Acórdão do Tribunal Constitucional 484/2022, de 21 de Setembro
- Corpo emitente: Tribunal Constitucional
- Fonte: Diário da República n.º 183/2022, Série I de 2022-09-21
- Data: 2022-09-21
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Sumário
Texto do documento
Sumário: Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas no n.º 3 do artigo 8.º e no artigo 31.º-A da Lei 17/2014, de 10 de abril (Estabelece as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional), na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro; não declara a inconstitucionalidade do segmento final do n.º 1 do artigo 8.º da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, inexistindo uma relação incindível entre as normas declaradas inconstitucionais e esse segmento.
Processo 48/21
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Um grupo de deputados à Assembleia da República (AR) requereu, ao abrigo do disposto do artigo 281.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa (CRP) a declaração da inconstitucionalidade das normas constantes do n.º 3 do artigo 8.º e do artigo 31.º-A - e, pela sua conexão, do segmento final do n.º 1 do artigo 8.º - da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação que lhes foi dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, que procede à primeira alteração à Lei de Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional, aprovada pela referida Lei 17/2014, de 10 de abril.
2 - Os requerentes alegam que o n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação que lhe foi dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, viola (i) o artigo 84.º da Constituição, em conjugação com o n.º 1 do artigo 3.º da Constituição, (ii) o princípio da unidade de ação administrativa, plasmado no n.º 2 do artigo 267.º da Constituição, e (iii) o artigo 227.º da Constituição e os Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas. Já quanto ao artigo 31.º-A da mesma Lei 17/2014, de 10 de abril - e, pela sua conexão, o segmento final do n.º 1 do artigo 8.º -, na redação que lhes foi dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, os requerentes invocam a violação do disposto (i) no artigo 112.º da Constituição, (ii) no artigo 227.º da Constituição e (iii) no artigo 8.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores ("inconstitucionalidade indireta").
Apresentam os seguintes fundamentos:
A - No que diz respeito ao n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação que lhe foi dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro:
A.1 - [alegada violação do artigo 84.º da Constituição, em conjugação com o n.º 1 do artigo 3.º da Constituição]
1 - O n.º 3 do artigo 8.º da Lei de Bases, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, introduz em sede de ordenamento primário do espaço marítimo um poder codecisório, mediante a instituição da obrigatoriedade da emissão de um parecer obrigatório e vinculativo por parte das Regiões Autónomas para a aprovação dos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional para além das 200 milhas marítimas.
2 - O artigo 84.º da Constituição estatui que "A lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites".
3 - A essencialidade das matérias relativas ao ordenamento marítimo para o exercício da soberania do Estado é tal que as mesmas se encontram inscritas na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, quer no âmbito da reserva absoluta (como a definição dos limites das águas territoriais ou da zona económica exclusiva, quer da reserva relativa de competência da AR (como a definição e regime dos bens do domínio público ou as bases do ordenamento do território e urbanismo).
4 - Remetendo a Constituição para a lei ordinária a regulação, zonamento e determinação de direitos do Estado sobre o espaço marítimo, prescreve o artigo 2.º do Decreto-Lei 34/2006, de 28 de julho, que "São zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional as águas interiores, o mar territorial, a zona contígua, a zona económica exclusiva e a plataforma continental."
5 - A plataforma continental de um Estado compreende, assim, "o leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendem além do seu mar territorial, em toda a extensão do prolongamento natural do seu território terrestre, até ao bordo exterior da margem continental ou até uma distância de 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial, nos casos em que o bordo exterior da margem continental não atinja essa distância. "(cf. art. 76.º, n.º 1, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10.12.1992, doravante "Convenção"),
6 - Prevendo-se, seguidamente, critérios relativos à delimitação da plataforma continental de cada Estado costeiro, para além das 200 milhas contadas da linha de base, sendo elucidativo a esse propósito o disposto no n.º 6 daquele preceito, que estipula que "o limite exterior da plataforma continental não deve exceder 350 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial".
7 - Face ao enquadramento legal supra exposto, verifica-se que o espaço marítimo nacional, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 2.º da Lei de Bases em vigor, integra a referida plataforma continental estendida, para além das 200 milhas.
8 - É, pois, o Estado (e apenas este) que exerce poderes próprios e exclusivos de soberania sobre a exploração de recursos naturais dessa zona da Plataforma.
9 - O que significa que o exercício desses poderes não é transferível para outras entidades, como as Regiões Autónomas.
10 - Essa ideia é, aliás, bem patente ao atentarmos na Convenção, cujos n.os 1 e 2 do artigo 77.º reconhecem ao Estado costeiro direitos de soberania exclusivos sobre a plataforma continental para efeitos de exploração e aproveitamento dos seus recursos naturais.
11 - Daí resultando, portanto, que a legislação estadual não pode transferir, delegar ou conferir, bem como submeter-se a pressupostos de exercício condicionado dos poderes constitutivos primários que afetem os poderes exclusivos do Estado sobre a exploração e aproveitamento de bens dominiais na plataforma continental estendida, já que tal implicaria uma vulneração da garantia institucional de reserva de lei ínsita, designadamente, nos artigos 84.º, já referidas alíneas dos artigos 164.º e 165.º da Constituição e nos seus termos.
12 - Face ao exposto, ao pretender dotar as Regiões Autónomas de um poder de codecisão relativo à aprovação de instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional que respeitem à plataforma continental para além das 200 milhas marítimas, a alteração do n.º 3 do artigo 8.º da Lei de Bases é inconstitucional por violação da garantia institucional do artigo 84.º, em conjugação com o n.º 1 do artigo 3.º da CRP, já que um poder soberano reconhecido ao Estado deixa de o ser, se este for forçado por norma infraconstitucional a codecidir o seu exercício com outro ente público ao qual é dado um poder de impedimento, passando essa competência a ser dividida com as Regiões Autónomas.»
A.2 - [alegada violação do princípio da unidade de ação administrativa, plasmado no n.º 2 do artigo 267.º da Constituição]
13 - O n.º 3 do artigo 8.º da Lei de Bases, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, compromete seriamente, num domínio de soberania reconhecido pela Constituição e pelo Direito Internacional, o princípio da unidade de ação administrativa, plasmado expressamente no n.º 2 do artigo 267.º da CRP.
14 - Assim, é por demais evidente a inconstitucionalidade da nova redação dada ao n.º 3 do artigo 8.º, neste caso pela razão de que o mecanismo de codecisão que comporta compromete seriamente, num domínio de soberania reconhecido pela Constituição e pelo Direito Internacional, a aplicação do princípio da unidade de ação administrativa, plasmado expressamente no n.º 2 do artigo 267.º da Constituição da República Portuguesa.
A.3 - [alegada violação do artigo 227.º da Constituição e dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas]
15 - [...] cumpre referir que os já mencionados preceitos da Lei 1/2021, de 11 de janeiro, desrespeitam o disposto no artigo 227.º da CRP, o qual, versando sobre os poderes das Regiões Autónomas, exige que os mesmos sejam definidos nos respetivos estatutos.
16 - Com efeito, nos termos do artigo 227.º da Constituição, os poderes das regiões autónomas referentes à intervenção participativa no ordenamento ou na gestão do espaço marítimo nacional devem estar necessariamente credenciados nos Estatutos Político-Administrativos - os quais constituem, aliás, leis de valor reforçado qualificados pela sua supremacia face a outros atos legislativos, do Estado ou das regiões, que versem sobre competências relativas às regiões autónomas (cf. artigo 281.º, n.º 1, alíneas c) e d) e artigo 112.º da Constituição).
17 - Concretamente no que respeita à matéria relativa às matérias do domínio público marítimo, estabelece a alínea s) do n.º 1 do artigo 227.º que "As regiões autónomas são pessoas coletivas territoriais e têm os seguintes poderes, a definir nos respetivos estatutos: [...] Participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos".
18 - Trata-se, nos termos do mencionado preceito, de um poder, não de "decisão", mas de "participação" num processo decisório atribuído à competência dos órgãos de soberania pela Constituição.
19 - Verifica-se, assim, que os poderes das regiões autónomas decorrem da Constituição (que é o título primário da sua autonomia) e também dos estatutos, sendo função constitucional dos Estatutos densificar, especificar e determinar o conteúdo básico, extensão e limites dos poderes regionais.
20 - Dado que cabe ao Estatuto, de acordo com o n.º 1 do artigo 227.º da CRP, definir os poderes regionais ínsitos na Constituição, neste caso a alínea s) do mesmo n.º 1, conclui-se que o Estatuto não habilita a Região ao exercício de quaisquer competências regionais de gestão partilhada na zona da Plataforma Continental que se estenda para além das 200 milhas.
21 - Face a tudo o exposto, devendo a Lei de Bases conformidade à Constituição e aos estatutos, a atribuição à RA dos Açores do poder de emitir um parecer vinculativo sobre instrumentos de ordenamento marítimo prevista no n.º 3 do artigo 8.º da mesma Lei de Bases na sua nova redação se converte numa verdadeira faculdade de codecisão com o Estado não autorizada estatutariamente.
22 - Por último, quanto ao Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei 13/91, de 5 de junho ("Estatuto da RA da Madeira"), verifica-se que não existe, nesse Estatuto, uma disposição que regule direitos constitutivos sobre a gestão do espaço marítimo, análoga ao artigo 8.º do Estatuto da RA dos Açores, apenas se prevendo a intervenção consultiva da Região, mediante a celebração de protocolos de colaboração permanente sobre matéria de interesse comum ao Estado e à RA da Madeira (cf. artigo 93.º).
23 - Assim, também o estatuto da RA da Madeira não credencia os órgãos regionais a codecidirem na política de ordenamento da plataforma estendida para além das 200 milhas, mediante a emissão de parecer vinculativo (prevendo apenas a participação, a título consultivo, dessa região).
24 - Verifica-se, em conclusão, que a Lei de Bases consagra em favor das regiões uma competência que se não encontra credenciada nos Estatutos que, nos termos constitucionais do artigo 227.º da CRP, devem definir taxativamente os poderes regionais constantes da Constituição, sendo o n.º 3 do artigo 8.º na sua nova redação, inconstitucional por violação desse preceito da Lei Fundamental e ilegal por desconformidade com o valor reforçado dos estatutos, no que concerne às disposições assinaladas nas rubricas precedentes que definem as competências regionais e os seus limites.
B - No que diz respeito ao artigo 31.º-A da Lei 17/2014, de 10 de abril - e, pela sua conexão, ao segmento final do n.º 1 do artigo 8.º -, na redação que lhes foi dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro:
B.1 - [alegada violação do disposto no artigo 112.º da Constituição]
25 - Para além do novo n.º 3 do artigo 8.º, também o "novo" artigo 31.º-A da Lei de Bases, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, é inconstitucional por violação do artigo 112.º da Constituição.
26 - Decorre do n.º 4 do artigo 112.º da CRP que os decretos legislativos regionais, todos eles, "têm âmbito regional" e não podem dispor sobre matérias "reservadas aos órgãos de soberania".
27 - O que significa que no desenvolvimento de bases da reserva absoluta ou relativa da Assembleia da República, as regiões não podem desenvolver bases situadas objetivamente fora do chamado "âmbito regional" - é, manifestamente, no caso das bases da reserva absoluta, a matéria respeitante às forças armadas, domínio indisponível da soberania do Estado.
28 - Quanto à matéria do ordenamento marítimo, situado na esfera da reserva relativa do Parlamento, embora não se encontre vedado o desenvolvimento de bases gerais dos regimes jurídicos, nessa função de desenvolvimento, as regiões não podem editar legislação complementar que exceda o limite positivo do "âmbito regional" nem dispor sobre domínios que respeitem à competência expressa ou implícita dos órgãos de soberania.
29 - Isto significa que, nessa função de desenvolvimento, as Regiões Autónomas devem respeitar as cláusulas constitucionais limitativas do âmbito regional e da reserva implícita de competência dos órgãos de soberania, ou seja, não podem dispor sobre domínios que se projetem para fora do território regional (limite geográfico), que não tenham na região nenhuma especificidade objetiva atendível (elemento substancial) e não prejudiquem competências e interesses juridicamente protegidos do Estado ou outros entes públicos (elemento orgânico-substancial).
30 - De acordo com o sentido geral que emerge de recente jurisprudência do Tribunal Constitucional, não integram o conceito de 'âmbito regional' matérias cuja disciplina legislativa possa afetar a ordem jurídica nacional, outras instituições e outras pessoas coletivas que não as regiões autónomas (cf., neste sentido, o Acórdão 258/2007, de 15 de maio, disponível em vvvvw.dre.pt).
31 - Ora, ao habilitar as regiões a desenvolverem por decreto legislativo regional um conjunto de bases gerais da mesma lei em domínios onde não é identificável âmbito regional (e que, por consequência integram a esfera de competência reservada aos órgãos de soberania), é manifesto que a norma do n.º 1 do artigo 31.º-A aditado à Lei de Bases - e, por conexão, o n.º 1 do artigo 8.º - é materialmente inconstitucional, por violação do n.º 4 do artigo 112.º da CRP.
32 - A isto acresce que, do n.º 5 do artigo 112.º da CRP resulta que, à luz do princípio da tipicidade da lei, "nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos",
33 - Daqui resulta que nenhuma lei, reforçada ou não, pode atribuir a outro ato legislativo a faculdade de ser parâmetro ou pressuposto necessário de outras leis, ou introduzir no seu procedimento de formação trâmites que aumentem a sua rigidez ou força passiva, ou seja, que que dificultem a sua formação ou a tornem resistente à revogação pela demais legislação. A criação de categorias legais é, pois, uma reserva da Constituição.
34 - Sucede que nem a alínea c) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP nem qualquer outra norma constitucional estipulam para o processo de aprovação dos decretos legislativos regionais de natureza complementar (os que desenvolvem leis de bases) a formulação de pareceres obrigatórios e vinculativos do Governo da República ou de qualquer outra entidade, como "conditio" da aprovação final dos mesmos decretos.
35 - Ora, o trâmite de formulação de um parecer obrigatório e vinculativo do Governo da República introduzido na formação de certos decretos legislativos regionais de desenvolvimento pelo n.º 1 do artigo 31.º-A da Lei de Bases acaba por ser imposto com afetação dos poderes de conformação próprios de cada órgão na sua esfera de competência.
36 - É, assim, evidente que o artigo 31.º-A aditado à Lei de Bases, ao introduzir um trâmite de parecer obrigatório e vinculante do Governo no procedimento aprovatório de decretos legislativos regionais de desenvolvimento de certas normas da mesma lei de bases, aumenta a rigidez desses atos à margem da Constituição, cria uma nova categoria legal de lei reforçada pelo procedimento sem qualquer credencial na Lei Fundamental, violando o n.º 5 do artigo 112.º da CRP.
B.2 - [alegada violação do artigo 227.º da Constituição]
37 - Verifica-se, além do mais, e em nossa opinião decisivamente, que as alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 31.º-A são inconstitucionais por violação do disposto na alínea s) do artigo 227.º da Constituição, que, como vimos já acima, estabelece que as regiões autónomas têm o poder de "Participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos", em termos a definir no seu Estatuto".
38 - As alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 31.º-A aditado à Lei de Bases dispõem o seguinte:
"Os termos em que se define o ordenamento e a gestão das agitas do espaço marítimo nacional sob soberania ou jurisdição nacional adjacentes aos arquipélagos dos Açores e da Madeira comportam:
a) "A transferência para as regiões autónomas das competências da administração central quanto ao espaço marítimo sob soberania ou jurisdição nacional, adjacente aos respetivos arquipélagos até às 200 milhas marítimas, salvo quando esteja em causa a integridade e a soberania do Estado";
b) "A participação dos serviços da administração central competente no procedimento prévio dirigido à aprovação dos planos de ordenamento e gestão do espaço marítimo até às 200 milhas marítimas, mediante a emissão de um parecer, o qual é obrigatório e vinculativo nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado".
39 - Abordando apenas os poderes de planeamento em sede de ordenamento e não os de gestão, o primeiro preceito alarga o espaço marítimo das regiões até às 200 milhas, substitui o Estado pela região quanto à aprovação dos poderes de ordenamento primário dessa zona e inverte, em conjugação com a alínea b), os papéis do Estado e da Região na definição política do espaço marítimo e no exercício do direito de participação nessa política, previstos na alínea s) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP.
B.3 - [alegada violação do artigo 8.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores]
40 - Estabelece a norma suprarreferida que "A Região é a entidade competente para o licenciamento no âmbito da utilização privativa dos bens do domínio público marítimo do Estado, das afinidades de extração de inertes, da pesca e de produção de energias renováveis" mas
41 - Estabelece a alínea d) do n.º 3 do artigo 31.º-A da Lei n.º (sic)"A competência exclusiva das regiões autónomas para licenciar, no âmbito da utilização privativa de bens do domínio público marítimo do Estado, designadamente, afinidades de extração de inertes, pesca e produção de energias renováveis, salvo quando estejam em causa a integridade e soberania do Estado", de onde resulta, apesar da cláusula de salvaguarda, que
42 - uma competência exclusiva e universal atribuída à Região, para o licenciamento, extravasa dos limites referidos pelo referido Estatuto Autonómico apresentando-se assim a referida norma da Lei 1/2021, de 11 de janeiro, em situação de ilegalidade por violação do próprio Estatuto na delimitação negativa das capacidades dos órgãos de Estado em matéria de licenciamentos.
3 - O Presidente da Assembleia da República, notificado para responder, ao abrigo dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante LTC), remeteu para os trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação da referida lei e para dois documentos elaborados pelos serviços de apoio à Comissão de Agricultura e do Mar.
Juntou também Parecer de Direito, da sociedade de advogados Sérvulo & Associados, da coautoria de RUI MEDEIROS/ANTÓNIO CADILHA, emitido a pedido da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, o que fez sob invocação «do princípio de cooperação entre órgãos de soberania e aquele órgão de governo próprio da Região Autónoma dos Açores».
Foi ainda oferecido o merecimento dos autos.
4 - Constatada a verificação, por parte dos trinta e sete deputados ora requerentes, da condição de legitimidade processual para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade), com força obrigatória geral, de quaisquer normas, nos termos da norma do artigo 281.º, n.º 2, alínea f), da Constituição (a qual atribui a «[um] décimo dos Deputados à Assembleia da República» legitimidade para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, com força obrigatória geral), procedeu-se, em Plenário, à discussão do memorando, apresentado pelo Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos e para os efeitos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC.
Nesta sequência, fixada que foi a orientação do Tribunal, foi o processo objeto de distribuição (artigo 63.º, n.º 2, da LTC).
Cumpre agora, completado o processo de formação da decisão, elaborar acórdão em harmonia com aquela orientação e o que então se estabeleceu.
II - Fundamentação
5 - Os requerentes solicitam ao Tribunal Constitucional a apreciação e a declaração da inconstitucionalidade das normas constantes do n.º 3 do artigo 8.º e do artigo 31.º-A - e, pela sua conexão, do segmento final do n.º 1 do artigo 8.º - da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação que lhes foi dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, que procede à primeira alteração à Lei de Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional, aprovada pela referida Lei 17/2014, de 10 de abril. Isto, com os fundamentos supratranscritos.
É a seguinte a redação das identificadas normas do diploma em causa:
Artigo 8.º
[...]
1 - Os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional são elaborados e aprovados pelo Governo, sem prejuízo das competências dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas.
2 - (Revogado.)
3 - Os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional que respeitem à plataforma continental para além das 200 milhas marítimas são elaborados e aprovados pelo Governo, mediante a emissão de parecer obrigatório e vinculativo das regiões autónomas, salvo nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado.
4 - Os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional definem os procedimentos de codecisão, no âmbito da gestão conjunta ou partilhada, entre a administração central e regional autónoma, quando esteja em causa o regime económico e financeiro associado à utilização privativa dos fundos marinhos.
5 - [...]
«Artigo 31.º-A
Regiões Autónomas
1 - As matérias referentes aos artigos 8.º a 11.º, 13.º a 25.º, 27.º a 29.º e 31.º são desenvolvidas, nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, mediante decreto legislativo regional, sempre que em causa estejam áreas do espaço marítimo nacional sob soberania ou jurisdição nacional adjacentes aos respetivos arquipélagos até às 200 milhas marítimas, mediante a emissão de parecer da administração central, o qual é obrigatório e vinculativo nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado.
2 - O decreto legislativo regional referido no número anterior é desenvolvido com base nos princípios consagrados no artigo 3.º
3 - Os termos em que se define o ordenamento e a gestão das áreas do espaço marítimo nacional sob soberania ou jurisdição nacional adjacentes aos arquipélagos dos Açores e da Madeira comportam:
a) A transferência para as regiões autónomas de competências da administração central quanto ao espaço marítimo sob soberania ou jurisdição nacional adjacente aos respetivos arquipélagos até às 200 milhas marítimas, salvo quando esteja em causa a integridade e soberania do Estado;
b) A participação dos serviços da administração central competente no procedimento prévio dirigido à aprovação dos planos de ordenamento e gestão do espaço marítimo até às 200 milhas marítimas, mediante a emissão de parecer, o qual é obrigatório e vinculativo nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado;
c) A constituição de procedimentos de codecisão, no âmbito da gestão conjunta ou partilhada, entre a administração central e regional autónoma, quando esteja em causa o regime económico e financeiro associado à utilização privativa dos fundos marinhos;
d) A competência exclusiva das regiões autónomas para licenciar, no âmbito da utilização privativa de bens do domínio público marítimo do Estado, designadamente, atividades de extração de inertes, pesca e produção de energias renováveis, salvo quando esteja em causa a integridade e soberania do Estado.»
6 - Não é esta a primeira vez que o Tribunal Constitucional é chamado a pronunciar-se sobre a matéria relativa ao ordenamento e gestão do espaço marítimo nacional, tal como definido na Lei 17/2014, de 10 de abril, Lei de Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional (LBOGEM). Com efeito, no processo em que foi prolatado o Acórdão 136/2016, este Tribunal foi chamado a apreciar a suficiência, do ponto de vista do princípio da autonomia regional, da intervenção das regiões autónomas na elaboração e aprovação dos instrumentos específicos de ordenamento de tal espaço, designadamente os planos de situação e os planos de afetação. No presente processo, e na sequência das alterações introduzidas à LBOGEM pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro - alterações essas que visaram reforçar a intervenção das regiões autónomas na aprovação dos citados planos, distinguindo entre as áreas correspondentes à plataforma continental «para além das 200 milhas marítimas» (artigo 8.º, n.º 3) e as «áreas do espaço marítimo nacional adjacentes» aos arquipélagos dos Açores e da Madeira «até às 200 milhas marítimas» (novo artigo 31.º-A, n.º 1) - os requerentes questionam a compatibilidade dessa intervenção reforçada com as prerrogativas de soberania inerentes ao poder próprio do Estado, o mesmo é dizer com a integridade e soberania do Estado (cf. os artigos 3.º, n.º 1, e 225.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa).
Situando-se a discussão entre aqueles dois polos valorativos - a autonomia regional e a integridade e soberania do Estado -, os quais foram detalhadamente examinados e ponderados com referência aos instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional no citado Acórdão 136/2016, justifica-se que tal aresto, e bem assim a jurisprudência constitucional anterior nele acolhida, com destaque para o Acórdão 315/2014, constitua o ponto de partida e uma referência fundamental relativamente aos núcleos problemáticos a considerar necessariamente e que se encontra subjacente à análise a que se irá proceder:
i) O enquadramento jurídico-constitucional do espaço marítimo nacional;
ii) A integração do mar territorial e da plataforma continental no domínio público estadual, mais exatamente no domínio público marítimo;
iii) A distinção no universo dos poderes de domínio entre poderes primários (conexionados com a conservação e defesa dos bens dominiais), não transferíveis para terceiros, e poderes secundários (conexionados com o aproveitamento económico dos bens dominiais), transferíveis para terceiros;
iv) O quadro dos poderes gestionários da Região Autónoma dos Açores sobre o espaço marítimo nacional adjacente ao arquipélago respetivo (cf. o artigo 8.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei 39/80, de 5 de agosto).
6.1 - Previamente à análise das questões de constitucionalidade colocadas nos presentes autos, afigura-se pertinente mencionar, ainda que de modo breve, o enquadramento normativo em que se inserem as normas sindicadas pelos requerentes.
A LBOGEM vem estabelecer as bases da política de ordenamento e de gestão do espaço e gestão do espaço marítimo nacional, identificando o n.º 1 do seu artigo 2.º, que «o espaço marítimo nacional estende-se desde as linhas de base até ao limite exterior da plataforma continental para além das 200 milhas marítimas», decompondo-se geograficamente nas seguintes zonas marítimas: «a) entre as linhas de base e o limite exterior do mar territorial»; «b) zona económica exclusiva»; «c) plataforma continental, incluindo para além das 200 milhas marítimas». E que as «linhas de base» correspondem, no essencial, à linha de baixa-mar junto da costa.
Todavia, a noção ou os limites de «zona económica exclusiva» e de «plataforma continental», são-nos dadas pela Lei 34/2006, de 28 de julho (artigos 5.º a 9.º), interpretada em termos harmoniosos com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10 de dezembro de 1982 ("CNUDM").
De acordo com a CNUDM, existem zonas marítimas que integram a soberania do Estado Costeiro - tal como o mar territorial - e outras zonas marítimas que não fazem parte da soberania, mas em que os Estados exercem direitos de soberania ou de jurisdição - tais como a zona económica exclusiva (ZEE) e a plataforma continental, mesmo para além das 200 milhas marítimas. Com efeito, a CNUDM regula os direitos e os deveres dos Estados Partes sobre o uso pacífico do mar, a forma como estes definem os termos desses direitos e deveres e como são estabelecidos em sede da legislação interna.
Na ordem jurídica interna portuguesa as zonas marítimas sobre as quais o Estado exerce poderes de soberania ou de jurisdição, são as que constam da Lei 34/2006, de 28 de julho (em articulação com a CNUDM), ou seja:
(i) as águas interiores, as situadas no lado terrestre das linhas de base que marcam o início do mar territorial (artigo 8.º da CNUDM). Sobre elas, o Estado detém um "poder dominial soberano", absoluto e exclusivo, que é um poder coincidente com os que são exercidos sobre o território terrestre, não havendo sequer o direito de passagem inofensiva, nem a passagem em trânsito sem autorização, exceto em circunstâncias muito específicas;
(ii) o mar territorial, que tem como limite exterior a linha cujos pontos distam 12 milhas náuticas do ponto mais próximo das linhas de base (artigo 6.º da Lei 34/2006). Nesta zona, o Estado tem o "domínio soberano", exercido através de consideráveis poderes normativos e administrativos, incluindo poderes de autotutela administrativa, mas com as limitações decorrentes da CNUDM, em especial, o direito de passagem inofensiva (artigos 17.º e 21.º);
(iii) a zona económica exclusiva, que tem como limite exterior a linha cujos pontos distam 200 milhas náuticas do ponto mais próximo das linhas de base (artigo 57.º da CNUDM e artigo 8.º da Lei 34/2006). Aí, o Estado exerce direitos de soberania no que respeita à fruição dos recursos naturais (vivos e não vivos), mas não sobre o próprio espaço (a coluna de água), assim como poderes de jurisdição referentes à colocação de ilhas artificiais, instalações e estruturas, à investigação científica marinha, e à proteção e preservação do meio marinho (artigos 53.º e 73.º da CNUDM);
(iv) a plataforma continental, cujo limite exterior é dado pela linha cujos pontos definem o bordo exterior da margem continental ou pela linha cujos pontos distam 200 milhas náuticas do ponto mais próximo das linhas de base, nos casos em que o bordo exterior da margem continental não atinja essa distância (artigo 76.º da CNUDM e artigo 9.º da Lei 34/2006). Sobre esta zona, o Estado exerce direitos de soberania exclusivos sobre o solo e subsolo e sobre os recursos aí existentes, desde que não prejudiquem os direitos de Estados terceiros que visem apenas o uso do espaço (artigo 77.º da CNUDM).
Ora, Portugal, sendo um dos Estados Partes da CNUDM, sendo um dos Estados Membros da União Europeia (UE) e sendo, ainda, um Estado com dois arquipélagos dotados de autonomia político-administrativa, vê essa sua tarefa de interligação (jurídica) bastante dificultada.
Na verdade, essa necessidade de interligação de todo o espaço marítimo resulta quer da CNUDM, quer da UE, por via da diretiva quadro do ordenamento do espaço marítimo europeu, a Diretiva 2014/89/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de julho de 2014, muito embora esta diretiva não afete os direitos soberanos nem a jurisdição dos Estados Membros sobre as águas marinhas decorrentes do direito internacional, inclusivamente da CNUDM, nem influencie a delineação ou a delimitação das respetivas fronteiras marítimas - cf. artigo 2.º, n.º 4 - «[A] presente diretiva não afeta os direitos soberanos nem a jurisdição dos Estados-Membros sobre as águas marinhas decorrentes do direito internacional aplicável, nomeadamente a CNUDM. Em especial, a aplicação da presente diretiva não influencia a delineação nem a delimitação das fronteiras marítimas pelos Estados-Membros, em conformidade com as disposições aplicáveis da CNUDM.»
Na ordem jurídica interna portuguesa a determinação da "extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado Português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar" é fixada por via da Lei 34/2006, de 28 de julho.
Este diploma legislativo replica os conceitos mais pertinentes nessa matéria constantes da CNUDM, tais como a indicação das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional, sendo estas: as águas interiores, o mar territorial, a zona contígua, a ZEE e a plataforma continental (artigo 2.º). Sendo que a determinação dos respetivos limites (artigo 6.º a 9.º), segue os preceitos da CNUDM.
No direito interno, a LBOGEM e o Decreto-Lei 38/2015, de 12 de março, que desenvolve aquela, são os diplomas que criam normas aplicáveis à utilização de todo o espaço marítimo adjacente ao território continental e aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, incluindo a plataforma continental para além das 200 milhas marítimas, alterando o paradigma nacional e criando os alicerces dos procedimentos aplicáveis à utilização sustentável de todo o espaço marítimo nacional nas suas três componentes: social, económica e ambiental.
De acordo com o artigo 5.º da LBOGEM, a competência para a promoção de políticas ativas de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional cabe ao Governo, sendo que o sistema de ordenamento e gestão do dito espaço compreende, por um lado, instrumentos estratégicos de política de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional (nomeadamente a Estratégia Nacional para o Mar), e por outro lado compreende instrumentos de ordenamento (artigo 6.º do mesmo diploma legal). Estes instrumentos de ordenamento e de gestão vêm referidos no artigo 7.º da lei a que nos reportamos, sendo estes: i) planos de situação de uma ou mais áreas e/ou volumes das zonas do espaço marítimo nacional, com identificação dos sítios de proteção e preservação do meio marinho e da distribuição espacial e temporal dos usos e atividades, quer acuais, quer potenciais; e ii) planos de afetação de áreas e/ou volumes das zonas do espaço marítimo nacional a diferentes usos e atividades.
7 - A problemática referenciada tem naturalmente a ver com a gestão partilhada do mar entre o Estado e a Região Autónoma dos Açores (RAA), razão por que teremos que percorrer alguns preceitos da Constituição da República Portuguesa e do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA).
Ora, as regiões autónomas (dos Açores e da Madeira) têm um regime político administrativo próprio, justificado pelas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e pelas históricas aspirações autonomistas das respetivas populações insulares, sendo certo que essa autonomia político-administrativa não afeta a soberania do Estado e é exercida no quadro da Constituição (cf. o artigo 225.º, n.º 3, da CRP).
De entre os poderes das regiões autónomas, no que para agora interessa, referiremos o poder de "[...] participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos." - cf. artigo 227, n.º 1, alínea s), da CRP.
É por via dos respetivos Estatutos Político-Administrativos que esse regime autonómico é definido, dentro dos parâmetros constitucionais, nomeadamente a autonomia legislativa, que permite às regiões autónomas legislar sobre matérias ali enunciadas e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania.
O EPARAA determina direitos da RAA sobre as zonas marítimas portuguesas. Na verdade, tem aquela o direito de exercer conjuntamente com o Estado poderes de gestão sobre as águas interiores e o mar territorial que pertençam ao território regional e que sejam compatíveis com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado. Determina também que é a RAA a entidade competente para o licenciamento das atividades de extração de inertes, da pesca e da produção de energias renováveis, no âmbito da utilização privativa de bens do domínio público marítimo do Estado. De igual modo o EPARAA determina que os demais poderes reconhecidos ao Estado Português, nos termos da lei e do direito internacional, sobre as zonas marítimas ou de jurisdição nacional adjacentes ao arquipélago dos Açores, são exercidos no quadro de uma gestão partilhada - exceto quando esteja em causa a integridade e soberania do Estado - cf. artigo 8.º do EPARAA.
Note-se que o território regional da RAA abrange as nove ilhas dos arquipélagos, como também as suas águas interiores, o mar territorial e a plataforma continental contíguos ao arquipélago - cf. artigo 2.º do EPARAA. Porém, a titularidade das mesmas (zonas marítimas) é do Estado porquanto fazem parte do domínio público marítimo - cf. artigo 84.º, n.º 1, alínea a), da CRP e artigos 3.º e 4.º da Lei 54/2005, de 15 de novembro.
8 - De harmonia com o disposto no artigo 84.º, n.º 1, alínea a), da CRP, são bens do domínio público as "águas territoriais com os seus leitos e fundos marinhos contíguos". No mesmo sentido, o artigo 3.º da Lei 54/2005 dispõe que integram o domínio público marítimo as águas costeiras, territoriais e interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas, assim como o respetivo leito e margens, e os fundos marinhos contíguos da plataforma continental, abrangendo toda a zona económica exclusiva.
O conceito constitucional de «águas territoriais» abrange as águas marítimas interiores e o mar territorial; e o conceito de «fundos marinhos contíguos» pretende abranger a plataforma continental. De modo que o domínio público marítimo integra as águas territoriais (águas internas e mar territorial) e a plataforma continental, ficando de fora a zona contígua e as águas (coluna de água e superfície) da zona económica exclusiva.
A integração do mar territorial e da plataforma continental no domínio público marítimo fundamenta-se essencialmente na ligação que têm com a soberania do Estado. De facto, além de se tratar de bens cuja existência e estado resultam de fenómenos naturais, qualidade que já impõe a sua dominialidade (domínio público natural), a utilidade que apresentam à coletividade pública está conexionada «de uma forma muito especial com a integridade territorial do Estado, e com a respetiva sobrevivência enquanto tal, senão mesmo com a própria identidade (identificação) nacional» (Ana Raquel Gonçalves Moniz, "O Domínio Público", in O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Almedina, p. 292). São zonas marítimas que pertencem ao domínio público necessário, por serem «bens que não podem pertencer senão ao Estado, e o seu estatuto jurídico não pode ser outro senão o da dominialidade» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, 4.º ed. p. 1002). A conexão íntima do mar territorial e da plataforma continental com as funções de soberania e defesa do Estado e mesmo com a sua identidade sujeitam esses espaços a um regime de domínio público estadual.
9 - Aditado pela revisão constitucional de 1989, o artigo 84.º da Constituição vem dispor que pertencem ao domínio público «as águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos» - cf. n.º 1, alínea a) -, não se dispondo diretamente sobre o domínio público marítimo em toda a sua extensão. A delimitação deste último foi deixada ao critério do legislador ordinário, limitando-se a alínea f) da mesma disposição constitucional a dar guarida à inclusão no domínio público de «outros bens como tal classificados por lei». O n.º 2 deste artigo 84.º esclarece ainda que compete também à lei «definir quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites». Ou seja, a Constituição limitou-se a garantir a existência de um regime jurídico de domínio público, marcado pela exclusão do comércio jurídico-privado de determinados bens, bens estes não inventariados exaustivamente na Lei Fundamental, do mesmo passo que garante ainda a titularidade de bens dominiais por parte das pessoas coletivas de população e território e remete para a lei ordinária «o regime, condições de utilização e limites» do domínio público. Correspondentemente, a alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição inclui, na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, a «definição e regime dos bens do domínio público».
Conforme esclarecem os últimos Autores, o conceito de águas territoriais, a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 84.º da Constituição, refere-se às águas marítimas e abrange o mar territorial, enquanto a menção ao leito das águas territoriais e aos fundos marinhos contíguos às águas territoriais pretende abranger as plataformas continentais - ibidem, p. 228 -, zonas hoje reguladas e descritas, como já se referiu acima, na Lei 34/2006, de 28 de julho, em linha com a CNUDM. Vale isto por dizer que, das três zonas que, nos termos do também já referido artigo 2.º da Lei 17/2014, compõem o espaço marítimo nacional, integram o domínio público o mar territorial e a plataforma continental por força da própria Constituição. Já a outra zona contemplada nesse preceito legal - a zona económica exclusiva - não integra o domínio público, nem nos termos da Constituição, nem nos termos da lei ordinária, sendo o mesmo objeto de meros direitos de fruição e não de verdadeiros direitos sobre o espaço ou o território (como seria próprio da dominialidade), ainda que a Constituição inclua a zona económica exclusiva no artigo 5.º relativo ao território nacional.
Como salientam ainda GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, «compete à lei a determinação do sujeito titular dos diversos tipos de bens do domínio público, embora pareça natural que certos bens não podem deixar de integrar o domínio público do Estado, por serem inerentes ao próprio conceito de soberania (como sucede com o domínio público marítimo e aéreo), não podendo por isso pertencer ao domínio público de entes públicos intraestaduais» - ibidem, p. 1005.
Este tem sido o entendimento da jurisprudência deste Tribunal, que reiteradamente considera o mar circundante das regiões autónomas um bem dominial integrado necessariamente no domínio público marítimo estadual, atenta a incindível conexão com a identidade e a soberania nacionais (Acórdãos n.os 280/90, 330/99, 131/2003, 654/2009, 402/2008, 315/2014 e 136/2016).
Também a doutrina tem excluído do domínio público regional as águas territoriais e os fundos marinhos contíguos da plataforma continental integrados no território regional pelo facto de serem «inerentes ao próprio conceito de soberania» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. p. 1004; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo ii, Coimbra Editora, 2006, p. 92; Rui Medeiros/Tiago Fidalgo de Freitas/Rui Lanceiro, Enquadramento da Reforma do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, 2006, p. 190; Ana Raquel Gonçalves Moniz, "Direito do Domínio Público", in Tratado de Direito Administrativo Especial, vol. v, Almedina, p. 109; e Fernando Alves Correia/Ana Raquel Gonçalves Moniz, Estudo sobre os Regimes Jurídicos das Zonas Costeiras da Região Autónoma dos Açores, Coimbra: CEDOUA, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015, p. 26).
Em conformidade com esta jurisprudência e doutrina, o n.º 2 do artigo 22.º do EPARAA, após a 3.ª revisão, acabou por excetuar do domínio público regional os bens afetos ao domínio público militar, ao domínio público marítimo, ao domínio público aéreo e, salvo quando classificados como património cultural, os bens dominiais afetos a serviços públicos não regionalizados.
Note-se, em todo o caso, e com interesse para a densificação do modelo de repartição de competências previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA, que, tal como lembrado no Acórdão 136/2016 (ponto 7.2.), aquela repartição «tanto pode ser efetuada pelo Governo como pela Assembleia da República, já que não integra, mesmo no que respeita às zonas marítimas que pertencem ao domínio público do Estado, o âmbito da reserva de competência relativa do último órgão»:
«É verdade que, de acordo com o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea v), da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a "definição e regime dos bens do domínio público". Contudo, o artigo 84.º, n.º 2, da lei fundamental dispõe que a lei, além do "regime", define as "condições de utilização e limites" destes bens.
Assim, como este Tribunal reconheceu no Acórdão 402/2008 (superando a posição inicial, mais restritiva, assumida nos Acórdãos n.os 330/99 e 131/2003), estão excluídas do âmbito da reserva relativa de competência as dimensões constantes da parte final do n.º 2 do artigo 84.º - as "condições de utilização e limites". [...]
Ora, a concretização do modelo previsto no n.º 1 [e no n.º 3] do artigo 8.º do EPARAA diz respeito à repartição de poderes gestionários cujo exercício conjunto pelo Estado e pela Região previamente se estabeleceu serem compatíveis com o regime dos bens do domínio público do Estado. Tem a ver, assim, com as "condições de utilização" das zonas marítimas em causa, pelo que essa regulação não pertence ao âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República».
10 - Retomando a análise da Lei 17/2014, onde se inserem as normas alteradas e objeto dos presentes autos, o artigo 5.º da Lei atribui a competência para a promoção de políticas ativas de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional ao Governo, assim como prosseguir as atividades necessárias à aplicação da presente lei e respetiva legislação complementar, sem prejuízo das competências dos governos regionais das regiões autónomas no quadro de uma gestão conjunta ou partilhada.
E o artigo 8.º do EPARAA (Direito da Região sobre as zonas marítimas portuguesas) vem referir que os poderes que não sejam atribuídos em exclusivo ao Estado ou à Região são exercidos "conjuntamente" (n.º 1) ou "no quadro de uma gestão partilhada" (n.º 3), pelas duas entidades. Sendo esta a norma que atribui a medida de afetação do domínio público marítimo à Região Autónoma dos Açores.
Tendo em conta o já exposto, e para efeitos de análise da participação das regiões autónomas na definição de políticas respeitantes ao mar territorial, à ZEE e à plataforma continental, temos que concatenar este poder regional com aquelas que são as competências dos órgãos de soberania, nomeadamente da Assembleia da República e do Governo.
A competência legislativa para densificar o modelo de gestão contido nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA pertence aos órgãos de soberania e não à Região Autónoma dos Açores, ainda que o n.º 1 do artigo 53.º do EPARAA disponha que «compete à Assembleia Legislativa legislar em matéria de pescas, mar e recursos marinhos», especificando a alínea a) do n.º 2 que nessa matéria estão incluídas as «condições de acesso às águas interiores e mar territorial pertencentes ao território da Região», e que, por sua vez, o artigo 57.º disponha que «compete à Assembleia Legislativa legislar em matérias de ambiente e ordenamento do território».
É que, além destas disposições deverem ser articuladas com outras normas do mesmo diploma e, neste caso, em especial, com o regime que consta do artigo 8.º, a inclusão da matéria a regular no respetivo estatuto político-administrativo é apenas um dos três parâmetros a partir dos quais se afere a competência legislativa regional. De acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, é ainda necessário que as matérias em causa "não estejam reservadas aos órgãos de soberania" e que não extravasem do "âmbito regional". Como vimos, a concretização do artigo 8.º do EPARAA envolve a repartição de competências entre órgãos da República e da Região, e, consequentemente, produz efeitos em relação a pessoas coletivas públicas - neste caso, o próprio Estado - que se encontram fora da jurisdição natural da Região Autónoma dos Açores. Por isso, a regulação dos poderes de gestão do domínio público marítimo estadual é matéria que extravasa do "âmbito regional", e assim, deverá ser elaborada pelo legislador da República.
11 - No que respeita ao artigo 8.º da LBOGEM, isoladamente considerado, as inovações introduzidas pela Lei 1/2021 cifram-se, no n.º 1, na (re)afirmação do princípio da competência em matéria de ordenamento do espaço marítimo nacional pelo Estado, sem prejuízo das competências (não definidas) dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas; no n.º 3, os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional - ou seja, e de acordo com o artigo 7.º, n.º 1, da LBOGEM, os planos de situação e os planos de afetação - que respeitem à plataforma continental para além das 200 milhas marítimas são elaborados e aprovados pelo Governo, mediante a emissão de parecer obrigatório e vinculativo das regiões autónomas, salvo nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado.
De acordo com os termos legais, os planos de situação identificam os sítios de proteção e de preservação da plataforma continental para além das 200 milhas marítimas e procedem à distribuição espacial e temporal dos usos e das atividades atuais e potenciais; os planos de afetação, tal como indiciado pela respetiva denominação, afetam áreas da plataforma continental para além das 200 milhas marítimas a diferentes usos e atividades. Por isso mesmo, tais planos devem ser compatíveis ou compatibilizados com os planos de situação, ficando logo que aprovados integrados nestes.
Como salientado no Acórdão 136/2016 (ponto 9.2.), a distribuição de usos e atividades, atuais ou potenciais, pelas diversas áreas e volumes do espaço marítimo nacional - e, portanto, também pela plataforma continental para além das 200 milhas marítimas - exige a prévia identificação dos condicionamentos a essa distribuição: «[s]ob o ponto de vista do ordenamento do espaço marítimo nacional, os planos procedem à inventariação da realidade existente, descrevendo o espaço tendo em conta os diversos limites que devem ser observados, como, por exemplo, os ambientais ou de defesa nacional e segurança interna, e depois, em função desses limites, efetuam a distribuição espacial de usos e atividades». Esta distribuição implica uma atuação conformadora das utilidades públicas prosseguidas pelo bem - a porção do espaço marítimo - em causa. No fundo, o planeamento corresponde aqui a uma atividade ordenadora:
«[O]s planos procedem a um "zonamento" ou "espacialização" do espaço marítimo nacional, delimitando áreas e volumes, localizando e organizando usos e atividades, definindo parâmetros a que devem obedecer esses usos e atividades, criando uma situação de ordenamento [...]. Assim, uma solução de ordenamento que demarca zonas e subzonas, a que correspondem regimes de uso diferenciados e, portanto, diferentes opções quanto à localização de usos e atividades, introduz compressões e condicionamentos ao uso comum, natural ou normal, do espaço marítimo. [...]
Ora, o espaço marítimo é um bem natural que serve de suporte físico a diversos usos e atividades e, por isso, um bem suscetível de desempenhar funções que exigem a intervenção de várias entidades públicas. Mas, dada a natureza do bem, a afetação a múltiplas funções públicas não é suficiente para justificar a sua pertinência ao Estado. Como já se referiu, a dominialização do espaço marítimo está associada à integridade e identidade do Estado, enquanto lugar do exercício da soberania estadual. Para proteção desse "domínio eminente", tendo em vista a tutela dos diversos modos de utilização, o Estado tem que estar investido de poderes públicos de autoridade que assegurem o cumprimento do fim público que determinou a dominialização, designadamente poderes de uso, controlo e defesa. De facto, tratando-se de bens insuscetíveis de apropriação, como refere Marcelo Caetano, «o domínio, aí, consiste em mera reserva dos direitos de soberania, de fruição e de disposição pelo Estado, o qual tem o poder de regular e policiar os usos dessas águas. É nesse sentido que a lei as integra no domínio público» (Manual de Direito Administrativo, vol. ii, 9.ª ed., p. 876).
O domínio do espaço marítimo nacional manifesta-se assim através de poderes públicos que denotam supremacia e supraordenação do Estado e cujo exercício depende exclusivamente dele. Um dos poderes de referência dessa autoridade é o poder regulamentar, através do qual o titular do domínio marítimo, no desempenho da função administrativa de conservação, proteção e utilização, cria regras jurídicas de conduta que provocam a produção de efeitos jurídicos com repercussão imediata na esfera jurídica de terceiros. Os planos de ordenamento do espaço marinho, para além das regras de distribuição espacial de usos e atividades, contêm restrições de utilidade pública e condicionamentos que vinculam as entidades públicas e os particulares nas concretas utilizações que venham a ser permitidas ou autorizadas. De modo que o exercício do poder de planear e de ordenar é uma faculdade regulamentária que conduz à criação de regras de eficácia plurissubjetiva sobre o uso, gestão e tutela do espaço marítimo.
Acontece que as disposições sobre o zonamento, o tipo ou modalidades de usos e atividades e os próprios mapas indicativos da localização das diferentes zonas, projetam os seus efeitos no estatuto dominial, na medida em que obrigam o titular do domínio a adequar os poderes de tutela, vigilância e polícia em conformidade com o ordenamento estabelecido nos planos. Para o conjunto de entidades que exercem poderes de autoridade marítima, no quadro do sistema de autoridade marítima - Decreto-Lei 43/2002, de 2 de março, com as alterações do Decreto-Lei 263/2009, de 28 de setembro - não é indiferente o modo como está ordenado o espaço onde exercem a fiscalização e a polícia de conservação e de utilização. É que a alocação de recursos humanos e materiais, que geralmente são escassos, exige a necessária compatibilidade com a localização dos usos e atividades identificados, distribuídos e afetados pelos planos de ordenamento marítimo. Daí que, pelo menos neste aspeto, o poder de ordenar seja um poder funcionalizado à realização dos fins prosseguidos com a dominialização: a tutela e proteção do bem dominial. Mas também noutras matérias, como o das reservas dominais, que só o titular do domínio pode definir, podem ser postas em causa pelas diretivas fixados nos planos de ordenamento.
Afigura-se-nos, pois, que é bastante questionável a possibilidade do Estado abdicar do poder de ordenar o espaço marinho, transferindo o seu exercício para as regiões autónomas, ainda que parcialmente. Nessa hipótese, ficaria despojado de um instrumento fundamental, porventura o mais essencial, à regulação e proteção do domínio público marítimo» (v. Acórdão 136/2016, ponto 9.3.).
A gestão partilhada a que se refere o artigo 8.º, n.os 1 e 3, do EPARAA implica a definição prévia do que pode e não pode ser partilhado, assim como dos termos concretos da partilha, tendo, porém, como limite a transferência, visto que no caso de «uma autêntica transferência de poderes, não para a prática de atos, mas para a sua regulação em abstrato [...], a Região ganharia uma competência para lá das exigências do princípio da autonomia» (Acórdão 402/2008)».
11.1 - Ora, a norma do n.º 3 do artigo 8.º da LBOGEM, na redação dada pela Lei 1/2021, compromete e põe em causa o referido poder de ordenar o espaço marítimo que, por inerência, pertence ao titular do domínio público marítimo.
Com efeito, o condicionamento introduzido por via da vinculatividade do parecer obrigatório a emitir pelas regiões autónomas retira a exclusividade da competência para exercer os direitos dominiais resultantes da soberania e jurisdição que tem sobre aquelas zonas marítimas, pondo em causa o estatuto jurídico de dominialidade. O parecer vinculativo corresponde a uma decisão prévia ou pré-decisão (Vorbescheid): trata-se de um ato unilateral que define e declara a prevalência de certos interesses ou valores, imputando a lei força vinculativa a essa declaração em relação à subsequente decisão final, a qual já reveste caráter constitutivo (cf., por todos, Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pp. 308-310). Deste modo, o acervo de poderes/faculdades a exercer sobre um bem público, que são outorgados ao Estado para proteção dos fins que justificam a qualificação desse bem como pertencente ao domínio público estadual, é neutralizado em vista da subordinação a fins de natureza regional.
Mas é o Estado que exerce poderes próprios e exclusivos de soberania sobre a zona da plataforma continental ora em análise, não sendo o exercício desses poderes transferível para outras entidades, sob pena de comprometer a própria ideia de dominialidade (artigo 84.º, n.º 2, da CRP) e a integridade e soberania do Estado (artigo 225.º, n.º 3, da CRP) - cf. Ac. 136/2016:
«[N]o que respeita ao domínio público marítimo, pertencendo ele necessariamente ao Estado, então, a sua titularidade propriamente dita e os poderes que efetivamente a justificam, não poderão ser transmitidos a outras entidades. Atribuir em exclusivo ao Estado a titularidade dos bens em causa, por poderosas razões que se prendem com a soberania, identidade e unidade do Estado, e depois admitir a possibilidade de tal atribuição, através da transmissão a outras entidades, ou de partilha com outras entidades, dos poderes essenciais associados ao domínio, seria uma opção constitucional destituída de sentido, pois esvaziaria de conteúdo essa posição dominial. Aceites as premissas, esta conclusão é inelutável, constituindo, portanto, jurisprudência uniforme e constante deste Tribunal (Acórdãos n.os 330/99, 131/2003, 402/2008 e 315/2014)».
12 - Os requerentes vieram ainda pedir a declaração da inconstitucionalidade do artigo 31.º-A, aditado por esta Lei 1/2021, de 11 de janeiro, e pela sua conexão do segmento final do n.º 1 do artigo 8.º da LBOGEM,
Vejamos, de novo, a redação do n.º 1 deste artigo 31.º-A: «As matérias referentes aos artigos 8.º a 11.º, 13.º a 25.º, 27.º a 29.º e 31.º são desenvolvidas, nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, mediante decreto legislativo regional, sempre que em causa estejam áreas do espaço marítimo nacional sob soberania ou jurisdição nacional adjacentes aos respetivos arquipélagos até às 200 milhas marítimas, mediante a emissão de parecer da administração central, o qual é obrigatório e vinculativo nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado».
O n.º 2 do referido artigo 31.º-A limita-se a prescrever, inocuamente, que o decreto legislativo regional em causa deve ser desenvolvido «com base nos princípios consagrados no artigo 3.º».
Já o n.º 3 do mesmo preceito legal estabelece os parâmetros a que, complementarmente, há de obedecer o desenvolvimento desta lei de bases mediante decreto legislativo regional.
Os poderes legislativos das regiões autónomas encontram-se previstos nas primeiras três alíneas do n.º 1 do artigo 227.º da CRP. Por via da previsão da alínea a) da referida norma, podem estas regiões legislar no âmbito regional, em matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania. Podem também legislar, nos termos da alínea b), em matérias de reserva relativa da AR, mediante autorização desta, mas com exceções que se reportam: às alíneas a) a c), à primeira parte da alínea d), às alíneas f) e i), à segunda parte da alínea m) e às alíneas o), p), q), s), t), v), x) e aa) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP. Nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP, podem as regiões desenvolver, para o âmbito regional, os princípios ou as bases gerais dos regimes jurídicos contidos em lei que a eles se circunscrevam. Paralelamente, não se tratando de poder legislativo propriamente dito, têm as regiões autónomas direito a participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos, nos termos do n.º 1, alínea s), daquele artigo.
In casu está em causa a competência legislativa regional de desenvolvimento de leis de bases (cf. os artigos 112.º, n.º 4, e 227.º, n.º 1, alínea c), ambos da CRP). Com efeito, nos termos da disposição legal aditada, as regiões autónomas ficam habilitadas a desenvolver, mediante decreto legislativo regional, diversas matérias da Lei 17/2014, incluindo a própria elaboração e aprovação dos instrumentos de ordenamento a que alude o artigo 8.º Resta saber se as regiões autónomas podem legislar neste domínio, ainda que no uso da competência geral para o desenvolvimento no âmbito regional de bases gerais dos regimes jurídicos contidos em lei que a eles se circunscrevem.
O n.º 2 do artigo 84.º comete à lei a definição dos bens que integram o domínio público do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites. No que ao regime dos bens do domínio público diz respeito, a competência legislativa é reservada, nos termos da alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, à Assembleia da República. Como a jurisprudência constitucional há muito vem salientando, o alcance da reserva de lei parlamentar compreende três níveis: um nível mais exigente, em que toda a disciplina legislativa da matéria é reservada à Assembleia da República; um nível menos exigente, em que a reserva de competência legislativa daquele órgão se limita ao regime geral; e um nível mínimo, em que a competência reservada cinge-se às bases gerais ou bases do regime da matéria (v., entre muitos outros, os Acórdãos n.os 3/89, 285/92, 793/2013, 538/2015, 157/2018 e 474/2021). No caso da alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º, trata-se de uma reserva total, ou seja, de uma matéria em que a Assembleia da República não se pode limitar a definir as bases gerais do regime, competindo-lhe fixar todo o conteúdo primário do mesmo. Ora, ao reenviar para decreto legislativo regional o desenvolvimento de vários dos seus artigos, sinalizando que estes contêm somente as bases gerais de diferentes aspetos do regime do domínio público marítimo, o artigo 31.º-A da Lei 17/2014 viola a proibição constitucional de as regiões autónomas legislarem sobre matérias reservadas aos órgãos de soberania. De resto, no caso da alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º, a reserva de lei é absoluta para as regiões autónomas, uma vez que a alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º exclui expressamente a possibilidade de estas serem autorizadas pela Assembleia da República a legislar neste domínio.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional:
a) Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, por violação do disposto nos artigos 84.º, n.º 2, e 225.º, n.º 3, ambos da Constituição;
b) Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas no artigo 31.º-A da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, por violação do disposto nos artigos 84.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alínea v), e 227.º, n.º 1, alínea a), todos da Constituição;
c) Não declara a inconstitucionalidade do segmento final do n.º 1 do artigo 8.º da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, inexistindo uma relação incindível entre as normas declaradas inconstitucionais e esse segmento.
A relatora atesta a conformidade do voto do Cons. Teles Pereira com o Acórdão, que não assina por não estar presente. Atesta ainda a conformidade do voto do Cons. António Ramos com o Acórdão, que junta declaração de voto e participou por videoconferência. Atesta a conformidade do Cons. Lino Ribeiro de acordo com o seu voto de vencido e participou por videoconferência.
Lisboa, 13 de julho de 2022. - Assunção Raimundo (com declaração de voto) - Joana Fernandes Costa - José João Abrantes (com declaração de voto) - Maria Benedita Urbano - Pedro Machete (com declaração de voto) - Gonçalo Almeida Ribeiro [vencido quanto à alínea a), nos termos da declaração conjunta com os Senhores Conselheiros Afonso Patrão e Mariana Canotilho] - Afonso Patrão [vencido quanto à alínea a), nos termos da declaração de voto conjunta com os Senhores Conselheiros Mariana Canotilho e Gonçalo Almeida Ribeiro] - José Eduardo Figueiredo Dias [vencido quanto à alínea a), conforme declaração de voto junta; em relação à alínea b), subscreve o ponto 2. da declaração de voto dos Conselheiros Gonçalo de Almeida Ribeiro, Afonso Patrão e Mariana Canotilho] - Mariana Canotilho [vencida quanto à alínea a), nos termos da declaração de voto conjunta com os Senhores Conselheiros Gonçalo Almeida Ribeiro e Afonso Patrão] - João Pedro Caupers (conforme declaração em anexo, vencido).
Declaração de voto
Ao juízo de inconstitucionalidade efetuado na alínea b) do dispositivo e ao apelo que aí se faz aos parâmetros dos artigos 165.º, n.º 1, alínea v), e 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (CRP), sustentado no Ponto 12, in fine, do acórdão, devem antepor-se as seguintes considerações:
O citado artigo 31.º-A da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, vem atribuir uma competência legislativa às regiões autónomas abrangendo tal competência, aspetos (matérias) relacionados com a integridade e soberania do Estado, reservando a este apenas um parecer obrigatório e vinculativo no processo legislativo tendente à aprovação do respetivo decreto legislativo regional. Ora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP, podem as regiões desenvolver, para o âmbito regional, os princípios ou as bases gerais dos regimes jurídicos contidos em lei que a eles se circunscrevam. Paralelamente, não se tratando de poder legislativo propriamente dito, têm as regiões autónomas direito a participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos, nos termos do n.º 1, alínea s), daquele artigo. Mas, como ficou explanado nos Pontos 9 e 10, é o Estado que exerce os poderes próprios e exclusivos de soberania sobre a zona da plataforma continental ora em análise, não sendo o exercício desses poderes transferível para outras entidades, sob pena de comprometer a própria ideia de dominialidade (artigo 84.º, n.º 2, da CRP) e a integridade e soberania do Estado (artigo 225.º, n.º 3, da CRP).
Não faz qualquer sentido prever um parecer obrigatório e vinculativo do Estado sobre o exercício de um poder primário integrante do estatuto da dominialidade que o Estado não pode, simplesmente, transferir ou alienar, seja no plano legislativo, seja no plano administrativo.
Tendo em conta o referido nos Pontos 11 e 11.1 do acórdão, a compatibilidade do n.º 1 do artigo 31.º-A com a Constituição tem, mais uma vez, de passar pela articulação entre a autonomia legislativa regional, o conceito jusconstitucional de domínio público estadual e a integridade e soberania do Estado. - Assunção Raimundo.
Declaração de voto
Embora acompanhando o juízo de inconstitucionalidade das alíneas a) e b) da decisão, divirjo da mesma decisão no que respeita à respetiva fundamentação, que fez vencimento, pelas razões que, seguidamente e de forma sintética, serão explanadas.
Em jeito de nota prévia, cumpre sublinhar que a nossa leitura das normas constitucionais e legais que são mobilizadas para a apreciação da inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º se enquadra naquilo que cremos ser a vontade do legislador (constituinte) de revisão de ir aprofundando gradualmente a autonomia jurídico-política das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, propósito indesmentivelmente manifestado e concretizado, em particular, na revisão constitucional de 2004 e, com particular relevo, no que se refere ao poder legislativo daquelas.
Ainda em jeito de nota prévia, cabe observar que na elaboração desta nossa declaração de voto seguimos muito de perto a opinião e as posições da Ana Raquel Moniz manifestadas no Parecer que elaborou para a Região Autónoma dos Açores (RAA) e que consta da obra Gestão partilhada dos espaços marítimos. Papel das Regiões Autónomas, Coimbra, 2018.
Quanto à alínea a) da decisão, em que o TC declarou, por maioria, a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014, de 10 de abril (com a redação que lhe foi dada pela Lei 1/2021, de 21 de janeiro), essa inconstitucionalidade, segundo é nosso entendimento, não tem que ver com a transferência, pela via legislativa, de poderes relacionados com a dominialidade para entidades que não são as titulares do domínio sobre a coisa em questão per se, antes tem que ver com a circunstância de estar em causa a atribuição à RAA de um verdadeiro poder decisório (por via da emissão de um parecer obrigatório vinculativo) em matéria de regulamentação de instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional que respeitam à plataforma continental para além das 200 MM.
Parece-nos claro que o espaço marítimo em causa integra o domínio público do Estado (o espaço marítimo e o espaço aéreo são espaços estratégicos de interesse nacional). É verdade que o artigo 2.º do Estatuto Político-Administrativa da Região Autónoma dos Açores (EPARAA) refere que fazem parte do território regional as ilhas e ilhéus, as águas interiores, o mar territorial e a plataforma continental contíguos ao arquipélago. Isso não significa, contudo, que as mesmas façam parte do domínio público regional, havendo, portanto, bens do domínio público do Estado localizados na RAA. Ou seja, fazer parte do território regional não implica fazer parte do domínio público regional. É, aliás, de notar que, com a terceira revisão do EPARAA, operada pela Lei 2/2009, de 12 de janeiro, foi alterado o preceito que dispunha sobre o domínio público regional, passando o seu, agora, artigo 22.º a excecionar expressamente do domínio público da RAA o domínio público marítimo. A definição do território regional é importante, mas tão somente para efeitos de delimitação da área territorial sujeita à influência dos interesses próprios e específicos desta região autónoma - não obstante ter desaparecido, nomeadamente do artigo 227.º da CRP, a noção de "matérias de interesse específico para as regiões".
Ainda em matéria de domínio público, entendemos que é possível defender a cisão entre titularidade e gestão, de tal modo que o titular do domínio público pode transferir para outras entidades públicas (e mesmo para entidades privadas) a gestão de áreas ou parcelas desse domínio público. A transferibilidade da gestão depende, fundamentalmente, de duas coisas.
Desde logo, de se tratar de transferência de poderes dominiais secundários - devendo os poderes dominiais distinguir-se consoante digam respeito a aspetos básicos e centrais do estatuto da dominialidade (os primários) ou, ao invés, digam respeito a aspetos não essenciais, mais de tipo regulamentar (os secundários). Caberão dentro da figura dos poderes dominiais secundários os poderes de gestão dominial que incluem o ordenamento e planeamento (exceto se e na medida em que a aprovação dos planos implique a delimitação do domínio público marítimo), a atribuição de usos privativos e a defesa - sendo certo que nem todo o conteúdo dos planos tem que ver com o domínio público marítimo (pense-se nos recursos geológicos).
Ademais, a cisão entre titularidade e gestão do domínio público deverá justificar-se com base em valores e bens tutelados pela Constituição, devendo resultar da ponderação e harmonização entre distintos bens, valores e/ou direitos constitucionais.
Acresce a isto que a transferibilidade para as Regiões Autónomas de poderes gestionários relacionados com o espaço marítimo condiz bem com uma visão mais atual do mar, que não se preocupa apenas com a sua proteção, mas, de igual forma, com a sua preservação e rentabilização.
E é justamente isso que está aqui em questão. Com efeito, da leitura conjugada dos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA decorre a ideia de que foi operada, com a salvaguarda da integridade e soberania do Estado, uma transferência parcial de poderes de gestão do Estado central para a RAA - já no seu n.º 2, com a mesma salvaguarda, é operada uma transferência total da competência do Estado central para a RAA no que respeita à "utilização privativa de bens do domínio público marítimo do Estado, das atividades de extração de inertes, da pesca e de produção de energias renováveis". Por sua vez, a norma sindicada - o n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014 (com a redação que lhe foi dada pela Lei 1/2021), que estabelece que "Os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional que respeitem à plataforma continental para além das 200 milhas marítimas são elaborados e aprovados pelo Governo, mediante a emissão de parecer obrigatório e vinculativo das regiões autónomas, salvo nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado" - veio dar concretização àquela norma de fonte estatutária. O n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014, pelo seu teor, materializa a ideia de delegação parcial de poderes presente nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA. Conforme se constata, estamos perante dois preceitos constantes de leis da AR, o primeiro de uma lei estatutária (artigo 226.º da CRP) e o segundo uma lei ordinária. Esta constatação remete-nos para uma outra questão, que é a de saber que órgão ou órgãos podem estabelecer a disciplina jurídica dos bens do domínio público.
No que respeita às competências normativas em matéria de domínio público, regem fundamentalmente, no plano constitucional, o n.º 2 do artigo 84.º e a alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP. No primeiro pode ler-se que "A lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites". O segundo dispõe no sentido de que faz parte da reserva relativa da AR a "Definição e regime dos bens do domínio público". Tem-se discutido na doutrina, e é questão também presente na jurisprudência deste Tribunal, qual a melhor leitura da alínea v) do n.º 1 do artigo 165.º e qual a melhor maneira de a conjugar com o disposto no n.º 2 do artigo 84.º Há quem entenda que a matéria do domínio público faz parte da reserva relativa da AR na sua integralidade, pelo que cabe àquela ou ao Governo da República, mediante autorização da primeira, legislar na matéria em apreço, e legislar em termos de densificação total. Há quem, pelo contrário, entenda que apenas os aspetos essenciais da dominialidade - como a identificação dos bens que integram o domínio público, a sua inserção no domínio público estadual, regional ou municipal, a aquisição e modificação dos bens do domínio público, a definição dos princípios que devem inspirar a sua gestão - devem ser disciplinados integralmente pela AR ou pelo Governo, mediante prévia autorização daquela. Cremos ser de adotar esta segunda posição.
Conjugando as duas questões acima tratadas, podemos concluir que não estão a AR ou o Governo, mediante autorização da primeira, impedidos de transferir para as Regiões Autónomas poderes dominiais secundários, como o poder de gestão e, mais concretamente, poderes relacionados com os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo - exceto, como vimos, se e na medida em que o exercício do poder de gestão interferir com aqueles aspetos essenciais da dominialidade. E, como se disse, foi o que in casu sucedeu. Não obstante, com o n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014 estabeleceu-se uma articulação de poderes gestionários entre o Estado central e a RAA no que respeita à plataforma continental além das 200 MM. Vale isto por dizer que estamos a falar de uma área de adjacência indiferenciada, não se tratando, certamente, de área do mar adjacente ou contígua ao arquipélago dos Açores, antes devendo ser considerada de âmbito nacional e associada aos interesses de todos os portugueses, representados estes pelo Estado central. Trata-se, portanto, de uma situação em que nenhum bem ou valor constitucional, designadamente a autonomia regional (cf., entre outros, artigo 6.º da CRP), justifica a cisão entre titularidade e gestão do domínio público, a qual, como aflorado supra, deve ser excecional. Trata-se, mais especificamente, de uma situação em que a integridade e a soberania do Estado são postas em causa sem que exista uma qualquer justificação constitucional para o efeito. E é este, segundo cremos, o fundamento da inconstitucionalidade da norma impugnada.
Sobre a questão da ilegalidade reforçada em que incorre, igualmente, a norma sindicada (por violação do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA, que claramente utilizam a ideia de adjacência ou contiguidade) não se cuidará, haja em vista que a mesma é consumida pela inconstitucionalidade.
No que concerne à alínea b) da decisão, a qual, conforme antecipado, acompanhamos, exceto quanto à sua fundamentação, remetemos para a declaração de voto conjunta dos Senhores Conselheiros Gonçalo Almeida Ribeiro, Afonso Patrão e Mariana Canotilho. - Maria Benedita Urbano.
Declaração de voto
1 - Vencidos quanto à declaração de inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro. Ao contrário do que considerou a maioria, julgamos que a inconstitucionalidade da norma fiscalizada decorre da violação do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 225.º da Constituição, por implicar a atuação das regiões autónomas em domínios que, sendo estranhos às «suas características geográficas, económicas, sociais e culturais», não reclamam «a promoção e defesa dos interesses regionais».
1.1 - A posição que fez maioria assenta na convicção de que o Estado exerce sobre a plataforma continental poderes de soberania (ponto 8.), daí se inferindo que esta não pode, por natureza, integrar o domínio público regional (ponto 9.), e bem assim que a atribuição às regiões autónomas de poderes na ordenação daquela afeta a integridade da soberania do Estado (pontos 11. e 11.1.).
Divergimos desta linha de raciocínio.
Se é certo que a plataforma continental se encontra necessariamente incluída no domínio público [alínea a) do n.º 1 do artigo 84.º da Constituição], essa imposição não decorre do eventual exercício de poderes soberanos, mas do fito de impedir a exploração desregrada dos recursos geológicos do mar e do propósito de todos poderem beneficiar desses recursos sem dependência da vontade do proprietário do solo (como sucederia num modelo de tipo fundiário).
Porém, nada impediria que o legislador democrático, sob reserva de lei formal da Assembleia da República, incluísse a plataforma continental adjacente aos arquipélagos no domínio público regional - à semelhança, de resto, do que sucede com o domínio público geológico terrestre [n.º 2 do artigo 20.º do EPARAA; alínea c) do n.º 1 do artigo 84.º da Constituição], onde o Estado exerce, aliás, poderes de soberania.
Ora, se a Constituição não impede o legislador de alterar o titular dominial, tampouco - e por maioria de razão - veda a participação das regiões autónomas na elaboração dos planos de situação e nos planos de ordenamento de parcelas do domínio público estadual. Sobretudo atendendo à circunstância de a norma fiscalizada expressamente excluir a intervenção das regiões autónomas «nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado» (parte final do n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro).
1.2 - A norma fiscalizada merece censura constitucional por outra razão. Ao prever um parecer obrigatório e vinculativo das regiões autónomas quanto a instrumentos de gestão do espaço marítimo que respeitem à plataforma continental para lá das 200 milhas marítimas, o legislador atribui às regiões autónomas poderes sobre planos de ordenamento em áreas distantes da sua geografia. Nos termos da norma fiscalizada, uma das regiões autónomas emitirá parecer obrigatório e vinculativo quanto a instrumentos de ordenamento do espaço marítimo relativos a áreas situadas a mais de 200 milhas contadas apenas das linhas de base da outra região autónoma ou do território continental. Assim, as regiões exercem competências que não se prendem com as suas «suas características geográficas, económicas, sociais e culturais» e que extravasam a promoção e defesa dos interesses regionais (n.os 1 e 2 do artigo 225.º da Constituição), contrariando o fundamento, as finalidades e os limites da autonomia regional.
2 - Acompanhamos genericamente a decisão e os fundamentos da declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 31.º-A da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro, sem deixarmos de notar que esta disposição se pode cindir em tantas normas quanto as remissões para os preceitos cujo desenvolvimento autoriza e que é duvidoso que, em todos os casos, se trate verdadeiramente de bases gerais de um regime jurídico cuja definição é reenviada para o legislador regional, em vez de regimes cujo conteúdo primário se encontra definido na lei, mas que carecem de regulamentação para a sua plena exequibilidade ou boa execução.
Cabe notar, a este respeito, que é competência exclusiva das Assembleias Legislativas das regiões autónomas regulamentar as leis emanadas dos órgãos de soberania [como decorre da conjugação da alínea d) do n.º 1 do artigo 227.º com o n.º 1 do artigo 232.º da Constituição], pelo que do mero facto de a norma fiscalizada prever o «desenvolvimento» de certos aspetos da lei por decreto legislativo regional não se pode inferir conclusivamente que se trata do exercício de um poder legislativo de desenvolvimento das bases gerais de um regime jurídico, em vez de um poder administrativo de regulamentação de regimes jurídicos inteiramente contidos na lei regulamentada - poder este que, como é evidente, em nada contende com a reserva de lei. É indispensável, por isso, que se proceda a um exame casuístico, com vista a determinar se o preceito ou sector do diploma a «desenvolver» pelo legislador regional contém apenas uma base ou todo um regime.
Julgamos, todavia, que a norma fiscalizada transgride também o disposto no n.º 5 do artigo 112.º da Constituição, que não admite ao legislador ordinário a criação de novas categorias de atos legislativos. Com efeito, ao prever um decreto legislativo regional reforçado pelo procedimento - que depende de parecer obrigatório e vinculativo da administração central -, o legislador criou um novo tipo de ato legislativo, sem o menor respaldo constitucional. Este fundamento implica, como é bom de ver, a inconstitucionalidade de toda a norma fiscalizada, pelo que se mostra mais seguro do que aquele em que exclusivamente se apoia o juízo da maioria. - Gonçalo Almeida Ribeiro, Afonso Patrão e Mariana Canotilho.
Declaração de voto
Votei vencido a alínea a) da decisão, uma vez que não subscrevo o juízo de inconstitucionalidade nela formulado, por entender que as normas constitucionais convocadas não são violadas pelo n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014, de 10 de abril, na redação dada pela Lei 1/2021, de 11 de janeiro.
Em primeiro lugar, não há violação do disposto nos artigos 84.º, n.º 2, e 225.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), uma vez que a (extensão da) plataforma continental em Portugal toca simultaneamente as zonas económicas exclusivas de Portugal continental e das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira - pelo que constitui uma zona geográfica unitária, o que permite explicar o regime de coordenação entre o Estado e as Regiões Autónomas (interessando ao caso, naturalmente, apelas a Região Autónoma dos Açores).
Ora, se é indisputada a circunstância de a plataforma continental integrar o domínio público do Estado por força da própria Constituição - constituindo, assim, um domínio público necessário - o mesmo não se verifica com a zona económica exclusiva: havendo uma sobreposição entre a zona económica exclusiva da Região Autónoma dos Açores e a plataforma continental, o regime de coordenação plasmado na lei sob o escrutínio do Tribunal parece justificar-se.
Seguindo a argumentação vertida no Acórdão 315/2014 deste Tribunal, revela-se igualmente pertinente convocar a separação entre titularidade e exercício dos poderes caraterísticos da dominialidade para justificar o meu juízo: é verdade que a transferência de poderes públicos primários (relacionados com a titularidade, a soberania e a integridade do Estado) para a Região Autónoma em questão seria inconstitucional. Todavia, o mesmo não se passa com poderes públicos secundários (nomeadamente poderes de gestão desse domínio), desde que não ponham em causa a integridade territorial, o que também não parece acontecer em face da norma sindicada, a qual ressalva expressamente, no seu segmento final, a integridade e soberania do Estado. Como foi salientado naquele aresto, a titularidade do domínio não engloba necessariamente todos os poderes de gestão dos bens dominiais, marcando a clara diferença entre titularidade e exercício dos poderes caraterísticos da dominialidade.
Ao contrário do afirmado na fundamentação do Acórdão, tenho para mim (na linha da jurisprudência constante do Acórdão 136/2016) que o planeamento se insere no âmbito da função administrativa: os instrumentos de planeamento têm tipicamente natureza regulamentar, isto é, dizem respeito à função administrativa - e, sendo a função administrativa uma função secundária ou de segundo grau, pela sua subordinação à lei, o que é reforçado pela natureza infra legal dos regulamentos, entendo não haver violação da reserva de competência legislativa a favor da República, mais uma vez (também) porque se ressalvam as matérias relacionados com a integridade do Estado e o exercício de poderes de soberania.
Por último, e numa reflexão de cariz mais político, entendo que a Assembleia da República procurou, na revisão das normas ora sob sindicância - isto é, no âmbito dos poderes de gestão da parte da plataforma continental para lá das 200 milhas marítimas - reforçar os poderes das regiões autónomas na articulação entre as suas atribuições e as da República. E a introdução do expediente escolhido (o parecer obrigatório vinculativo das regiões) parece-me adequado e respeitador das normas da CRP aplicáveis no seio de um equilíbrio que não deixa de ser sensível. Com as garantias de que a titularidade do domínio público marítimo pertence e continua a pertencer ao Estado e de que as «matérias relativas à integridade e soberania do Estado» estão sempre salvaguardadas. - José Eduardo Figueiredo Dias.
Declaração de voto
Não posso subscrever o juízo de inconstitucionalidade formulado na alínea a) da decisão. Não é a primeira vez, e não será muito provavelmente a última, que manifesto a minha oposição à jurisprudência tradicional do Tribunal em matérias relativas à autonomia regional dos Açores e da Madeira.
Na verdade, respeitando embora as convicções dos outros membros do Plenário, acredito que elas refletem, em maior ou menor medida, o ancestral pendor centralista da cultura política dominante. Esta tende a ver a autonomia regional como uma espécie de remédio de gosto amargo, a tomar com parcimónia, em doses moderadas, sempre com receio dos efeitos secundários - o afrouxamento do controlo do Estado sobre a atividade jurídico-pública dos órgãos próprios das regiões autónomas, o subsequente e fatal esbatimento do unitarismo do Estado e, vade retro, o fantasma do federalismo.
Procurando, no que toca ao ordenamento do espaço marítimo nacional respeitante à parte da plataforma continental situada para lá das 200 milhas marítimas, rever o equilíbrio de poderes de gestão entre a República e as regiões autónomas, acentuando estes últimos, a Assembleia da República, órgão de soberania legislativo por excelência, introduziu no processo decisional relativo à gestão de tal espaço um parecer obrigatório e vinculativo destas, no âmbito da elaboração dos instrumentos a aprovar pelo Governo, «salvo nas matérias relativas à integridade e soberania do Estado».
Não questiono, no atual quadro constitucional, que a titularidade do domínio público marítimo pertence ao Estado, que não a pode transferir para quem quer que seja. Mas já não descortino por que razão será contrária à Lei Fundamental a transferência de poderes de exploração ou gestão sobre o mesmo domínio para as regiões autónomas, estando assegurado, como está, pela própria norma sindicada, o controle pelo Estado da preservação da integridade e soberania deste.
Na minha maneira de ver, é perfeitamente justificado o reforço de poderes das regiões autónomas no que toca ao ordenamento do espaço marítimo nacional, cuja dimensão, várias vezes superior à do território nacional, se fica a dever, em larguíssima medida, à existência e localização dos Açores e da Madeira.
Esta dívida de todos os portugueses para com aqueles seus compatriotas que habitam nestas partes do território nacional - e que sofrem as dificuldades inerentes à vida nas regiões insulares ultraperiféricas - irá mesmo aumentar num futuro não muito distante, quando estiver concluído o processo que as Nações Unidas conduzem visando a extensão da plataforma continental situada para lá das 200 milhas marítimas, que poderá elevar até ao dobro a dimensão do espaço marítimo nacional. Compreendo perfeitamente e não posso deixar de considerar legítimo que açorianos e madeirenses procurem tirar benefícios acrescidos desta extensão, da qual querem ser protagonistas e não apenas figurantes.
Para o Tribunal, o problema essencial que dita o juízo de inconstitucionalidade, é a circunstância de o parecer dos órgãos regionais ser vinculativo. Isto significa que o sentido da decisão a tomar seria codeterminado pelos órgãos do Estado e pelos órgãos regionais - ao contrário do que sucede se o parecer for não vinculativo, situação em que estes últimos, tendo obrigatoriamente de ser ouvidos, podem ser totalmente desatendidos nas suas pretensões. Este modo de ver implica que a gestão partilhada mais não seja do que uma deferência formal para com as regiões, sem reflexos substanciais nas atribuições destas (relativamente ao conceito de gestão partilhada, remeto para o que escrevi na declaração de voto que juntei ao Acórdão 136/2016).
Ora, a categoria dos pareceres vinculativos é conhecida e usada em inúmeras áreas da administração pública - urbanismo, defesa do património histórico, ambiente, etc. -, precisamente porque se trata de um instrumento útil para forçar entendimentos, que somente alguma pressão sobre ambas as partes permite alcançar. A sua rejeição neste caso só pode radicar na prognose apocalíptica de que os órgãos das regiões autónomas iriam opor-se sistemática e arbitrariamente às intenções do Estado, obstando à tomada de quaisquer decisões. Desconsidera que tal atitude prejudicaria, em primeira linha, as próprias populações dos Açores e da Madeira. Como não a considerar desconfiada, senão mesmo hostil, à autonomia regional? - João Caupers.
Declaração de voto
Vencido quanto à alínea a) do dispositivo - declaração de inconstitucionalidade da norma contida no n.º 3 do artigo 8.º da Lei 17/2014, na redação dada pela Lei 1/2020, de 11 de janeiro - e quanto aos fundamentos da inconstitucionalidade declarada na alínea b) do mesmo dispositivo, pelas seguintes razões:
1 - A Constituição não impede a possibilidade de o legislador da República transferir para as Regiões Autónomas o poder de elaborar e aprovar planos de situação e planos de afetação relativos a espaços marítimos adjacentes, desde que incidentes sobre matérias de "âmbito regional" que não estejam reservadas aos órgãos de soberania.
Os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional - planos de situação e de afetação -, tal como definidos no artigo 7.º da Lei 17/2014, têm por função identificar os sítios de proteção e preservação do meio marinho e distribuir e afetar, no espaço e no tempo, os "usos e atividades", atuais e potenciais, para eventual atribuição de títulos de utilização privativa. Dada a natureza tridimensional do espaço marítimo (fundos marinhos, coluna de água e superfície) e as múltiplas utilidades que ele proporciona, naturalmente que aqueles planos incluem elementos escritos e gráficos que respeitam a bens cuja "gestão" tanto pode ser de âmbito nacional como de âmbito regional (artigo 10.º do Decreto-Lei 38/2015, de 12 de março). Quando recaem sobre bens que integram o domínio público marítimo (águas, leito e subsolo das águas interiores e do mar territorial e leito e subsolo da plataforma continental), os planos definem e regulam as "condições de utilização e limites" desses bens dominiais e não a titularidade do respetivo domínio. Atenta a finalidade dos planos, está em causa apenas estabelecer regras de gestão desses bens naturais, incluindo o seu aproveitamento económico e utilização para variados fins (v.g. investigação científica, energias renováveis, ilhas artificiais, etc.)
Ora, com base na distinção entre titularidade do domínio público e exercício dos poderes característicos da dominialidade, a jurisprudência constitucional tem vindo a admitir que há certos poderes que incidem sobre bens dominiais que podem ser exercidos por entidades diferentes do titular do domínio. Assim, no que respeita ao domínio público marítimo, são intransferíveis os poderes respeitantes à salvaguarda da "soberania e integridade do Estado" ou de "manutenção, delimitação e defesa" (poderes primários); mas já são transferíveis os que respeitam à gestão, aproveitamento e utilização dos bens que integram esse domínio (poderes secundários). Por isso, as competências e os poderes que podem ser atribuídos às Regiões Autónomas sobre o domínio público marítimo têm sempre que se inscrever no âmbito dos poderes secundários (Acórdãos n.os 402/2008, 315/2014 e 136/2016).
Assim acontece como o poder de ordenar e gerir os bens dominiais existentes nas zonas marítimas adjacentes às Regiões Autónomas, que é um poder secundário suscetível de ser transferido para as respetivas administrações regionais nas matérias de âmbito regional. Os planos de ordenamento marítimos incidem sobre bens dominiais (águas e leito das águas interiores e do mar territorial, leito e subsolo da plataforma continental), sobre bens não dominiais (recursos vivos ou não vivos, águas da zona económica exclusiva, ecossistemas e espécies, meio abiótico), sobre matérias que têm relevância exclusivamente no âmbito regional (competências ambientais, património cultural subaquático e pescas nas águas interiores e no mar territorial, etc.), mas também em matérias de âmbito nacional (redes de estruturas e infraestruturas e sistemas indispensáveis à defesa nacional, à segurança interna e à proteção civil, recursos minerais marinhos na plataforma continental, vigilância, inspeção e sanção, reservas dominiais, etc.).
No que é de âmbito regional não reservado à intervenção dos órgãos de soberania, a lei pode atribuir competências gestionárias do domínio público marítimo aos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas. Foi o que fez no artigo 8.º dos EPARAA, concedendo-lhes competência exclusiva para o licenciamento das atividades de extração de inertes, da pesca e de produção de energia renováveis (n.º 2) e competência conjunta ou partilhada, relativamente aos "demais poderes" sobre o território marítimo das Regiões Autónomas (n.º 3). A gestão partilhada prevista nesta norma tem por principal objeto o exercício de poderes secundários no âmbito do domínio público marítimo, onde se deve incluir o poder de planear e ordenar os bens dominiais que o integram.
Apenas quando o poder de ordenar ou gerir contender com poderes gestionários cujo exercício pela Região, ainda que em conjunto ou de forma partilhada, seja incompatível com a integração dos bens em causa no domínio público marítimo do Estado, que respeitem à integridade e soberania do Estado ou que não relevem do âmbito regional, é que se justifica a intransferibilidade dos poderes. Se estes interesses estiveram em causa, a Constituição impõe que os poderes respetivos sejam exercidos exclusivamente pelo Estado, porque são poderes inerentes à dominialidade e não às "condições de utilização" dos bens dominiais.
2 - O problema não é pois de constitucionalidade, já que não há obstáculo constitucional à transferência do poder de elaborar e aprovar planos de ordenamento marítimo no território marítimo das Regiões Autónomas, mas sim de legalidade: a aprovação pelo Governo, mediante a emissão de parecer obrigatório e vinculativo das regiões autónomas, de instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional respeitante à plataforma continental para além das 200 milhas é um meio adequado a concretizar o princípio da gestão partilhada estabelecido no artigo 8.º do EPARAA?
No Acórdão 136/2016, o Tribunal Constitucional considerou que o legislador nacional - a quem incumbe tal tarefa - tem margem de liberdade na escolha do modelo de gestão partilhada. Sem excluir outras formas de repartição de competências procedimentais e decisórias, considerou-se que o "modelo de concertação" constante do Decreto-Lei 38/2015 era adequado a satisfazer os interesses nacionais e regionais envolvidos nos planos de ordenamento. A norma agora questionada, num sentido mais estrito do conceito de «gestão partilhada» - constante das declarações de voto formuladas naquele Acórdão -, aponta para um "modelo de codecisão", concretizado através de pareceres vinculantes. Através deste tipo de pareceres, o legislador pretende que o ato final de aprovação dos planos reflita o concurso dos dois centros de referência de interesses, o nacional e o regional. A exigência de parecer das Regiões Autónomas significa que se pretende uma pronúncia sobre o modo como os planos se harmonizam com os interesses que lhe cabe prosseguir: um parecer favorável tem o valor de decisão parcial permissiva da aprovação dos planos; um parecer desfavorável inviabiliza, por inutilidade, o exercício da competência dispositiva própria do Governo da República para aprovar os planos.
Acontece que a opção por este modelo de gestação partilhada peca por excesso, uma vez que o parecer das regiões autónomas pode ter efeito vinculativo em matérias que não são de âmbito regional. Por exemplo, os bens pertencentes ao património cultural subaquático situados na plataforma além das 200 milhas não são pertença do território regional (artigo 8.º, n.º 4, do EPARAA) e por isso, nessa matéria, o parecer regional não pode ser vinculativo. Efetivamente, há certas dimensões do domínio público marítimo atingidas pelos planos de ordenamento relativamente às quais o Estado não pode abdicar de regular, sobretudo além das 200 milhas. Nessa área de extensão da plataforma continental, os limites exteriores ainda não estão definidos, ainda não há coordenadas geográficas delimitadoras das subáreas (continente, Madeira e Açores), a coluna de água sobrejacente tem natureza de Área, gerida pela Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, o aproveitamento dos recursos não vivos está subordinado ao pagamento a esta entidade de contribuições, e os recursos geológicos aí existentes não são objeto de partilha com as Regiões (artigo 65.º, n.º 3, do Decreto-Lei 54/2015, de 22 de junho). Um parecer vinculativo na zona de extensão da plataforma, sem segmentação das matérias de âmbito regional, promove a deslocação do poder decisório para o órgão emitente do parecer em matérias que extravasam esse âmbito. Uma vinculatividade quase total, que exclui apenas as matérias relativas à integridade e soberania do Estado, significa uma pré-decisão, em que os interesses prosseguidos pelo Governo da República nessa zona marítima podem não estar refletidos no ato de aprovação do plano. No meu ponto de vista, contrariamente ao modelo anterior, este não se afigura como um modelo de repartição de competências capaz de dar concretização ao princípio da gestão partilhada. Pretendendo-se uma participação ativa na fase decisória do procedimento, a solução encontrada no n.º 3 do artigo 65.º do Decreto-Lei 54/2015 para a revelação e aproveitamento dos recursos geológicos até às 200 milhas (aprovação conjunta dos órgãos da administração central e das respetivas regiões autónomas) pode ser um dos possíveis regimes de partilha de poderes decisórios, sem o inconveniente de se ter que segmentar as matérias abrangidas pelos planos em função do interesse nacional ou do âmbito regional, para efeito de vinculatividade ou prejudicialidade do parecer.
3 - As normas contidas no artigo 31.º-A da Lei 17/2014, de 10 de abril, são inconstitucionais, mas por motivo diverso do indicado no ponto 12 do Acórdão.
As normas deste preceito remetem para as assembleias legislativas regionais, dentro de certos parâmetros, a construção do modelo de gestão partilhada no espaço marítimo nacional até às 200 milhas, permitindo que, através de decreto legislativo regional, as competências da administração central sejam «transferidas» para os órgãos administrativos das regiões autónomas.
Porém, o entendimento do Tribunal Constitucional expressamente plasmado nos Acórdãos n.º 135/2014 e 136/2016 é o de que não é legítima a intervenção da Assembleia Legislativa na fixação das condições de utilização e limites dos bens de domínio público do Estado.
No primeiro dos Acórdãos refere-se o seguinte:
«Enquadrando-se os termos de determinada repartição de competências nas "condições de utilização" e "limites" do domínio público marítimo estadual, só os órgãos de soberania, através de intervenção parlamentar ou governamental, poderão decidir o que pode ser partilhado e em que termos. Com efeito, as concretas formas de utilização do domínio público, nomeadamente quanto ao regime de licenciamento e contratos de concessão, são uma das matérias incluídas no n.º 2 do artigo 84.º da CRP que escapam à previsão do artigo 165.º, n.º 1, alínea v), da CRP e, por isso, cabem na «concorrência legislativa concorrente da AR e do Governo» (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 1007, e Acórdão 402/2008).
A Região Autónoma dos Açores não pode unilateralmente definir os termos da gestão partilhada do domínio público marítimo, justamente porque a regulação primária dessa matéria contenderia com as competências das autoridades nacionais. O parâmetro do "âmbito regional" [alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP], na sua componente institucional, impede que os parlamentos insulares produzam legislação destinada a produzir efeitos relativamente a pessoas coletivas que se encontram fora do âmbito de jurisdição natural das Regiões Autónomas, como é o caso do próprio Estado (cf. Acórdãos n.º 258/2007 e n.º 304/2011).
E, no mesmo sentido, diz-se no Acórdão 316/2016:
«Como o artigo 8.º do EPARAA não densifica o princípio da gestão conjunta ou partilhada, nem dá indicações sobre o respetivo "modus faciendi", é necessário determinar um conteúdo prescritivo que permita uma aplicação vinculada. É o que se refere no Acórdão 315/2014: «num domínio em que existem atribuições de exercício comum e repartido tem que haver uma definição prévia daquilo que pode ou não ser partilhado, assim como dos termos concretos em que se processa a partilha».
Nos termos do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 112.º, n.º 4, da Constituição, tal tarefa incumbe ao legislador da República. E assim é, porque o requisito do "âmbito regional", a que se encontra sujeita a competência legislativa regional, tem um duplo sentido: «sem prejuízo de esta expressão ter antes de mais um sentido geográfico, traçando os limites espaciais de vigência dos decretos legislativos regionais, ela tem também forçosamente um sentido institucional, que impede os Parlamentos insulares de emanar legislação destinada a produzir efeitos relativamente a outras pessoas coletivas públicas que se encontram fora do âmbito de jurisdição natural das Regiões Autónomas» (Acórdãos n.os 258/2007, 402/2008, 304/2011 e 793/2013).
Ora, a concretização do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º do EPARAA envolve a repartição de competências entre órgãos da República e da Região, e consequentemente, produz efeitos em relação a pessoas coletivas públicas - neste caso, o próprio Estado - que se encontram fora da jurisdição natural da Região Autónoma dos Açores. Por isso, deverá ser efetuada pelos órgãos da República e não pelos da Região».
Portanto, na parte em que os planos de situação e afetação incidem sobre o domínio público marítimo, definindo as "condições de utilização e limites", o n.º 2 do artigo 84.º da CRP impõe uma reserva de lei nacional. Ou seja, os valores e interesses garantidos pela titularidade do Estado sobre o domínio público marítimo exigem que o legislador nacional não abdique inteiramente da sua competência regulatória da exploração económica dos bens que integram esse domínio. Por isso, a norma que remete para as assembleias legislativas regionais a densificação da "gestão partilhada" do procedimento de elaboração e aprovação dos instrumentos de ordenamento marítimo, alterando o Decreto-Lei 38/2015, de 12 de março, viola o n.º 2 do artigo 84.º da CRP.
Por outro lado, os parâmetros que condicionam o decreto legislativo regional regulador dos termos em que deve ser concretizada a gestão partilhada até às 200 milhas, fixados no artigo 31.º-A da Lei 1/2001, violam o artigo 8.º, n.º 3, do EPARAA. Excluindo as matérias relativas à integridade e soberania do Estado, em que o parecer é obrigatório e vinculativo, formando, com a decisão final do procedimento, um ato complexo ou praticado em coautoria, nas demais matérias é meramente facultativo, sem efeito vinculativo. Ora, versando os planos sobre matérias que não são de âmbito regional, matérias que têm natureza eminentemente nacional, então esse tipo de pareceres, desacompanhado de quaisquer outras diligências procedimentais capazes de influenciarem a decisão final (procedimento de concertação), não é adequado e suficiente a concretizar o princípio da gestão partilhada. - Lino Rodrigues Ribeiro.
115684017
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5065633.dre.pdf .
Ligações deste documento
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1980-08-05 -
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Aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
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1982-11-15 -
Lei
28/82 -
Assembleia da República
Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.
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1991-06-05 -
Lei
13/91 -
Assembleia da República
Aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
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2001-01-04 -
Lei
1/2001 -
Assembleia da República
Altera a Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, que aprova a Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas.
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2002-03-02 -
Decreto-Lei
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Ministério da Defesa Nacional
Cria o sistema da autoridade marítima - SAM - definindo a sua organização e atribuições e cria igualmente a Autoridade Marítima Nacional, estrutura superior de administração e coordenação dos órgãos e serviços que, integrados na Marinha, possuem competências ou desenvolvem acções enquadradas no SAM. Compõem o SAM as seguintes entidades: Autoridade Marítima Nacional, Polícia Marítima, Guarda Nacional Republicana, Polícia de Segurança Pública, Polícia Judiciária, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Inspecçã (...)
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2005-11-15 -
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Estabelece a titularidade dos recursos hídricos.
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2006-02-17 -
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Prorroga o regime de instalação da Direcção-Geral de Formação Vocacional, criada pelo Decreto-Lei n.º 208/2002, de 17 de Outubro.
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Determina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado Português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar.
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2007-05-15 -
Acórdão
258/2007 -
Tribunal Constitucional
Pronuncia-se pela inconstitucionalidade [fiscalização preventiva] das normas constantes dos artigos 1.º, n.º 1, segunda parte, 7.º, n.os 1, 10, 12 a 18, 21 a 24, 26, 27, primeira parte, 28 a 31, 32, primeira parte, e 38, este na parte referente à «administração local», 9.º, n.º 1, 10.º, n.os 1 e 2, 15.º a 18.º e 20.º do Decreto n.º 8/2007, sobre Regime das Precedências Protocolares e do Luto Regional, aprovado na sessão de 7 de Março de 2007 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores. (Processo (...)
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2009-01-12 -
Lei
2/2009 -
Assembleia da República
Aprova a terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, e procede à sua republicação
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2009-09-28 -
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Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações
Institui o sistema nacional de controlo de tráfego marítimo (SNCTM), criando um quadro geral de intervenção dos órgãos e serviços públicos responsáveis pelo controlo de tráfego marítimo nas zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional, e procede à 1.ª alteração do Decreto-Lei n.º 43/2002, de 2 de Março, à 3.ª alteração do Decreto-Lei n.º 180/2004, de 27 de Julho, e à 1.ª alteração do Decreto-Lei n.º 198/2006, de 19 de Outubro.
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2014-04-10 -
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Estabelece as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional.
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2015-03-12 -
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2015-04-16 -
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54/2015 -
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Procede à sexta alteração ao Decreto-Lei n.º 83/2000, de 11 de maio, que aprovou o novo regime legal da concessão e emissão dos passaportes
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2020-01-14 -
Lei
1/2020 -
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Prorrogação da vigência do observatório técnico independente para análise, acompanhamento e avaliação dos incêndios florestais e rurais que ocorram no território nacional, criado pela Lei n.º 56/2018, de 20 de agosto
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2021-01-11 -
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Primeira alteração à Lei n.º 17/2014, de 10 de abril, que estabelece as Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional
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