formulação do presente pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade, iniciativa essa que, como já se referiu (supra, n.º 2), invoca, como justificação para o estabelecimento de um regime específico na Região Autónoma dos Açores, «a particular configuração que as regras de precedências protocolares assumem no quadro da autonomia política».
No entanto, como o próprio requerente sublinha, não está em causa, no presente processo de fiscalização da constitucionalidade, a apreciação da bondade ou correcção intrínseca das soluções concretas adoptadas pelo legislador regional açoriano nem a questão da harmonia ou contraste entre essas soluções e as prescritas na Lei 40/2006.
Do que se trata, antes de mais, é de apurar se a projectada intervenção legislativa respeita os limites da autonomia legislativa regional constitucionalmente estabelecidos e só se se responder afirmativamente a tal questão (isto é, só se se vier a entender que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores pode legislar sobre a matéria em causa com a extensão com que o fez) é que se justificará enfrentar a questão da inconstitucionalidade material das normas dos n.os 1 e 2 do artigo 10.º do Decreto 8/2007.
7 - A competência legislativa primária das Regiões Autónomas antes da revisão constitucional de 2004 [não nos ocupando, por irrelevante para o presente processo, das competências legislativas derivada ou autorizada (mediante autorização da Assembleia da República) e complementar (de leis de bases), consagradas na revisão constitucional de 1989 - artigo 229.º, n.º 1, alíneas b) e c)] era delimitada, para além da óbvia sujeição ao respeito pela Constituição, por um requisito positivo - i) versar sobre matérias de interesse específico para as Regiões -; e por dois requisitos negativos - ii) não versar sobre matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania, e iii) não desrespeitar as leis gerais da República ou, a partir da revisão constitucional de 1997, os princípios fundamentais das leis gerais da República.
Não seguiu, assim, o legislador constituinte português a «técnica da enumeração material tipificadora, que tende a repartir horizontalmente os poderes próprios do Estado e das Regiões através da enumeração de listas de matérias atribuídas à competência estadual ou regional», à semelhança da Itália ou da Espanha, mas antes «o método da cláusula geral valorativa», submetendo a competência legislativa regional à observância cumulativa de dois limites de competência e de um limite de substância ou de matéria: o primeiro limite de competência, de ordem positiva, exprimia-se através de uma cláusula geral (matérias de interesse específico das Regiões); o segundo limite de competência, de ordem negativa, exprimia-se através de um conceito indeterminado (matérias que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania); o último limite, não já de competência, mas de substância, circunscrevia o espaço de liberdade de actuação conformadora dos órgãos legislativos regionais ao respeito das leis gerais da República [cf. Maria Lúcia Amaral, «Questões regionais e jurisprudência constitucional: Para o estudo de uma actividade conformadora do Tribunal Constitucional», Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa, 1995, pp. 509-547, em especial pp.
523-543; republicado em Jorge Miranda e Jorge Pereira da Silva (org.), Estudos de Direito Regional, Lisboa, 1997, pp. 261-296, em especial pp. 272-275].
A indeterminabilidade e generalidade dos conceitos utilizados explica que, na vigência deste quadro constitucional, tenha assumido especial relevância a actividade densificadora e concretizadora dos mesmos levada a cabo pelo Tribunal Constitucional, que foi diversas vezes chamado a pronunciar-se sobre o sentido e extensão dos referidos três requisitos, emitindo jurisprudência cujos traços essenciais interessará sinteticamente recordar.
7.1 - Quanto ao requisito do interesse específico - tido como «o cerne da autonomia legislativa» regional, já que é «porque há matérias de interesse específico de cada uma das Regiões Autónomas, as quais, na perspectiva democrática e descentralizadora da Constituição [...], devem ser objecto de normas dimanadas dos seus órgãos, que essa autonomia adquire sentido» (Jorge Miranda, «A autonomia legislativa regional e o interesse específico das Regiões Autónomas», em Estudos sobre a Constituição, vol. I, Lisboa, 1977, pp. 307-316, republicado em Estudos de Direito Regional, cit., pp. 11-18) -, a jurisprudência do Tribunal Constitucional sempre adoptou, como critério de orientação interpretativa, o de que se deviam considerar de interesse específico para as Regiões «aquelas matérias que lhes respeitem exclusivamente ou que nelas exijam um especial tratamento por aí assumirem particular configuração» (Acórdão 42/85, formulação retomada, entre outros, nos Acórdãos n.os 57/85, 130/85, 164/86, 333/86, 152/87, 337/87, 91/88, 257/88, 403/89, 139/90, 141/90 e 215/90).
A Constituição não enunciava originariamente as matérias de interesse específico, tendo as primeiras enumerações dessas matérias surgido nos Estatutos Político-Administrativos definitivos das Regiões Autónomas. No que respeita ao EPARAA, a sua primeira versão, constante da Lei 39/80, de 5 de Agosto, inseria no artigo 27.º uma enumeração das matérias consideradas de interesse específico para a Região, enumeração meramente exemplificativa (como resultava do uso do advérbio «designadamente»), mas sem qualquer «cláusula geral», situação que se manteve na primeira revisão (Lei 9/87, de 26 de Março). Idêntico método (enumeração exemplificativa, sem «cláusula geral») foi seguido no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM), aprovado pela Lei 13/91, de 5 de Junho (artigo 30.º).
Na revisão constitucional de 1997, com o aditamento do artigo 228.º, a Constituição passou a inserir, ela própria, uma lista de «matérias de interesse específico das Regiões Autónomas», designadamente para efeitos do n.º 4 do artigo 112.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, lista essa que, além de não taxativa, terminava com uma «cláusula geral»: «outras matérias que respeitem exclusivamente à respectiva Região ou que nela assumam particular configuração» [alínea o)]. Esta técnica legislativa de acoplar uma cláusula geral a uma enumeração exemplificativa foi criticada por Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, t. V, 2.ª ed., Coimbra, 2000, p. 400, n. 2); na verdade, após se enumerarem diversas matérias ao longo de 13 alíneas e de inserir uma «cláusula geral» com a abrangência da consagrada na alínea o), não se vislumbra que outras matérias de interesse específico ainda poderiam surgir, que justificassem a atribuição de natureza meramente exemplificativa àquele elenco. Por outro lado, a inclusão deste conceito material de interesse específico suscitou a «perplexidade» (Maria Benedita Urbano, «Poder legislativo regional: Os difíceis contornos da autonomía política das rexións. O caso portugués», Separata de Dereito - Revista Xurídica da Universidade de Santiago de Compostela, vol. 15, n.º 1, 2006, pp.
69-99, em especial p. 95) derivada do facto de «estes critérios que, antes da revisão de 1997, serviram de instrumentos hermenêuticos freadores da expansividade do interesse específico regional, transmuta[re]m-se em critérios ampliadores da reserva constitucional de interesse específico» (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, 2003, pp. 809-810).
Na sequência desta revisão constitucional, a segunda alteração ao EPARAA, operada pela Lei 61/98, de 27 de Agosto, veio dedicar o artigo 8.º à enumeração das «matérias de interesse específico», nomeadamente «para efeitos de definição dos poderes legislativos [...] da Região», através de lista taxativa (atenta a não reprodução do advérbio «designadamente», constante das duas versões anteriores), mas inserindo, na última alínea [alínea hh)], uma «cláusula geral», de formulação decalcada na alínea o) do artigo 228.º da CRP (versão de 1997): «outras matérias que respeitem exclusivamente à Região ou que nela assumam particular configuração». Idêntica «cláusula geral» consta do artigo 40.º do EPARAM, aprovado pela Lei 130/99, de 21 de Agosto, mas inserida em enumeração que continua a apresentar-se como não taxativa.
No entanto, o Tribunal Constitucional sempre entendeu que a mera inserção de determinada matéria nessas listas não bastava para, por si só, dar por verificado o apontado requisito, sendo sempre necessário o apuramento concreto, no caso, da ocorrência dessa especificidade da situação, a exigir regulação legal diferenciada.
Como se referiu no Acórdão 220/92:
«O que deva entender-se por interesse específico regional merece-nos particular atenção mas não é de resposta fácil nem pacífica [...] A Constituição furtou-se à sua conceituação ou a tipificar situações, optando por uma formulação vazia, a densificar a partir da ratio do regime político-administrativo por ela própria criado para as Regiões Autónomas e consubstanciada de certo modo no artigo 227.º Assim, respeitando o valor intangível da integridade de soberania do Estado, a natureza unitária deste (cf. o artigo 6.º da CRP) e o quadro constitucional global, o interesse específico habilitador da produção legislativa regional passa não só pela singularidade da matéria em causa, indiciadora de uma exclusividade específica da Região, como o instituto da colonia da Madeira, mas também pela existência nessa Região, com especial intensidade, de uma especificidade que justifique o seu tratamento em termos distintos dos aplicáveis ao restante território nacional [...] Recorre-se, por conseguinte, a um critério valorativo que não se basta com uma enumeração das situações, por extensa que seja, contida no respectivo Estatuto Político-Administrativo, nem significa que a sua concretização no elenco seja, casuisticamente, determinante.
Na verdade, constitui jurisprudência deste Tribunal não poder uma dada medida legislativa regional considerar-se constitucionalmente credenciada tão-só pelo facto de versar sobre matéria que o respectivo Estatuto considere como sendo de interesse específico para a Região, pois é, ainda, necessário que essa matéria lhe respeite exclusivamente ou que nela exija tratamento especial por aí assumir particular configuração (cf., por todos, os já citados Acórdãos n.os 164/86 e 326/86).» Nesse Acórdão 220/92, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade, por violação da alínea a) do n.º 1 do então artigo 229.º (correspondente ao actual artigo 227.º) da CRP, de normas constantes de decreto aprovado pela Assembleia Legislativa Regional da Madeira, subordinado ao título «Competências no âmbito do ensino superior», por, apesar de a alínea o) do artigo 30.º do EPARAM incluir entre as matérias de interesse específico para a Região as relativas ao «ensino superior», não se poder pretender que verse sobre interesse específico «matéria que, pelo seu interesse nacional, os órgãos de soberania da República com competência legislativa reservam para si ou para uma decisão conjunta com os órgãos regionais», como no caso concreto ocorria.
O entendimento de que «uma medida legislativa não pode haver-se como detentora de credencial constitucional bastante tão-só pelo facto de versar matéria que o respectivo Estatuto considera como sendo de interesse específico para a Região», sendo «necessário ainda - e sempre - que esta matéria respeite exclusivamente a essa Região ou que nela exija um tratamento especial, por aí assumir especial configuração» foi reafirmado, entre outros, nos Acórdãos n.os 235/94 e 583/96.
O Acórdão 408/98, após reproduzir as passagens do Acórdão 220/92, aditou:
«Assim, de acordo com esta jurisprudência, a iniciativa legislativa regional tomada ao abrigo da alínea a) do artigo 229.º, ou agora ao abrigo da mesma alínea do n.º 1 do artigo 227.º, porque não há que diferenciar neste contexto, máxime em termos de parâmetros de apreciação da constitucionalidade, deve versar matéria de interesse específico para a Região, sendo certo que este interesse tem de ser sempre apreciado em concreto. Mesmo o facto de a matéria estar indicada no respectivo Estatuto da Região como matéria de interesse específico não implica que, desde logo, se tenha de concluir que se está perante matéria de interesse específico da Região.
Tal inclusão deve entender-se como simples presunção abstracta ilidível, caso a caso, pela demonstração da inexistência de um interesse específico (cf. o Acórdão 235/94, in Diário da República, 1.ª série-A, de 2 de Maio de 1994).» Nesta orientação se insere, por último, o Acórdão 246/2005, que, considerada a relativa irrelevância de o EPARAM incluir, no seu artigo 40.º, a saúde e a segurança social entre as matérias de interesse específico regional, reputando antes como decisiva a verificação, em concreto, de situação que respeitasse exclusivamente à Região ou exigisse tratamento especial por aí assumir peculiar configuração, acabou por declarar a inconstitucionalidade das normas regionais de responsabilização de familiares por despesas de internamento em meio hospitalar, por se ter constatado que o problema em causa não assumia na Região Autónoma da Madeira especial configuração.
7.2 - Quanto ao segundo requisito, ligado à reserva de competência própria dos órgãos de soberania, desde cedo constituiu orientação do Tribunal Constitucional a rejeição de uma interpretação restritiva ou literal, que a confinasse ao elenco taxativo das competências constitucionalmente reservadas, de forma explícita, à Assembleia da República e ao Governo, e a adopção do entendimento de que «reservadas à competência própria dos órgãos de soberania são não apenas as matérias que constituem a reserva de competência legislativa da Assembleia da República (artigos 167.º e 168.º da Constituição) e do Governo (artigo 202.º, n.º 1), mas também [...] todas aquelas que reclamem a intervenção do legislador nacional, o que sucede quando se está perante assuntos que interessam imediatamente à generalidade dos cidadãos» (Acórdão 376/89).
Este entendimento foi afirmado, entre outros, nos Acórdãos n.os 57/85, 130/85 (ambos relativos a normas regionais que permitiam a concessão de licenças de trabalho a bordo independentemente do completamento da escolaridade obrigatória, por se entender que o incentivo da escolaridade obrigatória assumia dimensão nacional, apesar de se tratar de matéria não inserida na reserva legislativa parlamentar), 164/86 (por entender que a matéria do comércio externo, a que respeitava a norma regional questionada, que proibia a exportação de peles de bovinos não curtidas, apesar de não fazer parte da reserva de lei, assumia relevância nacional), 326/86, 267/87, 268/88, 212/92, 256/92, 348/93 (que considerou ser matéria «com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos» e, portanto, da competência dos órgãos de soberania, a definição das condições de acesso aos cuidados de saúde), 235/94, 711/97 e 491/2004, escrevendo-se no Acórdão 711/97:
«6 - A Constituição, ao indicar os limites dos poderes legislativos das Regiões Autónomas, não fornece uma definição das matérias "reservadas à competência própria dos órgãos de soberania" [artigo 227.º, n.º 1, alínea a)] ou das matérias "reservadas à Assembleia da República ou ao Governo" (artigo 112.º, n.º 4). Uma tal definição encontra-se, no entanto, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, a qual continua válida em face do texto da Constituição emergente da Revisão Constitucional de 1997.
Segundo a jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal, matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania e, como tais, vedadas ao poder legislativo regional, são, desde logo, as que integram a competência legislativa própria da Assembleia da República, enumeradas nos artigos 161.º, 164.º (reserva absoluta) e 165.º (reserva relativa) da Constituição, bem como a que é da exclusiva competência legislativa do Governo, ou seja, a matéria respeitante à sua própria organização e funcionamento (artigo 198.º, n.º 2).
Mas, como tem sublinhado o Tribunal Constitucional, embora com vozes discordantes, as matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania não se circunscrevem às que constituem a reserva de competência legislativa da Assembleia da República e do Governo. A tal competência acham-se também "reservadas todas as matérias que reclamem a intervenção do legislador nacional".
Com efeito, "o carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses exigem que a legislação sobre matéria com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos seja produzida pelos órgãos de soberania (Assembleia da República ou Governo), devendo ser estes a introduzir as especialidades ou derrogações que se mostrem necessárias, designadamente por, no caso, concorrerem interesses insularmente localizados". Os referidos princípios da unidade do Estado e da solidariedade entre todos os portugueses reclamam, assim, a intervenção do legislador nacional nas matérias que se apresentam com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos ou que respeitam ou se repercutem nas diferentes parcelas do território nacional [cf. os já citados Acórdãos n.os 91/84, 164/86, 326/86 e 212/92 - cf., ainda, Mário de Brito, Competência Legislativa das Regiões Autónomas, Separata da Scientia Ivridica, n.os 247 e 249 (1994), pp. 20-21, e Rui Medeiros/J. Pereira da Silva, ob. cit., pp. 114-115].» Tratava-se, no fundo, de posição igualmente partilhada por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 853), que defendem que esta «reserva da República» não pode limitar-se às matérias recortadas nos preceitos constitucionais que definem a competência legislativa reservada da Assembleia da República e do Governo, «devendo abranger por inerência outras matérias que, embora pertencendo à competência concorrente da AR e do Governo, não podem, pela sus natureza eminentemente nacional, ser reguladas senão por órgãos legislativos do Estado», indicando, entre outros exemplos, o estatuto e regime de utilização dos símbolos nacionais.
Não se ignora que este entendimento, sempre seguido pelo Tribunal Constitucional, mereceu algumas críticas da doutrina, as quais, porém, mais que questionar a razoabilidade do entendimento de que matérias que, pela sua natureza, reclamavam a intervenção do legislador nacional não podiam ser objecto de legislação regional, censuravam o «sincretismo de critérios» derivado do cruzamento, na apontada fórmula jurisprudencial, de definições de «dois limites distintos do poder legislativo regional: o limite de competência, que decorre da necessária preservação da esfera de reserva de lei estadual, e o limite de matéria ou substância, que decorre da necessária observância do conteúdo das leis gerais da República» (cf. Maria Lúcia Amaral, «Questões regionais e jurisprudência constitucional ...», cit., pp. 534-543, e Estudos de Direito Regional, cit., pp. 282-292). Idêntica é a crítica de Pedro Machete («Elementos para o estudo das relações entre os actos legislativos do Estado e das Regiões Autónomas no quadro da Constituição vigente», Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXXIII, n.os 1-2, Janeiro-Junho 1991, pp. 169-238, em especial pp. 191-201, republicado em Estudos de Direito Regional, cit., pp. 87-163, em especial pp. 108-115), que, considerando que «não pode deixar de reconhecer-se a existência de regulamentações necessariamente nacionais, não previstas nas normas constitucionais atributivas de competências reservadas à Assembleia da República e ao Governo», o que censura é a propensão da aludida orientação jurisprudencial «a fazer coincidir o critério das matérias reservadas com o das leis gerais da República».
É similar o reparo feito, a este propósito, por Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva (Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores Anotado, Lisboa, 1997, pp. 111-114, anotação XVI ao artigo 32.º).
7.3 - A versão originária da Constituição era omissa quanto à noção de lei geral da República. Na primeira revisão constitucional (1982), o artigo 115.º, n.º 4 (mantido na versão de 1989) definiu as leis gerais da República como «as leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolva a sua aplicação sem reservas a todo o território nacional», tendo a revisão de 1997 (artigo 112.º, n.º 5) eliminado o inciso «sem reservas» e aditado, no final, a expressão «e assim o decretem», e, como se assinalou, restringido a limitação da autonomia legislativa regional ao respeito pelos princípios fundamentais de tais leis.
Foi no Acórdão 631/99 que o Tribunal Constitucional foi confrontado pela primeira vez com a nova formulação deste requisito negativo da competência legislativa regional. Nesse aresto [que declarou, com força obrigatória geral, a ilegalidade da norma do artigo 6.º, n.º 2, do Decreto Legislativo Regional 19-A/98/A, de 31 de Dezembro, que autorizava o Governo Regional dos Açores a assumir dívidas de autarquias locais, por entender que violava o princípio fundamental contido no artigo 7.º, n.º 1, da Lei 42/98, de 6 de Agosto (Lei das Finanças Locais), que proibia a concessão de quaisquer formas de subsídios ou comparticipações financeiras aos municípios e freguesias por parte do Estado, das Regiões Autónomas, dos institutos públicos e dos fundos públicos], começou o Tribunal por recordar:
«4 - Vários foram os arestos do Tribunal Constitucional que caracterizaram as "leis gerais da República", tendo em conta o conceito constitucionalmente definido a partir da revisão de 1982.
Com ressalva das incidências que o aditamento do aludido elemento formal [refere-se ao inciso "que assim o decretem", aditado em 1997] necessariamente tem nessa caracterização, pode, no entanto, afirmar-se que, no essencial, mantém plena validade o que naqueles arestos se disse reportado ao elemento substancial do conceito - envolver a razão de ser das leis e dos decretos-leis a sua aplicação a todo o território nacional.
Versar matéria de "inegável dimensão nacional", "com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos" que "por exigências decorrentes do princípio da unidade do Estado e dos laços de solidariedade que devem unir os Portugueses" "são da competência dos órgãos de soberania" (cf. Acórdão 133/90, in ATC, 15.º vol., p.
455, e outros aí citados) são critérios que o Tribunal tem adoptado para a individualização das leis gerais da República, sem prejuízo da análise caso a caso, pois, como se escreve no citado Acórdão 133/90, "só através da identificação nas leis e nos decretos-leis das normas e princípios portadores de eficácia normativa para os cidadãos do todo nacional é que se torna possível saber se, em concreto, uma determinada lei ou um decreto-lei específico revestem a natureza de lei geral da República".» E depois de reconhecer a Lei 42/98 como uma lei geral da República, prossegue o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão 631/99:
«6 - O limite do poder legislativo regional no confronto com as leis gerais da República, que se reportava a todo o conteúdo dispositivo dessas leis, cinge-se, a partir da revisão constitucional de 1997 - disse-se já - ao respeito pelos "princípios fundamentais" daquelas leis, muito embora o artigo 281.º, n.º 1, alínea c), diversamente do que ocorre com o artigo 227.º, n.º 1, alínea a), não tenha sido consequentemente alterado e deva ser sujeito a interpretação correctiva (cf. Carlos Blanco de Morais, in cit. revista Legislação..., n.º 19/20, p. 18).
Impor-se-ia, assim, que o julgador elucidasse, primeiro, este conceito, para depois abordar a questão de saber se o artigo 7.º é a expressão de um dos princípios fundamentais da Lei 42/98, ou seja, do regime das finanças locais definido por este diploma.
À tarefa, árdua e complexa, de integrar este conceito indeterminado - o dos "princípios fundamentais" não teve ainda oportunidade o Tribunal Constitucional de se dedicar; na doutrina, começa a ensaiar-se a dilucidação do conceito, procurando sintetizá-lo numa fórmula que, qualquer que seja a sua valia, terá sempre um limite: sendo os princípios fundamentais das leis gerais da República "rincípios referentes às matérias concretamente disciplinadas por estas leis", eles são "insusceptíveis de uma captação apriorística" (Gomes Canotilho, in cit. Legislação..., n.º 19/20, p. 42; cf. ainda Carlos Blanco de Morais, "As competências legislativas das Regiões Autónomas no conceito da revisão constitucional de 1997", Separata da Revista da Ordem dos Advogados, ano 57.º, Dezembro de 1997, pp. 32 e segs.).
Não obstante a norma em causa da Lei 42/98 não surgir catalogada de princípio fundamental do regime instituído pela lei (qualificação insindicável pelo julgador ou mera presunção ilidível?), ela revela, no contexto próprio do diploma, uma opção legislativa fundamental que, seja qual for o nível de densificação do conceito, não deixa margem para dúvidas no sentido da sua qualificação como "princípio fundamental" do regime das finanças locais.» Este entendimento do conceito de princípios fundamentais das leis gerais da República, definido no Acórdão 631/99, foi posteriormente seguido pelo Tribunal Constitucional, em diversas decisões (cf. Acórdãos n.os 458/2002, 69/2004 e 295/2004), até ao recente Acórdão 217/2007 (que não julgou inconstitucional a norma do artigo 1.º do Decreto Legislativo Regional 18/2002/M, de 8 de Novembro, que consagrou o dia 26 de Dezembro como feriado na Região Autónoma da Madeira, por, além do mais, entender que não resultava do Decreto-Lei 874/76, de 28 de Dezembro, diploma qualificado como lei geral da República, um princípio fundamental que impusesse a existência de um único feriado regional em cada Região Autónoma), considerando tais princípios como os «critérios gerais de decisão legislativa que, pelo seu relevo necessário para todos os cidadãos, fundamentam o preenchimento homogéneo de fins e o cumprimento uniforme de obrigações de resultado, por parte de uma disciplina legal determinada» (Carlos Blanco de Morais, As Leis Reforçadas - As Leis Reforçadas pelo Procedimento no Âmbito dos Critérios Estruturantes das Relações entre Actos Legislativo, Coimbra, 1998, p. 29).
8 - Recordado o modelo de definição da competência legislativa regional instituído pela Constituição de 1976 e cujas linhas mestras se mantiveram até à sexta revisão constitucional, é tempo de analisar as radicais alterações introduzidas em 2004, que, como já se referiu, consistiram no abandono dos requisitos relacionados com o interesse específico e os princípios fundamentais das leis gerais da República, na introdução do conceito de âmbito regional, na remissão para os estatutos político-administrativos da enunciação das matérias passíveis de legislação regional e na manutenção da exclusão das matérias reservadas aos órgãos de soberania.
O processo de revisão constitucional de 2004 teve como um dos seus objectivos essenciais - senão mesmo o principal - a redefinição do estatuto constitucional das autonomias regionais, em especial no que concerne à competência legislativa regional, matéria sobre a qual praticamente todos os projectos de revisão apresentados inseriram propostas de alterações substanciais.
O projecto de revisão constitucional n.º 1/IX, apresentado pelo Partido Socialista [Diário da Assembleia da República (DAR), IX Legislatura, 2.ª sessão legislativa, 2.ª série-A, n.º 8, suplemento, de 18 de Outubro de 2003, pp. 338-(2) a 338-(7)], propunha para o n.º 4 do artigo 112.º [para que remetia o artigo 227.º, n.º 1, alínea a)], uma redacção segundo a qual «os decretos legislativos regionais versam sobre as matérias expressamente enunciadas no estatuto político-administrativo da respectiva Região Autónoma como integrantes da sua autonomia legislativa, com excepção das previstas nos artigos 161.º, 164.º, 165.º e 198.º, n.º 2, e das que cabem ao Governo no exercício das funções de soberania». Como se assinalava na respectiva «Exposição de motivos»:
«3 - O ordenamento jurídico-constitucional deixa de comportar o conceito de lei geral da República e em sua substituição definem-se as matérias de reserva do Estado e as da competência própria das Regiões Autónomas.
As reservas de competência política e legislativa exclusiva da Assembleia da República e do Governo, em função do exercício da soberania, constituem o limite ao exercício da competência legislativa regional. E esta exerce-se no quadro da competência legislativa própria firmada no estatuto político-administrativo, em função da especial configuração que as matérias assumem na respectiva Região, por razões de intensidade, diversidade ou exclusividade.
Procura-se, assim, definir com precisão o âmbito das matérias de reserva dos órgãos de soberania, as competências legislativas próprias das Regiões e um espaço fixado pelas autorizações legislativas da Assembleia da República, pelo desenvolvimento de leis de bases e de regimes gerais, bem como o respeitante à transposição de directivas comunitárias.» Na formulação proposta pelo projecto de revisão constitucional n.º 2/IX, apresentado pelo Bloco de Esquerda [DAR cit., n.º 14, suplemento, de 21 de Novembro de 2003, pp. 564-(2) a 564-(9)], para o artigo 112.º, n.º 4, previa-se que «as leis regionais versam sobre as matérias que dizem respeito às Regiões Autónomas e que não estejam reservadas à Assembleia da República ou ao Governo, sem prejuízo do disposto no artigo 227.º», e a alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º passaria a dispor que competia às assembleias Legislativas Regionais «legislar sobre as matérias expressas no respectivo estatuto político-administrativo e outras de interesse para as Regiões Autónomas que não estejam reservadas à competência absoluta da Assembleia da República».
O projecto de revisão constitucional n.º 3/IX, apresentado pelo PSD e pelo CDS-PP [DAR cit., pp. 564-(9) a 564-(24)], com o propósito declarado, na respectiva nota justificativa, de ultrapassar as insuficiências detectadas na aplicação dos avanços prosseguidos pela revisão de 1997, face ao que se qualificou como a «jurisprudência tradicionalmente restritiva [do Tribunal Constitucional] em matéria de autonomia», propunha que o artigo 112.º, n.º 4, passasse a prever que «as leis regionais versam sobre as matérias que digam respeito às Regiões Autónomas e não reservadas à Assembleia da República ou ao Governo, sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º» (que permitia a concessão de autorização da Assembleia da República para as Assembleias Legislativas Regionais legislarem em matéria da sua reserva relativa), e que a alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º atribuísse às Regiões Autónomas poder para «legislar em matérias que digam respeito às Regiões Autónomas expressas no respectivo Estatuto ou do seu interesse que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania».
O projecto de revisão constitucional n.º 4/IX, apresentado pelo PCP [DAR cit., pp.
564-(24) a 564-(35)], era menos inovador nesta matéria, propondo para o artigo 112.º, n.º 4, uma redacção segundo a qual «os decretos legislativos regionais versam sobre matérias de interesse específico para as respectivas Regiões e não reservadas à Assembleia da República ou ao Governo, não podendo dispor contra leis de valor reforçado», e para o artigo 227.º, n.º 1, alínea a), a seguinte formulação: «Legislar, com respeito pelas leis de valor reforçado, em matérias de interesse específico para as Regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania».
Esta última formulação era também a proposta para o artigo 227.º, n.º 1, alínea a), pelo projecto de revisão constitucional n.º 6/IX, apresentado pelo Partido Ecologista Os Verdes [DAR cit., pp. 564-(40) a 564-(45)], que não propunha qualquer alteração para o artigo 112.º, n.º 4.
Como se constata, em nenhum desses projectos se utilizava a expressão «âmbito regional», que viria a constar da versão final quer do n.º 4 do artigo 112.º, quer da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP. Tal expressão surgiu, no âmbito dos trabalhos da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, integrando as propostas de emenda n.os 18 e 34 [cf. relatório da Comissão, DAR, 2.ª série-C, n.º 33, suplemento, de 3 de Julho de 2004, pp. 578-(9) e 578-(12)], mas nem do debate travado em sede de Comissão (DAR, 2.ª série-RC, n.º 10, de 22 de Abril de 2004, pp.
320 e 332-334), nem da discussão e votação no Plenário, a propósito daqueles dois preceitos (DAR, 1.ª série, n.º 78, de 23 de Abril de 2004, pp. 4258-4262 e 4292) se retira qualquer contributo explícito determinante para a densificação do conceito.
No entanto, crê-se não ser abusivo associar a expressão «âmbito regional», para além de uma referência territorial, às expressões «matérias que dizem [digam] respeito às Regiões Autónomas», constantes dos Projectos de revisão constitucional n.os 2/IX e 3/IX, definidas «em função da especial configuração que as matérias assumem na respectiva Região» (como se lê na exposição de motivos do projecto de revisão constitucional n.º 1/IX), e surgindo aquela expressão como sucedânea da anterior menção a «matéria de interesse específico para as respectivas Regiões», ainda utilizada nos projectos de revisão constitucional n.os 4/IX e 6/IX.
Elucidativas sobre o alcance desta alteração do limite da competência legislativa regional são as considerações tecidas na declaração de voto escrita do deputado José Magalhães (DAR, 1.ª série, n.º 79, de 24 de Abril de 2004, p. 4368), quando salienta que a sexta revisão constitucional «não veio alterar o disposto no artigo 225.º da CRP», «pelo que o limite dos poderes dos órgãos próprios regionais continua desde logo a definir-se pelo território e pelos fins próprios da autonomia», assinalando que, «em vez da competência para aprovar legislação regional versando sobre matérias de interesse específico não reservadas à Assembleia da República e ao Governo e com subordinação aos princípios fundamentais das leis gerais da República, os decretos legislativos surgem agora parametrizados em função da sua natureza regional (pelo território e pelo objecto, que inevitavelmente há-de assumir uma feição própria por as questões terem um cunho original na Região, por serem nela exclusivos ou nela terem especial configuração) e versam sobre matérias enunciadas no estatuto político-administrativo da respectiva Região Autónoma que não sejam reservados aos órgãos de soberania» (itálicos acrescentados).
Resta referir que, também na sequência de proposta surgida no seio da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional [proposta n.º 42, DAR, 2.ª série-C, n.º 33, de 3 de Julho de 2004, p. 578-(14)], a Lei Constitucional 1/2004 viria a inserir, como disposição transitória, o artigo 46.º, que, sob a epígrafe «Competência legislativa das Regiões Autónomas», dispõe:
«Até à eventual alteração das disposições dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas, prevista na alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º, o âmbito material da competência legislativa das respectivas Regiões é o constante do artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e do artigo 40.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.» Entende-se que o objectivo desta norma transitória não terá sido o de até à revisão dos estatutos político-administrativos (revisão que surge como «eventual» e para a qual não se fixa prazo) manter a definição da competência legislativa regional anterior à sexta revisão, mas antes o de remeter para as listas de matérias constantes das versões vigentes dos estatutos (remissão essa cuja exacta extensão será adiante analisada, infra, n.º 11) o preenchimento (provisório) do segundo limite do novo modelo de demarcação dessa competência: «matérias enunciadas no respectivo Estatuto Político-Administrativo».
É que o catálogo de matérias consideradas de interesse específico das Regiões Autónomas, que constava do artigo 228.º da CRP desde a revisão de 1997, foi eliminado, remetendo agora o n.º 1 desse preceito para as matérias enunciadas nos Estatutos Político-Administrativos, o que tem sido considerado como correspondendo ou a uma desconstitucionalização por cotejo com o anterior artigo 228.º ou a uma constitucionalização do correspondente preceito estatutário (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. V, «Actividade Constitucional do Estado, 3.ª ed.», Coimbra, 2004, p. 401; e Maria Lúcia Amaral, A Forma da República - Uma Introdução ao Estudo do Direito Constitucional, Coimbra, 2005, pp. 376-377).
Numa apreciação global do alcance desta revisão constitucional, refere Vitalino Canas [Constituição da República Portuguesa (Após a Sexta Revisão Constitucional - 2004), Lisboa, 2004, p. 22]:
«A sexta revisão constitucional realizou uma importante clarificação e consolidação dos poderes legislativos regionais e, por essa via, da própria autonomia das Regiões.
Todavia, não é claro que o chamado contencioso das autonomias tenha ficado em definitivo superado.
Merece especial relevo a simplificação dos parâmetros em que o poder legislativo regional se pode exercer, tendo-se resistido à tentação de criar novos parâmetros vagos ou indeterminados que constavam de alguns dos projectos de revisão constitucional.
Porém, se é verdade que o esforço de clarificação e de simplificação funcionou de modo geral a favor do aprofundamento dos poderes legislativos regionais, não se registou qualquer alteração radical nesse campo.
Assim, apesar do desaparecimento da referência às leis gerais da República como categoria constitucional que constituía um limite à legislação regional, elas reaparecerão eventualmente como categoria doutrinal, porventura reportando-se às leis emitidas por órgãos de soberania, no âmbito da sua competência reservada, aplicáveis a todo o território nacional.
Por seu turno, embora se tenha suprimido o parâmetro do interesse específico, não desaparecem os parâmetros materiais delimitadores das atribuições das Regiões tal como estão enunciados no (inalterado) artigo 225.º, n.º 1.» Desta última frase parece lícito extrair o entendimento de que o «âmbito regional» comporta um elemento material, ligado à estatuição do artigo 225.º da CRP.
9 - Também o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de salientar as profundas alterações introduzidas pela revisão constitucional de 2004 no quadro definidor da competência legislativa regional.
Assim, logo no Acórdão 246/2005 - embora, no caso sobre que recaiu, por se tratar de diploma anterior àquela revisão e atenta a natureza do vício em causa, se ter concluído ser aplicável a versão constitucional anterior -, o Tribunal Constitucional assinalou:
«Entre as alterações introduzidas por esta revisão constitucional [a sexta revisão, de 2004] conta-se a "simplificação dos parâmetros em que o poder legislativo regional se pode exercer" [Vitalino Canas, Constituição da República Portuguesa (Após a Sexta Revisão Constitucional - 2004), AAFDL, 2004, p. 22] e, concomitantemente, o alargamento dos poderes legislativos das Regiões Autónomas. As modificações assinaladas são, essencialmente, as seguintes:
a) Desaparecimento da categoria de leis gerais da República (antigo n.º 5 do artigo 112.º da Constituição), a cujos princípios fundamentais os diplomas regionais se encontravam subordinados;
b) Eliminação da necessidade de existência de interesse específico regional na matéria regulada pelas Regiões, enquanto pressuposto ou requisito do exercício da competência legislativa destas últimas (v. o n.º 4 do artigo 112.º da CRP, na sua actual redacção).
O poder legislativo das Regiões Autónomas continua, porém, a enquadrar-se pelos fundamentos da autonomia das Regiões consagrados no artigo 225.º da CRP e a restringir-se ao âmbito regional e às matérias enunciadas no respectivo Estatuto Político-Administrativo, em face do disposto no n.º 4 do artigo 112.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição (neste sentido, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. V, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2004, pp. 398 a 402, e Vitalino Canas, ob.
cit., pp. 140 e 236).
Subsiste ainda como requisito de exercício da competência legislativa das Regiões Autónomas o respeito da reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania, como se depreende da leitura conjugada dos preceitos constitucionais acima mencionados. No que diz respeito à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, não se registam alterações, estando esta totalmente vedada às Regiões Autónomas. Já no que se refere à reserva relativa, poderão as Regiões, salvo as excepções previstas na Constituição, tratar as matérias nela compreendidas, mediante autorização parlamentar [alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP].» O novo regime constitucional já foi aplicado pelo Tribunal no Acórdão 258/2006, que se pronunciou pela inconstitucionalidade, por violação das disposições conjugadas dos artigos 165.º, n.º 1, alínea b), 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da CRP, de diversas normas do decreto legislativo regional que «define o regime de afixação ou inscrição de mensagens de publicidade e propaganda na proximidade das estradas regionais e nos aglomerados urbanos», aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em 7 de Março de 2006. Após reproduzir a transcrita passagem do Acórdão 246/2005, passou a aferir-se da verificação cumulativa dos novos requisitos da competência legislativa regional - i) conter-se a legislação sindicada no âmbito regional; ii) estarem as matérias em causa enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo, e iii) não estarem reservadas aos órgãos de soberania -, tendo sido dada resposta positiva aos dois primeiros e negativa ao terceiro. Com efeito, entendeu-se, quanto ao primeiro requisito, que estar a legislação em causa limitada ao âmbito regional «é conclusão a que facilmente se chega, não sendo outra (em rigor, não podendo ser outra), aliás, a intenção do legislador regional, como decorre, desde logo, de várias passagens do preâmbulo, nomeadamente daquela onde se afirma que "a afixação de mensagens de publicidade ou propaganda exterior carece de regulamentação própria a nível da Região Autónoma da Madeira", bem como do próprio n.º 1 do artigo 1.º». E, quanto ao segundo, considerou-se que as preocupações com a «tutela do ambiente, como requisito de preservação da qualidade de vida» e com a «conservação e valorização da paisagem como parte integrante do ambiente», que, do ponto de vista do legislador regional, justificaram a aprovação do decreto legislativo regional em causa, se incluíam, para efeito de determinação do «âmbito material da competência legislativa» das Regiões Autónomas (artigo 46.º da Lei Constitucional 1/2004), nas alíneas nn) e oo) do artigo 40.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (aprovado pela Lei 13/91, de 5 de Junho, alterada pelas Leis n.os 130/99, de 21 de Agosto, e 12/2000, de 21 de Junho), que se referem, respectivamente, à matéria de «valorização dos recursos humanos e qualidade de vida» e «defesa do ambiente e equilíbrio ecológico».
Diversamente, quanto ao terceiro requisito, concluiu o Tribunal que as normas em causa invadiam a reserva de competência dos órgãos de soberania, consignando, a este propósito:
«5.1.3 - Sobre este ponto e ainda em face da anterior versão do artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição (que respeitava a matérias "que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania"), o Tribunal Constitucional pronunciou-se repetidas vezes, como se pode ler, por exemplo, no Acórdão 268/88 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12.º vol., p. 460), no sentido de que essas "matérias reservadas à competência legislativa própria dos órgãos de soberania não se circunscrevem às que a CRP expressamente reserva à Assembleia da República (cf. em especial os artigos 164.º, 167.º e 168.º da CRP) e ao Governo (cf. em particular o artigo 201.º da CRP), abrangendo ainda as matérias em relação às quais a CRP, implicitamente embora, exige a intervenção do legislador nacional (Acórdãos n.os 82/86, 164/86 e 326/86, Diário da República, 1.ª série, n.os 176, de 2 de Abril de 1986, 130, de 7 de Junho de 1986, e 290, de 18 de Dezembro de 1986)".
Mais recentemente, no Acórdão 415/2005, escreveu-se, porém, que "poderá hoje questionar-se se esta jurisprudência [...], sobre o sentido do requisito negativo do poder legislativo regional, se mantém válida, nos seus traços gerais, em face do novo texto constitucional - questão, esta, que não foi ainda tratada na jurisprudência constitucional". Contudo, como logo se acrescentou nesse mesmo acórdão, "seja, porém, como for quanto ao exacto alcance da parte final do artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, pode dar-se por assente que entre as matérias 'reservadas aos órgãos de soberania' se encontram, pelo menos, as matérias de reserva de competência legislativa absoluta da Assembleia da República e, também, as matérias de reserva relativa. Sobre estas últimas, as Regiões Autónomas apenas poderão legislar, fora das matérias previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º, mediante autorização da Assembleia da República".
Ora, entre as matérias da reserva relativa da Assembleia da República está, precisamente, a dos "direitos, liberdades e garantias'e, referida na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, cuja violação é alegada pelo requerente. Sendo certo que, em relação a essa matéria, nem sequer é admissível a autorização da Assembleia da República às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas, uma vez que tal está vedado pela alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição.» 10 - Como se assinalou (supra, n.º 3.1.1.), o primeiro parâmetro da competência legislativa regional que o requerente considera violado pelas normas questionadas respeita ao «âmbito regional», que não se limitaria ao âmbito territorial, no sentido de que a legislação regional tem o seu campo de aplicação espacialmente limitado ao território da Região, mas incluiria uma componente institucional, que impediria «os parlamentos insulares de emanar legislação destinada a produzir efeitos relativamente a outras pessoas colectivas públicas que se encontram fora do âmbito de jurisdição natural das Regiões Autónomas - como sucede, sem sombra de dúvida, com o próprio Estado e, bem ainda, com outras pessoas que integram constitucionalmente a administração autónoma territorial e institucional (autarquias locais, associações públicas e universidades)».
Da nova formulação constitucional do âmbito da competência legislativa regional deriva seguramente que não foi adoptado um sistema «dualista», segundo o qual um grupo de matérias (as matérias enunciadas no respectivo Estatuto Político-Legislativo) constituiria «reserva» do legislador regional e um outro grupo integraria a reserva dos órgãos de soberania, constituindo compartimentos estanques. Não foi esse o modelo adoptado pela sexta revisão constitucional, que, ao limite positivo da enunciação estatutária e ao limite negativo da reserva dos órgãos de soberania, associou a exigência de a legislação regional se conter no «âmbito regional».
Este «âmbito regional», tendo necessariamente uma componente territorial, inerente à natureza de «pessoas colectivas territoriais» que o corpo do n.º 1 do artigo 227.º da CRP associa às Regiões Autónomas (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. V, «Actividade constitucional do Estado», 3.ª ed., cit., p. 401), não se esgota, porém, nessa componente. Há, na verdade, que atender aos fundamentos, aos fins e aos limites que a Constituição assinala à autonomia regional, no seu artigo 225.º: os fundamentos dessa autonomia assentam nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares; os fins consistem na participação democrática dos cidadãos, no desenvolvimento económico-social, na promoção e defesa dos interesses regionais, mas também no reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses; os limites derivam da não afectação da integridade da soberania do Estado e do respeito do quadro constitucional.
Assim, a circunstância de a legislação regional se destinar a ser aplicada no território da Região não basta, só por si, para dar por verificado o apontado requisito. O modelo constitucional de repartição da competência legislativa continua a não assentar numa «divisão territorial do poder legislativo, com transferência de matérias do centro para a periferia» (Maria Benedita Urbano, «Poder legislativo regional ...», cit., p. 77). Nesse «âmbito regional» não podem deixar de relevar considerações sobre a matéria sobre que versa essa normação, atenta a justificação material do regime autonómico constante do artigo 225.º O território da Região é também (ou em primeira linha) território do Estado, nele vigorando simultaneamente a ordem jurídica estadual e a ordem jurídica regional, só se podendo considerar como integrando o âmbito desta (o «âmbito regional») a regulação de situações que não afectem, atentas as pessoas (designadamente, pessoas colectivas públicas) envolvidas e os interesses e valores em jogo, a ordem jurídica nacional.
Assumindo o requisito do «âmbito regional» uma componente territorial e uma componente material, há que reconhecer que esta última dimensão foi desrespeitada pelas normas questionadas quando pretendem regular o protocolo de cerimónias que, apesar de realizadas no território da Região, são promovidas por entidades públicas que não são «órgãos regionais» e quando abrangem nessa regulação entidades que, designadamente, «representam» órgãos de soberania.
Como atrás se assinalou, a propósito da motivação das iniciativas legislativas que conduziram à aprovação da Lei 43/2006, as regras de precedências protocolares das altas entidades públicas devem constituir uma projecção visível da arquitectura constitucional do Estado, assumindo uma dimensão simbólica que convoca a intervenção do legislador nacional, sendo actualmente insustentável a sua redução a regras de cortesia, desprovidas de juridicidade.
A perspectiva da «representação simbólica» (cf. Hanna Fenichel Pitkin, El Concepto de Representación, tradução espanhola de The Concept of Representation, ed. Centro de Estúdios Constitucionales, Madrid, 1985, pp. 101 e seguintes), «centra-se na utilização de esquemas simbólicos (v. g., Bandeira, Hino, cargo político), os quais, através de um processo intelectivo-sensorial a levar a cabo pelos cidadãos, são associados a determinadas realidades como a nação, o povo, etc.», assinalando-se que «a função simbólica atribuída a certas pessoas (em particular ao chefe do Estado) ou a coisas, cumpre algumas tarefas políticas de não negligenciável relevância (v. g., identificação, integração política, coesão dos membros de um grupo)» (Maria Benedita Urbano, Representação Política e Parlamento, Coimbra, 2004, policopiado, p. 124).
A este propósito, cumpre referir que se considera de todo irrelevante que diplomas regionais publicados em 1979, ao regularem o uso dos símbolos regionais (Bandeira e Hino), tenham reflexamente interferido com o uso dos símbolos nacionais. A Constituição não se interpreta de acordo com a legislação ordinária, não sendo de acolher a existência de uma «presunção de constitucionalidade» ou de «não inconstitucionalidade» derivada da promulgação de leis ou decretos-leis, extensível à assinatura de decretos legislativos regionais (cf. a crítica desta tese, extraída, na vigência da Constituição de 1933, da diferenciação do regime de apreciação da inconstitucionalidade orgânica ou formal dos diplomas promulgados e não promulgados, em Miguel Galvão Teles, Direito Constitucional Sumários Desenvolvidos Relativos ao Título II da Parte III do Curso (Direito Constitucional Vigente), AAFDL, Lisboa, 1970, pp. 22-24 e 99-101, e Eficácia dos Tratados na Ordem Interna Portuguesa (Condições, Termos e Limites), Lisboa, 1967, pp. 77-80 e 155-185; e, já na vigência da Constituição de 1976, defendida por Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, pp. 74-89, em Jorge Miranda, «Apreciação da dissertação de doutoramento do mestre Rui Medeiros», Direito e Justiça, vol. XIII, 1999, t. 2, pp. 259-277, em especial n.º 6, pp. 263-267). Entende-se, antes, que a promulgação não é uma «declaração de constitucionalidade», em termos de constituir qualquer presunção nesse sentido, quer porque os poderes de fiscalização dos tribunais e do Tribunal Constitucional, nessa matéria, atingem indiferenciadamente actos promulgados e actos não promulgados, quer porque e determinantemente - o Presidente da República não está vinculado a requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade (cf. Miguel Galvão Teles, «Liberdade de iniciativa do Presidente da República quanto ao processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade», O Direito, ano 120.º, 1988, t. I-II (Janeiro-Junho), pp. 35-43, e Miguel Lobo Antunes e Mário Torres, A Promulgação, separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 405, p. 31).
A isto acresce que, desde a revisão constitucional de 1997, o regime dos símbolos nacionais integra a reserva absoluta da competência legislativa da Assembleia da República [artigo 164.º, alínea s)], não sendo admissível a intervenção legislativa regional na matéria, nem primária, nem autorizada [alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP] - cf. António de Araújo, «A Nação e os seus símbolos (breves comentários ao artigo 11.º da Constituição)», O Direito, ano 133.º, 2001, I (Janeiro-Março), pp.
197-224).
Conclui-se, assim, que a iniciativa legislativa em análise, quando pretende estabelecer o regime protocolar aplicável a cerimónias promovidas por entidades públicas que, apesar de sediadas na Região Autónoma dos Açores, se encontram fora do âmbito de jurisdição dos órgãos regionais e abrangendo nessa regulação entidades que, designadamente, representam órgãos de soberania, desrespeita o limite da competência legislativa regional que a confina ao «âmbito regional».
Ora, justamente porque a iniciativa legislativa em apreço, atenta a sua natureza inter-relacional, tem necessariamente de ser encarada na sua globalidade [assistindo neste ponto razão ao parecer que substancia a resposta, quando refere que não «deve ser apreciada norma a norma, antes devendo ressaltar (a) economia de um diploma regional, tendo em conta a matéria regulada e o regime jurídico estabelecido» (n.º 18)], não cabendo, nesta sede de fiscalização preventiva, qualquer tarefa de «redução» da normação, não se justifica o aprofundamento da indagação quanto a saber se algumas entidades (designadamente as ligadas às autarquias locais da Região) ainda se poderiam considerar englobadas no «âmbito de jurisdição natural» dos órgãos regionais.
11 - A segunda questão suscitada pelo requerente - versar o diploma sobre matéria não enunciada no respectivo estatuto político-administrativo (supra, n.º 3.1.2.) -, pressupõe a prévia dilucidação do sentido do artigo 46.º da Lei Constitucional 1/2004, que dispõe: «Até à eventual alteração das disposições dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas, prevista na alínea f) do n.º 6 do artigo 168.º, o âmbito material da competência legislativa das respectivas regiões é o constante do artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e do artigo 40.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira». Concretamente, coloca-se a questão de saber se nesta ressalva cabe a alínea hh) daquele artigo 8.º, que refere «outras matérias que respeitem exclusivamente à Região ou que nela assumam particular configuração».
Embora a referida disposição transitória não exclua, em termos estritamente literais, esta alínea, sustenta o requerente que a consideração da sua manutenção se mostra de todo incongruente com o sentido e espírito da revisão constitucional. Um dos principais objectivos por esta prosseguidos foi o da eliminação de critérios indeterminados, que, segundo certas visões, teria propiciado, designadamente por parte do Tribunal Constitucional, uma interpretação restritiva e limitadora da autonomia legislativa regional. Como se assinalou, este Tribunal sempre entendeu que, para determinada matéria ser considerada de interesse específico regional, não bastava contar do elenco de matérias abstractamente enunciadas nos estatutos regionais, sendo sempre necessária a apreciação, caso a caso, em concreto, de que se tratava de matéria que respeitava exclusivamente à Região ou que nela exigia um especial tratamento por aí assumir particular configuração.
Segundo esta visão das coisas, entendendo-se por «matérias» os «tipos de actividades concretas, identificadas tendo em conta os fins sociais que com elas se pretende prosseguir: o ordenamento do território, a protecção do património cultural, o ambiente ou o equilíbrio ecológico ou as vias de comunicação» (Maria Lúcia Amaral, A Forma da República, cit., p. 374), constituiriam «matérias» as elencadas nas alíneas a) a gg) do artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, mas já não a da sua hh), que repete a noção de «interesse específico regional» que a revisão de 2004 teria querido eliminar definitivamente.
Em sentido oposto, pode sustentar-se que a anterior interpretação, afastando do alcance da remissão a alínea hh) do artigo 8.º do EPARAA, não tem qualquer correspondência no texto da disposição transitória e incorre no risco de condicionar a decisão, a adoptar nos procedimentos de revisão das leis estatutárias, quanto à manutenção, ou não, do critério de interesse específico, já não como limitador da competência legislativa regional, mas como elemento atributivo dessa competência.
No entanto, na economia do presente acórdão, não se mostra necessária uma tomada de posição do Tribunal Constitucional quanto a este específico ponto, pois é seguro, pelas razões apontadas no ponto anterior, que, admitindo-se que a remissão da norma transitória abrange a alínea hh) do artigo 8.º do EPARAA, nunca a matéria sobre que recaiu o diploma em apreciação, com a assinalada extensão a entidades estranhas à jurisdição dos órgãos regionais, poderia ser considerada matéria que respeite exclusivamente à Região Autónoma dos Açores ou que nela assuma particular configuração.
É ao legislador nacional que incumbe apreciar a eventual necessidade de regulação de certos aspectos de cerimónias que ocorram nos territórios das Regiões, mas, para tanto, a salvaguarda dos interesses das Regiões opera-se, não através de edição de normas autónomas, mas através do direito de se pronunciar, por sua iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito [primeira parte da alínea v) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP], faculdade esta que, como já se referiu, foi efectivamente exercitada no âmbito da aprovação da Lei 43/2006.
Pode, assim, concluir-se que, seja qual for o alcance que se atribua à remissão do artigo 46.º da Lei Constitucional 1/2004 para o artigo 8.º do EPARAA, as normas questionadas desrespeitam, também, o segundo requisito da competência legislativa regional: versar sobre matéria enunciada no respectivo estatuto político-legislativo.
12 - Quanto ao parâmetro relativo à ressalva das matérias da reserva de competência dos órgãos de soberania, há que atentar que a matéria em causa, tendo uma natureza relacional, não se esgota nem pode ser perspectivada isoladamente a propósito da definição dos estatutos de cada uma das entidades envolvidas.
O que ocorre é que, englobando nesse tratamento relacional titulares de órgãos de soberania, o órgão legislativo para tal competente não pode deixar de ser o legislador nacional, por ser o único que se situa numa posição de supra-ordenação relativamente a todas essas entidades.
Trata-se, assim, de matéria que, mesmo que se considere não incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, sempre reclamará a intervenção do legislador nacional, justamente por afectar o posicionamento institucional de entidades pertencentes a distintos poderes do Estado e outros corpos públicos, sendo certo que as reservas assinaladas a este entendimento «amplo» da «reserva da República», que padeceria de um «sincretismo de critérios», se esbateram face ao desaparecimento do critério reportado ao respeito das leis gerais da República.
13 - Apurado que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores carece de competência legislativa para editar a normação questionada, com a extensão assinalada, não se justifica apreciar se o modo como o fez padece de inconstitucionalidade material.
III - Decisão
14 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade, por violação dos artigos 112.º, n.º 4, e 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, das normas constantes dos artigos 1.º, n.º 1, segunda parte, 7.º, n.os 1, 10, 12 a 18, 21 a 24, 26, 27, primeira parte, 28 a 31, 32, primeira parte, e 38, este na parte referente à «administração local», 9.º, n.º 1, 10.º, n.os 1 e 2, 15.º a 18.º e 20.º do Decreto 8/2007, sobre Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional, aprovado na sessão de 7 de Março de 2007 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.Lisboa, 17 de Abril de 2007. - Mário José de Araújo Torres (relator) - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano - José Manuel Borges Soeiro - Gil Galvão - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Ana Maria Guerra Martins - Rui Carlos Pereira (com voto de vencido) - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto
1 - Votei vencido a decisão constante do presente acórdão, por não poder acompanhar a tese, que claramente lhe subjaz, segundo a qual a Constituição da República Portuguesa não autoriza uma Assembleia Legislativa Regional a aprovar um regime de precedências protocolares e de luto de âmbito regional.Ao consagrar os poderes das Regiões Autónomas, o n.º 1 do artigo 227.º da Constituição indica, à cabeça, o poder de «legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo Estatuto Político-Administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania». Este poder constitui um elemento relevante para compreender a natureza e o alcance da autonomia das Regiões.
Seria incompreensível que tal poder não abrangesse o regime de precedências protocolares e de luto. Há matérias com maior dignidade (como, por exemplo, o ordenamento do território, a organização da administração, a educação e o sistema fiscal) em relação às quais se não questiona a competência legislativa das Regiões Autónomas no âmbito regional.
É certo que o protocolo de Estado não é de somenos importância. Ele projecta a representação pública do Estado e deve retratar com fidelidade a ordem constitucional. Constitui, afinal, um meio simbólico de comunicar aos cidadãos a identidade e a posição relativa dos titulares de órgãos de soberania e altos dignitários do Estado.
Todavia, o protocolo foi regido por normas consuetudinárias (cuja jurisdicidade é, aliás, discutível) até à entrada em vigor da Lei 40/2006, de 25 de Agosto. Antes da codificação do regime de precedências, nem a Assembleia da República, nem a doutrina constitucional, nem os tribunais assinalaram qualquer inconstitucionalidade por omissão.
Na verdade, não creio que tenha persistido uma situação de inconstitucionalidade por omissão durante os 30 anos decorridos entre a entrada em vigor da Constituição de 1976 e a aprovação da Lei 40/2006. Dada a sua natureza, as precedências protocolares poderiam continuar a ser regidas, ainda hoje, por normas consuetudinárias.
Se não estão sujeitas a lei escrita, as precedências protocolares não cabem na reserva de competência legislativa de nenhum órgão de soberania. A iniciativa da Assembleia da República, ao aprovar a Lei 40/2006, deve ser apreciada no plano da oportunidade político-constitucional e não como exercício de uma competência exclusiva.
2 - Após a revisão introduzida pela Lei Constitucional 1/2004, de 24 de Julho, o exercício das competências legislativas regionais passou a depender, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, da verificação cumulativa de três requisitos. Assim, a legislação:
a) Deve possuir âmbito regional;
b) Deve incidir em matérias enunciadas no respectivo Estatuto Político-Administrativo;
c) Não pode abranger matérias reservadas aos órgãos de soberania.
No seu pedido, o Representante da República para a Região Autónoma dos Açores alega que nenhum dos referidos parâmetros foi respeitado, o que implicaria uma inconstitucionalidade orgânica dos artigos 1.º, n.º 1, segunda parte, 7.º, n.os 1, 10, 12 a 18, 21 a 24, 26, 27, primeira parte, 28 a 31, 32, primeira parte, e 38, este na parte referente à «administração local», 9.º, n.º 1, 10.º, n.os 1 e 2, 15.º a 18.º e 20.º do Decreto 8/2007, sobre Regime das Precedências Protocolares e de Luto Regional, aprovado na sessão de 7 de Março de 2007 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores.
A inconstitucionalidade alegada pelo autor do pedido é efectivamente orgânica, na medida em que envolve um problema de delimitação de competências. De todo o modo, esta classificação não tem hoje consequências, ressalvada a hipótese do artigo 277.º, n.º 2, da Constituição. O que importa averiguar é, simplesmente, se os requisitos de competência para aprovar legislação regional foram respeitados.
3 - Tal como se sustenta no acórdão, considero que o conceito de âmbito regional tem uma dimensão territorial obrigatória, por estar em causa uma pessoa colectiva territorial, mas não se esgota nesse elemento. É necessário, designadamente, o concurso de um elemento institucional.
No caso sub judicio, torna-se fácil compreender o carácter complexo e funcional do conceito de âmbito regional. Uma cerimónia não pode ser classificada como regional só por ocorrer no território de uma Região Autónoma. É possível promover, no território de uma região, uma cerimónia nacional para comemorar, por exemplo, o Dia de Portugal.
No entanto, o acórdão conclui que o Decreto 8/2007 excede o âmbito regional por abranger entidades públicas que não são órgãos regionais e que representam, em alguns casos, órgãos de soberania. Pode inferir-se, a contrario sensu, que o decreto em crise já respeitaria o requisito constitucional se apenas dissesse respeito a órgãos regionais.
Ora, esta restrição inviabiliza a possibilidade de uma Assembleia Legislativa Regional aprovar um regime de precedências protocolares e de luto, seja ele qual for. Com efeito, um tal regime relaciona, inevitavelmente, os órgãos regionais com outras entidades públicas. Mas, ao fazê-lo, não sai do âmbito regional. O que interessa é saber se o regime versa sobre cerimónias regionais, ou seja, cerimónias promovidas por órgãos regionais, no âmbito do território da respectiva Região, ainda que contem com a presença de outras entidades.
Não significa isto que um regime regional possa ordenar de forma arbitrária quaisquer entidades não regionais, incluindo órgãos de soberania. Se assim fosse, tal regime poderia dar primazia ao Primeiro-Ministro sobre o Presidente da República e o Presidente da Assembleia da República, subvertendo a ordem de precedências consagrada, de modo implícito, na própria Constituição.
Contudo, estas considerações remetem-nos para o plano da inconstitucionalidade material. Tal como se defende na resposta da entidade recorrida (que subscreve o parecer jurídico que anexa), é no plano material que se averigua se a ordem de precedências seguida em relação a titulares de órgãos de soberania por um regime regional é compatível com a Constituição. A simples menção de entidades públicas não regionais não é, em si mesma, inconstitucional. Sê-lo-á apenas se subverter a ordem de precedências que resulta da Constituição.
4 - O regime do Decreto 8/2007 enquadra-se no âmbito da alínea hh) do artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, por versar «outras matérias que respeit(a)m exclusivamente à Região ou que nela assum(e)m particular configuração».
A matéria de precedências protocolares e de luto assume uma configuração particular na Região Autónoma dos Açores (como também, obviamente, na Região Autónoma da Madeira). Negar esta realidade equivale, em substância, a negar que haja cerimónias regionais, apesar de haver cerimónias oficiais promovidas pelas Assembleias Legislativas e pelos Governos Regionais.
Pode duvidar-se, porém, que ainda esteja em vigor a alínea hh) do artigo 8.º do Estatuto. Tendo em conta que a revisão constitucional de 2004 suprimiu a exigência de interesse específico na matéria regulada pelas regiões, poderia sustentar-se uma interpretação ab-rogante valorativa (ou uma redução teleológica) da remissão efectuada pelo artigo 46.º da Lei Constitucional 1/2004.
Nesta perspectiva, a remissão para o Estatuto Político-Administrativo abrangeria todas as alíneas do artigo 8.º, exceptuando a hh). Alegadamente, a manutenção em vigor dessa alínea seria contrária ao sentido da revisão constitucional, que suprimiu a referência ao interesse específico regional na matéria regulada pelas regiões [anterior redacção do artigo 227.º, n.º 1, alínea a)].
Porém, uma tal interpretação é paradoxal. Os trabalhos preparatórios da revisão provam que o legislador pretendeu clarificar e aprofundar a autonomia e não restringi-la. Por isso, o artigo 46.º da Lei Constitucional 1/2004 remete para os estatutos político-administrativos preexistentes, presumindo inilidivelmente que eles são compatíveis com o novo regime autonómico. Esta conclusão é vincada pela circunstância de a remissão prever uma «eventual» revisão dos estatutos, admitindo como mera hipótese a sua transitoriedade.
Por outro lado, não há contradição entre a supressão do requisito constitucional do interesse específico e a persistência do interesse específico como caso em que é admissível a edição de leis regionais. Na primeira situação, o requisito constitucional funcionava como modo de restrição da actividade legislativa regional; na segunda, opera em sentido oposto, permitindo que seja emitida legislação regional em situações não contempladas expressamente pelas alíneas anteriores do artigo 8.º do Estatuto.
As críticas feitas por parte da doutrina à técnica utilizada no artigo 8.º do Estatuto, por misturar casos individualizados com uma cláusula geral (de interesse específico), não têm relevância neste contexto. Independentemente de quaisquer outras considerações, tal argumentação não permite concluir que a norma da alínea hh) foi revogada.
5 - Não entendo que as normas em análise invadam a reserva de competência dos órgãos de soberania (nomeadamente, da Assembleia da República). Pelo seu carácter relacional, as regras protocolares não podem fazer parte integrante do estatuto de um órgão do Estado. Se assim fosse, poderia cair-se em contradição na atribuição de precedências, visto que a competência para legislar sobre os vários órgãos é diversificada, pertencendo à Assembleia da República ou ao Governo.
Por estas razões, sou de opinião que o regime de precedências protocolares e de luto não cabe no âmbito das reservas de competência legislativa. Em matéria de cerimónias regionais, a Assembleia da República pode aprovar leis, mas as Assembleias Legislativas Regionais não estão impedidas de o fazer.
Após a revisão constitucional de 2004, a repartição de competências entre os órgãos de soberania e as Regiões Autónomas mudou de configuração. Se antes valia uma regra de tendencial alternatividade, assente, sobretudo, no requisito do interesse específico, agora vale uma regra de concurso em todas as matérias de âmbito regional previstas nos estatutos e não reservadas aos órgãos de soberania. No caso de concurso de leis com o mesmo objecto, prevalece a legislação regional, por força do n.º 2 do artigo 228.º da Constituição.
6 - Não concordando com o juízo de inconstitucionalidade orgânica em que assenta a decisão do presente acórdão, julgo que a norma do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto 8/2007 padece de inconstitucionalidade material porque quebra, como sustenta o autor do pedido, o princípio constitucional de congruência entre a posição protocolar dos titulares de órgãos previstos na Constituição e a posição que esses órgãos ocupam na estrutura institucional ou no sistema de governo em que se inserem.
A esta luz, nada justifica a colocação do Primeiro-Ministro em posição inferior à do Presidente do Governo Regional. Um tal posicionamento protocolar viola o estatuto do Primeiro-Ministro, consagrado nos artigos 183.º a 187.º e 201.º da Constituição.
Uma «interpretação conforme à Constituição» que invertesse a ordem protocolar e desse prioridade ao Primeiro-Ministro em relação ao Presidente do Governo Regional não tem aqui sentido. Em primeiro lugar, a interpretação conforme à Constituição deve obedecer às regras da ciência do direito - assim, deve encontrar na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, e pressupor que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.os 2 e 3, do Código Civil); em segundo lugar, a interpretação conforme à Constituição é prevista no âmbito da fiscalização concreta sucessiva (artigo 80.º, n.º 3, da LTC), como instituto de aproveitamento de normas jurídicas em vigor, mas não em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
7 - Já não acompanho a imputação de inconstitucionalidade material que o autor do pedido formula quanto ao n.º 2 do artigo 10.º do Decreto 8/2007. De facto, existe um fundamento racional, constitucionalmente atendível, que justifica o regime consagrado nesta norma. Trata-se do princípio protocolar que indica que as cerimónias oficiais são presididas pela entidade que as organiza (artigo 6.º, n.º 1, da Lei 40/2006), princípio esse que é recebido pelo artigo 6.º do Decreto 8/2007.
Esta regra explica que, nos actos realizados na Assembleia da República, presida o respectivo Presidente, mesmo que esteja presente o Presidente da República (artigos 10.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, da Lei 40/2006). De acordo com o mesmo critério, nos actos promovidos pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal Constitucional, são também os respectivos Presidentes a presidir, salvo se estiver presente o Presidente da República. - Rui Carlos Pereira.