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Acórdão 274/2008, de 12 de Junho

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Sumário

Julga inconstitucional o anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6.º a 10.º da Portaria n.º 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõe que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar

Texto do documento

Acórdão 274/2008

I. Relatório

1 - Mário João Ferreira Matos requereu perante os serviços de segurança social de Coimbra a concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo para assim poder intervir num processo de execução fiscal que lhe fora instaurado.

Tomando por base o rendimento anual líquido do requerente e da pessoa que com ele vive em situação análoga à dos cônjuges, a que se considerou corresponder o rendimento relevante, para efeitos de protecção jurídica, superior a metade e menor do que duas vezes o valor do salário mínimo nacional, os serviços de segurança social notificaram o requerente, em sede de audiência do interessado, de uma proposta de decisão no sentido de lhe ser deferido o pedido de apoio judiciário na modalidade pagamento faseado.

Tendo o requerente manifestado a sua discordância, no uso da faculdade prevista no artigo 100.º do Código de Procedimento Administrativo, o pedido veio a ser indeferido por decisão de 6 de Março de 2007.

O requerente impugnou essa decisão perante o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, que decidiu conceder ao impugnante o apoio judiciário na requerida modalidade de dispensa total de pagamento de custas e demais encargos do processo, desaplicando, no caso concreto, as normas constantes do Anexo que integra a Lei 34/2004, de 29 de Julho, em conjugação com aos artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, de 31 de Agosto, por violação dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), e 63, n. os 1 e 3, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

A decisão encontra-se fundamentada, na parte que mais interessa considerar, nos seguintes termos:

Na sequência deste diploma [referindo-se à Lei 34/2004, de 29 de Julho], a concessão de protecção jurídica a quem, tendo em conta factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo (cf. artigo 8, n.º 1, da Lei 34/2004) passou a depender do valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (artigos 8.º, n.º 5, e 20.º, n.º 1, e ponto 1. do Anexo da lei 34/2004), determinado a partir do rendimento do agregado familiar - ou seja, também a partir do rendimento das pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção jurídica (n.os 1 e 3 do ponto 1. deste Anexo) - e das fórmulas previstas nos artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, de 31 de Agosto.

A apreciação em concreto da situação de insuficiência económica do requerente de protecção jurídica passou a ter lugar a título excepcional (cf. artigos 20.º, n.º 2, da lei de 2004 e 2 da referida Portaria), diferentemente do que sucedia no direito anterior (cf. artigos 7.º, n 1, 20.º, n. os 1 e 2, e 23.º, n.º 2, do Decreto-Lei 387-B/87, artigos 7.º, n.º 1, e 20.º, n. os 1 e 2, da Lei 30-E/2000 e modelo de requerimento de apoio judiciário para pessoas singulares aprovado pela Portaria 1223-A/2000, de 29 de Dezembro), relativamente ao qual é de salientar, a título exemplificativo, que o afastamento da presunção de insuficiência económica, legalmente estabelecida, dependia da circunstância de o requerente fruir outros rendimentos, próprios ou de terceiros.

A norma que constituía o artigo 7.º, n.º 1, da Lei 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e que era preenchida em face do caso concreto, passou a ser uma norma preenchida legislativamente. Quer dizer, o que era antes uma norma aberta ao preenchimento do caso concreto passou a ser uma norma fechada, interpretada "ope legis" por critérios económicos e financeiros aplicados através de uma fórmula matemática.

No caso concreto, nega-se o apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo a um peticionante com um agregado composto por três pessoas e com um rendimento global de (euro) 167,86 porque, segundo os critérios definidos no Anexo à lei do apoio judiciário, calculados segundo as fórmulas estabelecidas em portaria, apenas tem direito ao pagamento faseado.

A situação só por si apresenta contornos inaceitáveis se tivermos em atenção, como devemos ter, o custo de vida, nomeadamente, os custos com as necessidades básicas hodiernas, como a habitação, a educação, a saúde e a exigência de assegurar um nível mínimo de rendimentos para que possa concretizar-se o princípio máximo e supremo da dignidade da pessoa humana.

Mas o caso é mais premente porque, como se sabe, o apoio judiciário é concedido para questões ou causas judiciais concretas ou susceptíveis de concretização (artigo 6.º, n.º 2, da LAJ). Deve ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a situação da insuficiência económica for superveniente ou se, em virtude do decurso do processo ocorrer algum encargo excepcional, mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre o mérito da causa e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que em que essa concessão ocorrer (artigo 18.º, n.º 2, da LAJ).

Significa tal que este instituto só se justifica relativamente a questões judiciais em que o interessado queira exercer ou defender os seus direitos o que implica a pendência de uma lide ou a possibilidade dessa pendência.

Na situação em análise evidencia-se que o impugnante pretende defender-se em relação a diversas dívidas fiscais objecto de várias execuções fiscais (sendo certo que a apensação das execuções não é automática - artigo 179.º do CPPT).

Embora o cálculo do montante de prestação mensal não seja em função do montante das custas do processo, mas antes em função de vectores como o rendimento relevante de protecção jurídica e do salário mínimo nacional (ponto ii do Anexo) e haja um limite temporal para estas prestações, não sendo exigíveis as que se vençam após o decurso de quatro anos desde o trânsito em julgado da decisão final sobre a causa (n.º 2 do artigo 16.º da Lei 34/2004), o certo é que a justificação do pagamento faseado em situações como a dos autos em que o requerente necessita de instaurar vários processos, desvirtua-se completamente.

A injustiça flagrante é o limite mínimo da validade do direito, devendo o intérprete desaplicar a lei quando ela se revele intoleravelmente injusta. A irrazoabilidade, a desproporcionalidade, a irracionalidade são indicadores dessa injustiça flagrante e, na medida em que impedem a aceitação da lei por parte dos seus destinatários, retiram-lhe a validade.

Analisada a situação em concreto do requerente - o seu agregado familiar, os seus rendimentos, as suas despesas e todas os demais elementos relevantes -, verifica-se que o mesmo reúne as condições objectivas para que lhe seja concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento total da taxa de justiça e demais encargos com o processo (artigo 8.º da LAJ).

Assim, é de concluir pela desaplicação das normas constantes do Anexo que integra a Lei 34/2004, em conjugação com aos artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, as quais não garantem, na situação em referência, a concessão do apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento total da taxa de justiça e demais encargos com o processo, por violação dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, n. os 1 e 3, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Desta decisão, interpôs o Ministério Público recurso para Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da lei do Tribunal Constitucional, vindo a apresentar, no seguimento do processo, as seguintes alegações:

1 - Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada

O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da decisão, proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, que recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, as normas constantes do anexo à Lei 34/04, em conjugação com os artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, enquanto conduziram a denegar ao requerente Mário Ferreira Matos o apoio judiciário, na modalidade de dispensa total da taxa de justiça e demais encargos do processo.

Na verdade, na óptica da decisão recorrida, o sistema normativo emergente das disposições legais questionadas - conduzindo a uma avaliação da situação económica do requerente assente exclusivamente na aplicação das fórmulas rigidamente estatuídas, inviabilizando a ponderação casuística, substituída por uma "norma fechada, interpretada "ope legis" por critérios económicos e financeiros aplicados através de uma fórmula matemática", viola o direito de acesso à justiça pelos economicamente carenciados.

Analisando a especificidade do caso concreto, verifica-se que:

Foi tido em consideração, na avaliação da invocada insuficiência económica do requerente, não apenas o rendimento por ele auferido mensalmente ((euro) 735,86), mas também o recebido pela pessoa que com ele vive em situação análoga à dos cônjuges;

A rigidez do sistema normativo vigente implicou que não pudesse ser considerada a especificidade do caso, decorrente de o impugnante pretender defender-se "em relação a diversas dívidas fiscais objecto de várias execuções fiscais" - desvirtuando-se, neste caso, completamente a justificação do pagamento faseado que lhe havia sido autorizado pela Segurança Social.

Note-se que a primeira circunstância, atrás salientada, é suficiente para conduzir à aplicação do juízo de inconstitucionalidade formulado no acórdão 654/06: na verdade, no cálculo do rendimento relevante para o efeito de concessão do benefício do apoio judiciário, na modalidade peticionada pelo requerente, foi tido em consideração o rendimento global do agregado familiar, incluindo o auferido por quem com ele convivia em união de facto, independentemente de este poder fruir ou dispor de tal rendimento - não sendo perceptível a existência de interesse relevante do "cônjuge de facto" nas acções para que se pretendia obter a protecção jurídica, nem de qualquer obrigação deste em custear as despesas judiciais do interessado directo.

E tal juízo de inconstitucionalidade implica naturalmente - só por si - a reapreciação do rendimento disponível relevante do requerente - o que nos dispensa, por ora, de abordar a questão numa outra perspectiva: a do carácter eventualmente inibitório da defesa em juízo dos direitos, assente nos critérios económicos-financeiros tabelados, excessivamente restritivos, decorrentes das normas desaplicadas; é que, em certas circunstâncias, a imposição do dever de pagamento faseado a quem se encontre num nível de rendimento pouco superior ao limiar da sobrevivência condigna (inferido do valor salário mínimo) poderá efectivamente funcionar como factor de inibição da defesa judicial dos direitos, obrigando tais pagamentos - embora "faseados" - , a que o interessado tenha de deixar de satisfazer necessidades básicas e fundamentais para os assumir.

2 - Conclusão

Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:

1.º As normas constantes do anexo à Lei 34/04, conjugado com os artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, enquanto impõem que o rendimento relevante para efeitos de concessão do beneficio de apoio judiciário seja determinado a partir do rendimento do agregado familiar (incluindo quem convive com o requerente de protecção jurídica em união de facto), independentemente de este fruir tal rendimento ou de existir uma obrigação do titular do rendimento em custear as despesas dos pleitos em que o requerente está envolvido, viola o direito de acesso à justiça e aos tribunais.

2.º Termos em que deverá, nesta medida, confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida.

Em idêntico sentido se pronunciou o recorrido, concluindo as suas alegações do seguinte modo:

1.ª As normas constantes do Anexo que integra a Lei 34/2094, em conjugação com os artigos 6º a 10.º da Portaria l085-A/2004, de 31 de Agosto, conduzem a que não seja concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento total da taxa de justiça e demais encargos com o processo uma vez que impõem que o rendimento relevante para efeitos dessa concessão, seja determinado a partir do rendimento integral do agregado familiar, no qual se inclui o rendimento da companheira do recorrido, com quem vive em situação análoga à dos cônjuges, independentemente do mesmo fruir tal rendimento ou se o titular deste tem algum interesse, ou obrigação em custear as despesas da demanda, de forma a que esta conjugação de normas, viola o direito de acesso à justiça e aos tribunais.

2.ª O acesso ao direito e aos tribunais no que à capacidade dos litigantes reporta comporta, pelo menos, três regras:

a) A primeira regra é que tal acesso só não é gratuito, porque tal se revelaria impossível de concretizar. Do que extraímos a regra da menor onerosidade possível;

b) A segunda regra refere-se aos concretos litigantes e impõe que o acesso a juízo não deva constituir um grande sacrifício. Ou seja, o homem médio, colocado nas circunstâncias do litigante concreto, deve poder desenvolver a sua vida quotidiana, sem que a presença em juízo (muitas vezes, não voluntária) constitua um encargo de tal monta que o impeça de fizer a sua vida normal;

c) A terceira regra cruza o acesso aos tribunais com os princípios da necessidade e da adequação, ponderados em concreto.

3.ª Os artigos 6.º a 10º da Portaria 1085-A/2004, em si ou interpretados no sentido das despesas a suportar por um agregado não deverem ser integralmente consideradas na determinação da decisão de conceder ou não apoio judiciário na modalidade de dispensa total ou parcial de taxa de justiça e demais encargos com o processo, modalidade essa prevista no artigo 16.º, n.º 1, da Lei 34/2004, são inconstitucionais por violação dos princípios do respeito pela dignidade humana, do livre acesso aos Tribunais e da tutela jurisdicional efectiva, tal como os mesmos resultam do disposto nos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), 63.º, n. os 1 e 3, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa

Deve, pois, confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida.

Determinou-se, em substituição dos vistos, a entrega aos Exmos Juízes adjuntos das peças processuais relevantes.

Cabe apreciar e decidir.

II - Fundamentação

2 - Através da decisão ora recorrida, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, no âmbito de uma impugnação judicial da decisão dos serviços de segurança social que indeferiu ao requerente o pedido de apoio judiciário, recusou a aplicação das normas constantes do Anexo à Lei 34/2004, de 29 de Julho, em conjugação com os artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, de 31 de Agosto, por violação dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, n. os 1 e 3, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

De acordo com a factualidade dada como assente, o impugnante, no requerimento de protecção jurídica, indicou como constituindo o agregado familiar, a companheira, com quem vive em situação análoga à dos cônjuges, e um filho menor, correspondendo-lhe o rendimento anual líquido (euro) 15751,64.

Requereu o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, para poder intervir em execução fiscal que lhe fora instaurada por dívidas de uma sociedade de que foi sócio gerente.

Os serviços de segurança social, tomando em consideração um rendimento anual líquido de (euro) 16.350,11, calculado com base na média dos últimos seis meses de vencimento próprio ((euro) 735,86) e da pessoa com quem vive em união de facto ((euro) 432,00), a que corresponde um rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica expresso em múltiplos de salário mínimo actual de 1,41, determinado nos termos dos artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/04, de 31 de Agosto, entendeu que o requerente se encontrava na situação prevista na alínea c) do n.º 1 do Anexo à Lei 34/2004, de 29 de Julho, e, nesses termos, «não reun[ia] as condições de apoio judiciário na modalidade requerida, mas apenas ter[ia] direito ao pagamento faseado, se opta[sse] por esta modalidade».

Tendo sido notificado para se pronunciar, em audiência de interessado, quanto a essa proposta de decisão, o requerente, em resposta, manifestou a sua oposição, pugnando pela concessão do apoio judiciário na requerida modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo, pelo que, na sequência, o pedido veio a ser integralmente indeferido.

A impugnação judicial do acto administrativo de indeferimento culminou com a decisão judicial de recusa de aplicação de normas, que está agora sob apreço.

Em recurso obrigatório, o Exmo. Magistrado do Ministério Público considerou transponível para o caso a doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 654/06, tendo em linha de conta que para o cálculo do rendimento relevante, para o efeito de concessão do benefício do apoio judiciário, se atendeu ao rendimento global do agregado familiar, incluindo o que era auferido pela pessoa que convivia com o requerente em união de facto, independentemente de saber se este poderia fruir ou dispor de tal rendimento.

3 - Com efeito, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, da Portaria 1085-A/2004, o rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, é o montante que resulta da diferença entre o valor do rendimento líquido completo do agregado familiar e o valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica. Conforme explicita o artigo 7.º, o valor do rendimento líquido completo do agregado familiar resulta da soma do valor da receita líquida do agregado familiar com o montante da renda financeira implícita calculada com base nos activos patrimoniais do agregado familiar (n.º 1), entendendo-se por receita líquida o rendimento depois da dedução do imposto sobre o rendimento, das contribuições obrigatórias dos empregados para regimes de segurança social e das contribuições dos empregadores para a segurança social (n.º 2). Por sua vez, o valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica resulta da soma do valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado familiar com o montante da dedução de encargos com a habitação do agregado familiar, e é calculado de acordo com o estabelecido no artigo 8.º E, finalmente, o cálculo do valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, à luz de todas as especificações constantes dos artigos precedentes, é efectuada através da fórmula descrita no artigo 9.º

É ainda por referência ao rendimento relevante (em que como se viu intervém o rendimento das pessoas que compõem o agregado familiar) que se aprecia a insuficiência económica do requerente de apoio judiciário, para efeitos da concessão de protecção jurídica, atendendo-se aos parâmetros definidos no Anexo à Lei 34/2004. Sendo ainda certo, conforme resulta do n.º 3 desse Anexo, que para efeitos dessa lei «considera-se que pertencem ao mesmo agregado familiar as pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção jurídica».

Tem-se, por conseguinte, como certo, face ao estipulado na lei, que, para efeito de averiguar a situação de insuficiência económica determinante da concessão de apoio judiciário, em qualquer das suas modalidades, haverá que ter em conta os rendimentos das pessoas que integram o agregado familiar, entendendo-se como tal as pessoas que vivam em economia comum, independentemente de serem igualmente interessadas no litígio jurisdicional para que o requerente pretende o apoio judiciário.

O que o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 654/06 teve presente, num caso em que o requerente do apoio judiciário vivia com um ascendente do segundo grau que lhe prestava alimentos, é que o mencionado regime legal, deixando de efectuar, em regra, qualquer ponderação em concreto da situação de insuficiência económica, e passando a considerar, para esse efeito, o rendimento do agregado familiar com base na aplicação de uma mera fórmula matemática, poderá representar a denegação do direito de acesso aos tribunais quando se verifique que o requerente poderá não dispor dos rendimentos de terceiros que compõem o agregado familiar e que estes poderão não estão sequer obrigados a contribuir para as despesas judiciais que o requerente pretenda realizar.

Por isso mesmo, o citado aresto decidiu «julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República, as normas constantes do Anexo à Lei 34/04, conjugado com os artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, na parte em que impõe que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício de apoio judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar, independentemente de o requerente de protecção jurídica fruir tal rendimento».

Embora essa solução jurídica não seja directamente transponível para o caso dos autos, em que o agregado familiar, tal como foi declarado para efeitos de atribuição do benefício de apoio judiciário, é composto por pessoas que vivem em união de facto, não poderá deixar de reconhecer-se que existe alguma similitude entre essas situações.

4 - Foi a Lei 135/99, de 28 de Agosto, que, pela primeira vez, no ordenamento jurídico português, veio regular, em termos sistemáticos, a situação de duas pessoas que vivam em união de facto. Esse diploma foi depois revogado pela Lei 7/2001, de 11 de Maio, que, com idêntico objectivo, adoptou medidas de protecção das uniões de facto, em termos similares aos previstos para os cônjuges, e, designadamente, para efeito de atribuição da casa de morada de família, de aplicação do regime jurídico de férias, faltas, licenças e preferência na colocação, de aplicação do regime do imposto de rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, de protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social ou do regime de acidente de trabalho.

A mesma Lei, mediante a alteração da redacção do artigo 85.º, n.º 1, alínea c), do Regime de Arrendamento Urbano (entretanto revogado) igualmente permite a favor do unido de facto a transmissão do arrendamento para habitação por morte do primitivo arrendatário (artigo 5.º), tal como reconhece o direito de adopção em condições análogas às previstas no artigo 1979.º do Código Civil, sem prejuízo das disposições legais respeitantes à adopção por pessoas não casadas (artigo 7.º).

Não obstante a instituição de um regime unificado em relação a cada um desses efeitos jurídicos, a lei não excluiu a aplicação às uniões de facto de quaisquer outras disposições legais ou regulamentares que especialmente prevejam a protecção jurídica de uniões de facto ou de situações de economia comum (artigo 1.º, n.º 2), e algumas dessas disposições estão previstas não só em legislação avulsa como também no Código Civil, na sequência da reforma instituída pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro. É esse o caso da admissão de presunção de paternidade quando, durante o período legal da concepção, tenha existido comunhão duradoura de vida em condições análogas às dos cônjuges, da atribuição do exercício do poder paternal aos progenitores que conviverem maritalmente, e, bem assim, da possibilidade do exercício do direito a alimentos contra a herança do falecido, por parte daquele que com ele vivia, no momento da morte, em união de facto (artigos 1871.º, n.º 1, alínea c), 1911.º, n.º 3, e 2020.º, do Código Civil).

A extensão dos direitos dos cônjuges às pessoas que se encontram em situação de união de facto tem também ocorrido por via jurisprudencial, e designadamente, através da jurisprudência do Tribunal Constitucional; mas, nesse caso, não tanto por efeito do reconhecimento de um princípio de plena equiparação dos respectivos estatutos jurídicos, mas antes como uma decorrência da necessidade de evitar discriminações indevidas. Assim, no acórdão 359/91 declarou-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 1987 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 28 de Maio de 1987), no ponto em que considerou não aplicáveis às uniões de facto as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil, referentes à transmissão do direito de arrendamento ao cônjuge do arrendatário, por se entender, desse modo, violado o princípio da não discriminação dos filhos, contido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição. E, nos mesmos termos, o acórdão 1221/96 julgou inconstitucional, por violação do mesmo preceito, a norma do artigo 1793.º, n.º 1, do Código Civil, na interpretação segundo a qual o regime nele previsto de atribuição da casa de morada de família em arrendamento a um dos cônjuges, em caso de divórcio, não é aplicável às situações de cessação de união de facto. Por fim, o acórdão 286/99, ainda com invocação do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, julgou inconstitucional as normas dos artigos 42.º, n.º 1, e 46.º do Decreto-Lei 18/88, de 21 de Janeiro, na medida em que excluem da colocação por preferência conjugal neles estabelecida os professores que, sendo pais de filhos menores, mas não casados, convivam em condições idênticas às dos cônjuges e coabitem com os filhos.

Em qualquer destes casos, o Tribunal Constitucional formulou um juízo de inconstitucionalidade em ordem ao princípio da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, tal como estabelecido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, por forma a assegurar um tratamento idêntico para os filhos nascidos na constância do matrimónio e os havidos em resultado de situações de união de facto.

Esta jurisprudência não pretende, no entanto, esbater a diferente natureza entre o casamento e a união de facto, mas antes dar relevo, no plano do interesse dos filhos, à projecção ao princípio constitucional da igualdade de tratamento dos filhos nascidos fora do matrimónio, assegurando assim uma forma de tutela indirecta da união de facto.

Fora disso, o Tribunal Constitucional tem aceite o entendimento de que a pontual concessão de efeitos jurídicos às situações decorrentes de uniões de facto não permite afirmar o reconhecimento pelo legislador da integral equiparação dos estatutos familiares, consoante provenham de um vínculo legal pré-definido ou de uma mera relação de facto (acórdão 1221/96 citado). E tem antes admitido uma liberdade de conformação legislativa na regulação dos efeitos jurídicos resultantes da existência de uma situação de facto que não possa qualificar-se como uma relação matrimonial legalmente constituída.

Como se afirmou no acórdão 134/07, o legislador ordinário não se encontra constitucionalmente obrigado, designadamente por incidência do princípio da igualdade, a excluir do universo dos critérios utilizáveis na modelação do sistema infraconstitucional a atendibilidade do vínculo matrimonial; de tal modo que a diferenciação entre unidos de facto e casados, sendo em si mesma possível, apenas deverá ter em consideração a exigência da proporcionalidade, a qual será respeitada se o elemento diferencial questionado se mantiver dentro da medida da diferença que se verifique existir entre as duas situações relacionais; o agravamento da posição daqueles que se encontram em união de facto pode, por isso, justificar-se como o mero reflexo da inexistência entre eles de um vínculo jurídico.

Nesse sentido, o Tribunal, na linha de anterior jurisprudência, decidiu não julgar inconstitucional a norma dos artigos 40º, n.º 1, e 41.º, n.º 2, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei 142/73, de 31 de Março, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei 191-B/79, de 25 de Junho, na interpretação segundo a qual aí se faz depender a titularidade do direito à pensão de sobrevivência, em caso de união de facto, da prova pelo companheiro sobrevivo da impossibilidade de obtenção de alimentos da herança do companheiro falecido, em função do que dispõe o artigo 2020.º do Código Civil (no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos n.º s 159/05, 644/05, 705/05, 523/06, 26/07 e 220/07).

Em situação similar, também os acórdãos n.º s 195/03, 233/05 e 517/06 não julgaram inconstitucional a norma do artigo 8.º do Decreto-Lei 322/90, de 18 de Outubro, na parte em que faz depender a atribuição da pensão de sobrevivência, por morte do beneficiário do regime de segurança social, a quem com ele vivia em união de facto, da verificação dos requisitos previstos no n.º 1 do artigo 2020.º do Código Civil; e, por idêntica razão, o acórdão 640/05 não julgou inconstitucional a norma do artigo 6.º da Lei 135/99, de 28 de Agosto (entretanto substituído pelo artigo 6.º da Lei 7/2001, de 11 de Maio), interpretada no sentido de que a concessão de prestações sociais por morte de beneficiário da Caixa Nacional de Pensões a pessoa que com ele vivesse em união de facto depende da prova de não obtenção de direito a alimentos através da herança do falecido.

Seguindo um idêntico ponto de vista, o acórdão 57/95 considerou constitucionalmente admissível ao legislador fiscal interpretar a incumbência inserta na actual alínea f) do n.º 2 do artigo 67.º da Constituição (regular os impostos de harmonia com os encargos familiares), bem como a directiva do actual n.º 1 do artigo 104.º (o imposto sobre o rendimento pessoal deve ter em conta as necessidades e rendimentos do agregado familiar), como dirigidas unicamente às pessoas unidas pelo matrimónio, com exclusão das uniões de facto, entendendo como não arbitrária (e, como tal, não violadora do princípio da igualdade) a distinção efectuada nas normas de incidência do IRS em relação a esses dois tipos de situações.

Pode assentar-se, por conseguinte, na ideia de que existe uma caracterização legislativa da situação de união de facto, quando esta se revista de suficiente estabilidade, para permitir às pessoas que se encontrem nessas condições o reconhecimento de certos efeitos jurídicos - embora em medida mais limitada do que é correspondentemente aplicável ao cônjuges -, e que é ainda exigível, no plano do direito, - como tem sido sublinhado pela jurisprudência constitucional -, que o diverso tratamento jurídico entre as duas situações não possa ir além do que se mostra justificável segundo o princípio da justa medida.

Subsiste, em todo o caso, uma diferença significativa entre o casamento e a união de facto, que resulta da circunstância de, num caso, a comunhão de interesses se desenvolver a partir de um vínculo juridicamente assumido que envolve um conjunto de direitos e deveres recíprocos dos cônjuges, e, noutro caso, ela se situar no mero plano dos factos, sem qualquer carácter de imperatividade, e por isso também com uma maior liberdade de conformação individual.

Assim se compreende que os parceiros de uma união de facto, mesmo quando vivam em situação análoga à dos cônjuges, não se encontrem sujeitos aos deveres conjugais e, especialmente, aos deveres de coabitação, de cooperação ou de assistência a que se referem os artigos 1672.º, 1674.º e 1675.º do Código Civil, assim como se não encontram abrangidos pelos efeitos sucessórios ou pelo regime de bens aplicável nas relações existentes entre pessoas ligadas por vínculo matrimonial (sublinhando este aspecto, a declaração de voto do Conselheiro Luis Nunes de Almeida anexa ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1221/96).

Embora possa sustentar-se que determinadas situações geradas pela união de facto devam merecer a tutela do direito, como sucede com a questão da propriedade dos bens adquiridos ou da responsabilidade pelas dívidas contraídas na sua constância, o certo é que a união de facto não produz quaisquer efeitos patrimoniais que sejam directamente decorrente da lei, nem implica (por não ser aplicável o disposto no artigo 1691.º do Código Civil) a comunicabilidade das dívidas contraídas por qualquer um dos parceiros, ainda que possa provar-se que se destinaram a ocorrer a encargos normais da vida familiar, ou que redundaram em proveito comum do casal, ou, tendo resultado de actos de comércio, se não prove que não foram contraídas em proveito comum (cf. França Pitão, Uniões de facto e economia comum, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra, págs. 173 e seguintes e, em especial, págs. 177 e 183).

Nessa linha de orientação, os tribunais têm reconhecido que a união de facto, correspondendo a uma opção das partes, não importa, diferentemente do que sucede com o casamento, um dever de solidariedade patrimonial entre os seus membros, o que justifica que o legislador seja, nesse caso, mais exigente na definição das condições de atribuição de certos efeitos jurídicos do que em relação aos cônjuges (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Setembro de 2007, Processo 1619/07, referindo-se à atribuição de pensão de sobrevivência, a que aludem os artigos 3.º, alínea e), e 6.º, n.º 1, da Lei 7/2001, de 11 de Maio). Assim como tem sido afirmado que essa relação não envolve uma qualquer vinculação a deveres de assistência e cooperação, senão com base num mero princípio de livre vontade entre os seus membros, nenhum deles beneficiando do direito de exigir do outro assistência ou estando onerado com a obrigação civil de prestá-la (acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Março de 2008, Processo 4890/2006, e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Julho de 2007, Processo 830815, reportando-se ao direito a alimentos a que se referem os artigos 2009.º e 2016.º do Código Civil).

Neste sentido, ainda, um autor refere que «uma união de facto não implica forçosamente solidariedade patrimonial, logo não basta a prova dessa relação para se considerar verificada a diminuição da capacidade económica que é pressuposto da atribuição da pensão», ao contrário do que sucede no casamento em que essa diminuição é pressuposta (Rita Xavier, Uniões de Facto e pensão de Sobrevivência, in «Jurisprudência Constitucional», n.º 3, Julho-Setembro 2004, pág. 17 e segs).

4 - Revertendo ao caso dos autos, cabe de novo chamar a atenção para o facto de a insuficiência económica para efeito de concessão de apoio judiciário, dever ser apreciada, nos termos das mencionadas normas do Anexo à Lei 34/04 e dos artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, por referência ao rendimento do agregado familiar, entendendo-se como pertencendo ao mesmo agregado familiar as pessoas que vivam em economia comum com o requerente da protecção jurídica.

O conceito de economia comum não é desconhecido no ordenamento jurídico português e tem sido utilizado, ainda que, por vezes, com diferentes pressupostos, para a atribuição de diversos efeitos de direito. O artigo 1109.º do Código Civil, por exemplo, para efeito de determinar o conjunto de pessoas que podem residir no prédio no caso de arrendamento para habitação, definia a economia comum como sendo a situação em que existia uma «obrigação de convivência ou de alimentos», conceito que foi ainda mantido na norma do artigo 76.º, n.º 2, do Regime de Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, e, por remissão, no subsequente artigo 90.º, n.º 1, alínea a), para efeito do reconhecimento do direito a um novo arrendamento em caso de caducidade do contrato por morte do primitivo arrendatário. Esses mesmos princípios mantêm-se no Novo Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, que, no entanto, especifica que se consideram como vivendo com o arrendatário em economia comum, para além das pessoas relativamente às quais haja obrigação de convivência e alimentos, «a pessoa que com ele viva em união de facto» [artigos 1093.º, n.º 2, e 1106.º, n.º 1, alínea b)].

É, no entanto, a Lei 6/2001, de 11 de Maio, que, em vista à instituição de medidas de protecção das pessoas que vivam em economia comum, adopta uma formulação mais precisa, entendendo como tal «a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos». Desde logo se pode concluir que a situação de economia comum abrange uma realidade mais ampla do que a figura da união de facto; tanto assim que a própria lei esclarece que as medidas de protecção aí previstas não prejudicam a aplicação de quaisquer outras disposições que se destinem a regular a situação de união de facto (como é o caso das que constam da Lei 6/2001, da mesma data), nem constitui facto impeditivo de aplicação da lei a coabitação em união de facto (cf. artigo 1.º, n.º s 2 e 3).

A situação de economia comum abrange, pois, quer os que se encontrem vinculados pelo matrimónio, quer os unidos de facto, quer quaisquer pessoas ligadas ou não por parentesco ou relação afectiva - salvo quando se trate de qualquer das categorias de pessoas que estão excepcionadas pelo artigo 3.º da mesma lei -, desde que vivam em comunhão de interesses e de meios e contribuam com os seus proventos, o seu trabalho ou a cooperação mútua para a manutenção da habitação comum e o sustento dos residentes, assim se compreendendo a exigência de uma «vivência de entreajuda e partilha de recursos» (sobre estes aspectos, França Pitão, ob. cit., págs. 343 e 349-350).

Sendo essa uma definição fornecida pelo legislador para os fins previstos na Lei 7/2001, com um âmbito de aplicação muito específico - a atribuição de certo tipo de direitos em equiparação com os cônjuges -, ela não deixa de ter um significativo valor heurístico no preenchimento do conceito homólogo a que faz apelo o n.º 3 do Anexo à Lei 34/2004, neste caso, para permitir definir o que se entende por «agregado familiar».

A conclusão de que o requerente do apoio judiciário e a pessoa com quem ele vive em união de facto integram um agregado familiar (por aplicação da ideia de que vivem em economia comum) não elimina, no entanto, a dificuldade que foi suscitada, no plano da constitucionalidade, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 654/06, e que se traduz em saber se o interessado pode fruir de rendimentos que lhe não pertencem para efeito de fazer face a despesas judiciais relativas a um litígio em que se encontre envolvido.

Em relação a um conjunto de pessoas que vive em economia comum, pode suceder que qualquer delas não se encontre vinculada, em função do seu estatuto jurídico, a comparticipar com os seus próprios réditos na satisfação de encargos judiciais relativos a um processo judicial que apenas a um outro interessa, ainda que tenha justificado a apresentação de um pedido de apoio judiciário.

É essa a situação vertida na espécie jurisprudencial analisada, em que um familiar que recebe alimentos de um ascendente de segundo grau, não pode dispor dos rendimentos que a este pertencem, apesar de o titular integrar o agregado familiar e viver em economia comum.

É essa, também, manifestamente, a situação dos autos.

A união de facto é apenas um das situações através da qual se exprime a vida em economia comum. No entanto, como se deixou exposto, o unido de facto, pela própria natureza meramente factual da sua relação, não responde pelas dívidas contraídas pelo requerente do apoio judiciário, que devem considerar-se como dívidas próprias deste, do mesmo modo, que não se encontra juridicamente vinculado a contribuir para os encargos correntes da vida em comum, por se não encontrar sujeito ao estrito cumprimento dos deveres conjugais, e, designadamente, ao dever de assistência a que se refere o artigo 1675.º do Código Civil; não tem, por isso, qualquer obrigação de comparticipar na satisfação de despesas judiciais a que o outro interessado se encontra obrigado para intervir na defesa dos seus direitos ou legítimos interesses.

As normas do Anexo à Lei 34/04 e dos artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, ao tomarem em consideração o rendimento de todos os membros do agregado familiar - incluindo o daquele que vive com o requerente em situação de união de facto -, para efeito do cálculo do rendimento relevante para concessão de apoio judiciário, não tem em devida linha de conta que o unido de facto, e ainda que deva considerar-se como vivendo em economia comum, não pode dispor, no plano estritamente jurídico, dos proventos que pertencem ao outro membro do casal, nem exigir que este contribua para a realização de despesas que são próprias.

Isto é: embora a união de facto possa corresponder a uma situação análoga à do casamento, a que a lei atribui pontualmente certos efeitos jurídicos, não pode daí extrair-se a ilação de que essa situação é equiparável à relação familiar matrimonial legalmente constituída, designadamente para os efeitos pessoais e patrimoniais que lhe estão juridicamente associados.

5 - O instituto do apoio judiciário visa obstar a que, por insuficiência económica, seja denegada justiça aos cidadãos que pretendam fazer valer os seus direitos nos tribunais, constituindo uma concretização do direito de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.

Pressupondo que o sistema judiciário não é gratuito, a Constituição pretende aí garantir que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos, impondo que, dentro da margem de livre conformação do legislador, sejam asseguradas às pessoas economicamente carenciadas formas de apoio que viabilizem a tutela dos seus direitos e interesses legítimos (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 467/91, Diário da República, 2.ª série, de 2 de Abril de 1992; assim, também, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, pág. 180).

A Lei 34/2004, de 29 de Julho, na redacção anterior à Lei 47/2007, de 28 de Agosto, aqui aplicável face ao regime transitório do artigo 6.º deste último diploma, considera que se encontra em situação de insuficiência económica «aquele que, tendo em conta factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo» (artigo 8.º, n.º 1). No entanto, como já se anotou, a insuficiência económica é avaliada segundo o valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, determinado a partir do rendimento do agregado familiar, de acordo das fórmulas previstas nos artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, só excepcionalmente se admitindo uma apreciação em concreto da situação económica do requerente de protecção jurídica (artigo 20.º, n.º 2, da Lei 30/2004 e seu Anexo, e artigo 2.º da Portaria 1085-A/2004).

No caso, foi tido em consideração, na avaliação da insuficiência económica do requerente, não apenas o rendimento por ele auferido mensalmente ((euro) 735,86), mas também o recebido pela pessoa que com ele vive em situação de união de facto ((euro) 432,00), concluindo-se que o requerente se encontrava em condições de suportar o pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos do processo, segundo a modalidade de apoio judiciário prevista no artigo 16.º, n.º 1, alínea d), da Lei 34/2004, vindo o pedido a ser indeferido a final apenas porque o requerente, no legítimo uso do direito de audição, manifestou discordância relativamente à proposta de decisão.

Tendo sido considerado para o cálculo do rendimento relevante o rendimento global do agregado familiar, incluindo o auferido por quem com o requerente vive em união de facto, independentemente de este poder fruir ou dispor de tal rendimento, é de entender que a aplicação, no caso, das normas do Anexo à Lei 34/04 e dos artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/2004, é susceptível de pôr em causa o direito de acesso à justiça, tal como se conclui na decisão sob recurso.

III. Decisão

Termos em que se decide:

a) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, o Anexo à Lei 34/2004, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6.º a 10.º da Portaria 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõe que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar, incluindo o da pessoa que vive com o requerente em situação de união de facto, independentemente de este poder fruir tal rendimento;

b) Negar provimento ao recurso, confirmando o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida

Sem custas.

13 de Maio de 2008. - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Gil Galvão (votei a decisão, no essencial, por entender que é inteiramente transponível para o presente caso a jurisprudência constante do acórdão 654/2006, com a qual concordo).

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1686230.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1973-03-31 - Decreto-Lei 142/73 - Ministério das Finanças - Secretaria de Estado do Tesouro - Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência

    Aprova o estatuto das pensões de sobrevivência.

  • Tem documento Em vigor 1977-11-25 - Decreto-Lei 496/77 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Civil aprovado pelo Decreto Lei 47344, de 25 de Novembro, nos domínios, e quanto à parte geral, do direito internacional privado, fixação da maioridade, regime do domicílio legal dos menores e aquisição da personalidade jurídica das associações. Revê ainda, no direito da família, a disciplina do casamento (e do divórcio), da filiação, da adopção e dos alimentos e, no direito sucessório, a posição do cônjuge sobrevivo.

  • Tem documento Em vigor 1979-06-25 - Decreto-Lei 191-B/79 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministério das Finanças e do Plano

    Revê o estatuto das pensões de sobrevivência, aprovado pelo Decreto Lei 142/73, de 31 de Março, e insere outras disposições sobre a matéria.

  • Tem documento Em vigor 1987-12-29 - Decreto-Lei 387-B/87 - Ministério da Justiça

    Estabelece o regime de acesso ao direito e aos tribunais.

  • Tem documento Em vigor 1988-01-21 - Decreto-Lei 18/88 - Ministério da Educação

    Reformula e reestrutura os quadros das escolas dos actuais ensinos preparatório e secundário e estabelece os mecanismos legais necessários a uma maior estabilidade profissional dos professores.

  • Tem documento Em vigor 1990-10-15 - Decreto-Lei 321-B/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Aprova o regime do arrendamento urbano.

  • Tem documento Em vigor 1990-10-18 - Decreto-Lei 322/90 - Ministério do Emprego e da Segurança Social

    Define e regulamenta a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social.

  • Tem documento Em vigor 1991-10-15 - Acórdão 359/91 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1987, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 28 de Maio de 1987, e não tem por verificada a inconstitucionalidade por omissão suscitada pelo requerente.

  • Tem documento Em vigor 1999-08-28 - Lei 135/99 - Assembleia da República

    Regula a situação jurídica das pessoas do sexo diferente que vivem em união de facto há mais de dois anos.

  • Tem documento Em vigor 2000-12-20 - Lei 30-E/2000 - Assembleia da República

    Altera o regime de acesso ao direito e aos tribunais, atribuindo aos serviços da segurança social a apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário.

  • Tem documento Em vigor 2000-12-29 - Portaria 1223-A/2000 - Ministérios do Trabalho e da Solidariedade e da Justiça

    Aprova e publica em anexo os modelos, para pessoas singulares e pessoas colectivas, respectivamente, do requerimento de apoio judiciário, previsto no nº 2 do artigo 23º da Lei nº 309-E/2000, de 20 de Dezembro.

  • Tem documento Em vigor 2001-05-11 - Lei 6/2001 - Assembleia da República

    Estabelece o regime de protecção das pessoas que vivam em economia comum há mais de 2 anos.

  • Tem documento Em vigor 2001-05-11 - Lei 7/2001 - Assembleia da República

    Adopta medidas de protecção das uniões de facto. No prazo de 90 dias serão publicados os diplomas regulamentares das normas da presente lei que de tal careçam.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-21 - Lei 30/2004 - Assembleia da República

    Aprova a Lei de Bases do Desporto.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-29 - Lei 34/2004 - Assembleia da República

    Estabelece um novo regime de acesso ao direito e aos tribunais e transpõe parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2003/8/CE (EUR-Lex), do Conselho, de 27 de Janeiro, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios.

  • Tem documento Em vigor 2004-08-31 - Portaria 1085-A/2004 - Ministérios da Justiça e da Segurança Social, da Família e da Criança

    Fixa os critérios de prova e de apreciação da insuficiência económica para a concessão da protecção jurídica.

  • Tem documento Em vigor 2006-02-27 - Lei 6/2006 - Assembleia da República

    Aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), que estabelece um regime especial de actualização das rendas antigas, e altera o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e o Código do Registo Predial. Republica em anexo o capítulo IV do título II do livro II do Código Civil.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-28 - Lei 47/2007 - Assembleia da República

    Altera (primeira alteração) a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que altera o regime de acesso ao direito e aos tribunais.

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