Acórdão 359/91
Processo 36/90
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O pedido e os seus fundamentos
O Provedor de Justiça, invocando para tanto o disposto nos artigos 281.º da Constituição e 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1987, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 28 de Maio de 1987, «na parte em que engloba os casos de uniões de facto em que haja filhos menores», e bem assim «a inconstitucionalidade por omissão de uma medida legislativa que expressamente determine que as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil são aplicáveis, com as necessárias adaptações, às uniões de facto nos casos em que há filhos menores».
Como suporte do seu requerimento aduziu, em síntese, o seguinte:
a) O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em que foi tirado aquele assento, depois de considerar a regra geral contida no artigo 424.º do Código Civil, relativa à cessão da posição contratual, sustentou que o regime definido no artigo 1110.º, n.os 2 e 3, do mesmo Código constitui uma excepção àquela regra, uma vez que nele se permite que o direito ao arrendamento se transmita entre os cônjuges ou ex-cônjuges, conforme se trate de separação judicial ou divórcio, sem que para o efeito seja necessário o consentimento do senhorio, para depois concluir no sentido de aquele regime não poder ser aplicado, por analogia, ao caso das uniões de facto, mesmo quando desta haja filhos menores, sob pena de infracção do artigo 11.º do mesmo Código Civil;
b) Todavia, semelhante entendimento, correcto sob o ponto de vista do direito ordinário, colide com o disposto no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, que consagra o princípio da não discriminação dos filhos em função de os progenitores serem ou não casados;
c) Este preceito insere-se no capítulo referente aos direitos, liberdades e garantias, pelo que, por força do artigo 18.º também da lei fundamental, é directamente aplicável, vinculando entidades públicas e privadas, inclusivamente os tribunais;
d) Simplesmente, a obediência dos tribunais a esta norma constitucional ficou algo prejudicada com a publicação do assento em causa, na medida em que, por força dele, o regime contido no artigo 1110.º do Código Civil, deixou de poder ser aplicável, por analogia, às uniões de facto mesmo quando haja filhos menores, ficando os tribunais, nestes casos, impedidos de atender ao interesse de tais filhos, o que se traduz numa desigualdade de tratamento dos filhos, conforme eles provenham ou não do matrimónio;
e) Assim sendo, o referido assento, na parte em que engloba as uniões de facto em que há filhos menores, viola o disposto no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, preceito que se sobrepõe, como norma constitucional, ao disposto no artigo 11.º do Código Civil, segundo o qual as normas excepcionais são insusceptíveis de aplicação analógica;
f) Na eventualidade de se declarar a inconstitucionalidade material do assento questionado, ainda assim, a aplicação analógica do regime contido no artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil às uniões de facto em que haja filhos menores, não se imporia obrigatoriamente aos tribunais, que são livres na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico;
g) Entende-se, assim, que se está perante uma inconstitucionalidade por omissão de uma medida legislativa que expressamente determine que as normas do artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil são aplicáveis, com as necessárias adaptações às uniões de facto nos casos em que há filhos menores.
II - A resposta do órgão autor da norma
Em conformidade com o disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, foram notificados o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, quanto ao pedido de declaração de inconstitucionalidade do assento, e o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro, quanto ao pedido de verificação da inconstitucionalidade por omissão.
Enquanto os dois últimos se limitaram a oferecer o merecimento dos autos, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça produziu uma desenvolvida resposta cujo conteúdo essencial, por transcrição, se pode assim compendiar:
a) A doutrina [...] é no sentido de a «legislação portuguesa» se encontrar «muito longe de equiparar a união de facto ao casamento, mesmo depois das últimas reformas legislativas [...]».
Se assim é, como o assento se limitou a não reconhecer a aplicabilidade das normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil às referidas uniões de facto, segue-se que a decisão em nada contende com o artigo 36.º da Constituição.
b) É certo que o assento acrescentou que aquela inaplicabilidade se mantinha mesmo quando houvesse filhos menores. Será nesta parte que a decisão jurisdicional contenderá com a norma constitucional que proíbe discriminação entre filhos do casamento e fora deste?
Aparentemente pareceria existir a mencionada desconformidade constitucional, mas realmente assim não acontece e por duas ordens de razões.
c) Em primeiro lugar, o assento apenas negou a integração de uma suposta lacuna da lei, ou seja, entendeu que os citados preceitos do Código Civil não eram aplicáveis às uniões de facto por ter decidido que se tratava de «caso não regulado» (intencionalmente). Não se podendo atribuir o direito ao arrendamento ao pai ou à mãe não casados e não arrendatários, também ele nunca poderá ser adquirido pelos seus descendentes. Consequentemente, nunca podia estar em causa qualquer discriminação entre filhos fora do casamento ou proveniente deste.
d) Em segundo lugar, [...] a atribuição de força obrigatória geral a uma decisão jurisprudencial não lhe retira esta última característica. Sendo assim, os assentos depois de o respectivo acórdão ter transitado em julgado, tornam-se inatacáveis, o que vale por dizer não ser possível a fiscalização abstracta da sua inconstitucionalidade. Apenas se poderia ter recorrido para o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta para, verificado o condicionalismo do artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, se suscitar então a declaração com força obrigatória geral com base em juízos concretos de inconstitucionalidade. Isto porém não aconteceu.
e) Nestes termos, não deverá ser dada continuidade à pretensão do Provedor de Justiça ou, quando assim não se entenda, deverá a mesma improceder.
Verificou-se, entretanto, por vencimento, mudança de relator.
Cumpre agora apreciar e decidir.
E porque na resposta do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça se sustenta que os assentos, depois de o respectivo acórdão ter transitado em julgado, não são susceptíveis de sindicância em sede de fiscalização abstracta de constitucionalidade, importa, antes de mais, passar a considerar esta matéria liminar.
Vejamos então.
III - Duas questões prévias
1 - Todo o sistema de fiscalização da constitucionalidade tem por objecto normas, sendo certo que, como de modo constante e uniforme tem entendido este Tribunal [cf., por todos, o Acórdão 26/85 (Diário da República, 2.ª série, de 26 de Abril de 1985)], para tal efeito há-de operar-se com um conceito funcional de norma, um conceito funcionalmente adequado àquele sistema fiscalizador e consonante com a sua justificação e sentido. O que ali se tem em vista, como logo se assinalou no aresto citado, «é o controlo dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) - e em especial do poder legislativo -, ou seja, daqueles actos que contêm uma 'regra de conduta' ou um 'critério de decisão' para os particulares, para a Administração e para os tribunais».
Ora, nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral (artigo 2.º do Código Civil), sendo certo que o assento tanto pode fixar uma das várias interpretações possíveis da lei como preencher uma lacuna do sistema, criando a norma correspondente, para depois fazer aplicação dela ao caso concreto.
Não tem sido pacífico o entendimento doutrinal sobre a exacta caracterização dos assentos, verificando-se acentuadas divergências quanto à definição da sua natureza jurídica, como bem se extrai do recenseamento que a tal respeito é fornecido por A. Castanheira Neves, Enciclopédia Polis, vol. I, pp. 418 e 419. Assim:
Se alguns autores entendem possível atribuir natureza estritamente jurisdicional à prescrição dos assentos (A. Martins de Carvalho, A. Queiró) e outros, sem excluírem também essa natureza, não deixam de ver nela uma «interpretação autêntica», embora não uma lei intrepretativa (J. Alberto dos Reis), o certo é que a maioria dos nossos juristas se vê forçada a reconhecer que estamos verdadeiramente perante uma norma stricto sensu - apenas «norma interpretativa», posto que igualmente não «lei intrepretativa» ou interpretação autêntica (Marcello Caetano), irrecusavelmente norma jurídica «como qualquer outra do sistema» (Ferrer Correia, Pires de Lima - Antunes Varela, Oliveira Ascensão, etc.), e mesmo uma «disposição legislativa» (Barbosa de Magalhães, Paulo Cunha, Manuel Rodrigues, Fezas Vital, Cabral de Moncada, A. Palma Carlos). E, analisadas as coisas com a profundidade exigida, terá, na verdade, de concluir-se que a razão está com esta última posição: os assentos prescrevem normas jurídicas legislativas, pois se realizam neles as dimensões tanto materiais como formais de uma norma dessa natureza e com possibilidades normativas não só de interpretação autêntica, mas inclusivamente inovadoras, e inovadoras mesmo para além do âmbito estrito da integração (sobre tudo isto, v. A. Castanheira Neves, O Instituto dos «Assentos» e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, pp. 273-350).
Como quer que seja, não importando aqui apreciar a natureza ou a validade constitucional do instituto dos assentos, sempre se há-de dizer que a fixação de doutrina com força obrigatória geral operada através dos assentos, traduz a existência de uma norma jurídica com eficácia erga omnes, em termos de, quanto a ela, ser possível o accionamento do processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade. Aliás, já assim foi entendido por este Tribunal no Acórdão 8/87 (Diário da República, 1.ª série, de 9 de Fevereiro de 1987), que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante dos artigos 561.º e 651.º, § único do Código de Processo Penal e 20.º do Decreto-Lei 605/75, de 3 de Outubro, e do assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/79, de 28 de Junho.
2 - Como já atrás se observou, no entendimento do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, os assentos, depois do respectivo acórdão ter transitado em julgado, tornar-se-iam inatacáveis, não sendo possível quanto a eles a fiscalização abstracta da sua inconstitucionalidade. Em tais casos, ainda segundo esse entendimento, apenas se poderia recorrer para o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta para, verificado que fosse o condicionalismo do artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, se suscitar então a declaração com força obrigatória geral com base em juízos concretos de inconstitucionalidade.
Mas esta argumentação, seja qual for o seu exacto sentido - e há-de dizer-se não ser o mesmo inteiramente seguro - não pode proceder.
Com efeito, sendo ela entendida em termos de haver primeiro, de recorrer-se para o Tribunal Constitucional do acórdão no qual o assento se contém - recurso a interpor antes do respectivo trânsito em julgado -, para, só depois, se utilizar o dispositivo contido no artigo 281.º, n.º 3, da Constituição (e não 281.º, n.º 2, como por manifesto lapso ali se escreveu) sempre que ao recurso fosse concedido provimento, a reformulação do acórdão recorrido daí derivada impediria a subsistência do assento enquanto tal, gorando-se simultaneamente a possibilidade da sua aplicação naqueles casos concretos.
Mas, ainda quando se interprete a resposta do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça em termos de os juízos concretos de inconstitucionalidade ali referidos se deverem reportar a decisões tiradas em processos de fiscalização concreta nos quais haja sido questionado o rigor constitucional do assento, sempre teria de se concluir no sentido da inexactidão da afirmação ali produzida a respeito de os assentos, depois do respectivo acórdão ter transitado em julgado, se tornarem inatacáveis, por ser, quanto a eles, vedada a fiscalização abstracta de constitucionalidade. É que, por esta via, sempre o assento viria a ser sujeito a controlo de constitucionalidade em processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade, sendo certo não existir qualquer diferença de grau ou de conteúdo entre estes processos, sejam eles requeridos nos termos do n.º 2 ou do n.º 3 do artigo 281.º da Constituição.
Do exposto, improcedendo sempre a argumentação desenvolvida na resposta a propósito desta questão prévia, concluiu-se no sentido do seu desatendimento.
3 - O assento cuja constitucionalidade vem questionada reporta-se às normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil relativas à incomunicabilidade do arrendamento para habitação.
Simplesmente, já depois da publicação do assento no Diário da República, em 28 de Maio de 1987, foi editado o Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o regime do arrendamento urbano, em cujo capítulo II (Do arrendamento urbano para habitação), secção III (Da transmissão do direito do arrendatário), se insere uma nova e completa disciplina jurídica neste domínio, se bem que, no caso específico da incomunicabilidade do arrendamento, inteiramente coincidente com aquela que anteriormente vigorava (cf. artigos 1110.º do Código Civil e 83.º e 84.º do Decreto-Lei 321-B/90).
Será que à luz deste quadro normativo a vigência do assento ainda se mantém?
A resposta terá de ser afirmativa, pois que os assentos só caducam quando forem revogados por um preceito legislativo posterior ou quando for modificada a legislação no âmbito da qual foram proferidos - salvo, nesta última hipótese, se a legislação anterior «for substituída por outra que contenha textos idênticos, não havendo razões para excluir que o sentido dos novos textos seja igual ao dos antigos [Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, anos 96.º, p. 366, e 101.º, p. 343, em nota» (cf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., 1982, p. 53)].
Deste modo, numa linha de continuidade deste entendimento doutrinal, aliás, generalizadamente aceite, e porque na situação em presença a norma do artigo 84.º do regime do arrendamento urbano se limita a reproduzir o texto do artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil, há-de concluir-se pela subsistência de interesse jurídico relevante no conhecimento da eventual inconstitucionalidade do assento aqui em causa, cuja vigência, por inteiro, se mantém.
Aqui, chegados, desatendidas que foram as duas questões prévias, cabe agora partir ao encontro do pedido, começando-se, porém, em ordem a uma melhor sistematização e compreensão do tema a decidir, por fazer uma breve referência aos antecedentes legislativos e jurisprudenciais do assento sob sindicância.
IV - A história do assento
1 - O artigo 1110.º do Código Civil dispunha do modo seguinte:
1 - Seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge e caduca por sua morte, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.
2 - Obtido o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, podem os cônjuges acordar em que a posição de arrendatário fique pertencendo a qualquer deles.
3 - Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos, a culpa imputada ao arrendatário na separação ou divórcio, o facto de ser o arrendamento anterior ou posterior ao casamento, e quaisquer outras razões atendíveis; estando o processo pendente no tribunal de menores, cabe a este a decisão.
4 - A transferência do direito ao arrendamento para o cônjuge do arrendatário, por efeito de acordo ou decisão judicial, deve ser notificada oficiosamente ao senhorio.
As normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo que vem de se transcrever - no que aqui importa - prescreviam que, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, o direito ao arrendamento da casa de morada de família podia ser atribuído por acordo dos cônjuges ou ex-cônjuges, ou, à falta deste, por decisão judicial, ao cônjuge ou ex-cônjuge não arrendatário.
Estas normas, que tiveram como antecedente imediato a disposição contida no artigo 45.º da Lei 2030, de 22 de Junho de 1948, sempre foram jurisprudencialmente interpretadas em termos de apenas regerem para o caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, e não já para o caso de os cônjuges se acharem simplesmente separados de facto ou para as simples uniões de facto [cf. Acórdãos da Relação de Lisboa de 13 de Outubro de 1965 (Jurisprudência das Relações, n.º 4, p. 625); da Relação do Porto de 9 de Novembro de 1966 (Jurisprudência das Relações, n.º 5, p. 877); da Relação de Lisboa, de 21 de Fevereiro de 1978 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 276, p. 312); e da Relação de Lisboa de 11 de Dezembro de 1984 (Colectânea de Jurisprudência, 1984, n.º 5, p. 165) e de 16 de Janeiro de 1986 (Colectânea de Jurisprudência, 1986, I, p. 91)].
Simplesmente, e em oposição ao uniforme entendimento jurisprudencial que vinha sendo firmado, a Relação de Lisboa, por Acórdão de 2 de Junho de 1981 (Colectânea de Jurisprudência, 1981, n.º 3, p. 165), depois de ponderar que, «não obstante a incomunicabilidade do arrendamento no matrimónio legitimamente constituído, o senhorio tem de sujeitar-se à transferência do arrendamento para o outro cônjuge, no interesse dos filhos do arrendatário [...] não poderá opor-se a análoga transferência, no interesse dos filhos naturais, seja ela operada por acordo de pais não casados entre si, seja deliberada pelo Tribunal no interesse dos filhos, visto que de outro modo se violaria o princípio constitucional da igualdade (artigos 13.º, n.º 2, e 36.º, n.º 4, da Constituição)», concluiu no sentido de nada impedir que as normas do artigo 1110.º do Código Civil sejam aplicáveis analogicamente às uniões de facto quando haja filhos menores.
Todavia, a Relação de Lisboa não manteve esta jurisprudência, vindo a decidir, em Acórdão de 4 de Maio de 1984, referido no texto do assento, em termos de inteira oposição àquele anterior aresto.
2 - Este conflito de julgados foi decidido pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1987 publicado no Diário da República, 1.ª série, de 28 de Maio de 1987, que dispõe da formulação seguinte:
As normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil não são aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores.
Aquele Alto Tribunal, para alcançar esta decisão, partiu, essencialmente, do seguinte quadro argumentativo:
As normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º revestem carácter excepcional, relativamente ao regime geral da cessão da posição contratual do arrendatário, previsto nos artigos 424.º e seguintes ex vi do artigo 1059.º, n.º 2, todos do Código Civil;
Com efeito, aquelas normas não só se desviam, para o caso que regulam, das normas gerais, como estão em absoluta oposição com estas, o que é da essência das normas excepcionais;
Atribuída essa natureza às referidas normas, é evidente que a sua aplicação, por analogia, a outros casos não previstos está, desde logo, vedada por força do disposto no artigo 11.º do mesmo Código;
Contudo, ainda que a essas normas se não pudesse atribuir a natureza de «normas excepcionais» (o que só por absurdo ou conveniência de raciocínio se admite), nem por isso a sua aplicação analógica às situações de «união de facto» era de sufragar, enquanto se não estava perante um «caso omisso» e, portanto, face a uma lacuna da lei, pressuposto do recurso à analogia, mas antes em presença de «um caso não regulado», o que é bem diferente do «caso omisso», como se extrai do artigo 10.º do Código Civil;
É que o legislador não conferiu, em princípio, às «uniões de facto» quaisquer efeitos jurídicos, só em casos meramente pontuais lhes atribuindo efeitos dessa natureza (artigos 2020.º, na redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, e 1111.º, n.º 2, na redacção da Lei 46/85, de 20 de Julho);
No que respeita à transmissão ou transferência do arrendamento para habitação por acto entre vivos, não se vê justificação para «forçar» o senhorio a aceitar, como arrendatário, o «companheiro» do primitivo arrendatário que com este tenha vivido em economia comum quando, por qualquer motivo, essa «união» haja terminado;
E a questão não tem qualquer «especificidade» pelo facto de surgir em processos instaurados para regulação do poder paternal de filhos menores cujos pais viviam em simples «união de facto», como no caso do presente conflito de julgados aconteceu;
Não pode, por isso, falar-se, como se argumenta no Acórdão de 2 de Junho de 1981, em qualquer violação dos princípios da igualdade contidos nos artigos 13.º, n.º 2, e 36.º, n.º 4, da Constituição, com fundamento na discriminação no tratamento dos filhos naturais.
Sustenta-se no pedido que o assento em causa, fundamentado nos termos atrás expostos na parte em que compreende as uniões de facto mesmo quando destas haja filhos menores, viola o princípio da não discriminação dos filhos e função de os seus progenitores serem ou não casados.
Acaso será assim?
É o que de seguida se intentará averiguar.
V - O assento e a norma do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição
1 - O artigo 36.º da lei fundamental, subordinado à epígrafe «Família, casamento e filiação», acha-se inscrito no título II (direitos, liberdades e garantias pessoais) da parte I (direitos e deveres fundamentais), e dispõe, no seu n.º 4, do modo seguinte:
Os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação.
O princípio da não discriminação entre filhos, independentemente de os progenitores estarem ou não casados, que neste preceito se consagra, representa uma das grandes transformações provocadas pela Constituição na ordem jurídica precedente, fazendo caducar ou revogar numerosas normas que em múltiplos domínios jurídicos afirmavam a distinção entre filhos «legítimos» e filhos «ilegítimos», e que com base nela estabeleciam múltiplas discriminações, desde a constituição da relação de filiação até aos direitos sucessórios (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, A Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., p. 231).
Integrado num preceito constitucional respeitante aos direitos, liberdades e garantias, é este princípio directamente aplicável, isto é, dispõe de eficácia imediata, não carecendo de mediação, desenvolvimento ou concretização legislativa para esse efeito, e vincula as entidades públicas e privadas.
Todavia, as normas do artigo 1110.º do Código Civil, a que o assento se reporta, não visam a definição do estatuto dos filhos menores, antes se projectam sobre a disciplina de um dos efeitos do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, mais exactamente, a sua incidência sobre o contrato de arrendamento da casa de morada da família.
Assim, dir-se-á talvez, as consequências advindas da ruptura de uma união de facto para os filhos menores dela eventualmente existentes não cabem no âmbito da sua previsão, pois que o legislador, ao contemplar ali o interesse dos filhos, quis atender apenas ao interesse dos filhos nascidos do casamento, e não já ao interesse dos filhos nascidos de uniões de facto.
E deste modo, concluir-se-ia, não pode, legitimamente, convocar-se aqui, para servir de parâmetro aferidor da genuidade constitucional daquelas normas, o princípio consagrado no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, que proíbe a discriminação entre filhos.
Simplesmente, como de seguida se verá, semelhante entendimento das coisas é, de todo, inaceitável.
2 - Como já atrás se observou, as normas a que o assento se reporta prescrevem, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, que o direito ao arrendamento da casa de morada de família pode ser atribuído por acordo ou por decisão judicial ao cônjuge ou ex-cônjuge não arrendatário.
Na falta de acordo, a decisão de atribuição a proferir pelo juiz há-de atender aos diversos índices ou factores de referência ali elencados: situação patrimonial dos cônjuges; circunstancias de facto relativas à ocupação da casa; o interesse dos filhos; a culpa imputado ao arrendatário na separação ou divórcio; o facto de ser o arrendamento anterior ou posterior ao casamento; quaisquer outras razões atendíveis.
Na enumeração destes diversos elementos factuais não se estabeleceu na lei qualquer hierarquia de valores, podendo contudo dizer-se que, quando são iguais ou muito aproximadas as necessidades materiais dos cônjuges, a decisão sobre a atribuição do arrendamento há-de atender, sobretudo, à capacidade económica de cada um e ao interesse dos filhos menores.
Deste modo, a regra sobre a atribuição da casa de morada de família contém diversos princípios informadores dos quais, em última análise, no plano da respectiva aplicação, vai depender o sentido da própria regra.
Ora, um desses conteúdos normativos de que pode depender a transferência do arrendamento consubstancia-se num princípio da protecção do interesse dos filhos menores.
E desde que se entenda que o interesse dos filhos apenas vale no caso dos filhos nascidos do casamento, e não já relativamente aos filhos cujos pais viviam em união de facto, parece seguro que, no plano específico deste segmento normativo, então erigido em critério decisivo de atribuição do arrendamento, se verifica um manifesto tratamento discriminatório relativamente aos filhos cujos pais viviam em união de facto.
E não vale dizer-se, contra isto, que as normas a que o assento se reporta não visam definir o estatuto dos filhos menores ou que nem com ele directamente contendem.
E não vale, porque, no plano da sua axiologia, contém-se um segmento de estatuição relativo ao interesse dos filhos, o qual, quando a ele se faz apelo por força da exclusão de outros menos ponderosos ou inservíveis, se apresenta como critério de decisão fundamental, critério de decisão determinante e, por inteiro, fundado na consideração do que é mais justo, adequado e conveniente para o interesse dos filhos face à situação de instabilidade familiar resultante da ruptura verificada entre os pais.
Assim, reconhecida que seja a discriminação resultante daquelas normas, bem como da doutrina do assento, para os filhos menores nascidos de uniões de facto aos quais é concedido um tratamento de desfavor em relação aos filhos nascidos do casamento - e este ponto, por inteiramente patente, é insusceptível de ser questionado - há-de fazer-se obrigatoriamente apelo ao princípio constitucional da não discriminação dos filhos, o qual, por força do seu especial regime jurídico, goza de conteúdo preceptivo e de eficácia imediata, vinculando as entidades públicas e privadas e, necessariamente, os tribunais.
Por força deste princípio e da sua aplicação cogente, haverá de se considerar inconstitucional o assento de 23 de Abril de 1987, pois que, por força dele, consente-se um tratamento diferenciado entre filhos menores, consoante sejam nascidos dentro ou fora do casamento, impondo-se a estes últimos um regime de manifesto desfavor relativamente àqueles, tudo em aberta contravenção com o disposto no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição.
Entendimento semelhante ao que vem de se expor foi sustentado por Pereira Coelho em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 1985 (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 120.º, n.º 3756, pp. 81 e 82), na qual, a propósito da doutrina do assento aqui em causa, se escreveu o seguinte:
Não nos propondo analisar a argumentação do assento, não deixaremos de notar que este passa muito por alto, salvo o respeito devido, a objecção fundamental que podia invocar-se contra a doutrina que fez vencimento: a objecção tirada da discriminação contra os filhos nascidos fora do casamento, que assim fica a existir, a que se refere a declaração de vencido do conselheiro Lima Cluny. Com efeito, o tribunal pode atribuir o direito ao arrendamento, «tendo em conta o interesse dos filhos» (artigo 1110.º, n.º 3), ao progenitor a quem os filhos são confiados, mesmo que este não seja o arrendatário; segundo a doutrina do assento, porém, o «interesse dos filhos» só pode ser critério para atribuição do direito ao arrendamento se se tratar de filhos nascidos do casamento e os progenitores se divorciarem. Se os progenitores viverem em união de facto e se separarem, não pode o tribunal atribuir o direito de arrendamento ao progenitor não arrendatário, mesmo que os filhos lhe tenham sido confiados em acção de regulação do poder paternal e tal atribuição seja mais favorável ao «interesse dos filhos». Note-se que, se a solução que fez vencimento no assento se julgar contrária ao princípio do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição da República (como nos inclinamos a crer), ou seja, se se entender que é uma discriminação contrária àquele princípio o facto de o tribunal, tratando-se de filhos nascidos fora do casamento, não poder atribuir o direito de arrendamento, no interesse dos filhos, ao progenitor a quem fiquem confiados se esse progenitor não for o arrendatário, não assumirá relevância o argumento (a que se cinge, praticamente, a fundamentação do assento) de que a extensão à união de facto do preceituado nos n.os 2 a 4 do artigo 1110.º implicaria a aplicação analógica de normas que fazem excepção à regra do artigo 424.º, n.º 1, do Código Civil, contra o disposto no artigo 11.º do mesmo Código; o argumento não assumirá relevância, pois a sujeição dos dois casos ao mesmo regime será exigida por aquele preceito constitucional.
E aquele ilustre professor, depois de contrapor à argumentação contida no assento relativamente ao facto de nele não se ter visto «justificação para 'forçar' o senhorio a aceitar, como arrendatário, o 'companheiro' do primitivo arrendatário que com este tenha vivido em economia comum» a consideração de que o princípio do artigo 424.º, n.º 1, do Código Civil sobre a cessão da posição contratual comporta numerosas excepções no âmbito do direito de locação [divórcio ou separação judicial se pessoas e bens (artigo 1110.º); cessão da posição contratual havendo trespasse (artigo 1118.º, n.º 1) ou transmissão do local arrendado para exercício de profissão liberal (artigo 1120.º, n.º 1); falecimento do arrendatário, quer se trate de arrendamento para habitação (artigo 1111.º), quer se trate de arrendamento comercial ou equiparado (artigo 1113.º), e no primeiro caso, inclusivamente, na hipótese de união de facto (artigo 1112.º), o que não pode deixar de se registar], pelo que não será excessiva violência «forçar» o senhorio a reconhecer como arrendatário a mulher que vivia em união de facto com o primitivo inquilino se, havendo filhos, a união se desfizer, remata o seu comentário pela forma seguinte:
Finalmente, também não parece decisivo o argumento, que já se tem invocado contra a orientação preconizada (Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Dezembro de 1984, Colecção de Jurisprundência, 1984, t. 5, p. 165), de que o interesse dos filhos, sendo meramente indirecto, não justificaria a atribuição do direito de arrendamento ao progenitor não arrendatário. Não só os filhos beneficiam imediatamente da atribuição do direito de arrendamento ao progenitor a quem ficam confiados, como poderão vir a suceder no direito de arrendamento por morte desse progenitor, se se entender, como parece razoável (P. Lima - A. Varela, Código Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª ed., p. 627), que o artigo 1111.º, n.º 4, também se aplica ao caso previsto no artigo 1110.º
Também Gomes Canotilho, num estudo sobre «Constituição e défice procedimental», publicado na revista Estado & Direito, n.º 2, 2.º semestre de 1988, depois de considerar o assento em causa como «uma decisão jurisdicional violadora do princípio constitucional da igualdade dos filhos (Constituição da República Portuguesa, artigo 36.º, n.º 4)», acrescenta a seguir que ali se mostram verificados os pressupostos típicos da Verfassungsbeschwerde (acção constitucional de defesa) assim enumerados:
1) Violação imediata, actual e autónoma de um direito, liberdade e garantia;
2) Em que se esgotaram já as vias judiciais normais;
3) Está em causa um direito constitucional específico (princípio constitucional da igualdade dos filhos);
4) São entidades públicas (decisão do Tribunal) as autoras do «acto de agressão».
Este entendimento das coisas afigura-se como irrecusável.
Ao excluir a aplicação das normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores, o assento veio definir uma doutrina contrária ao princípio da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, estabelecido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, princípio este que, sobrepondo-se às normas de direito ordinário ali invocadas, tem de aplicar-se directa e obrigatoriamente por forma a assegurar um tratamento idêntico para os filhos nascidos do casamento e para os filhos havidos de uniões de facto.
E por assim ser, a nuclearidade essencial da fundamentação do assento - a extensão às uniões de facto da disciplina contida nas normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º implicaria a aplicação analógica de disposições que fazem excepção à regra do artigo 424.º, n.º 1, do Código Civil, com desrespeito ao disposto no artigo 11.º do mesmo Código, segundo o qual as normas excepcionais não comportam aplicação analógica - deixa de ter relevância, havendo a questão de vir a ser decidida numa pura perspectiva constitucional.
Aliás, em última análise, a decisão sobre a matéria impugnada há-se situar-se, não já no plano da diferente natureza do casamento e da união de facto, mas sim no plano do interesse dos filhos, que, por força daquele preceito constitucional, não podem conhecer tratamento discriminatório derivado do facto de os respectivos progenitores serem ou não casados, mostrando-se assim irrelevante a argumentação que, pelo facto de a lei civil proibir a aplicação analógica de normas excepcionais, acaba por não rejeitar aquela discriminação.
VI - A Inconstitucionalidade por omissão
Em conformidade com o juízo de avaliação formulado no pedido, verificar-se-ia no ordenamento jurídico inconstitucionalidade por omissão de uma medida legislativa que expressamente determine que as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil são aplicáveis, com as necessárias adaptações, às uniões de facto nos casos em que há filhos menores.
Isto porque, segundo tal entendimento, na eventualidade de o assento vir a ser declarado inconstitucional, e apesar de os tribunais passarem então a dispor da possibilidade de aplicar, por analogia, aquelas normas às uniões de facto em que haja filhos menores, nada garante que, para os mesmos, a aludida aplicação analógica seja um imperativo constitucional.
Nos termos do artigo 283.º, n.º 1, do texto constitucional, assiste ao Provedor de Justiça legitimidade para requerer a apreciação e verificação do não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais.
Este Tribunal, em diversos arestos [cf. Acórdãos n.os 182/89, 276/89 e 36/90 (Diário da República, 1.ª série, de 2 de Março de 1989, e Diário da República, 2.ª série, respectivamente, de 12 de Junho de 1989 e 4 de Julho de 1990)], teve ensejo de tratar a matéria da inconstitucionalidade por omissão, escrevendo-se no Acórdão 276/89, a propósito da delimitação do âmbito do conceito de «omissão legislativa», nomeadamente, o seguinte:
[...] a intervenção do legislador não se reconduz aqui ao «dever» que impende sobre o órgão ou órgãos de soberania para tanto competentes de acudir às necessidades «gerais» de legislação que se façam sentir na comunidade jurídica (isto é, não se reconduz ao «dever geral» de legislar), mas é antes algo que deriva de uma específica e concreta incumbência ou encargo constitucional (Verfassungsauftrag). Por outro lado, trata-se de uma incumbência ou «imposição» não só claramente definida quanto ao seu sentido e alcance, sem deixar ao legislador qualquer margem de liberdade quanto à sua própria decisão de intervir (isto é, quanto ao an da legislação) - em tais termos que bem se pode falar, na hipótese, de uma verdadeira «ordem de legislar» -, como o seu cumprimento fica satisfeito logo que por uma vez emitidas (assim pode dizer-se) as correspondentes normas.
Pode dizer-se assim, na sequência deste entendimento, que uma inconstitucionalidade por omissão só é verificável quando existir em concreto uma específica incumbência dirigida pela Constituição ao legislador que este se abstenha de satisfazer (cf. sobre este tema Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pp. 325 e segs., Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 2.º vol., p. 549, e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. 2.º, 2.ª ed., Coimbra, 1983, pp. 393 e segs.).
Ora, à luz das considerações anteriores, não pode dizer-se que a medida legislativa reclamada pelo Provedor de Justiça decorra de um específico e concreto dever de legislar imposto pela Constituição, em termos de o seu incumprimento gerar uma inconstitucionalidade por omissão.
A admitir-se a necessidade dessa medida, decorreria ela do dever geral que impende sobre os órgãos de soberania com competência legislativa de satisfazer as necessidades «gerais» de legislação sentidas pela comunidade.
Com efeito, o artigo 36.º, n.º 4, da Constituição prescreve que os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação, proibindo, simultaneamente, a edição de normas contrárias a esse princípio.
Não pode porém sustentar-se que, naquele preceito, se contenha uma imposição concreta dirigida ao legislador em termos de este se encontrar constitucionalmente obrigado, sob pena de omissão legislativa, a emitir uma norma do tipo daquela que vem defendida pelo requerente.
A tudo isto acresce que a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do assento de 23 de Abril de 1987, nos termos que atrás se definiram, imporá que o princípio constitucional da não discriminação dos filhos haja de ser obrigatoriamente aplicado, em termos de o «interesse dos filhos» na atribuição do direito ao arrendamento a que se reportam as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil, quando erigido em critério relevante de atribuição daquele direito, haver de ser respeitado tanto no caso dos filhos nascidos do casamento como no caso dos filhos nascidos de uniões de facto.
E assim sendo, não se verifica aqui a necessidade de qualquer intervenção do legislador ordinário dirigida ao preenchimento de uma omissão legislativa que, em bom rigor, não existe.
VII - A decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1987, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 28 de Maio de 1987, por força da violação do princípio da não discriminação dos filhos, contido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição;
b) Não ter por verificada a inconstitucionalidade por omissão suscitada pelo requerente, desde logo, por força da conclusão constante da alínea anterior.
Lisboa, 9 de Julho de 1991. - Antero Alves Monteiro Dinis - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - António Vitorino - Luís Nunes de Almeida - Armindo Ribeiro Mendes - Mário de Brito (com a declaração de voto junta) - Messias Bento [vencido, como relator, quanto à alínea a), nos termos da declaração de voto que junto] - Vítor Nunes de Almeida [vencido, quanto à decisão da alínea a), nos termos da declaração de voto do conselheiro Messias Bento a que adiro] - Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto que ora junto) - Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - Fernando Alves Correia [vencido, quanto à alínea a), louvando-se nos fundamentos constantes da declaração de voto do primitivo relator, Exmo. Juiz Conselheiro Messias Bento] - José Manuel Cardoso da Costa [vencido quanto à alínea a) da decisão, acompanhando a declaração de voto, a esse respeito, do Exmo. Conselheiro Messias Bento, primitivo relator].
Declaração de voto
1 - O Provedor de Justiça requereu a este Tribunal que apreciasse a constitucionalidade do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1987, segundo o qual «as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil não são aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores».
Sabendo-se que os assentos se destinam a resolver conflitos de jurisprudência, entre acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça ou entre acórdãos das relações, sobre a mesma questão fundamental de direito (artigos 763.º e 764.º do Código de Processo Civil), ou seja, no fundo, sobre a interpretação de uma norma jurídica - no caso, tratava-se de saber se os n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil, que prevêem acerca da posição de arrendatário da casa de morada do casal em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, se aplicavam à ruptura das uniões de facto quando destas houvesse filhos menores -, manifestei-me no sentido de que o pedido se referia, em rigor, não apenas ao assento, mas sim aos referidos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil em conjugação com o assento ou a esses números na interpretação do assento.
2 - O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ouvido, nos termos do artigo 54.º da Lei 28/82, sobre o pedido de apreciação da constitucionalidade do referido assento, suscitou a questão prévia do seu não conhecimento, por os assentos não poderem ser objecto de fiscalização abstracta de constitucionalidade. Citando Oliveira Ascensão, invocou a consideração de que «a atribuição de força obrigatória geral a uma decisão jurisdicional não lhe retira esta última característica», para concluir que, sendo assim, e depois de o respectivo acórdão ter transitado em julgado, os assentos se tornam inatacáveis.
Mas acrescentou:
Apenas se poderia ter recorrido para o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta para, verificado o condicionalismo do artigo 281.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa [trata-se da redacção na versão de 1982], se suscitar então a declaração com força obrigatória geral com base em juízos concretos de inconstitucionalidade.
Como parece evidente, esta passagem da resposta do Presidente do Supremo não pode ter o sentido que o acórdão lhe atribui em primeira linha e, por isso, não subscrevi o que a seu respeito se escreve no primeiro parágrafo a fl. 11. - Mário de Brito.
Declaração de voto
Entendi - contrariamente à posição que fez vencimento - que o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 1987 publicado no Diário da República, 1.ª série, de 28 de Maio de 1987, dispondo que «as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil não são aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores», não é inconstitucional.
São as seguintes as razões do meu voto.
1 - A história do assento aqui sub iudicio
O artigo 1110.º do Código Civil dispunha como segue:
1 - Seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge e caduca por sua morte, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.
2 - Obtido o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, podem os cônjuges acordar em que a posição do arrendatário fique pertencendo a qualquer deles.
3 - Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos, a culpa imputada ao arrendatário na separação ou divórcio, o facto de ser o arrendamento anterior ou posterior ao casamento e quaisquer outras razões atendíveis; estando o processo pendente no tribunal de menores, cabe a este a decisão.
4 - A transferência do direito ao arrendamento para o cônjuge do arrendatário, por efeito de acordo ou decisão judicial, deve ser notificada oficiosamente ao senhorio.
Seja, pois, qual for o regime de bens do casamento, o direito ao arrendamento para habitação é um direito incomunicável. É-o, hoje, por força do disposto no artigo 83.º do regime do arrendamento urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro.
A regra de incomunicabilidade do direito ao arrendamento, constante da primeira parte do n.º 1 do artigo 1110.º do Código Civil, é uma regra imperativa, que foi introduzida no nosso direito pelo artigo 44.º da Lei 2030, de 22 de Junho de 1948, no propósito de evitar as dificuldades que poderiam surgir se tal direito entrasse na comunhão, quando houvesse que partilhar os bens do casal.
Escreveu-se a propósito no n.º 14 do parecer 16 (1947) da Câmara Corporativa, de que foi relator F. A. Pires de Lima:
A afirmação de que o direito de arrendamento não se comunica ao cônjuge justifica-se. Trata-se de um direito, constituído muitas vezes intuiu personae e é um direito que se adapta mal ao mecanismo de uma contitularidade entre marido e mulher. Podem surgir, e têm efectivamente surgido, embaraços graves de construção a quem, vendo nele um elemento patrimonial comum, procura regular a sua transmissão nos casos de morte de um dos cônjuges ou de divórcio ou separação. É, pois, preferível, por todos os títulos, proclamar a incomunicabilidade desse direito e regular a sua transmissão, por forma a satisfazer os interesses atendíveis dos cônjuges. [Cf. Diário das Sessões da Câmara Corporativa, suplemento ao n.º 83, de 5 de Fevereiro de 1947.]
Antes da Lei 2030, a questão da comunicabilidade ou incomunicabilidade do direito ao arrendamento para habitação era controvertida.
Assim, Alberto dos Reis («Transmissão do arrendamento», Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 79.º, pp. 385 e segs.) pronunciava-se no sentido da sua incomunicabilidade. Já, porém, Anselmo de Castro (Revista de Direito e Estudos Sociais, ano II, pp. 140 e segs.) se pronunciava no sentido de que tal direito era comunicável, razão por que o cônjuge do arrendatário podia licitar em tal direito no caso de vir a ser decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens. E neste último sentido se orientava também a jurisprudência (cf. Alberto dos Reis, loc. cit., pp. 386 e 387).
Sendo o direito ao arrendamento um direito incomunicável, necessário era, pois - como se assinalou na passagem do parecer da Câmara Corporativa que atrás se transcreveu -, que se regulasse a sua transmissão nos casos de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens (e, claro está, também nos casos de morte).
As regras do direito comum podiam, na verdade, não dar satisfação aos «interesses atendíveis dos cônjuges» - interesses em que ocupam lugar primeiro os dos cônjuges divorciados ou separados judicialmente de pessoas e bens.
É que, em caso de divórcio, por exemplo, à falta de um regime especial, o cônjuge não arrendatário não poderia ficar na casa que foi a habitação familiar, na casa de morada de família - o que, há-de convir-se, poderia ser profundamente injusto.
Foi para proteger esses «interesses atendíveis dos cônjuges» - concretamente para «defender a estabilidade da habitação familiar», «no interesse dos cônjuges e eventualmente dos filhos [...] nas situações de crise provocadas [...] pelo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens» (este modo de dizer é de Pereira Coelho, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122.º, p. 136) - que, nos n.os 2 e 3 do artigo 1110.º do Código Civil, se consignou a possibilidade de transmissão do direito ao arrendamento para o cônjuge não arrendatário.
A transmissão de que aqui se trata é a do direito ao arrendamento da casa de morada de família, da sua residência habitual ou principal, e não da de um direito ao arrendamento que tenha por objecto uma habitação secundária do casal (cf., neste sentido, Pereira Coelho, Revista, citada, p. 136, nota 4).
A doutrina constante dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil foi consagrada no nosso direito pela primeira vez no artigo 45.º da citada Lei 2030.
A tal propósito, escreveu-se no já mencionado parecer da Câmara Corporativa (n.º 15):
O que se pretende com estas medidas excepcionais em matéria de arrendamento é proteger o facto da habitação, e, portanto, em princípio, deveria atribuir-se o direito aos dois, e não apenas ao que figura como arrendatário, visto o contrato ser normalmente celebrado em benefício do agregado familiar, e não de um cônjuge apenas. Como, porém, isto é impossível, desde que seja decretado o divórcio ou separação, parece indicado que acima de um critério, muitas vezes puramente ocasional, como é o da outorga do contrato, se atenda efectivamente às necessidades de habitação de cada um dos cônjuges, facultando-se-lhes um acordo, e atribuindo ao juiz, na falta dele, o poder de dirimir o conflito, conferindo a posse da casa a quem melhor direito invoque, baseado na culpa do outro cônjuge, na situação patrimonial de cada um, no interesse dos filhos, etc.
De notar é que a reforma de 1977 - para além de passar a proteger a habitação familiar também quando instalada em bem comum do casal ou, mesmo, em bem próprio de um dos cônjuges (cf. artigos 1682.º-A, n.º 2, e 1793.º, do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro) -, para além disso, passou a proteger de forma mais eficaz a morada de família instalada em casa arrendada.
Na verdade, só com o consentimento do outro cônjuge o arrendatário pode denunciar ou resolver o arrendamento, revogá-lo por mútuo consentimento ou subarrendar ou emprestar o local arrendado, total ou parcialmente (cf. artigo 1642.º-B do Código Civil) - consentimento que antes não era necessário.
Essa protecção foi ainda reforçada com a publicação da Lei 35/81, de 27 de Agosto, que, no que ora importa, veio dispor deverem ser propostas contra o marido e contra a mulher as acções de despejo que tenham por objecto a casa de morada de família.
Antes da Lei 35/81, quando fosse o arrendatário a abandonar o lar conjugal, permanecendo aí o outro cônjuge com os filhos, a acção de despejo, que o senhorio eventualmente intentasse, sempre esbarraria, é certo, com o facto impeditivo de «permanecerem no prédio os familiares do arrendatário» [cf. artigo 1093.º, n.º 2, alínea c), do Código Civil]. Simplesmente, não sendo o cônjuge não arrendatário citado para a acção, sempre ele podia vir a ser despejado, juntamente com os filhos, tão-só por o arrendatário decidir não contestar, por desleixo ou por má fé.
Não fique por dizer também que a regra da incomunicabilidade do direito ao arrendamento tem sido criticada (cf., a propósito, Pereira Coelho Revista citada, p. 139; e Mário Frota, Arrendamento Urbano, Coimbra, 1987, p. 461).
Em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, a casa de morada de família, achando-se instalada em imóvel arrendado, pode ser adjudicada ao cônjuge do arrendatário. Ou seja: o direito ao respectivo arrendamento pode ser atribuído ao cônjuge não arrendatário, por acordo dos cônjuges ou decisão judicial.
É um caso de cessão ou transmissão forçada da posição contratual.
A hipótese do artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil é, pois, a de o arrendatário ser casado, ter a casa de morada de família instalada em local arrendado e vir a divorciar-se ou a separar-se judicialmente de pessoas e bens.
O que a lei pretende é que, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, a casa de morada de família, que estiver instalada em imóvel arrendado, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, sendo que e mais justo atribuí-la ao cônjuge ou ex-cônjuge que dela mais necessitar. Do que se trata, com efeito - como acentua Pereira Coelho (Revista citada, p. 207) -, é «de proteger o cônjuge ou ex-cônjuge que mais seja atingido pelo divórcio ou separação quanto à estabilidade da habitação familiar, cônjuge ou ex-cônjuge ao qual, porventura, os filhos tivessem ficado confiados».
E o mesmo autor acrescenta:
A necessidade da casa (ou a «premência», como vem a dizer a jurisprudência; melhor se diria: a premência da necessidade) parece-nos ser, assim, o factor principal a atender. É certo que a «necessidade» da casa não vem expressamente referida no enunciado do artigo 1110.º, n.º 3, mas é a ela que naturalmente se reportam tanto a «situação patrimonial» dos cônjuges como o «interesse dos filhos».
Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, justamente estes dois elementos, que mais expressivamente a revelam e mereceram expressa referência no artigo 1110.º, n.º 3. [Cf. Revista citada, p. 217.]
E mais adiante:
Mas o juízo sobre a necessidade ou a premência da necessidade da casa não depende apenas destes dois elementos. Haverá que considerar ainda as demais «razões atendíveis»: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc. [Revista citada, p. 218.]
Pretende-se, assim, proteger a família, mesmo para além do termo da comunidade de vida que o casamento se destinou a criar.
Isto é, de resto, coisa que bem se compreende, pois, achando-se os cônjuges obrigados a viver juntos por força do dever de coabitação que sobre eles impende (cf. artigo 1672.º do Código Civil), tendo, inclusive, que escolher um local para instalarem a residência da família (cf. artigo 1673.º do mesmo Código), uma vez divorciados ou separados (e, assim, dispensados de viver juntos: cf. artigos 1779.º, n.º 1, e 1795.º-A do Código Civil), bem se compreende - dizia-se - que essa residência seja atribuída àquele que dela mais precisar, independentemente de ser ou não o arrendatário.
O artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil regula, assim, um efeito do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens. Isto mesmo afirmou o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 17 de Junho de 1975 publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 248, p. 431.
Pressuposto, por isso, da atribuição do direito ao arrendamento, prevista no artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil, é que os «pretendentes» à casa tenham sido casados um com o outro e haja, entretanto, sido decretado o seu divórcio ou que, mantendo-se embora casados, se hajam separado judicialmente de pessoas e bens.
Significa isto que o artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, não foi pensado para o caso de os cônjuges se encontrarem simplesmente separados de facto, nem para a hipótese de duas pessoas não unidas entre si pelo casamento viverem, não obstante, more uxorio, ou seja, como se casados fossem, em situação em tudo análoga às dos cônjuges - situação a que, entretanto, puseram termo.
Foi, de resto, nesses termos que, até ao Acórdão da Relação de Lisboa de 2 de Junho de 1981, a jurisprudência sempre interpretou o dito artigo 45.º da Lei 2030, primeiro, e o artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil, depois.
Assim, a Relação de Lisboa, ainda no domínio do artigo 45.º da Lei 2030, decidiu que, não havendo ainda sido proferida sentença na acção de divórcio (ou de separação judicial de pessoas e bens), que havia sido proposta, tinha o juiz que aguardar a prolação de tal sentença para, depois, na acção de regulação do exercício do poder paternal, decidir sobre a atribuição do direito ao arrendamento nos termos daquele artigo 45.º (cf. Acórdão de 13 de Outubro de 1965, publicado na Jurisprudência das Relações, n.º 4, p. 625).
A Relação do Porto, por sua parte, no seu Acórdão de 9 de Novembro de 1966 (Jurisprudência das Relações, n.º 5, p. 877), decidiu que o artigo 45.º da Lei 2030 e o artigo 89.º, n.º 2, da Organização Tutelar de Menores de 1962 - que preceituava que a «atribuição do direito ao arrendamento para habitação ao pai não arrendatário será feita, quando tenha lugar, independentemente de requerimento e a respectiva notificação ao senhorio será ordenada oficiosamente» - não eram aplicáveis ao «casal» que vive em mancebia.
Já no domínio do Código Civil de 1966, veio a Relação de Lisboa, pelo seu Acórdão de 21 de Fevereiro de 1978, decidir que, para poder ter lugar a atribuição do direito ao arrendamento a que se refere o artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, não basta que os cônjuges estejam separados de facto, necessário sendo que tenha sido decretado o seu divórcio ou separação judicial de pessoas e bens (cf. Boletim do Ministério da Justiça, n.º 276, p. 312).
No tocante às uniões de facto, a Relação de Lisboa reafirmou, posteriormente, a doutrina de que lhes não é aplicável o artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil, ainda quando esteja em causa, indirectamente, o interesse dos filhos menores [cf. Acórdãos de 11 de Dezembro de 1984 (Colectânea de Jurisprudência, 1984, n.º 5, p. 165) e de 16 de Janeiro de 1986, n.º 1, p. 91 (Colectânea citada, 1986, n.º 1, p. 91)].
A Relação de Lisboa, porém como se disse já, no seu Acórdão de 2 de Junho de 1981, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 1981, n.º 3, p. 61, pronunciou-se no sentido de que, quando haja filhos menores, os n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil - que, disse, não são normas excepcionais, sim especiais - devem ser aplicadas analogicamente às simples uniões de jacto [cf., identicamente, o Acórdão da mesma Relação de 19 de Novembro de 1985 (Boletim citado, n.º 358, p. 602)].
A orientação jurisprudencial a que por último se fez referência mereceu o aplauso de certa doutrina. Assim, Pereira Coelho escreveu a tal propósito:
O direito ao arrendamento pode igualmente transmitir-se nos termos do artigo 1110.º, o qual, embora respeite ao caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, é aplicável por analogia ao caso de ruptura de união de facto, como decidiu o Acórdão da Relação de Lisboa de 2 de Junho de 1981 [...], e, como parece razoável, pelo menos em casos como o do acórdão, em que haja filhos nascidos da união de facto e estes tenham sido confiados ao progenitor não arrendatário. [Cf. «Casamento e família no direito português», in Temas de Direito da Família, Coimbra, 1986, pp. 3 e segs., sp., p. 17.]
Em face da jurisprudência divergente da Relação de Lisboa sobre a matéria (Acórdão de 4 de Maio de 1984 citado no texto do assento, e Acórdão de 2 de Junho de 1981), o pleno do Supremo Tribunal de Justiça, em 23 de Abril de 1987, tirou o assento publicado no Diário da República, 1.ª série, de 28 de Maio de 1987, aqui sub iudicio, que novamente se transcreve:
As normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil não são aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores.
O Supremo, para assim concluir, começou por ponderar que as normas do artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil são normas excepcionais, dado estarem em absoluta oposição com as normas que contêm o regime geral da cessão da posição contratual (ou seja, com o artigo 424.º e seguintes do Código Civil, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 1059.º, n.º 2, do mesmo Código), e que, por isso, são insusceptíveis de aplicação analógica (cf. artigo 11.º do Código Civil). E acrescentou: mesmo que tais normas não fossem excepcionais, nunca elas poderiam aplicar-se analogicamente, por não se estar em presença de um caso omisso, mas antes de um caso não regulado. E isso, porque o legislador, que, confessadamente, pretende não «estimular as uniões de facto» [cf. preâmbulo do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro (n.º 46)] só em casos contados lhes atribuiu efeitos jurídicos. Ora - acrescentou o Supremo -, a «'união de facto' não tem qualquer protecção legal para efeitos de se poder 'impor' ao senhorio, no caso de arrendamento para habitação, como arrendatário, o membro dessa 'união' - quando esta termine - que não seja o titular do respectivo direito ao arrendamento».
2 - O assento sub iudicio e o princípio da igualdade
Do que se trata é de saber se o mencionado assento - fixando a doutrina de que as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil não são aplicáveis aos casos em que um homem e uma mulher, que viviam more uxorio e tinham filhos menores, romperam a união - é ou não inconstitucional.
Concretizando mais: o assento sub iudicio violará o princípio de que «os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação», consagrado no n.º 4 do artigo 36.º da Constituição?
O requerente entende que sim, uma vez que, não sendo - segundo o assento - o artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil aplicável, por analogia, às uniões de facto que se rompam, quando haja filhos menores, ficam os «tribunais impedidos [...] de atender aos interesses de tais filhos», quando o certo e que, em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, havendo filhos menores, os interesses destes são, conjuntamente com a «situação patrimonial» dos cônjuges ou ex-cônjuges, os factores a que, em primeira linha, há que atender para determinar qual deles mais necessita da casa que foi a morada de família.
O requerente não se encontra, aliás, isolado neste entendimento das coisas.
Assim, Pereira Coelho, começando por dizer que o assento aqui sub iudicio «passa muito por alto» «a objecção tirada da discriminação contra os filhos nascidos fora do casamento que assim fica a existir», acrescenta:
Note-se que, se a solução que fez vencimento no assento, se julgar contrária ao princípio do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição da República (como nos inclinamos a crer), ou seja, se se entender que é uma discriminação contrária àquele princípio o facto de o tribunal, tratando-se de filhos nascidos fora do casamento, não poder atribuir o direito ao arrendamento, no interesse dos filhos, ao progenitor a quem fiquem confiados se esse progenitor não for o arrendatário, não assumirá relevância o argumento [...] de que a extensão à união de facto do preceituado nos n.os 2 a 4 do artigo 1110.º implicaria a aplicação analógica de normas que fazem excepção à regra do artigo 424.º, n.º 1, do Código Civil, contra o disposto no artigo 11.º do mesmo Código [...][Cf. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 120.º, p. 81, nota 6].
Também J. J. Gomes Canotilho se inclina a pensar que o assento em causa é «uma decisão jurisdicional violadora do princípio constitucional da igualdade dos filhos» (cf. «Constituição e défice procedimental», Estado e Direito, n.º 2, 1988, p. 34).
E a solução da inconstitucionalidade foi, como se disse, a que fez vencimento neste Tribunal.
2.1 - Pois bem: se a casa onde tinham a sua residência principal os pais, que, entretanto, se separaram, mesmo só de facto, fosse atribuída àquele a quem os filhos ficaram confiados, sempre que - mas só quando - houvesse filhos menores, então, a norma que excluísse do seu âmbito de aplicação apenas os filhos nascidos fora do casamento seria certamente inconstitucional, pois o único fundamento da diferença de tratamento era - podia dizer-se - o facto de uns filhos serem do casamento e os outros não.
Não é, porém, disso que se trata. Desde logo, o artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil, tal como não se aplica aos casos de ruptura de uniões de facto de que haja filhos menores, também não é aplicável aos casos em que os pais são casados, têm filhos menores do casamento e separaram-se um do outro, mas apenas de facto. Depois, em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, ainda que não haja filhos menores, se a morada de família se achar instalada em casa arrendada, há lugar à sua atribuição a um dos cônjuges, podendo vir a ser adjudicada ao não arrendatário. Finalmente, mesmo sendo os pais casados, divorciando-se ou separando-se judicialmente de pessoas e bens e havendo filhos menores, o direito ao arrendamento da casa de morada de família pode vir a ser atribuído ao progenitor a quem os filhos não ficaram confiados, designadamente porque aquele que ficou com os filhos tem outra casa onde pode instalar-se com eles - casa que, por exemplo, até fica mais perto do seu local de trabalho ou dos estabelecimentos de ensino frequentados pelos menores.
É que o artigo 1110.º do Código Civil - e, consequentemente, o assento sub iudicio, que veio dizer não ser tal preceito aplicável às uniões de facto, mesmo havendo filhos menores - não é norma que vise definir o estatuto dos filhos ou, sequer, que com esse estatuto contenda directamente. O que ele regula é - recorda-se - um efeito do divórcio e da separação judicial de pessoas e bens - concretamente: a sua projecção ou incidência sobre o contrato de arrendamento que tenha por objecto a casa onde os cônjuges instalaram a morada da família. Seu objectivo é, como se disse já, proteger os cônjuges ou ex-cônjuges em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, num aspecto fundamental como é o da habitação familiar. Tal norma só indirecta e reflexamente contende com o estatuto dos filhos. Fá-lo do modo seguinte: na atribuição da posição de arrendatário pode vir a «pesar» o interesse dos filhos, se seus pais eram casados e se divorciaram ou separaram judicialmente de pessoas e bens. O interesse dos filhos, porém, nenhum relevo já terá se os pais apenas se separaram de facto, e não judicialmente, ou se não eram casados um com o outro.
O que o assento faz é, repete-se, consagrar a doutrina de que o artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil - que regula os efeitos do divórcio e da separação judicial de pessoas e bens sobre o contrato de arrendamento da casa de morada de família - não é aplicável às situações de ruptura das uniões de facto, mesmo havendo destas filhos menores, tal como o não é ao caso em que um casal, que tem filhos menores, se separa apenas de facto.
Ora, não sendo essas normas aplicáveis às uniões de facto que se desfaçam, é óbvio que a eventual existência de filhos menores não pode relevar para o efeito de saber a quem deve ser atribuído o direito de arrendamento. E, justamente, por que não há lugar a essa atribuição.
A irrelevância do interesse dos filhos menores nascidos fora do casamento (ou melhor: a insensibilidade ou indiferença do legislador perante esse interesse) - em contraste com a relevância do interesse dos filhos menores de pais casados que, entretanto, se divorciaram ou separaram judicialmente - para o efeito de atribuição do direito ao arrendamento da habitação familiar, é, pois, uma consequência mediata, um mero efeito reflexo, da disciplina jurídica da transmissão do contrato de arrendamento - e não uma solução jurídica que o legislador assuma visando a definição do estatuto da filiação.
Do artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil resulta, é certo, uma diferença de tratamento entre os filhos nascidos do casamento e os filhos nascidos fora do casamento. Tal diferença de tratamento não assenta, porém, no diferente nascimento de uns e de outros, mas antes no facto de, num caso, se ter posto termo à comunhão de vida dos pais por divórcio ou separação judicial e, no outro, tal ter acontecido por haver desaparecido o consenso em que essa vida em comum assentava. Quer dizer: as situações em confronto são a da família conjugal e a da família natural, que o mesmo é dizer da família assente no casamento, a que o divórcio pôs termo ou que a separação judicial interrompeu, e a família nascida de uma união de facto, que os parceiros decidiram terminar. Dizendo ainda de outro modo: o confronto é entre a ruptura da vida conjugal e a da vida paraconjugal, e não entre os filhos nascidos do casamento e os filhos nascidos fora do casamento.
Esta última não é, com efeito, a hipótese da norma a que o assento sub iudicio se reporta.
Ora, as leis prevêem para prover. Por isso, a sua estatuição ou provisão tem de ser avaliada em função da sua hipótese ou previsão, e não em função da uma hipótese imaginária.
2.2 - Para aferir da constitucionalidade da regra fixada pelo assento sub iudicio o parâmetro não pode, pois, ser a norma do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição.
O que interessa, de facto, é saber se a distinção estabelecida no domínio da relação locatícia, quanto ao destino da casa arrendada que seja habitação familiar, encontra suficiente fundamento na diferente natureza da família conjugal e de família natural ou se é arbitrária ou irrazoável, porque carecida de fundamento material.
A pergunta que, então, há que formular é a seguinte: não será que o assento sub iudicio viola o princípio da igualdade, na justa medida em que, no tocante à atribuição do direito ao arrendamento da habitação familiar, trata diferentemente a família nascida do casamento (a família conjugal) e a família nascida de uniões concubinárias (a família natural)?
Também aqui a resposta é negativa.
O artigo 36.º, n.º 1, da Constituição dispõe que «todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade».
Por sua parte, o artigo 67.º preceitua, no n.º 1, que «a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros»; e, no n.º 2, enumera algumas das incumbências do Estado, com vista, justamente, à protecção da família.
Para o que aqui importa, desnecessário é tomar posição sobre a questão de saber se o artigo 36.º, n.º 1, da Constituição contém (ou não) uma imposição no sentido de a união de facto dever ser colocada ao mesmo nível do casamento enquanto fonte de relações familiares (cf., sobre isto, a declaração de voto de José Luís Nunes, Diário da Assembleia Constituinte, n.º 39, de 29 de Agosto de 1975, p. 1083; Pereira Coelho, in Temas' cit., p. 9; Antunes Varela, Direito de Família, Lisboa, 1982, pp. 147 e segs.; J. de Castro Mendes, «Anotações diversas», in Estudos sobre a Constituição, 1.º vol., Lisboa, 1977, pp. 371 e seg.; e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., Coimbra, 1984, p. 229).
De todo o modo, sempre se dirá que, se o artigo 36.º, n.º 1, distingue (separa) a família do casamento, é porque a protecção constitucional da família não se dirige apenas à família conjugal ou matrimonial, mas também à família natural (ou seja, àquela que deriva apenas do facto biológico da geração) e à família adoptiva.
Isto, porém, não significa que a família, cuja protecção o Estado tem de organizar (cf. artigo 67.º), haja de identificar-se com a união de facto, que, como diz Antunes Varela (ob. cit., p. 150), assenta «na areia movediça do puro sentimento das pessoas, inteiramente solta das amarras da lei».
O artigo 67.º da Constituição não proíbe, porém, que o legislador dispense uma certa protecção à união de facto. Mas o que não lhe impõe é que o faça.
Não obstante o legislador ter vindo a aproximar a união de facto do casamento, atribuindo-lhe cada vez mais efeitos [cf., para além do direito da segurança social, os artigos 1111.º (redacção da Lei 46/85, de 20 de Setembro), 187.º, n.º 1, alínea c), 1911.º, n.º 3, e 2020.º, todos do Código Civil]; e não obstante também o casamento, pelo simples facto de poder ser dissolvido pelo divórcio, ter hoje menos efeitos; não obstante tudo isso, a união de facto continua a não ser, ao menos entre nós, o elemento fundamental da sociedade, anterior ao Estado e ao qual este deve protecção (cf. artigo 67.º). Por essa razão, no plano legislativo, continuam a existir diferenças de tomo entre união de facto e casamento: desde logo, os parceiros de uma união de facto, nem por viverem more uxorio, ficam sujeitos aos deveres conjugais de fidelidade, respeito, coabitação, cooperação e assistência (cf. artigo 1671.º do Código Civil); depois, a união de facto não tem efeitos sucessórios, nem determina a aplicação de um «regime de bens»; finalmente, mesmo vivendo em situação paraconjugal, os parceiros põem termo quando quiserem a essa comunhão de vida.
O legislador - que, como se acentuou já, não quis estimular as uniões de facto - está pois, muito longe de equiparar a união de facto ao casamento.
Para se compreender esta «prudência» do legislador, não será sequer necessário subscrever a afirmação de que o casamento é o esteio da família, por isso que, só defendendo-o com intransigência, será possível organizar, com um mínimo de eficácia, a defesa dessa mesma família, que é a base da sociedade, o principium urbis. Bastará, com efeito, atentar em que, por mais respeitável que seja o princípio da tolerância, nada justificaria que se aplicasse o estatuto do casamento a pessoas que, justamente, não quiserem casar. Desde logo, isso seria fazer violência a quem, colocado perante duas formas possíveis de organizar a vida familiar, optou pelo modelo descomprometido da união de facto.
Dizendo de outro modo: submeter ao estatuto do casamento quem, justamente, não quis assumir compromissos matrimoniais, sim e tão-só estabelecer uma comunhão de vida assente exclusivamente no consenso e destinada, por isso mesmo, a só durar enquanto esse consenso persistir, significaria violar a liberdade dos membros da comunidade natural assim constituída. Trata-se, com efeito, de uma comunidade que se baseia na liberdade dos seus fundadores e que, por isso mesmo, tem como características fundamentais a espontaneidade, a desregulação e uma aversão radical à ideia de jurisdização».
Por isso, ali onde o legislador não tenha intervindo para regular os direitos e deveres dos parceiros e os efeitos da união de facto, está-se, ao menos em princípio, perante um espaço não regulado, um espaço de non droit.
2.3 - Dir-se-á, no entanto, que não se está aqui em presença de um espaço de non droit - de uma matéria que o legislador propositadamente não tenha querido regular; que se está, antes, em face de uma lacuna que o Supremo Tribunal de Justiça devia ter preenchido, já que o princípio da proibição de discriminar os filhos nascidos fora do casamento, consagrado no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, tanto impunha.
Pois bem: se o princípio da proibição de discriminar os filhos nascidos fora do casamento levar ínsita uma obrigação de, quando houver filhos menores, regular os efeitos da ruptura da união de facto sobre a relação locatícia, essa obrigação impor-se-á apenas ao legislador, não ao juiz, pois é de legislação que o caso necessitará.
De facto, o juiz deve obediência à Constituição e à lei, devendo em caso de conflito entre ambas, preferir aquela a esta; não deve, porem, obediência a um eventual dever de legislar - trate-se de uma obrigação geral de editar normas jurídicas para regular certa matéria, esteja em causa uma concreta e específica imposição constitucional legiferante E mais: na sua actividade judicativa há-de o juiz - sob pena de invadir a área reservada à função legislativa e, desse modo, violar o princípio da separação de poderes, consagrado no artigo 114.º, n.º 1, da Constituição - mover-se sempre «dentro dos muros da cidadela da lei»; se o legislador, propositadamente, não quis regular uma determinada matéria, não pode o juiz criar uma norma para ela.
A este propósito, escreve Manuel de Andrade:
Só haverá lacuna a preencher, depois de estar averiguado, por interpretação da lei, que o caso omisso não deve ficar à margem da lei, sem disciplina jurídica apropriada. [Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 78.]
E ainda:
Sempre os casos haverão que ser mais do que as leis [...]. Isto para não falar das situações que o legislador conheceu ou entreviu, mas propositadamente deixou em claro [...] [Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra, 1973, p. 29.]
É ainda Andrade quem acentua que a função dos tribunais, mesmo quando tenham que «fazer acto de legislador», é uma função «ao serviço da lei», devendo, por isso, mover-se «sempre no quadro da lei» (cf. Andrade, Ensaio citado, p. 85, e Sentido e Valor da Jurisprudência citado, p. 40).
Ora, no caso, é manifesto o propósito do legislador de deixar a matéria aqui em causa sem regulamentação. Decorre isso, desde logo, do facto de o Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro - que veio dar cumprimento «ao imperativo constitucional dimanante do disposto no n.º 3 do artigo 293.º da Constituição», versão orginária (isto é, que veio proceder à «adaptação das normas anteriores atinentes ao exercício dos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição») -, não a ter regulado. Decorre, depois, da circunstância de a Lei 46/85, de 20 de Setembro - que deu nova redacção ao artigo 1111.º, n.º 2, do Código Civil -, ter vindo atribuir àquele que, no momento da morte do arrendatário, com ele vivia, há mais de cinco anos, em condições análogas às dos cônjuges, o direito de, em certo casos, suceder no arrendamento para habitação, sem, no entanto, estabelecer disciplina paralela para o caso da união de facto cessar não já pelo decesso de um dos parceiros, sim pela separação de ambos. E decorre, por último, do facto de, numa altura em que já tinha sido tirado o assento do Supremo Tribunal de Justiça aqui sub iudicio, o Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro - que veio estabelecer o novo regime de arrendamento urbano -, ter continuado a deixar a matéria aqui em causa sem regulamentação e a regular a transmissão do arrendamento para a pessoa que vivia more uxorio com o arrendatário falecido, em termos semelhantes ao que antes fizera (cf. artigos 83.º a 85.º, que correspondem aos artigos 1110.º e 1111.º do Código Civil, que foram revogados).
2.4 - Mas, se isto é assim, então, não pode ser havida como violadora do princípio da igualdade uma solução como aquela que o assento sub iudicio acolheu.
O que o assento veio dizer foi, repete-se, que a solução legal do artigo 1110.º, n.os 2, 3 e 4, do Código Civil - que visa proteger os cônjuges em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, mediante a possibilidade de o direito ao arrendamento da casa de morada de família se transferir para o cônjuge não arrendatário - não é aplicável aos casos de ruptura das uniões de facto, mesmo havendo filhos menores.
Ora, uma tal solução nada tem de arbitrário ou de irrazoável, antes se apresenta como inteiramente fundada, pois, se seria fazer violência aos parceiros, que vivem more uxorio, aplicar-lhes o estatuto legal das pessoas casadas - estatuto que inclui direitos, mas que comporta também deveres e ónus -, então, também não haverá de estranhar-se que se lhes não aplique esse estatuto apenas naquilo que ele contém de vantagens, ou seja, apenas as normas dele que conferem direitos ou benefícios. A liberdade que a união de facto consente aos parceiros há-de, naturalmente, ter um preço - o preço de uma protecção jurídica mais frouxa. Concretamente e para o que aqui importa: não estando os parceiros obrigados a cumprir qualquer dever de coabitação e não tendo, assim, que adoptar uma residência comum (a residência de família), não é irrazoável ou infundamentado que, quando se separarem, não beneficiem de um direito - o direito a poder suceder no arrendamento feito pelo outro parceiro -, pois que esse direito foi pensado para proteger a estabilidade da habitação familiar dos cônjuges, ou seja, de quem, por se unir em casamento, teve que adoptar uma residência comum, mas que, depois, quiçá sem culpa sua, se viu forçado a ver terminada a comunhão de vida em que empenhou as suas esperanças.
A regra é ubi commoda, ibi incommoda.
Sendo a situação dos cônjuges, que se divorciam ou separam judicialmente de pessoas e bens, quanto à casa arrendada que habitem, substancialmente diferente da situação daqueles que, vivendo more uxorio, se separam um do outro, a solução jurídica constante do assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 1987, não merece censura do ponto de vista do princípio da igualdade, pois este apenas proíbe que se trate diferentemente o que for essencialmente igual.
E isso é assim ainda que, da união de facto desfeita, haja filhos menores, pois, como se viu atrás, não é só quando haja filhos menores - nem tão-pouco por os haver - que a questão da transmissão do arrendamento se coloca. - Messias Bento.
Voto de vencido
Profunda é a minha discordância relativamente ao acórdão a que a presente declaração de voto se encontra apendiculada.
Impõe-se, pois, que, brevitatis causa, muito em síntese, indique as razões dessa minha discordância.
1 - É para mim nitido que o assento em causa se reporta às normas constantes dos números 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil, que regem, e tão-somente, para os casos de divórcio e de separação judicial de pessoas e bens.
Assim sendo, são as situações que em tais normas se encontram contempladas que devem unicamente ser tidas em conta, do respectivo âmbito estando, consequentemente, excluídos, quer os casos de mera separação de facto de matrimoniados quer os casos de cessação de união de facto.
Daí que as normas e o assento em causa visem, e só, regular um efeito do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, e relativamente a um particular reflexo de uma dessas situações no contrato de arrendamento para habitação incidente sobre a casa de morada de família.
Não é, assim, objectivo das normas em apreço regular directamente o estatuto dos filhos.
Poderá, quando muito, haver, in casu, um reflexo, mas apenas indirecto, naquele estatuto, no ponto em que se determina o atendimento ao interesse dos filhos - a par com muitos outros - de pais consorciados, para atribuição do «direito» ao arrendamento da casa de morada de família.
Porém, mesmo em situações em que - «descarnados» os demais factores a que se deve atendimento para atribuição do «direito» ao arrendamento, quer pela sua inexistência quer pela sua equivalência valorativa tocantemente aos dois cônjuges - reste só o interesse dos filhos, ainda assim não vejo que as normas em questão e o assento em particular reflictam qualquer discriminação entre os filhos do matrimónio e os não provenientes do casamento.
Na verdade, em hipóteses em que os consorciados se uniram matrimonialmente - tendo um ou outro filhos não resultantes do contrato de casamento entre eles celebrado, vivendo ambos e aqueles filhos na mesma casa de família - e o casamento veio a ser dissolvido por divórcio ou interrompido por separação judicial de pessoas e bens, certamente ninguém defenderá que as normas e o assento questão impediriam que, para efeitos de atribuição do arrendamento, o juiz tivesse em conta, como um dos factores a atender, o interesse dos mencionados filhos (fossem ou não provenientes de casamento anterior) que, afinal, não foram gerados do casamento dissolvido ou interrompido.
Se assim é, não vejo, consequentemente, como se pode falar em qualquer discriminação que as normas em causa praticariam relativamente a filhos nascidos dentro e fora do casamento, e concernentemente às situações para a qual elas foram, e só, gizadas.
Se as ditas normas, ao regularem a atribuição do «direito» ao arrendamento da casa de morada de família, não se aplicam, pois, às hipóteses de rompimento das uniões de facto (e nem, como se viu, às situações de separação de facto de cônjuges) e se, em exemplos como o acima indicado, elas permitem, como um dos factores a que dar atendimento, pesar o interesse de filhos não provenientes do casamento dissolvido ou interrompido (sendo, como é óbvio, de exigir ou a dissolução ou a interrupção da sociedade conjugal), então há que concluir que aquelas hipóteses não foram queridas regular pelo legislador.
Trata-se, assim, de um caso não regulado voluntariamente, como tal tendo de ser perspectivado.
Daí que seja para mim incompreensível esgrimir-se com um argumento segundo o qual o assento sub specie, ao vedar a aplicação das normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil às situações de facto, estava a impedir a «operatividade imediata» do n.º 4 do artigo 36.º da Constituição.
Na realidade, as citadas normas têm somente campo de aplicação quanto aos casos de dissolução do casamento por divórcio e de interrupção da sociedade conjugal por separação judicial de pessoas e bens, não estando prevista, fora desses casos, a atribuição do «direito» ao arrendamento da casa de morada de família.
Em consequência, a norma extraível do assento sub specie, não padece, a meu ver, de qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação do n.º 4 do artigo 36.º da lei fundamental.
2 - Pelo que tange à segunda pretensão do requerente, justamente a de este Tribunal ter por verificada a inconstitucionalidade por omissão de uma medida legislativa que expressamente determine que as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil se aplicam, com as necessárias adaptações, às situações de uniões de facto nos casos em que haja filhos menores, muito embora concorde com a decisão ínsita no acórdão quanto a este ponto, não anuo à argumentação acrescida que é carreada no aresto.
Esta não concordância resulta, como é desde logo evidente, do facto de não acompanhar a declaração de inconstitucionalidade que é feita no acórdão, declaração essa que, naquela argumentação acrescida, imporá que o princípio constitucional da não discriminação dos filhos haja de ser obrigatoriamente aplicado em termos de o interesse destes previsto nas normas civilísticas em questão, quando erigido em critério relevante da atribuição do «direito» ao arrendamento, haver de ser respeitado, quer tratando-se de filhos fruto do matrimónio quer de filhos nascidos de não consorciados entre si. - Bravo Serra.
Declaração de voto
No presente acórdão, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1987 - que interpreta o artigo 1110.º do Código Civil - com fundamento na violação do princípio de não discriminação dos filhos, contido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição. Votei vencida pelas seguintes razões:
1 - Considero correcta a doutrina constante do assento do Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual «às normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil não são aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas haja filhos menores». No seu entender, tais preceitos só podem ter essa interpretação.
Em boa verdade, a doutrina contida no presente acórdão nem sequer contraria frontalmente a doutrina do assento, porquanto não sustenta a aplicabilidade de tais preceitos a uniões de facto de que haja filhos menores, antes requerendo que tenha «a questão de vir a ser decidida numa para perspectiva constitucional». E ser «a questão decidida numa pura perspectiva constitucional» significa tão-somente que a pauta de regulação que se convoca é o princípio de não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, expresso no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição - e não os referidos preceitos do Código Civil.
Em bom rigor, a ser assim, não se exclui a compatibilização da doutrina do assento (de que a comunicabilidade da posição do arrendatário, nas hipóteses da união de facto, não se pode operar ex vi dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do Código Civil) com a posição defendida neste acórdão (de que se não pode discriminar os filhos nascidos fora do casamento e que, portanto, nesse caso, haverá que estabelecer uma outra excepção à não comunicabilidade do arrendamento, por força não daqueles preceitos do Código Civil mas no decurso da aplicabilidade directa e imediata do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição). Quer dizer, a regulação do problema «passa ao lado» dos mencionados preceitos do Código Civil.
E se não se entendesse assim, não vejo como poderia ser declarada a inconstitucionalidade do assento (como norma interpretativa) sem coenvolver a suspeição de inconstitucionalidade das referidas normas do Código Civil (como normas interpretadas), já que o assento faz uma interpretação absolutamente coincidente com o teor da letra da lei.
A questão não poderá, pois, configurar-se como uma contradição entre princípio (o do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição) e norma (as normas do Código Civil ou, então, a norma interpretativa constante do assento), mas como o desenvolvimento de uma «função positiva» [como starting point de uma regulação (Esser)] de um princípio jurídico-constitucional, que é convocado ele - e não as normas do Código Civil - para regular a questão.
2 - Contudo, parece-me altamente temerário extrair, directamente e sem qualquer mediação normativa, do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição (como starting point de regulação) a estatuição da comunicabilidade do arrendamento, nos casos da união de facto em que haja filhos menores: não se distinguindo, como não se poderia distinguir, se a comunicação pode operar-se por acordo dos pais não casados ou por decisão do tribunal; não requerendo, como não poderia requerer, qualquer carácter de durabilidade à situação de coabitação de facto. Fazendo, com isso, tábua rasa de uma série de interesses relevantes, como os do locador a quem seria imposta uma cessão de posição contratual sem o seu assentimento, configurando, por esse via, uma excepção ao n.º 1 do artigo 424.º do Código Civil. Extrair do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, como princípio normativo, directamente, a norma segundo a qual «se poderá operar a transmissão da posição do arrendatário em união de facto, quando haja filhos menores», apresentar-se-ia como um procedimento de configuração normativa não admissível de uma configuração normativa que não está já a coberto da força preceptiva do princípio.
Não se trata, com isso, de pôr em causa o princípio da aplicabilidade directa das normas sobre direitos fundamentais (Constituição da República Portuguesa, artigo 18.º, n.º 3), mas de negar a possibilidade de inferir uma estatuição normativa que não está em directa relação com a força de injunção do princípio contido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição da República.
3 - Não considero que a posição em que me estribo seja de teor «formalista» ou indicie qualquer posição de desfavor quanto à união de facto. Em boa verdade, não se trata aqui, directamente, de tutelar ou não tutelar situações de coabitação de facto, mas de atender a interesses dos filhos nascidos fora do casamento. E, aqui, estou de acordo que a não comunicação do arrendamento, em certos casos, possa conduzir a situações no plano da vida que afrontem sentimentos de justiça. Mas não pode, no seu entender, a jurisprudência constitucional (pese embora a sua especial função de «integração») substituir-se ao legislador ou converter-se numa «jurisprudência de sentimento» (Gefuhlsjurisprudenz) que subvertesse o essencial dos princípios conformadores do Estado de direito, nomeadamente o princípio da legalidade e o da divisão de poderes. - Maria da Assunção Esteves.