I Relatório
1 - O Presidente da República veio requerer, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 278.º da Constituição e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade do artigo 3.º do decreto aprovado pelo Conselho de Ministros em 24 de Julho findo e registado sob o n.º 517/86 na Presidência do Conselho de Ministros, enviado para promulgação como decreto-lei.Tem esse diploma como objecto a transformação da empresa pública SOCARMAR, E. P., em sociedade anónima de responsabilidade limitada, com a denominação de SOCARMAR, S. A. R. L., e o seu artigo 3.º dispõe como segue:
1 - A SOCARMAR, S. A. R. L., terá inicialmente um capital social de 1280000000$00, o qual se acha integralmente subscrito e realizado pelo Estado por força da situação líquida da SOCARMAR, E. P., à data da entrada em vigor deste diploma.
2 - As acções representativas do capital subscrito pelo Estado permanecerão na titularidade da Direcção-Geral do Tesouro mas os direitos sociais do Estado como accionista e nomeadamente a sua representação em assembleia geral serão exercidos por quem for designado por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.
3 - O capital social será representado por acções do tipo A e do tipo B, com as seguintes características:
a) As acções do tipo A são nominativas e podem pertencer apenas ao Estado, a pessoas colectivas de direito público, empresas públicas e sociedades que, por determinação legal, pertençam ao sector público;
b) As acções do tipo B são nominativas ou ao portador, podendo pertencer ou ser subscritas por entidades públicas ou privadas.
4 - Serão obrigatoriamente acções do tipo A:
a) As acções correspondentes ao capital social da empresa que foi objecto de nacionalização pelo Decreto-Lei 701-E/75, de 17 de Dezembro, e a que sucedeu a SOCARMAR, E. P., que agora é objecto de transformação em sociedade anónima de responsabilidade limitada;
b) As acções adicionais necessárias para que 51% do capital social existente em cada momento esteja representado por acções do tipo A.
5 - Serão acções do tipo B todas as demais acções da sociedade.
6 - O Estado poderá alienar as acções de que é titular desde que observe o disposto nos números anteriores e as normas aplicáveis à alienação de participações do sector público.
Como fundamento do pedido, invoca o Presidente da República o facto de se prever neste preceito «a possibilidade de o capital da nova sociedade comercial em que se irá transformar a empresa pública ser parcialmente alienado a empresas ou entidades privadas», o que suscita «o problema de saber se não estará a ser violado o artigo 83.º, n.º 1, da Constituição da República».
Na verdade - continua o requerente -, a SOCARMAR, E. P., proveio da nacionalização directa da sociedade anónima com designação semelhante que a antecede, nacionalização essa operada pelo Decreto-Lei 701-E/75, de 17 de Dezembro. Assim, a sua desnacionalização não pode operar-se ao abrigo do disposto no artigo 83.º, n.º 2, da Constituição, o qual consente apenas a integração no sector privado, a título excepcional, das pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas: quanto à SOCARMAR vale, pois, sem quaisquer reservas, o «princípio da irreversibilidade das nacionalizações», consagrado no n.º 1 daquele mesmo artigo 83.º Ora - prossegue ainda o Presidente da República - «se é certo que a doutrina tem entendido que o princípio da irreversibilidade não é violado quando o capital de uma empresa nacionalizada é alienado dentro do sector público, isto é, quando a empresa pública é transformada em sociedade de capitais públicos, o certo é que a transmissão de partes sociais a entidades fora do sector público ou a abertura do capital às mesmas, mesmo que a sociedade se mantenha controlada pelo sector público, suscita dúvidas de constitucionalidade».
2 - Notificado, nos termos dos artigos 54.º e 55.º da Lei 28/82 para responder ao requerimento apresentado, veio o Governo, através do Primeiro-Ministro, sustentar a perfeita conformidade constitucional do regime que o artigo 3.º do diploma por ele aprovado visa instituir. A tal respeito, depois de analisar detidamente, quer a natureza jurídica da empresa que, segundo o mesmo diploma, virá a suceder à SOCARMAR, E. P., quer o significado e alcance do princípio da irreversibilidade das nacionalizações, a resposta do Primeiro-Ministro conclui como segue:
1.ª A SOCARMAR é uma empresa pública que tem na sua origem uma empresa que foi objecto de nacionalização.
2.ª O conceito de sociedade de economia mista não é unívoco, apresentando um sentido amplo e um sentido estrito. Num sentido amplo serão as sociedades cujo capital em certo momento pertence parcialmente ao sector público. Já num sentido estrito serão as sociedades cujo capital, por imposição da lei, pertença e deva continuar a pertencer em parte ao sector público.
3.ª No caso da SOCARMAR, o princípio da irreversibilidade das nacionalizações consignado na Constituição (artigo 83.º) e na lei (artigo 2.º da Lei 46/77) coloca alguns condicionamentos e limites a tal transformação, que foram todos consagrados no projecto de decreto-lei em apreço.
4.ª O princípio da irreversibilidade das nacionalizações determina que:
a) Não possam ser transferidas para o sector privado as partes de capital que em dado momento histórico foram objecto de nacionalização e com base nas quais foram ou estão sendo determinados os valores de indemnização devidos pelo Estado;
b) Não possam ser transferidos para o domínio do sector privado as empresas que hajam sido objecto de nacionalização e que por força dessa medida hajam ingressado no sector público.
5.ª A SOCARMAR pode ser transformada em sociedade de economia mista de acordo com o projecto de decreto-lei em análise, pois este consagra:
a) Que se trata de sociedade de economia mista em sentido estrito;
b) Que fica vedada por lei a transferência das partes de capital nacionalizadas para o sector privado;
c) Que fica determinado por lei que a maioria absoluta do capital na sociedade pertence ao sector público.
6.ª Os condicionamentos impostos à transformação da SOCARMAR em sociedade de economia mista envolvem um regime complexo de transmissibilidade das acções, que impediria a sua admissão à cotação; no entanto, a criação de duas séries de acções condicionando a transmissibilidade das acções de uma das séries à sua realização entre entidades do sector público vem permiti-lo.
7.ª O artigo 3.º do projecto de decreto-lei em análise é assim perfeitamente consentâneo com o artigo 83.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que não realiza qualquer desnacionalização.
3 - Da exposição antecedente resultam suficientemente clarificados os contornos da questão que vem posta ao Tribunal.
Não está, porém, este - atento o que se dispõe no artigo 51.º, n.º 5, da respectiva lei - impedido de abordar outra ou outras questões de constitucionalidade que possam eventualmente suscitar-se com referência ao preceito submetido à sua apreciação.
E, desde logo, de apreciar a conformidade constitucional do mesmo preceito à luz da reserva de lei parlamentar estabelecida pelo artigo 168.º, alínea v), da Constituição (estatuto das empresas públicas).
II Fundamentação
4 - O Decreto-Lei 701-E/75 procedeu à nacionalização da Sociedade de Cargas e Descargas Marítimas, S. A. R. L., convertendo-a em empresa pública, vindo os respectivos estatutos a ser aprovados pelo Decreto Regulamentar 57/77, de 25 de Agosto.Deste modo, ficou a SOCARMAR, E. P., sujeita à disciplina definida no Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril, que, embora alterado, designadamente pelo Decreto-Lei 29/84, de 20 de Janeiro, estabelece ainda hoje as bases gerais das empresas públicas.
Essas bases gerais correspondem, afinal, ao estatuto das empresas públicas, tal como vem referido na alínea v) do artigo 168.º da Constituição, que reserva essa matéria à competência legislativa da Assembleia da República.
Como este Tribunal teve ensejo já de assinalar «é, pois, da competência exclusiva da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, definir, através de lei, o estatuto geral por que se hão-de reger as empresas públicas, embora não tenha que ser esse mesmo órgão a aprovar o estatuto de cada empresa, o estatuto que, todavia, sempre deverá subordinar-se ao estatuto geral» (cf. Acórdão 212/86, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 151, de 4 de Julho de 1986).
Ora, nesse estatuto geral cabe necessariamente «o regime da criação e da extinção ou transformação das empresas públicas» (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., II vol., p.
203).
Cumpre, pois, liminarmente, indagar se esse estatuto geral, tal como se encontra plasmado no ordenamento jurídico vigente, mereceu acatamento no caso vertente.
5 - O capítulo VII do Decreto-Lei 260/76 (artigos 36.º a 45.º) reporta-se ao «agrupamento, fusão, cisão e liquidação das empresas públicas», nele não se prevendo a possibilidade de transformação das referidas empresas, designadamente em sociedades comerciais.
Na verdade, o artigo 37.º daquele diploma, a propósito das formas de extinção das empresas públicas, prescreve expressamente que «a extinção de uma empresa pública pode visar a reorganização das actividades desta, mediante a sua cisão ou fusão com outras, ou destinar-se a pôr termo a essa actividade, sendo então seguida da liquidação do respectivo património» (n.º 1), e ainda que «as formas de extinção de empresas públicas são unicamente as previstas neste capítulo» (n.º 2).
E se é verdade que a transformação não envolve necessariamente, num sentido técnico-jurídico, a extinção da empresa, não é menos verdade que em parte alguma do citado diploma se prevê a possibilidade de uma empresa pública ser transformada em sociedade comercial. E, para além disso, e como se viu, só se prevê a fusão e a cisão de empresas públicas e não a fusão destas com sociedades comerciais ou a divisão do seu património por entidades que não revistam a forma de empresas públicas.
Desta forma se deve concluir que o estatuto das empresas públicas não consente, pois, a respectiva transformação em sociedade comercial.
Assim sendo, e por força do preceituado na citada alínea v) do artigo 168.º da lei fundamental, só a Assembleia da República podia dispor sobre a matéria, na medida em que se inova relativamente ao estatuto vigente, pelo que o preceito editado pelo Governo, sem credencial parlamentar, se encontra ferido de inconstitucionalidade, por violação da citada disposição constitucional.
6 - Dir-se-á que a detectada inconstitucionalidade, em direitas contas, se reporta ao artigo 1.º do diploma, onde directamente se procede à mencionada transformação, e não já ao artigo 3.º, único preceito questionado pelo Presidente da República.
Sem razão, porém.
Desde logo, porque no próprio artigo 3.º [n.º 4, alínea a)] expressamente se refere que a SOCARMAR, E. P., é agora «objecto de transformação em sociedade anónima de responsabilidade limitada», repetindo-se, deste modo, aqui por inteiro a normação contida no artigo 1.º do diploma.
E, por outro lado, porque o preceito questionado pelo Presidente da República sempre pressupunha a referenciada transformação, na medida em que nele se contém toda uma regulamentação que carecia autonomamente de qualquer sentido, caso a empresa pública não fosse simultaneamente transformada em sociedade comercial.
A esta luz, nada obsta a que se possa conhecer da inconstitucionalidade do preceito em causa, por violação da alínea v) do artigo 168.º da Constituição.
7 - Nestes termos, havendo-se concluído no sentido da inconstitucionalidade por falta da competência do Governo, desnecessário se torna, por manifesta inutilidade, indagar sobre a constitucionalidade do referido preceito quando confrontado com o n.º 1 do artigo 83.º da Constituição.
III Conclusão
8 - Em virtude do exposto, o Tribunal decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas do artigo 3.º do decreto aprovado pelo Conselho de Ministros em 24 de Julho findo e registado sob o n.º 517/86 na Presidência do Conselho de Ministros, enviado para promulgação como decreto-lei, por violação do disposto na alínea v) do artigo 168.º da Constituição da República.Lisboa, 21 de Agosto de 1986. - José Magalhães Godinho - Antero Alves Monteiro Dinis - Martins da Fonseca - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa (vencido, conforme declaração junta) - Messias Bento (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Cardoso da Costa) - Armando Manuel Marques Guedes (vencido, nos termos da declaração junta).
Declaração de voto
1 - Comecei por entender que o Tribunal não podia, e por isso não devia, apreciar a questão cujo julgamento acabou por constituir o exclusivo objecto da sua decisão. É que o único preceito, ou a única «norma», submetido pelo Presidente da República à sua apreciação foi o artigo 3.º do decreto-lei registado na Presidência do Conselho de Ministros sob o n.º 517/86 - e quanto a esse preceito ou norma não se põe nem pode de maneira nenhuma pôr, autonomamente, a questão de uma eventual violação da reserva parlamentar do artigo 168.º, alínea v), da Constituição.Esta reserva respeita à definição do «estatuto das empresas públicas». Ora, basta atentar em que o dito artigo 3.º já se não reporta ao regime de uma empresa pública, mas ao regime estatutário de uma sociedade comercial anónima de capitais mistos (se reporta à titularidade e distribuição do capital desta sociedade), para se haver de concluir, com toda a clareza, que ele, só por si, é insusceptível de violar aquela reserva.
Tal violação - segundo a tese que fez maioria no Tribunal - resultará do facto de o «estatuto das empresas públicas» actualmente em vigor (constante do Decreto-Lei 260/76, com alterações posteriores) não consentir a «transformação» dessas empresas em sociedades comerciais, designadamente sociedades anónimas de responsabilidade limitada. Ora, o preceito, ou norma, que, no diploma em apreço, opera essa «transfomação» é o artigo 1.º: é bom de concluir, pois, que é antes nesse preceito, e só nele, que poderá residir a pretensa infracção ao disposto no artigo 168.º, alínea v), da Constituição.
E nem se diga, em contrário, que também no artigo 3.º [na alínea a) do n.º 4] se refere que a SOCARMAR, E. P., é agora «objecto de transformação em sociedade anónima de responsabilidade limitada». É que justamente se trata aí de uma mera «referência», de sentido puramente expletivo (e aliás redundante e supérflua), mas não, em rigor, de uma «norma» - ou seja, de uma proposição com intuito e alcance «normativo». E não o é, porque essa proposição (como resulta evidente do seu contexto próximo e do contexto global do diploma) nem visa produzir o efeito jurídico a que nela mesma se alúde (a transformação da SOCARMAR), nem efectivamente o produz -porquanto tal efeito já resulta obtido do artigo 1.º, e a obtenção dele é precisamente o que se pretende atingir com esta outra disposição.
Claro que, julgado este outro preceito (o artigo 1.º) inconstitucional, tal julgamento não poderá deixar de repercutir-se sobre as restantes normas do diploma, que por ele ficarão igualmente afectadas - por isso que carecem de sentido sem aquela disposição e a têm como pressuposto necessário. Essa, porém, será uma «inconstitucionalidade» meramente consequencial - uma inconstitucionalidade, pois, que, como se começou por acentuar, não é susceptível de assentar num juízo feito directamente sobre esses outros preceitos ou normas.
Quer isto dizer que o Tribunal só pôde afirmar -como afirmou - a inconstitucionalidade orgânica do artigo 3.º do decreto-lei ora em causa, porque, explícita ou implicitamente, começou por julgar inconstitucional o artigo 1.º Na verdade, e como se acabou de ver, um tal julgamento do artigo 3.º há-de necessariamente ter na sua base um julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 1.º, porque só neste preceito poderá «situar-se» a pretensa infracção à reserva da lei parlamentar.
Mas então, se é assim - e não pode ser de outra maneira -, é forçoso concluir que o Tribunal emitiu um julgamento sobre norma ou preceito não incluído no pedido do Presidente da República. Ora isto não podia o Tribunal fazê-lo, como logo resultava do artigo 278.º, n.º 1, da Constituição, e como depois veio expressamente prevenir o artigo 51.º, n.º 5, da sua lei.
E que foi isso que o Tribunal fez, é algo que se tornará ainda mais claro se, em lugar de se considerarem só as disposições do diploma, se tiver também em conta o «conteúdo normativo» que o Presidente da República desejou que ele apreciasse - pois é patente que o objecto do pedido do Presidente respeita, não à norma que opera a substituição de uma certa «forma» empresarial por outra (a forma de empresa pública pela de sociedade anónima), mas antes àquela outra que permite a participação de capitais privados nessa sociedade.
Ora, julgando organicamente inconstitucional o artigo 3.º, com o fundamento com que o fez, o Tribunal acabou por pronunciar-se, não sobre a segunda das «normas» identificadas, mas antes sobre a primeira - sobre uma norma, pois, que o Presidente da República não questionou.
2 - Seja como for, havendo a maioria do Tribunal entendido as coisas de modo diverso, e cumprindo-me, pois, pronunciar-me sobre a questão da eventual violação da reserva parlamentar do artigo 168.º, alínea v), pelo artigo 3.º do diploma em causa, votei no sentido de que tal violação se não verifica.
Também quanto a este ponto, por conseguinte, fiquei vencido.
a) Fundamenta-se a minha posição, desde logo, no facto de o estatuto das empresas públicas actualmente em vigor (o Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril) não proibir, em nenhum dos seus preceitos, a transformação de uma empresa pública numa sociedade anónima, seja ela de capitais públicos, seja antes de economia mista. O que tão-só preceitua é que a tais sociedades não é ele próprio (esse mesmo estatuto) aplicável (cf. artigo 48.º).
Depois, também não é a circunstância de, no capítulo VII daquele diploma legal, se prever apenas o agrupamento e a extinção das empresas públicas - esta, com vista à reorganização das respectivas actividades, mediante cisão ou fusão com outras empresas da mesma índole, ou então para lhes pôr termo, caso em que se seguirá a liquidação do respectivo património (cf.
artigos 37.º, n.º 1, 39.º e 40.º) - nem o facto de, aí, se estatuir que às referidas empresas não são aplicáveis «as regras sobre dissolução e liquidação de sociedades nem os institutos da falência e insolvência» (cf. artigo 37.º, n.º 2), não serão uma e outra coisa que impõem se conclua pela proibição da transformação em causa. O máximo que daí poderá concluir-se é que o legislador quis modelar de um certo modo, no tocante às empresas públicas, determinados institutos (subtraindo, por exemplo, a cisão e a fusão dessas empresas ao regime do Decreto-Lei 598/73, de 8 de Novembro) e quis excluir a aplicação às mesmas empresas das causas de dissolução constantes do artigo 120.º do Código Comercial. Não mais do que isso, porém.
Na verdade, não existem razões capazes de justificar a impossibilidade de uma empresa pública se transformar numa sociedade anónima de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos.
Mas, então, como as empresas públicas se regem pelo referido Decreto-Lei 260/76, pelos respectivos estatutos e, «no que por aquele e estes não for especialmente regulado, pelas normas de direito privado» (cf. artigo 3.º, n.º 1), há que aplicar-lhes as normas e princípios que consentem a transformação das pessoas colectivas, designadamente a das sociedades.
Ora, conquanto o nosso ordenamento jurídico só preveja, de forma expressa, a transformação de uma sociedade anónima em sociedade por quotas (cf. artigo 52.º da lei das sociedades por quotas) e a transformação de uma fundação por mudança de fim (cf. artigos 186.º, n.º 2, e 190.º do Código Civil), a verdade é que se admite hoje unanimemente, como possibilidade genérica, a transformação das sociedades e, em geral, a das pessoas colectivas. A tal respeito, e em primeiro lugar, considera-se que os citados artigos 186.º, n.º 2, e 190.º do Código Civil constituem uma aplicação particular do instituto geral da transformação das pessoas colectivas (cf., neste sentido, Raul Ventura e Luís Correia de Brito, «Transformação das sociedades», in Boletim do Ministério da justiça, n.º 218, p. 34); para além disso, traduzindo-se a transformação de uma sociedade numa alteração do seu acto constitutivo, entende-se ser ela consentida pelo artigo 116.º do Código Comercial, na parte em que se diz «e em geral toda e qualquer alteração social»; finalmente, pondera-se que é também o Código de Processo Civil que, desde 1939 (cf. o actual artigo 276.º), fala em «transformação da pessoa colectiva» que for parte na causa.
Tudo isto significa, pois, que a transformação de uma empresa pública em sociedade anónima de responsabilidade limitada, seja de capitais exclusivamente públicos, seja de capitais mistos, é uma possibilidade jurídica contemplada pelo direito português, e não excluída pelo estatuto legal das empresas daquele tipo, presentemente em vigor. A tal possibilidade se refere, de resto, Sousa Franco, in Direito Económico, súmulas, vol. II, Lisboa, 1983, p.
52.
Assim, ao utilizar essa possibilidade - praticando o correspondente acto de administração económica e fazendo a correspondente opção política -, não ultrapassou o Governo o quadro do ordenamento jurídico vigente, antes se limitou a utilizar um instrumento que este punha ao seu dispor:
designadamente, por essa forma não derrogou o Governo, num caso individualizado, o Decreto-Lei 260/76, isto é, o «estatuto (geral) das empresas públicas». Eis quanto bastará para concluir que não se verifica, no mesmo caso, a pretendida inconstitucionalidade, por violação do artigo 168.º, alínea v).
b) Mas ao que fica dito acresce que, mesmo a entender-se que a transformação de uma empresa pública em sociedade anónima implica uma derrogação do Decreto-Lei 260/76, mesmo então não se verificará infracção da reserva parlamentar consignada no preceito constitucional citado.
É que tal reserva respeita apenas ao «estatuto» das empresas públicas, e não também à «delimitação» do seu âmbito (isto é, a eventuais normas substantivas delimitadoras deste âmbito): mostra-o, logo, o confronto do teor do artigo 168.º, alínea v), com o de outras alíneas do mesmo artigo [cf. alíneas r), u) e x)] e do artigo 167.º [cf. alínea j)]; confirmá-lo-á, depois, a justificação ou razão de ser da reserva, pois que não fará sentido estendê-la à própria definição de critérios (substantivos) em obediência aos quais se haja de delimitar o «universo» das empresas públicas (o que será diferente do mero «regime de criação e extinção» dessas empresas). Dir-se-á que, para além de já não ser coberta pela letra da alínea v) do artigo 168.º (uma coisa é o «estatuto», isto é, o «regime» das empresas públicas; outra, o dizer quando uma empresa deve assumir essa forma ou quais as empresas que têm de ou, ao invés, não podem assumir tal forma), para além disso, a definição daqueles critérios - e a delimitação do correspondente universo - é algo que pertence caracteristicamente ao domínio governamental.
Ora, a entender-se que o Decreto-Lei 260/76 contém uma norma que veda a transformação de empresas públicas em sociedades anónimas - e só nesse pressuposto ele será derrogado por um preceito ou diploma que determine num caso concreto essa transformação -, a entender-se isso, haverá de dizer-se que tal norma respeita, bem vistas as coisas, à própria delimitação do «universo» das empresas públicas: será mesmo uma norma que, de certo modo, impõe a «fixação» desse universo. Mas, se é assim, então haverá de concluir-se - face ao que antes se ponderou - que tal norma já não integra, afinal, o domínio da reserva do artigo 168.º, alínea v) - ou seja, já não é uma norma do «estatuto» das empresas públicas, a que esse preceito constitucional se refere. Tal norma, pois, sempre poderia ser derrogada, numa hipótese individualizada, por um decreto-lei do Governo.
E claro que contra esta conclusão de nada valeria argumentar com a circunstância de a mesma norma estar, de toda a maneira, efectivamente contida no diploma legal que estabelece o «estatuto das empresas públicas» em vigor - ou seja, no diploma legal em que actualmente se consubstancia a reserva parlamentar em causa. É que, para além de esse diploma ser anterior à própria introdução da reserva no nosso ordenamento constitucional (o que só ocorreu com a lei de revisão de 1982), em qualquer caso - e sob pena de petição de princípio -, o âmbito de uma reserva parlamentar nunca pode ser definido a partir da própria lei ordinária sobre a correspondente matéria. Ao contrário: é a interpretação da norma constitucional definidora da reserva que há-de fornecer o critério para, naquela lei, distinguir os preceitos e normas que pertencem e os que não pertencem à competência legislativa exclusiva da Assembleia da República.
Em suma: também por este outro lado se haveria de concluir que o artigo 3.º (recte, o artigo 1.º) do decreto-lei em apreço não implica uma infracção da reserva consagrada no artigo 168.º, alínea v), da Constituição.
3 - Concluindo pela não verificação do vício de inconstitucionalidade orgânica em que o Tribunal baseou a sua decisão, não poderia, então, deixar de apreciar a questão de constitucionalidade material do artigo 3.º do decreto-lei registado sob o n.º 517/86 na Presidência de Conselho de Ministros, que foi a questão suscitada pelo Presidente da República. Mas também quanto a essa questão o meu entendimento é o de que o preceito em causa não viola o artigo 83.º, n.º 1, da Constituição.
Direi das razões em que esse entendimento se fundamenta, extraindo do projecto de acórdão que, como relator, apresentei aquilo que se me afigura essencial. Assim:
a) Preliminarmente convirá deixar claro que a questão agora em apreço não se apresenta, no caso, com contornos mais complexos do que os delineados no requerimento do Presidente da República. Designadamente: nela não se imbrica também a questão de saber se a abertura ao capital privado, mediante a sua transformação em sociedade de economia mista, de uma empresa pública nacionalizada é compatível com a vedação às «empresas privadas e outras entidades da mesma natureza» de certos sectores económicos básicos - vedação essa prevista no artigo 85.º, n.º 3, da Constituição, e hoje estabelecida pela Lei 46/77, de 8 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 406/83, de 19 de Novembro. É que - para além de todas as demais considerações que a análise de tal outro problema não deixaria de convocar - desde logo acontece que a actividade económica que constitui o objecto da SOCARMAR, E. P. (e, continuaria a constituir o objecto da SOCARMAR, S. A. R. L.) não é das que se encontram vedadas às empresas daquele tipo pelos artigos 4.º e 5.º da citada lei.
Efectivamente, nos termos do artigo 2.º dos estatutos da SOCARMAR, E. P., aprovados pelo Decreto Regulamentar 57/77, de 25 de Agosto, «o objecto principal da empresa é a exploração de cargas e descargas de navios, transportes fluviais, de reboques e, bem assim, de quaisquer outras actividades complementares ou subsidiárias que se relacionem com a prossecução do seu fim principal» n.º 1), ficando, porém, excluído desse objecto «o transporte fluvial de passageiros» (n.º 2). Ora, não só nenhuma das actividades mencionadas consta da enumeração dos preceitos legais referidos, nomeadamente do primeiro deles, como inclusivamente neste último se abre às empresas privadas e entidades equivalentes, embora respeitadas certas condições, a possibilidade de operarem no sector económico - o dos transportes marítimos -, que é seguramente o mais próximo daquele onde a SOCARMAR desenvolve a sua actividade.
Assim sendo - tratando-se, pois, na hipótese vertente, da transformação (ou possibilidade dela) em sociedade de economia mista de uma empresa nacionalizada cujo objecto se não encontra vedado a empresas privadas e entidades da mesma natureza -, o problema que pode suscitar-se é realmente tão-só o de saber se essa transformação é compatível com o disposto no artigo 83.º, n.º 1, da Constituição, ou seja, com o princípio da irreversibilidade das nacionalizações.
b) Deve dizer-se que é justificada a dúvida que a propósito deste problema o Presidente da República levanta, como justificado é que a tal propósito só a dúvida venha suscitada, e não arguida, desde logo, a inconstitucionalidade do preceito questionado. O caso é que a questão não é daquelas que encontre imediata e evidente resposta na exegese do texto constitucional pertinente, a mostrá-lo aí está o facto de a doutrina não ser unívoca quanto a essa resposta.
Assim, dos autores que foi possível consultar nos apertados limites de tempo em que houve que estudar a questão, alguns há que a não versam expressamente. Mas, mesmo quanto a esses, haverá interesse em referir que não deixam de salientar o carácter «demasiado complexo» de questões de algum modo conexas, como a da admissibilidade de «desnacionalizações parciais» (cf. Sousa Franco, ob. cit., pp. 49 e 51); ou então invocam, para resolver negativamente esta questão, argumentos que bem poderão desimplicar-se, afinal, num sentido diverso quanto ao problema que nos ocupa [é o caso da afirmação de Guilherme de Oliveira Martins, em Lições sobre a Constituição Económica Portuguesa, vol. I, Lisboa, 1984, p. 70, segundo a qual «o direito de propriedade do Estado se reporta à totalidade dos títulos de participação no capital nacionalizado das empresas» (sublinhado nosso)]; ou ainda caracterizam a irreversibilidade das nacionalizações de um modo que poderá eventualmente entender-se como comportando ela a possibilidade de transformação de empresas nacionalizadas em sociedades de economia mista (é o caso de Mota Pinto, em Direito Público da Economia, lições de 1982-1983, p. 145, quando diz que essa irreversibilidade «fixa uma reserva de continuidade da nacionalização, mas não uma reserva de propriedade colectiva, de empresa pública, em detrimento de outras formas de propriedade»).
Sobre o problema em causa, porém, já se pronunciam expressamente Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., vol. I, p. 400, nota v ao artigo 83.º in fine). Mas, se o fazem no sentido da inadmissibilidade da abertura a entidades privadas do capital de empresas nacionalizadas (num sentido, portanto, que conduziria à inconstitucionalidade do preceito agora em análise), há de reconhecer-se que não põem nessa tese a mesma convicção com que imediatamente antes sustentam a inadmissibilidade de «desnacionalizações parciais». Com efeito, o que escrevem a respeito daquele primeiro ponto é textualmente o seguinte:
«Também parece [sublinhado nosso] infringir a garantia das nacionalizações a abertura das empresas nacionalizadas à participação do capital privado, pois então a empresa deixa de ser inteiramente pública, passando a pertencer, parcialmente embora, ao capital privado (transformando-se, portanto, em 'empresa mista'), com a intervenção na gestão que isso implique e logo, com segura infracção directa da garantia das nacionalizações.» Mas se na doutrina se depara com esta resposta negativa à questão ora em apreço, nela não falta também quem se manifeste, de modo peremptório, em sentido precisamente contrário. Fá-lo Luís S. Cabral de Moncada (Direito Económico, Coimbra, 1986, p. 85), o qual escreve, também textualmente, o seguinte: «já não afecta, contudo, a irreversibilidade das nacionalizações a possibilidade de participação do capital privado nas empresas nacionalizadas.
Na realidade, se o que se quer manter é a continuidade da nacionalização, ou seja, da transferência da titularidade, isso não impede que se aumente o capital por subscrição privada ou a outro título, pois que tal deixa intacta a titularidade (pública) do acervo de bens que foi nacionalizado. Claro está que a participação do capital privado vem diminuir o peso institucional do sector público, mas não afecta em si a nacionalização.» c) Quanto, por sua vez, às contribuições que para a apreciação e a resolução do problema em análise possam extrair-se da jurisprudência constitucional, são elas limitadas, porque laterais e indirectas, embora com algum interesse.
Sobre o preciso tema agora em questão não foi ainda este Tribunal chamado a pronunciar-se. Mas sobre o princípio da irreversibilidade das nacionalizações já teve oportunidade de tomar posição em diversos arestos, nomeadamente: no Acórdão 25/85 (Diário da República, 2.ª série, de 29 de Abril de 1985), em que acolheu a opinião - largamente prevalecente na doutrina - de que as nacionalizações operadas depois de 25 de Abril de 1974, de que se fala no artigo 83.º da Constituição, foram nacionalizações de «empresas» e não de sectores económicos; e nos Acórdãos n.os 10/84 e 26/85 (Diário da República, 2.ª série, respectivamente de 8 de Maio de 1984 e 26 de Abril de 1985), em que entendeu que ora e é compatível com o princípio da irreversibilidade das nacionalizações a extinção de empresas públicas nacionalizadas, quando ditada por razões de iniludível inviabilidade económica.
Por seu turno, a Comissão Constitucional teve ocasião de ocupar-se do mesmo princípio - do dito princípio da irreversibilidade das nacionalizações -, designadamente nos pareceres n.os 13/77, 15/77, 24/77 e 31/82 (publicados em Pareceres CC, respectivamente no 2.º vol., pp. 43 e segs. e 67 e segs., os dois primeiros, no 3.º vol., pp. 85 e segs., e no 21.º vol., pp. 47 e segs.).
Interessará destacar-se os dois primeiros e o último referidos.
Neste - no parecer 31/82 - entendeu a Comissão que o princípio da irreversibilidade das nacionalizações não é posto em causa pela transformação de uma empresa nacionalizada, e portanto com o estatuto de empresa pública, em sociedade comercial anónima de capitais públicos.
Por, sua vez, no parecer 15/77 (versando sobre o decreto da Assembleia da República que veio depois a converter-se na Lei 46/77, sobre a delimitação dos sectores de produção), entendeu a Comissão que aquela irreversibilidade não era afectada pela possibilidade de confiar a entidades privadas, em certos termos, a exploração e gestão de empresas nacionalizadas (situadas fora dos sectores vedados à iniciativa privada, ou ainda tendo como objecto os transportes públicos colectivos urbanos nos principais centros populacionais ou a exploração de portos marítimos e aeroportos). Será, pois, o caso de dizer que, se no decreto-lei sub judice é delineada uma certa forma de «associação» de entidades privadas e empresas nacionalizadas, não foi senão outra modalidade dessa «associação» (lato sensu) que nesse parecer se considerou como não violadora do princípio da irreversibilidade das nacionalizações; e será o caso de dizer ainda que o regime jurídico aí tido como não incompatível com este princípio vai inclusivamente, sob certo aspecto, mais longe do que o estabelecido no diploma em apreço: vai mais longe, claro é, consideradas as coisas do ponto de vista da gestão efectiva» das empresas nacionalizadas. [É certo, entretanto, que, face ao modo como o sector privado dos meios de produção passou, depois da revisão da Constituição, a ser definido pelo seu artigo 89.º, n.º 3 (bens e unidades de produção cuja propriedade ou gestão pertençam a pessoas singulares ou colectivas privadas), não falta quem entenda que a possibilidade de confiar a entidades privadas a exploração e gestão de empresas nacionalizadas - ou seja, o regime previsto no artigo 9.º da Lei 46/77 - se tornou, ao menos, supervenientemente inconstitucional (assim, G. Canotilho e V. Moreira, ob. cit., p. 411, nota VI ao artigo 83.º, e Carlos Ferreira de Almeida, Direito Económico - Propriedade dos Meios de Produção, Lisboa, 1983, pp. 65 e segs.). Mas julga-se que a opinião maioritária da doutrina é a oposta (assim, Sousa Franco, ob. cit., p. 41, Oliveira Martins, ob. cit., pp. 78, 103 e 119 e segs., Jorge Miranda, Direito da Economia, Lisboa, 1983, apud S. Franco, ob. cit., loc. cit., e ainda, ao que parece, se bem que numa postura de maior dúvida, Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 138 e 140).] Por último, no parecer 13/77, considerou a Comissão Constitucional que o princípio da irreversibilidade era posto em causa por um preceito cujo objectivo era o de ressalvar da nacionalização, de que fora objecto certa empresa cervejeira, as acções pertencentes a titulares que não reunissem os requisitos da nacionalidade portuguesa (e que, consequentemente, substituía a nacionalização global da empresa pela das acções pertencentes a nacionais portugueses). Notar-se-á porém, que o alcance de tal preceito era substancialmente diverso do da norma ora em apreço. É corto que, em ambos, o que estava (e está) em causa era (e é) a possibilidade de atribuir a entidades privadas, não já a «gestão», mas a «titularidade» do capital de empresas que começaram por ser integralmente nacionalizadas;
simplesmente, enquanto no diploma apreciado pela Comissão Constitucional se tratava de «restituir» àquelas entidades parte do capital inicialmente nacionalizado, agora o que se pretende é, mantendo integralmente nas mãos de entidades do sector público este capital, tão-só «abrir» a entidades privadas, para além desse capital inicial, e de resto sempre em posição minoritária, a possibilidade de participação no capital de uma dessas empresas. Situações radicalmente diversas, portanto - de tal modo que não poderá atribuir-se ao parecer em referência nenhum valor de precedente para a resolução do problema agora posto ao Tribunal.
d) Se o antecedente excurso pela doutrina jurídica e pela jurisprudência constitucional mostra que a primeira não fornece uma orientação unívoca e a segunda sequer uma indicação precisa para a resposta a dar à questão em apreço, não deixa todavia de mostrar igualmente que pelo menos tanto uma como outra estão em geral longe de atribuir um carácter ou um alcance em absoluto «rígido» ao princípio da irreversibilidade das nacionalizações.
Seja como for, há-de reconhecer-se - voltando directamente àquela questão - que o artigo 83.º, n.º 1, da Constituição comporta a interpretação segundo a qual fica vedada toda e qualquer participação de entidades privadas no capital de empresas nacionalizadas (ou de empresas resultantes da «transformação» destas). Nesse sentido argumentar-se-á que a nacionalização - a nacionalização de «empresas», que é a hipótese que importa aqui considerar, e não só de simples partes do seu capital - significou e teve precisamente em vista a transferência para o Estado da empresa enquanto unidade económica - uma unidade económica traduzida numa universalidade de bens, direitos e obrigações, mas compreendendo também o potencial dinamismo inerente à actividade empresarial em causa. Operou-se assim uma passagem da empresa como um «todo», na sua fisionomia «actual» e no seu desenvolvimento «futuro», para o sector público - e é essa passagem ou transferência que haverá, pois, de ter-se por «definitiva» ou «irreversível», por força do correspondente princípio constitucional.
Dir-se-á, de resto, que um tal entendimento de princípio da irreversibilidade é o que pode confortar-se com a vontade histórica do legislador das nacionalizações - sobretudo quando, como no caso, estas tiveram por objecto sociedades em que o Estado já detinha uma parcela, e uma parcela maioritária, do capital social. Se, pois, houver de atribuir-se ao legislador constituinte a intenção de assumir e perpetuar aquela vontade legislativa histórica, outro não poderá ser o sentido a dar a esse princípio.
e) Se esta concepção das coisas - esta concepção «maximalista» do princípio da irreversibilidade das nacionalizações - cabe no «texto» constitucional, a verdade, porém, é que não é por ele necessariamente exigida ou imposta. Não o é, por um lado, porque nada obriga a interpretar os preceitos constitucionais, em geral, segundo um puro critério subjectivista histórico, antes que segundo um critério objectivista (ou mesmo objectivo-actualista), e nada obriga, em particular, a perfilhar exclusiva ou prevalecentemente semelhante critério interpretativo na fixação do sentido do artigo 83.º, n.º 1, da Constituição; e não o é, por outro lado, porque esta disposição da lei fundamental (ou o princípio nela consagrado) comporta um outro sentido, diverso do acabado de expor, mas igualmente consonante com a ideia estrutural de fenómeno da nacionalização e com o seu significado e alcance.
Com efeito, o que estruturalmente caracteriza a nacionalização é a transferência da «titularidade» de certos bens ou unidades de produção para a Nação, isto é, para o Estado (cf., por exemplo, Mota Pinto, ob. cit., pp. 170 e segs.); essa transferência opera-se, pois, relativamente àquela universalidade de bens que em certo momento constitui ou integra a empresa nacionalizada (continua a pensar-se apenas na hipótese da nacionalização de «empresas») e, tratando-se de uma empresa de forma societária, àquele capital que nesse mesmo momento corresponde a essa universalidade e, de algum modo, a representa: são essa universalidade e (ou) esse capital que passam da «propriedade privada» para a «propriedade pública». Por outra parte, tem uma tal transferência de propriedade por objectivo - o que vale dizer: caracteriza teleologicamente a nacionalização - o propósito (político) de permitir a gestão da empresa nacionalizada (naturalmente pelo Estado, de modo directo ou indirecto) no interesse colectivo (e segundo os critérios deste interesse também pelo Estado definidos) (cf. ainda Mota Pinto, ob. cit., loc. cit.). Em suma: nacionalizar é transferir para o sector público uma certa universalidade de bens (e o capital que a representa), em vista justamente a assegurar a sua exploração segundo o modo social de gestão típico desse sector. Eis aí o radical impreterível da ideia de nacionalização.
Ora, há-de ser por este mesmo radical que terá de aferir-se, por seu turno, o alcance do princípio da irreversibilidade. E, assim, este não será posto em causa, por transformações de que venha a ser objecto a empresa nacionalizada, desde que permaneçam intocados, por um lado, a continuidade da transferência operada e, por outro, o princípio da gestão da empresa segundo o molde característico da gestão pública - ou seja, e no tocante a este segundo aspecto, a possibilidade de ser o Estado a definir e determinar, directa ou indirectamente, os critérios dessa gestão.
f) É seguramente este outro entendimento do artigo 83.º, n.º 1, da Constituição que deve preferir-se.
Em primeiro lugar e decisivamente - e como se acentua na resposta do Primeiro-Ministro - é para ele que aponta, de modo muito claro e expressivo, o confronto desse preceito constitucional com o imediato n.º 2. Na verdade, estabelecendo -se nesta outra disposição uma «excepção» ao princípio de irreversibilidade das nacionalizações, o qual consiste em admitir que certas empresas indirectamente nacionalizadas sejam «integradas no sector privado», isso não pode senão significar que o núcleo daquele princípio, ou daquela ideia, reside em permanecerem as empresas nacionalizadas no «sector público». Ora deve considerar-se que essa «permanência» está assegurada, respeitadas que sejam as exigências atrás referidas.
Em segundo lugar, não pode perder-se de vista que a cláusula da irreversibilidade das nacionalizações assume, como todas as cláusulas de «perpetuidade», um carácter excepcional: a regra ou o princípio não é, com efeito, o da duração perpétua das leis, mas tão-só o da sua duração «indefinida», e da sua permanente susceptibilidade de modificação ou revogação, em função de novos critérios de justiça ou de renovadas exigências da evolução social. Sendo assim, também essa índole excepcional da cláusula aponta para que a ela se não dê um entendimento rígido, mas antes de sentido diverso, e até «evolutivo». Só desse modo, de resto, se logrará que a Constituição aí também seja, quanto possível, uma living constitution: isto é, constituição que mantendo um quadro fundamental de referências, simultaneamente não tolha ao legislador (ao legislador democrático, directa ou indirectamente legitimado) a possibilidade de ocorrer a novas exigências do interesse público e da evolução económico-social.
Por outro lado, não será decerto de todo impertinente, no contexto da solução de problema em apreço, chamar à colação a circunstância de a Constituição Portuguesa, no seu quadro global de referências, não se haver guiado pela identificação entre «nacionalização» e «estatização», mas se haver norteado por uma ideia mais ampla de «socialização» (cf., por todos, Mota Pinto, ob. cit., pp. 163 e segs.); como será decerto lícito sublinhar o facto de esse desígnio não estatizante da Constituição (económica) se haver acentuado de modo significativo depois da revisão de que a mesma foi objecto em 1982.
Por último, cumprirá dizer que mesmo este outro entendimento do princípio da irreversibilidade preserva integralmente o sentido das nacionalizações de empresas em cujo capital já o Estado participava - pois esse sentido (o efeito da respectiva lei) foi, não só o de passar para o sector público o capital privado, mas também o de «consolidar» nas mãos do Estado o capital que este já detinha. E tudo isso fica garantido.
g) Dito isto, concluir-se-á que o regime estabelecido pelo diploma em apreço respeita as exigências fundamentais - ou exigências mínimas postuladas pelo princípio da irreversibilidade das nacionalizações, acima referidas.
Isto é: tais exigências são observadas quando, na abertura ao capital privado de uma empresa nacionalizada, mediante a sua transformação de empresa pública em sociedade anónima de capitais mistos, por um lado se garante que o capital correspondente ao capital social da empresa objecto de nacionalização se manterá reservado ao sector público (seja detido directamente pelo Estado, seja por outras pessoas colectivas públicas, seja ainda por «sociedades que, por determinação legal, pertençam ao sector público») e, por outro lado, se assegura que as entidades acabadas de referir deterão em qualquer momento da vida da empresa a maioria do capital da nova sociedade (mais precisamente, 51% desse capital).
É que, mantendo-se no sector público o capital inicialmente nacionalizado, preserva-se o princípio da continuidade da nacionalização; e, assegurando-se que serão entidades integradas no mesmo sector a deter sempre a maioria do capital, não só se preserva que a titularidade predominante do capital, e portanto da empresa, permaneça no sector público, como, através dos poderes determinantes de gestão da actividade empresarial, emergentes dessa maioria (cf., designadamente, o artigo 4.º do diploma), se garante que tal gestão prossiga segundo o molde «público». De resto, e no tocante a este último ponto, poderá ainda dizer-se que essa «gestão» sempre ficará, para além do mais, sujeita ao regime de intervenção do Estado nas empresas suas participadas, regime esse constante de diversos diplomas (inclusive diplomas pré-constitucionais sobre a matéria, que não haverá razão para considerar «revogados» pela Constituição de 1976).
Em suma: do regime em apreço se pode dizer que exclui que a transformação da SOCARMAR em sociedade de economia mista represente o «acto contrário» ou inverso da sua nacionalização, pois que assegura a manutenção da empresa na órbita do «sector público» dos meios de produção.
E que assim é, confirma-o a opinião doutrinal - porventura prevalecente - dos que entendem que as sociedades de economia mista em que o capital público seja maioritário integram esse sector: por todos, e além da referência de Mota Pinto, ob. cit., p. 147, cf. Sousa Franco, ob. cit., p. 35, Ferreira de Almeida, ob.
cit., pp. 27 e segs., e Miguel Catela, A Delimitação de Sectores de Propriedade na Constituição e na Lei, Lisboa, 1986, pp. 108 e segs. A ideia é a da «predominância» da titularidade e gestão por parte do sector público, ou do «controle» que este sector pode exercer sobre as empresas - predominância e controle que advêm da titularidade da maioria do capital. À mesma ideia ou critério se ligam várias disposições ou diplomas legais, como o artigo 1.º do Decreto-Lei 285/77, de 13 de Julho (sobre participações do sector público), ou o artigo 1.º do Decreto-Lei 151/77, de 14 de Abril (noção de sociedade controlada). - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
1 - Nada me parece dever acrescentar aos fundamentos invocados pelo Sr.Conselheiro Cardoso da Costa em apoio da sua posição, relativamente quer à questão da inconstitucionalidade orgânica, resultante do pretendido desrespeito pela reserva relativa, estabelecida em favor da Assembleia da República na alínea v) do artigo 168.º da Constituição, quer à inconstitucionalidade material do artigo 3.º do diploma registado sob o n.º 517/86 no livro próprio da Presidência do Conselho de Ministros, por violação do n.º 1 do artigo 83.º do texto constitucional.
Quanto a ambos os pontos, e pelos mesmos fundamentos, votei vencido.
2 - Não assim quanto à questão prévia de que o Sr. Conselheiro Cardoso da Costa trata inicialmente, na sua declaração. Ou seja: quanto ao facto de o Tribunal haver acabado por apreciar norma ou preceito diferente daquele que era referido no pedido.
É que nada impede, no quadro da ordem jurídica portuguesa actual, que uma empresa pública se transforme em sociedade anónima de responsabilidade limitada, desde que de capitais exclusivamente públicos. O que pode ser objecto de dúvida é o capital da sociedade ser apenas maioritariamente público. Nesta perspectiva, bem se compreende que o pedido tenha considerado não isento de reparo o artigo 3.º do projectado decreto-lei, desenvolvimento e concretização como é do que se refere, de passagem, no n.º 2 do artigo 1.º do mesmo projecto; mas não a transformação estrutural da empresa, nos moldes das sociedades anónimas de responsabilidade limitada.
Por outras palavras, a transformação, em si, seria na óptica do pedido legítimo;
não, todavia, nos termos do artigo 3.º do projecto.
Por isso o fulcro do pedido é o artigo 3.º - Armando Manuel Marques Guedes.