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Acórdão 246/2005, de 21 de Junho

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Sumário

Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 4.º a 8.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2003/M, de 24 de Fevereiro (Proc. nº 508/2003).

Texto do documento

Acórdão 246/2005

Processo 508/2003

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I Relatório

1 - Um grupo de deputados do Partido Socialista (PS) à Assembleia da República requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade e de ilegalidade das normas contidas nos artigos 4.º a 8.º do Decreto Legislativo Regional 2/2003/M, de 24 de Fevereiro.

As normas em causa dispõem o seguinte:

«Artigo 4.º

Responsabilização familiar

1 - Caso o utente permaneça em meio hospitalar após as diligências efectuadas pelos serviços, estes devem notificar formalmente a situação aos familiares, fixando um prazo para o acolhimento do utente e advertindo-os para as consequências da sua omissão.

2 - Consideram-se abrangidos pelas disposições constantes no número anterior os seguintes familiares pela ordem indicada:

a) Cônjuge;

b) Descendentes;

c) Ascendentes, no caso de o utente não ser idoso.

3 - Considera-se ainda abrangido quem com o utente viva em união de facto.

Artigo 5.º

Comparticipação

1 - A permanência em meio hospitalar após alta clínica obriga o utente e seus familiares e quem com ele conviva em união de facto à comparticipação nos custos de internamento.

2 - O valor dos custos de internamento, para efeitos do presente diploma, o montante que salvaguarde o rendimento pessoal indispensável ao utente, a fórmula de cálculo das comparticipações devidas pelos familiares são fixados por portaria do membro do Governo responsável pela área da saúde, devendo obedecer a critérios similares aos utilizados para fins de acção social.

Artigo 6.º

Família de acolhimento

Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, esgotadas as possibilidades de acolhimento pela família biológica, os serviços devem promover a inserção do utente junto de uma terceira família de acolhimento, aplicando-se o regime previsto no Decreto-Lei 391/91, de 10 de Outubro, ou no Decreto-Lei 190/92, de 3 de Setembro, consoante se trate, respectivamente, de idosos, adultos com deficiência ou de crianças e jovens.

Artigo 7.º

Receitas

Os valores das comparticipações constituem receita do Serviço Regional de Saúde.

Artigo 8.º

Não pagamento voluntário

A falta de pagamento voluntário das comparticipações, a que se refere o presente diploma, dá lugar a execução, a qual seguirá os termos da execução fiscal.» O grupo de deputados do PS alegou, designadamente, o seguinte:

O Decreto Legislativo Regional 2/2003/M, que tem por objecto a aprovação de medidas de reinserção familiar e social de utentes com permanência hospitalar após alta clínica, para resolução do problema do «abandono» de pessoas nos hospitais, é susceptível de crítica ao nível jurídico-constitucional e político-social;

Uma das medidas adoptadas pelo diploma mencionado consiste em atribuir aos utentes que permanecem em meio hospitalar após alta médica, bem como aos seus familiares, a responsabilidade pelo pagamento dos custos desse internamento;

A responsabilização dos familiares é configurada como uma obrigação legal e não como resultado da vontade das pessoas ou de contrato assistencial entre elas e as instituições. Tal medida é criticável, desde logo porque os familiares do utente não beneficiaram nem deram causa ao dito internamento;

Para além disso, o diploma regional obriga os familiares a pagar o internamento a preço diferente daquele que é imputado ao próprio beneficiário (o utente), sendo o preço calculado em função do rendimento per capita desses familiares, dando azo a que esse internamento passe a ter preços discriminatórios;

O diploma regional não prevê a gratuitidade do internamento após alta nos casos de manifesta incapacidade económica do utente e da família, nem nos casos de impossibilidade de acolhimento familiar, situações que exigem o apoio do Estado e não a imposição de encargos. Efectivamente, os utentes que permanecem em meio hospitalar após alta médica são, em regra, pessoas quase insolventes ou sem capacidade económica e oriundos de famílias pobres, sem condições de protecção sócio-económica e de acolhimento. Trata-se, portanto, de pessoas carentes de maior e melhor protecção social do Estado ao nível da solidariedade social. A imposição das despesas acima referidas aos utentes e seus familiares constitui uma forma de o Governo Regional se demitir das obrigações sociais a que está constitucionalmente obrigado, traduzindo-se numa violação do disposto no n.º 3 do artigo 63.º da lei fundamental, que impõe (por via do sistema de segurança social) a protecção dos cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho;

Acresce que a matéria tratada pelo diploma regional (pagamento de custos pelo internamento após alta do utente) é inovadora, não existindo lei geral da República com o mesmo objecto. Ora, na falta de enquadramento legal nacional, o legislador regional não podia ter criado o regime em causa, pois legislou ao abrigo do artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição e do artigo 37.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, que impõem ao legislador regional o respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da República e obrigam à existência de precedência legal nacional;

Por outro lado, as normas acima referidas condicionam o poder legislativo das Regiões Autónomas à existência de interesse específico regional. Não obstante o diploma regional ter sido aprovado ao abrigo do artigo 40.º, alínea m), do Estatuto Político-Administrativo (que prevê como matérias de interesse específico regional a saúde e a segurança social), a jurisprudência constitucional tem entendido que só têm interesse específico as matérias que digam respeito exclusivamente às Regiões ou que nestas assumam peculiar configuração, exigindo um tratamento especial, diferenciado do restante território nacional (Acórdãos n.os 42/85, 82/86 e 152/87, entre outros). Ora, é discutível que o pagamento de custos de internamento após alta médica seja matéria de interesse específico e, neste sentido, deva ou possa ter um regime diferenciado do restante território nacional;

A referida jurisprudência constitucional afirma ainda que a matéria a regular pelas Regiões Autónomas não pode pertencer à reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania, ou seja, não pode constar do elenco de matérias previstas nos artigos 164.º e 165.º da Constituição. Acontece que o diploma regional alarga a responsabilidade pelo pagamento de custos de internamento a terceiros não beneficiários da assistência médico-hospitalar, criando obrigações novas no ordenamento jurídico nacional e discriminando os cidadãos residentes na Região Autónoma da Madeira relativamente aos restantes cidadãos nacionais (uma vez que não existe um regime similar aplicável a estes últimos). Porque estas matérias se situam no âmbito dos direitos, liberdades e garantias (designadamente do estatuído no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição), o diploma regional invadiu a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, violando o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.

O requerente conclui pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º a 8.º do Decreto Legislativo Regional 2/2003/M, por violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, 63.º, n.º 3, 165.º, n.º 1, alínea b), e 227.º, n.º 1, alínea a), todos da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como pela ilegalidade das mesmas, por violação do disposto no artigo 37.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM), aprovado pela Lei 13/91, de 5 de Junho.

2 - Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º a 56.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), veio o Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira responder, alegando, fundamentalmente, o seguinte:

Deflui do quadro constitucional da autonomia legislativa regional, modelado pelas normas invocadas no diploma em causa e reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que a legislação emanada pela Assembleia Legislativa Regional há-de obedecer aos seguintes parâmetros:

a) As matérias a tratar deverão ser de interesse específico para a Região (limite positivo);

b) Tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos órgãos de soberania (primeiro limite negativo);

c) Ao tratar legislativamente essas matérias, as Assembleias Legislativas Regionais - para além de terem de obedecer à Constituição - não podem estabelecer disciplina que contrarie os princípios fundamentais das leis gerais da República (segundo limite negativo).

Quanto ao interesse específico:

O artigo 228.º da lei fundamental, para além de elencar várias matérias como sendo de interesse específico, conceptualiza na alínea o) como sendo de interesse específico «outras matérias que respeitem exclusivamente à respectiva Região ou que nela assumam particular configuração»;

O EPARAM, no artigo 40.º, vem elencar novas matérias que constituem interesse específico, para efeitos de definição dos poderes legislativos regionais;

O Decreto Legislativo Regional 2/2003/M faz expressa referência à alínea m) do artigo 40.º do Estatuto Político-Administrativo (saúde e segurança social) entre as disposições legais ao abrigo das quais emana o poder legislativo;

Nesta sequência, o poder legislativo regional alicerçou-se em matéria de interesse específico da Região, pelo menos do ponto de vista formal, legitimando a presunção de que se verifica a sua existência;

Não assumindo o problema que subjaz à necessidade de legislar contornos de exclusividade nesta Região Autónoma, o certo é que as suas características sociais demonstram que o problema aqui assume especial conformação;

A sociedade madeirense tem sofrido profundas mudanças, tendo o envelhecimento da população (circunstância geral), associado a contornos específicos, com especial incidência na sociedade madeirense, como a nuclearização das famílias, o esbatimento dos laços comunitários e de vizinhança e a ausência dos familiares por motivos laborais, escolares e de emigração, motivado o aumento da dependência dos idosos e de outros cidadãos incapacitados por motivo de doença face à sociedade;

É também indubitável que a Região Autónoma da Madeira é uma terra profundamente estigmatizada pela emigração, que criou novos hábitos sociais;

Estes fenómenos deixaram profundas marcas na estrutura tradicional da sociedade e família madeirense, criando o problema subjacente à necessidade de legislar - o aumento da dependência dos cidadãos face à sociedade e, em especial, a permanência de utentes em meio hospitalar após alta clínica, muitas vezes fruto de abandono familiar -, problema este que assume especial configuração na Região Autónoma da Madeira;

Além disso, como decorre do texto preambular, a permanência de doentes em meio hospitalar após alta clínica é problemática e com tendência para agravamento nos últimos anos, acarretando problemas de exclusão familiar e social dos utentes, elevados custos para o erário público e sobreocupação de camas e equipamentos hospitalares, muitas vezes escassos e imprescindíveis aos doentes agudos; esta situação é, na Região, qualificável como bastante grave;

Encontram-se, deste modo, plenamente demonstrados, em concreto, a especial configuração e o modo próprio como o problema se coloca nesta Região Autónoma, além da gravidade que o mesmo assume, parecendo-nos existir interesse específico da Região, que justifica a emergência em adoptar esta iniciativa legislativa;

Por outro lado, há que não esquecer que a aprovação da legislação em questão se insere no enquadramento do Decreto-Lei 391/80, de 23 de Setembro, que regionaliza e transfere para a Região Autónoma da Madeira uma série de competências nas áreas da saúde e da segurança social, nomeadamente a competência para assegurar a efectiva realização do direito à segurança social, bem como as medidas necessárias à efectivação do direito à protecção e integração social dos vários grupos etários da população;

Além disso, a base VIII da Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei 48/90, de 24 de Agosto, atribui às Regiões Autónomas a competência para definir e executar a política de saúde, prevendo a aprovação de legislação sobre regionalização dos serviços de saúde; o Estatuto do Sistema de Saúde, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional 21/91/M, de 7 de Agosto, em vigor à data de aprovação do diploma em causa, considera a protecção e defesa da saúde, na Região Autónoma da Madeira, área específica de protecção social, preceituando ainda que a definição da política de protecção social estabelecerá as áreas privilegiadas para o exercício unificado de programas de saúde e de segurança social; finalmente, o Estatuto do Sistema Regional de Saúde, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional 4/2003/M, de 7 de Abril, prevê acções e programas de cooperação nas áreas da saúde e da segurança social que envolvam a protecção social das pessoas ou grupos desfavorecidos ou em risco de exclusão;

Face ao exposto, e do ponto de vista do parâmetro do interesse específico, o diploma objecto de fiscalização está, salvo melhor opinião, perfeitamente conforme e legitimado em termos constitucionais.

Quanto à reserva de competência própria dos órgãos de soberania:

O diploma em causa não invade a reserva de competência da Assembleia da República, nem atenta contra os direitos, liberdades e garantias invocados pelo requerente, ou quaisquer outros constantes do catálogo constitucional;

O objectivo do diploma é o de proteger os utentes que permaneçam em meio hospitalar após alta clínica, combatendo a exclusão familiar e o abandono a que estão votados, adoptando medidas para a sua reinserção social e familiar, surgindo como objectivo secundário a libertação de camas hospitalares necessárias aos doentes agudos;

Este diploma deve ser perspectivado, sobretudo, como um conjunto de respostas e de prestações sociais de apoio ao utente e à família. Veja-se que os serviços públicos oferecem o apoio assistencial necessário para criar condições de reinserção familiar e social do utente;

Efectivamente, o diploma disponibiliza uma série de alternativas, acompanhadas de prestações sociais, ao utente e à família;

Os serviços públicos gratuitos que, hoje em dia, são disponibilizados à população, quer ao nível da ajuda domiciliária, quer no âmbito dos cuidados ao domicílio, não justificam que as famílias votem os seus parentes mais próximos ao abandono nos hospitais, continuando, muitas vezes, a beneficiar da pensão daquele que repudiaram;

A permanência destes utentes, com alta clínica, em meio hospitalar, é susceptível de comprometer o exercício do direito constitucional à saúde por parte de outros utentes, plasmado no n.º 1 do artigo 64.º da Constituição, uma vez que este direito implica, para o Estado, o dever de defender e promover a saúde e de garantir o acesso de todos os cidadãos à saúde;

O diploma não contém quaisquer intuitos economicistas nem é seu propósito estabelecer preços de internamento. O que resulta para o utente e para as famílias, no caso em apreço, são comparticipações, ou seja, a partilha de custos entre os serviços públicos e os beneficiários, em adequação às possibilidades destes, e não a imputação de custos, como se alega no pedido;

As comparticipações têm uma função eminentemente social e de responsabilização familiar, já que a persistência do abandono familiar, após todas as prestações sociais oferecidas, deve implicar a responsabilização da família, no sentido do seu envolvimento no processo de protecção do seu familiar;

Refira-se ainda que esta responsabilização não tem intuitos punitivos, visando proteger a família, envolvendo-a, subsidiariamente, na tarefa pública de protecção social do familiar que permaneça em meio hospitalar após alta clínica;

O artigo 67.º da Constituição reconhece a família como elemento fundamental da sociedade, com direito a protecção do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros. De acordo com a alínea f) do mesmo preceito, incumbe também ao Estado, para protecção da família, regular os benefícios sociais, de harmonia com os encargos familiares;

A família, pelo menos a família mais restrita, não pode, enquanto organização social afectiva, ser perspectivada em termos atomísticos, como se faz no pedido. Assim, se ao Estado compete constitucionalmente proteger a família, tal não significa uma desresponsabilização desta em relação aos seus membros, o que, aliás, é confirmado pela consagração do princípio da subsidiariedade social (que assenta no reconhecimento do papel das famílias na prossecução dos objectivos da segurança social) na Lei de Bases da Segurança Social, aprovada pela Lei 32/2002, de 20 de Dezembro;

O diploma objecto de fiscalização é, deste modo, um diploma de protecção social, executando a Região Autónoma da Madeira a tarefa constitucional de efectivar os direitos sociais constitucionalmente plasmados, não se vislumbrando qualquer violação do n.º 3 do artigo 63.º da Constituição, como se alega no pedido;

Também em nenhum caso o texto legal põe em causa os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva de intimidade da vida familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação, não se violando, por conseguinte, o n.º 1 do artigo 26.º da Constituição;

Pelo contrário, as medidas previstas no diploma, ao promoverem a reinserção familiar e social do utente, vêm reforçar o exercício dos direitos pessoais previstos no artigo 26.º da lei fundamental;

Face ao exposto, o diploma em causa não viola quaisquer direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais, nem interfere em qualquer matéria constitucionalmente reservada aos órgãos de soberania, encontrando-se plenamente conforme à Constituição.

Quanto à conformidade com os princípios fundamentais das leis gerais da República:

Alega-se no pedido não poder a Assembleia Legislativa Regional legislar, dado não haver lei geral da República que regule a situação, não existindo precedência legal nacional relativamente à qual o legislador regional possa, em respeito aos seus princípios, legislar em matéria de interesse específico;

Tal entendimento não é aceitável. É facto pacífico e unanimemente aceite que as Regiões Autónomas detêm um poder legislativo primário que decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição;

Como refere Jorge Miranda, «as matérias do artigo 228.º da Constituição e das listas estatutárias não se acham [...] fechadas ao legislador do Estado»; «um diploma regional sobre qualquer delas (ou sobre qualquer dos seus segmentos) somente tem fundamento ou quando não haja lei geral da República ou quando se queira introduzir um regime jurídico diferenciado» (in Manual de Direito Constitucional, t. IV, 3.ª ed., p. 401);

O que se diferencia, nesta situação, é um acréscimo de liberdade de conformação ou disposição legislativa, não ficando a Assembleia Legislativa Regional adstrita aos princípios fundamentais das leis gerais da República;

Assim, pode afirmar-se que, em relação a este parâmetro, o diploma se encontra conforme, não violando quaisquer princípios de leis gerais da República, por inexistir lei específica sobre esta matéria, nem quaisquer princípios fundamentais de leis gerais da República que, eventualmente, contenham dispositivos reguladores da matéria objecto do decreto legislativo regional em fiscalização.

Do exposto, o Presidente da Assembleia Legislativa Regional conclui que, contrariamente ao que é defendido no pedido de fiscalização, os artigos 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 8.º não padecem de qualquer vício de ilegalidade ou de inconstitucionalidade.

3 - Apresentado o memorando, nos termos do n.º 1 do artigo 63.º da LTC, foi o mesmo debatido de modo a ficar definida a orientação do Tribunal, após o que o processo foi distribuído para elaboração do respectivo acórdão.

II Fundamentação

4 - A análise da constitucionalidade das normas do diploma questionado coloca, antes de mais, um problema de sucessão de normas constitucionais no tempo.

Com efeito, no período que mediou entre a emissão do Decreto Legislativo Regional 2/2003/M e a presente decisão entrou em vigor a Lei Constitucional 1/2004, de 24 de Julho, que procedeu à sexta revisão da Constituição.

Entre as alterações introduzidas por esta revisão constitucional conta-se a «simplificação dos parâmetros em que o poder legislativo regional se pode exercer» [Vitalino Canas, Constituição da República Portuguesa (após a Sexta Revisão Constitucional - 2004), AAFDL, 2004, p. 22] e, concomitantemente, o alargamento dos poderes legislativos das Regiões Autónomas. As modificações assinaladas são, essencialmente, as seguintes:

a) Desaparecimento da categoria de leis gerais da República (antigo n.º 5 do artigo 112.º da Constituição), a cujos princípios fundamentais os diplomas regionais se encontravam subordinados;

b) Eliminação da necessidade de existência de interesse específico regional na matéria regulada pelas Regiões, enquanto pressuposto ou requisito do exercício da competência legislativa destas últimas (v. o n.º 4 do artigo 112.º da CRP, na sua actual redacção).

O poder legislativo das Regiões Autónomas continua, porém, a enquadrar-se pelos fundamentos da autonomia das Regiões consagrados no artigo 225.º da CRP e a restringir-se ao âmbito regional e às matérias enunciadas no respectivo Estatuto Político-Administrativo, em face do disposto no n.º 4 do artigo 112.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição (neste sentido, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. V, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2004, pp. 398 a 402, e Vitalino Canas, ob. cit., pp. 140 e 236).

Subsiste ainda como requisito de exercício da competência legislativa das Regiões Autónomas o respeito da reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania, como se depreende da leitura conjugada dos preceitos constitucionais acima mencionados. No que diz respeito à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, não se registam alterações, estando esta totalmente vedada às Regiões Autónomas. Já no que se refere à reserva relativa, poderão as Regiões, salvo as excepções previstas na Constituição, tratar as matérias nela compreendidas, mediante autorização parlamentar [alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP].

Sucedem-se, assim, dois regimes constitucionais distintos, importando averiguar qual a influência da sexta revisão constitucional - donde resulta o alargamento da competência legislativa das Regiões Autónomas - na constitucionalidade das normas questionadas.

5 - A resposta à questão colocada pressupõe a ponderação dos vícios de inconstitucionalidade imputados pelo requerente às normas em causa e, em particular, à natureza desses vícios. E isto porque a sucessão de normas constitucionais no tempo tem efeitos diversos consoante a norma ordinária em apreciação padeça de um vício formal ou orgânico ou de um vício material.

Os vícios de natureza formal e orgânica dizem respeito ao incumprimento das regras de formação e exteriorização do acto normativo, bem como das regras de competência para a sua emissão (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, 2003, pp. 959 e segs.). Estamos, nestes casos, perante problemas de irregularidade da formação da norma ordinária, pelo que o parâmetro constitucional aplicável deve ser o vigente no momento da emissão daquela.

Como se escreveu no Acórdão 206/87 (Diário da República, 1.ª série, de 10 de Julho de 1987), «a [in]constitucionalidade orgânica tem sempre de ser aferida em função das normas constitucionais em vigor ao tempo em que foram editadas as normas que, porventura, padeçam de tal vício». Daqui resultando que a alteração do parâmetro de constitucionalidade seja irrelevante para efeitos de validade - ou de convalidação - da norma ordinária. Uma solução que tem recebido acolhimento uniforme por parte da jurisprudência constitucional, sendo também a solução maioritariamente acolhida pela doutrina.

Na jurisprudência constitucional deve destacar-se o Acórdão 408/89 (Diário da República, 2.ª série, de 31 de Janeiro de 1990), onde claramente se concluiu que as inconstitucionalidades orgânicas não podem ser convalidadas, uma vez que o vício afecta a própria formação da norma ordinária.

A doutrina, por seu turno, tende a aproximar o vício da inconstitucionalidade do regime da nulidade, recusando a possibilidade de convalidação da norma inconstitucional (neste sentido, Miguel Galvão Teles, «Inconstitucionalidade Pretérita», Nos Dez Anos da Constituição, INCM, pp. 332 e segs., Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 953 a 956, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, 5.ª ed., Coimbra Editora, 2003, p. 310, e Marcelo Rebelo de Sousa, O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional, s/ed., 1988, pp. 233 e segs.).

Já Rui Medeiros admite a possibilidade de convalidação de normas inconstitucionais, sustentando que se lhes aplica, em regra, o regime da anulabilidade («Valores jurídicos negativos da lei inconstitucional», O Direito, ano 121.º, 1989, pp. 517, 526 e segs.). Reconhece, porém, este autor que existem «casos excepcionais em que a inconstitucionalidade acarreta nulidade», impossibilitando, assim, a sua convalidação, apontando como exemplo os casos de inconstitucionalidade orgânica ou formal e os de violação do conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias (ob. cit., pp. 527 e segs.). Quanto a estes, diz Rui Medeiros que «a nulidade não se sana, nem sequer por cessação do vício» (ob. cit., p. 534).

Reitera-se, aqui, o entendimento acolhido pelos citados Acórdãos n.os 206/87 e 408/89, no sentido de que o vício de natureza orgânico-formal ou de competência legislativa de uma norma ordinária se afere pelas normas constitucionais vigentes no momento da sua emissão, sendo, em princípio, irrelevantes quaisquer alterações do parâmetro de constitucionalidade. Já quanto aos vícios de natureza material - os que «respeitam ao conteúdo do acto normativo, derivando do contraste existente entre os princípios incorporados no acto e as normas ou princípios da Constituição» (Gomes Canotilho, ob. cit., p. 959) - o que importará saber é se a Constituição permite a solução contida na norma ordinária (neste sentido, cf. o Acórdão 408/89).

E, assim, se ocorre uma alteração do parâmetro de constitucionalidade que permita a solução adoptada pela norma ordinária, pode operar-se a «constitucionalização superveniente» desta última.

Ora, no caso presente, coloca o requerente, entre o mais, a questão dos limites da competência legislativa das Regiões Autónomas - trata-se de saber, numa das vertentes em que tal questão vem equacionada, se existe interesse específico da Região Autónoma da Madeira em legislar em matéria de saúde e segurança social, interesse específico esse que constituía, antes da sexta revisão constitucional, um dos pressupostos ou requisitos da competência legislativa regional.

Tal qualificação do «interesse específico regional» (como requisito ou pressuposto de competência do poder legislativo regional) encontra apoio na jurisprudência constitucional portuguesa. Recorde-se, a este propósito, a afirmação que é feita no Acórdão 235/94 (Diário da República, 1.ª série-A, de 2 de Maio de 1994): «Em jurisprudência reiterada e uniforme, vem este Tribunal reafirmando que as Assembleias Legislativas Regionais, ao editarem legislação ao abrigo da referida alínea a) [alínea a) do n.º 1 do então artigo 229.º da CRP], devem respeitar os seguintes parâmetros condicionadores daquela competência:

a) As matérias a tratar devem ser matérias de interesse específico da Região (parâmetro positivo);

b) Tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos órgãos de soberania (parâmetro negativo);

c) Ao tratar legislativamente tais matérias, as Assembleias Legislativas Regionais - para além de haverem de obedecer à Constituição - não podem estabelecer disciplina que contrarie 'leis gerais da República' [...] Os diplomas legislativos regionais que ultrapassem aqueles limites, quer invadindo a competência própria dos órgãos de soberania quer tratando matérias desprovidas de interesse específico, violam as regras de competência [...]» Mantém-se, no caso sub iudice, este entendimento, ou seja, o de que o interesse específico das Regiões é «um parâmetro autónomo de atribuição de competência legislativa (funcionando embora sempre com respeito pela Constituição e pelas leis gerais da República e em matérias não reservadas à competência própria dos órgãos de soberania)». Trata-se de um dos mecanismos de que a Constituição se socorreu para regular o sistema de repartição de competências entre os órgãos estaduais e os órgãos regionais.

A falta dos requisitos assinalados impede os órgãos regionais de legislar, pelo que, nesta circunstância, o exercício do poder legislativo se mostra inquinado por vício de incompetência legislativa. Neste sentido se tem pronunciado o Tribunal Constitucional quer quanto ao desrespeito dos princípios fundamentais das leis gerais da República (cf. o Acórdão 483/2003, Diário da República, 2.ª série, de 11 de Fevereiro de 2004), quer quanto à intromissão na reserva de competência da Assembleia da República (cf. Acórdão 242/2002, Diário da República, 1.ª série-A, de 28 de Agosto de 2002), quer, ainda, quanto à inexistência de interesse específico regional (cf. o já citado Acórdão 206/87 e o Acórdão 120/99, Diário da República, 2.ª série, de 5 de Julho de 1999).

A caracterização do interesse específico regional como requisito ou pressuposto da competência legislativa das Regiões Autónomas é de igual modo adoptado pela doutrina. A generalidade dos autores assenta a análise da figura em questão na sua natureza de requisito de competência, qualificando-a como «critério de atribuição do poder legislativo às Regiões Autónomas» (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. V, p. 399), «primeiro limite de competência dos órgãos legislativos regionais» (Maria Lúcia Amaral, «Questões regionais e jurisprudência constitucional: para o estudo de uma actividade conformadora do Tribunal Constitucional», Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lex, s. d., p. 529), «critério delimitador autónomo dos poderes legislativos regionais» (Jorge Pereira da Silva, O Conceito de Interesse Específico e os Poderes Legislativos Regionais, Gabinete do Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores, 1994, p. 5), «critério aferidor da competência legislativa regional» (Margarida Salema, «Autonomia regional», Nos Dez Anos da Constituição, INCM, 1987, p. 219) ou «pressuposto do exercício de qualquer poder regional constitucionalmente conferido» (Pedro Machete, «Elementos para o estudo das relações entre os actos legislativos do Estado e das Regiões Autónomas no quadro da Constituição vigente», Estudos de Direito Regional, Lex, 1997, p. 105). Outros autores afirmam, ainda, que a violação do limite imposto pelo interesse específico à actividade legislativa regional determina a «inconstitucionalidade orgânica dos decretos legislativos regionais que perpetrem a mesma lesão» (Carlos Blanco de Morais, «As competências legislativas das Regiões Autónomas no contexto da revisão constitucional de 1997», Revista da Ordem dos Advogados, ano 57, 1997, p. 988, e «O modelo de repartição da função legislativa entre o Estado e as Regiões Autónomas», Estudos de Direito Regional, Lex, 1997, p. 219).

É certo que se escreveu no Acórdão 408/98 (Diário da República, 2.ª série, de 9 de Dezembro de 1998) que se está perante a violação de um «requisito de constitucionalidade material da legislação regional». Todavia, a verdade é que este requisito tem por objectivo determinar as matérias sobre as quais certo órgão pode legislar, tratando-se de um dos mecanismos de que a CRP se socorre para regular o sistema de repartição de competências entre os órgãos estaduais e os órgãos regionais, pelo que a falta daquele requisito suscita directamente um problema de competência legislativa. Note-se que, mesmo quando qualifica expressamente a falta de interesse específico regional como vício de inconstitucionalidade orgânica, não deixa o Tribunal Constitucional de mencionar que se trata de um parâmetro de condicionamento e limitação da competência legislativa das Regiões Autónomas, cuja violação origina um vício de inconstitucionalidade, por «incompetência absoluta» (neste sentido, cf. o Acórdão 212/92, Diário da República, 1.ª série-A, de 21 de Julho de 1992). E o Tribunal tem, ainda, entendido uniformemente que a falta de tal requisito gera inconstitucionalidade por violação do artigo 227.º da CRP, que contém uma norma de competência.

Nesta conformidade e independentemente da qualificação deste vício como vício de inconstitucionalidade de natureza orgânica, não se vislumbra qualquer razão para distinguir as situações em que o autor da norma invade a esfera de competência de outro órgão daquelas em que ultrapassa os limites da sua competência definidos pela Constituição, no que concerne ao regime quer da aplicação da lei constitucional no tempo quer da sanação do vício por «constitucionalização superveniente».

Em ambos os casos, quando o legislador constituinte revê as suas opções, conferindo a determinado órgão uma competência que dela carecia, não está a «legitimar» procedimentos legislativos que tivessem ofendido os comandos constitucionais ao tempo aplicáveis; e isto seja a competência conferida resultante da atribuição directa de novos poderes seja a mesma derivada da eliminação de limites ou condicionamentos dos poderes originais.

Em suma, estando em causa, no presente processo, uma questão de competência legislativa e na ausência de motivos para tratar a falta de interesse específico regional de forma diferente dos vícios orgânicos, conclui-se que o parâmetro de aferição de constitucionalidade das normas questionadas é o que vigorava à data da emissão das normas sub judicio, ou seja, o regime de competência legislativa das Regiões Autónomas anterior ao que resulta da sexta revisão constitucional, não sendo, pois, relevantes para efeitos decisórios as alterações constitucionais posteriores.

Assim, importa agora apreciar a inconstitucionalidade das normas questionadas à luz do regime anterior à Lei Constitucional 1/2004, de 24 de Julho.

6 - As normas questionadas no presente processo visam regular, essencialmente, a situação de permanência de utentes em meio hospitalar após alta clínica. Trata-se de um problema atinente, em simultâneo, às áreas da saúde e da segurança social.

Como resulta do próprio pedido e respectiva resposta, o regime instituído pretende desincentivar e onerar a utilização dos serviços hospitalares após alta clínica, ou seja, o uso desses serviços para fins diversos daqueles para que foram criados. A oneração consiste no pagamento de uma comparticipação nos custos de internamento, por parte dos utentes e seus familiares mais próximos, que reverte a favor do Serviço Regional de Saúde.

Importa, desde logo, averiguar se as matérias assinaladas se situam no âmbito do interesse específico regional, nos termos delimitados pela Constituição (na versão anterior à sexta revisão). Embora a saúde e a segurança social não constassem expressamente do elenco constitucional das matérias de interesse específico regional (artigo 228.º, na versão anterior à sexta revisão), elas estão incluídas na lista prevista no artigo 40.º do EPARAM.

Com efeito, o elenco do artigo 228.º da CRP não era taxativo, permitindo aos Estatutos das Regiões qualificar outras matérias como de interesse específico, desde que tais matérias respeitassem exclusivamente à Região ou nela assumissem particular configuração [cf. a alínea o) deste artigo da Constituição].

Mas a simples circunstância de a saúde e a segurança social pertencerem ao elenco de matérias que o EPARAM classifica como de «interesse específico» [alínea m) do artigo 40.º] não é, por si só, suficiente para se dar como preenchido o requisito de existência de interesse específico regional. Constitui entendimento sedimentado da jurisprudência constitucional e da doutrina portuguesas que a enumeração estatutária de matérias de interesse específico é meramente indiciária, significando apenas o reconhecimento, por parte do Estado (uma vez que os estatutos político-administrativos são aprovados por actos legislativos do Estado), da hipotética especificidade regional de certas situações (cf., neste sentido, o Acórdão 583/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33.º vol., pp. 65 e segs., e Pedro Machete, «Elementos para o estudo...», p. 99).

A qualificação estatutária das matérias de interesse específico regional não dispensa, assim, uma valoração concreta, tomando em conta as especificidades de cada caso. A jurisprudência constitucional tem reiterado a necessidade de proceder a uma avaliação caso a caso, referindo-se mesmo ao carácter de presunção abstracta e ilidível de cada uma das categorias da enumeração estatutária (cf., nomeadamente, os Acórdãos n.os 42/85, 57/85, 164/86, 326/86, 308/89, 139/90, 328/92, 235/94 e 473/02, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., pp. 181 e segs. e 71 e segs., 7.º vol., pp. 219 e segs., 8.º vol., pp. 63 e segs., 13.º vol., t. II, pp. 899 e segs., 16.º vol., pp. 199 e segs., 23.º vol., pp. 35 e segs., 27.º vol., pp. 7 e segs., e 54.º vol., pp. 7 e segs., respectivamente). Uma medida legislativa regional não pode, portanto, haver-se como detentora de credencial constitucional bastante apenas porque versa sobre matéria que o respectivo estatuto considera como sendo de interesse específico para a Região.

E tal significa, no caso, a relativa irrelevância de o EPARAM incluir, no seu artigo 40.º, a saúde e a segurança social entre as matérias de interesse específico regional; decisivo é que essas matérias respeitem exclusivamente à Região ou que nela exijam tratamento especial por aí assumirem peculiar configuração.

Sobre o sentido do artigo 228.º da Constituição, escreveu-se no acima mencionado Acórdão 473/2002 o seguinte: «O artigo 228.º da Constituição dá conta, através de uma enunciação exemplificativa, de um conjunto de matérias em que se revela normalmente interesse específico. Não sendo taxativo, o artigo 228.º tem, no entanto, uma função 'expressiva' do que seja interesse específico, revelando-se nas suas alíneas um elemento comum de conexão com as condições de vida materiais e culturais nas Regiões. Esse elemento comum é explicitado na alínea o) do artigo 228.º, que admite que matérias diversas das enunciadas nas alíneas anteriores sejam também de interesse específico, por respeitarem exclusivamente a uma Região ou por nela assumirem particular configuração [...] Em face da difícil delimitação, em abstracto, do parâmetro constitucional, é a própria natureza do caso concreto que suscita, normalmente, a percepção do critério definidor do interesse específico. Como se assevera no Acórdão 220/92, 'o interesse específico tem sempre de ser apreciado em concreto, ao que corresponde a emissão de um juízo de valor'. Nessa apreciação, a alínea o) do artigo 228.º fornece um critério interpretativo geral - a exclusividade ou a particular configuração das matérias -, critério esse que constitui o elemento unificador das matérias expressamente previstas nas alíneas anteriores e daquelas que escapam à previsão não taxativa do legislador constitucional.» Ora, como se passará a demonstrar, não se verifica, no caso, um interesse específico regional - o problema da permanência dos utentes em estabelecimento hospitalar após alta clínica não respeita apenas à Região Autónoma da Madeira (facto que, aliás, não é posto em causa pelo autor da norma) nem nela assume particular configuração.

Não se deixa, desde já, de assinalar que as informações fornecidas pelo autor da norma relativamente ao problema da permanência dos utentes em estabelecimento hospitalar após alta clínica na Madeira não permitem justificar a intervenção regional neste domínio. Nem o Decreto Legislativo Regional 2/2003/M nem a resposta da Assembleia Legislativa Regional da Madeira ao presente processo apresentam dados concretos sobre a problemática em questão. Ambos se limitam a alicerçar a existência de interesse específico regional na regulamentação da matéria em causa nos seguintes pontos:

a) Envelhecimento da população;

b) Nuclearização das famílias, esbatimento dos laços comunitários e ausência dos familiares (por motivos laborais, escolares e de emigração);

c) Custos elevados da sobreocupação de camas e equipamentos hospitalares, escassos e imprescindíveis aos doentes agudos.

Estas observações não são apoiadas em dados concretos. E conveniente seria que a afirmação de particularidades regionais fosse suportada por dados estatísticos específicos relativos, de entre outros, ao número de doentes que permanecem em meio hospitalar após alta clínica na Região Autónoma da Madeira e no resto do País.

Ora, nem o Instituto Nacional de Estatística (INE) fez essa avaliação nem este Tribunal dispõe de outras fontes de informação sobre a matéria. Todavia, a análise de um conjunto de outros indicadores do INE, nomeadamente de dados demográficos e respeitantes à distribuição do equipamento hospitalar pelo território nacional, permite concluir que a questão em causa não assume na Região Autónoma da Madeira contornos particularmente diferentes do resto do País (informação retirada do sítio da Internet do INE - http://www.ine.pt/prodserv/quadros/public.asp?ver=por&tema=C&subtema=03 -, disponível mediante registo online).

Em primeiro lugar, de acordo com os números do INE relativos a 2002, a percentagem da população com mais de 65 anos é, na Madeira, significativamente menor do que a média nacional. De facto, enquanto que, na referida Região Autónoma, 13,45% da população se enquadra no escalão etário de 65 e mais anos, a percentagem média nacional é de 16,67%. Em consequência deste facto, os índices de envelhecimento e de dependência na Região Autónoma da Madeira são, pelo menos por enquanto, menos preocupantes do que no resto do País.

Do mesmo modo, e se bem que também a nível regional se observe uma tendência, uniforme a nível nacional, para o decréscimo da dimensão média da família, as Regiões Autónomas mantinham, em 2001, os valores mais elevados dessa mesma dimensão, claramente superiores à média portuguesa.

Não se vê, assim, motivo para concluir que os fenómenos da nuclearização das famílias, esbatimento dos laços comunitários e ausência dos familiares tenham, na comunidade madeirense, relevância superior ao restante território nacional.

Por outro lado, a Região Autónoma da Madeira dispõe também, comparativamente, de mais camas hospitalares do que as restantes regiões do País. Efectivamente, os dados estatísticos relativos a 2002 demonstram que o número de camas por 1000 habitantes é, ali, de 7,5, enquanto a média nacional não passa de 4,2. Do mesmo modo, enquanto a média, a nível nacional, de internamentos por cama é de 28,53, na Madeira não ultrapassa 19,59, não podendo, assim, afirmar-se que a sobreocupação de camas e a escassez de equipamentos hospitalares, imprescindíveis a outros doentes, assume na Região contornos mais graves do que no resto do País.

Em suma, todos os elementos disponíveis apontam em sentido contrário ao sustentado pelo autor da norma - o problema da permanência de doentes em meio hospitalar após alta clínica não se revela particularmente grave na Região Autónoma da Madeira, quando comparado com a realidade nacional. E, também, face aos mesmos elementos, não se evidencia que a problemática a que o diploma ora analisado quis responder (não se duvidando da sua existência e graves consequências) assuma na Região Autónoma da Madeira uma particular configuração.

Conclui-se, pois, pela inexistência de interesse específico regional que permitisse à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira legislar sobre a permanência hospitalar após alta clínica.

As normas questionadas violam, assim, o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, na redacção anterior à sexta revisão constitucional, tornando-se desnecessário indagar acerca do cumprimento dos restantes requisitos de exercício da competência legislativa das Regiões Autónomas, bem como da inconstitucionalidade material das soluções consagradas no diploma sub iudice. E, verificada a inconstitucionalidade de tais normas questionadas, fica igualmente prejudicada a apreciação da sua eventual ilegalidade.

III Decisão

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 4.º a 8.º do Decreto Legislativo Regional 2/2003/M, de 24 de Fevereiro, por violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, na redacção anterior à sexta revisão constitucional.

Lisboa, 10 de Maio de 2005. - Maria João Antunes (relatora) - Maria Fernanda Palma - Mário Torres - Vítor Gomes - Benjamim Rodrigues - Rui Manuel Moura Ramos - Bravo Serra - Gil Galvão - Maria dos Prazeres Beleza - Maria Helena Brito - Paulo Mota Pinto - Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração em anexo) - Artur Maurício.

Declaração de voto

Subscrevo a decisão por entender que o interesse específico regional, à luz do qual a conformidade das normas em causa deve ser aferida, não habilitava a Região a disciplinar esta matéria; mas não acompanho o acórdão na parte relativa à qualificação do correspondente vício.

Em meu entender, a inconstitucionalidade de normas legais comporta um vício não equiparável àquele que a doutrina construiu a propósito da ilegalidade dos actos administrativos; o problema da inconstitucionalidade normativa é bem mais complexo, designadamente quanto aos efeitos jurídicos entretanto produzidos pelas normas afectadas, e suporta mal, por se apresentar demasiado redutor, um juízo de mera nulidade/anulabilidade da norma. Nos termos do artigo 282.º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade normativa tem efeitos consequentes automáticos a par de outros efeitos que são moduláveis, em consideração do caso concreto, pelo Tribunal Constitucional. Afigura-se-me, portanto, que a violação dos limites em que deve desenvolver-se a legislação regional constitui um vício que, não sendo totalmente coincidente com o resultante da incompetência orgânica - a disciplina da matéria em causa não se inclui nas atribuições da Região -, determinará a invalidade da norma editada nos termos prescritos no aludido artigo 282.º da Constituição. - Carlos Pamplona de Oliveira.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2005/06/21/plain-186929.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/186929.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1980-09-23 - Decreto-Lei 391/80 - Gabinete do Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira e Ministério dos Assuntos Sociais

    Comete ao Governo Regional da Madeira a orientação política referente aos sectores de saúde, segurança social e educação especial na área da Região.

  • Tem documento Em vigor 1987-07-10 - Acórdão 206/87 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de diversas normas de vários artigos de legislação referente às regiões autónomas e limita os efeitos da inconstitucionalidade.

  • Tem documento Em vigor 1990-08-24 - Lei 48/90 - Assembleia da República

    Estabelece a lei de bases da saúde.

  • Tem documento Em vigor 1991-06-05 - Lei 13/91 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.

  • Tem documento Em vigor 1991-08-07 - Decreto Legislativo Regional 21/91/M - Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa Regional

    Aprova o estatuto do sistema de saúde da Região Autónoma da Madeira, o qual faz parte integrante do presente diploma.

  • Tem documento Em vigor 1991-10-10 - Decreto-Lei 391/91 - Ministério do Emprego e da Segurança Social

    Disciplina o regime de acolhimento familiar de idosos e adultos com deficiência por particulares no seu domicílio.

  • Tem documento Em vigor 1992-07-21 - Acórdão 212/92 - Tribunal Constitucional

    Decide pronunciar-se, pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 2.º, n.º 2, e 3.º do decreto aprovado pela Assembleia Legislativa Regional da Madeira na sessão plenária de 30 de Abril de 1992, subordinado ao título «Aplicação à Região Autónoma da Madeira do regime jurídico do trabalho suplementar». (Proc. n.º 200/92).

  • Tem documento Em vigor 1992-07-28 - Acórdão 220/92 - Tribunal Constitucional

    Decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas do artigo 1.º e das alíneas a), b), c), d) e e) do artigo 2.º do decreto aprovado pela Assembleia Legislativa Regional da Madeira, na sessão plenária de 30 de Abril de 1992, subordinado ao título a «Competências no âmbito do ensino superior». Decide não se pronunciar pela inconstitucionalidade das restantes normas do mesmo diploma - alíneas f), g), h), i), j) e k) do referido artigo 2º.

  • Tem documento Em vigor 1992-09-03 - Decreto-Lei 190/92 - Ministério do Emprego e da Segurança Social

    Procede a reformulação da legislação sobre o acolhimento familiar de crianças e jovens, por famílias consideradas idóneas, para a prestação desse serviço.

  • Tem documento Em vigor 1994-05-02 - Acórdão 235/94 - Tribunal Constitucional

    PRONUNCIA-SE PELA INCONSTITUCIONALIDADE DE TODAS AS NORMAS DO DECRETO, APROVADO NA SESSÃO DE 26 DE JANEIRO DE 1994 PELA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA REGIONAL DOS AÇORES SOBRE 'A ACTIVIDADE DE COMERCIO A RETALHO EXERCIDA POR FORMA NAO SEDENTARIA', POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 229, NUMERO 1, ALÍNEA A), E 115, NUMERO 3, AMBOS DA CONSTITUICAO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. (PROCESSO NUMERO 69/94).

  • Tem documento Em vigor 2002-08-28 - Acórdão 242/2002 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 1.º e 2.º do Decreto Regional n.º 17/78/M, de 29 de Março, e dos artigos 1.º e 3.º do Decreto Regional n.º 2/82/M, de 6 de Março, relativas à publicação de notas oficiosas emitidas pelo Governo Regional da Madeira.

  • Tem documento Em vigor 2002-12-18 - Acórdão 473/2002 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade de todas as normas do Decreto da Assembleia Legislativa Regional dos Açores n.º 32/2002, sobre «Adaptação à Região da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro (estabelece medidas de protecção dos animais), alterada pela Lei n.º 19/2002, de 31 de Julho». (Procº. nº 705/2002).

  • Tem documento Em vigor 2002-12-20 - Lei 32/2002 - Assembleia da República

    Aprova as bases gerais da segurança social, bem como as atribuições prosseguidas pelas instituições de segurança social e a articulação com entidades particulares de fins análogos.

  • Tem documento Em vigor 2003-02-24 - Decreto Legislativo Regional 2/2003/M - Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa Regional

    Aprova medidas de reinserção familiar e social de utentes com permanência em meio hospitalar após alta clínica.

  • Tem documento Em vigor 2003-04-07 - Decreto Legislativo Regional 4/2003/M - Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa Regional

    Aprova o Estatuto do Sistema Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-24 - Lei Constitucional 1/2004 - Assembleia da República

    Altera a Constituição da República Portuguesa (Sexta revisão constitucional). Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2005-09-01 - Acórdão 415/2005 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade dos artigos 19.º, 50.º, n.º 1, 51.º, n.º 2, 52.º, 53.º e 57.º do Regime Jurídico do Planeamento, Protecção e Segurança das Construções Escolares, aprovado pelo Decreto da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores n.º 23/2005, na medida em que excluem a competência das autarquias locais açorianas para realização de investimentos na construção, apetrechamento e manutenção, e a consequente titularidade de património, de estabelecimentos de educação dos 2.º e 3 (...)

  • Tem documento Em vigor 2007-02-20 - Acórdão 18/2007 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 2.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2002/M, de 1 de Março, e dos artigos 1.º e 2.º do Decreto Regulamentar Regional n.º 15/2002/M, de 18 de Setembro, enquanto altera os artigos 11.º, 13.º a 21.º, 24.º e 26.º da orgânica da Inspecção Regional das Actividades Económicas, aprovada pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 2/96/M, de 24 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelos Decretos Regulamentares Regionai (...)

  • Tem documento Em vigor 2007-05-15 - Acórdão 258/2007 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade [fiscalização preventiva] das normas constantes dos artigos 1.º, n.º 1, segunda parte, 7.º, n.os 1, 10, 12 a 18, 21 a 24, 26, 27, primeira parte, 28 a 31, 32, primeira parte, e 38, este na parte referente à «administração local», 9.º, n.º 1, 10.º, n.os 1 e 2, 15.º a 18.º e 20.º do Decreto n.º 8/2007, sobre Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional, aprovado na sessão de 7 de Março de 2007 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores. (Processo (...)

  • Tem documento Em vigor 2017-04-28 - Acórdão do Tribunal Constitucional 176/2017 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 8.º, n.º 3, do decreto legislativo regional intitulado «Oitava alteração do Decreto Legislativo Regional n.º 24/89/M, de 7 de setembro, que estabelece a estrutura orgânica da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira», aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, em 23 de fevereiro de 2017, que foi enviado para assinatura ao Representante da República para a Região Autónoma da Madeira, na parte em que atri (...)

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