Acórdão do Tribunal Constitucional 535/2022, de 1 de Setembro
- Corpo emitente: Tribunal Constitucional
- Fonte: Diário da República n.º 169/2022, Série I de 2022-09-01
- Data: 2022-09-01
- Documento na página oficial do DRE
- Secções desta página::
Sumário
Texto do documento
Sumário: Pronuncia-se pela inconstitucionalidade de todas as normas constantes do Decreto enviado ao Representante da República para a Região Autónoma da Madeira para assinatura como decreto legislativo regional intitulado «Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público», aprovado em sessão plenária da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira no dia 15 de junho de 2022.
Processo 774/22
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1 - O Representante da República para a Região Autónoma da Madeira (doravante RAM) requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 278.º, n.os 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e dos artigos 57.º e seguintes da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), a fiscalização preventiva, e a consequente pronúncia pela inconstitucionalidade, de todas as normas constantes do Decreto que lhe foi enviado para assinatura como decreto legislativo regional intitulado «Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público», aprovado em sessão plenária da Assembleia Legislativa da RAM (doravante ALRAM) no dia 15 de junho de 2022 e recebido, no seu Gabinete, no dia 8 de julho de 2022.
2 - Parâmetros da constitucionalidade invocados
O requerente alega que as normas objeto do pedido violam os artigos 165.º, n.º 1, alínea q), 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), 228.º, n.º 1, e 237.º, n.º 1, da CRP, em virtude da ausência de competência legislativa do legislador regional, sendo, por isso, organicamente inconstitucionais, por invadirem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
3 - Fundamento do pedido
Os fundamentos apresentados no pedido para sustentarem a inconstitucionalidade das normas impugnadas são os seguintes (sem assinalar os itálicos e os destacados):
«[...]
I
Enquadramento
1 - Através do decreto intitulado "Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público", pretende a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira que, na Região, os "órgãos municipais territorialmente competentes" passem a ser detentores de competência para, nos termos do respetivo artigo 2.º, n.º 1:
"a) A regulação e fiscalização do estacionamento nas vias e espaços públicos, dentro das localidades, para além dos destinados a parques ou zonas de estacionamento, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal;
b) A instrução e decisão de procedimentos contraordenacionais rodoviários por infrações leves relativas a estacionamento proibido, indevido ou abusivo nos parques ou zonas de estacionamento, vias e nos demais espaços públicos quer dentro das localidades, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal, incluindo a aplicação de coimas e custas."
O n.º 2 do referido artigo 2.º acrescenta ainda que "O disposto no número anterior não obsta a que empresas concessionárias de estacionamento sujeito ao pagamento de taxa em vias sob jurisdição municipal possam exercer a atividade de fiscalização do estacionamento nas zonas que lhe estão concessionadas, nos termos do Decreto-Lei 146/2014, de 9 de outubro."
2 - O Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que o legislador regional pretende agora adaptar, "concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público". O artigo 2.º deste decreto-lei é de conteúdo idêntico ao do citado artigo 2.º do decreto regional ora sob apreciação (o mesmo sucedendo com grande parte das suas restantes normas, face ao decreto-lei cuja adaptação se pretende).
3 - O Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, surgiu na sequência da Lei 50/2018, de 16 de agosto, intitulada "Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais" (doravante também simplesmente referida como "Lei-quadro").
4 - Nos termos do seu artigo 1.º, a Lei 50/2018, de 16 de agosto, "estabelece o quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, concretizando os princípios da subsidiariedade, da descentralização administrativa e da autonomia do poder local".
5 - Muito embora o artigo 3.º da Lei-quadro estabeleça que "[a] transferência das novas competências tem caráter universal", o artigo 9.º, n.º 1, determinou que "[o] disposto na presente lei não abrange as atribuições e competências das regiões autónomas."
6 - Assim, segundo o n.º 2 do mesmo artigo 9.º da Lei-quadro, "[a] transferência de atribuições e competências para as autarquias locais nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira é regulada por diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas assembleias legislativas, nos termos da alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º, do n.º 1 do artigo 167.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, tendo em conta os princípios da autonomia regional e da especificidade da relação entre os órgãos dos governos regionais e as autarquias locais".
7 - É justamente o disposto neste artigo 9.º da Lei-quadro que revela a questão de constitucionalidade relativamente ao decreto objeto do presente requerimento: pois se a lei ao abrigo da qual foi emitido o decreto-lei que a Região Autónoma da Madeira pretende adaptar não vigorar para as regiões autónomas, tendo em conta que a matéria em causa - atribuições e competências das autarquias locais - pertence à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea q), da Constituição da República Portuguesa, doravante "CRP"], o decreto de adaptação pode ofender os limites da competência legislativa regional emergentes do disposto nos artigos 227.º e 228.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
8 - No caso do decreto em apreço, está apenas em causa o âmbito material do estacionamento público (permita-se-nos dizer assim de forma simplificada). Até ao momento, aliás, não foi enviado ao Representante da República para assinatura qualquer outro diploma regional sobre transferência de competências para as autarquias locais na Região Autónoma da Madeira.
9 - Porém, atentando no elenco legislativo nacional, é possível, senão provável, que outros se lhe sigam.
10 - Como é sabido, o artigo 4.º, n.º 1, da Lei-quadro estabelece que "[a] transferência das novas competências, a identificação da respetiva natureza e a forma de afetação dos respetivos recursos são concretizadas através de diplomas legais de âmbito setorial relativos às diversas áreas a descentralizar da administração direta e indireta do Estado, os quais estabelecem disposições transitórias adequadas à gestão do procedimento de transferência em causa".
11 - Ao abrigo desta última norma, o Governo da República emitiu já um considerável acervo de decretos-leis de concretização da descentralização, a saber:
a) O Decreto-Lei 97/2018, de 27 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio das praias marítimas, fluviais e terrestres;
b) O Decreto-Lei 98/2018, de 27 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da autorização de exploração das modalidades afins e de jogos de fortuna e azar;
c) O Decreto-Lei 99/2018, de 28 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos das entidades intermunicipais no domínio da promoção turística interna sub-regional.
d) O Decreto-Lei 100/2018, de 28 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio das vias de comunicação;
e) O Decreto-Lei 101/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais e das entidades intermunicipais no domínio da justiça;
f) O Decreto-Lei 102/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos das entidades intermunicipais no domínio dos projetos financiados por fundos europeus e programas de captação de investimento;
g) O Decreto-Lei 103/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do apoio às equipas de intervenção permanente das associações de bombeiros;
h) O Decreto-Lei 104/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da instalação e gestão de Lojas de Cidadão e de Espaços Cidadão, Gabinetes de Apoio aos Emigrantes e Centros Locais de Apoio e Integração de Migrantes, bem como para os órgãos das freguesias no domínio de Espaços Cidadão;
i) O Decreto-Lei 105/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da habitação;
j) O Decreto-Lei 106/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da gestão do património imobiliário público sem utilização;
k) O Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público (que é o diploma que o decreto em apreço visa adaptar à Região Autónoma da Madeira);
l) O Decreto-Lei 32/2019, de 4 de março, que alarga as competências dos órgãos municipais no domínio do policiamento de proximidade;
m) O Decreto-Lei 20/2019, de 30 de janeiro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio de proteção e saúde animal e de segurança dos alimentos;
n) O Decreto-Lei 21/2019, de 30 de janeiro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da educação;
o) O Decreto-Lei 22/2019, de 30 de janeiro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da cultura;
p) O Decreto-Lei 23/2019, de 30 de janeiro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da saúde.
12 - O quadro legislativo da transferência de competências para as autarquias locais integra ainda a Lei 51/2018, também de 16 de agosto, que altera a Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei 73/2013, de 3 de setembro, e o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, aprovado pelo Decreto-Lei 287/2003, de 12 de novembro.
13 - O sistema de transferência de competências para as autarquias locais, iniciado em 2018 com a Lei-quadro, altera substancialmente o regime anterior, assentando uma arquitetura de distribuição de poderes entre o Estado e o poder local que pretende concretizar o princípio da descentralização a um nível sem precedente.
14 - A relevância da questão de constitucionalidade que neste momento está em causa tem, portanto, duas dimensões: (i) uma dimensão em si mesma, dado o valor objetivo de cada questão de constitucionalidade, qualquer que ela seja; e (ii) uma dimensão sistemática, na medida em que a resposta a que se chegue neste caso pode ser relevante para a determinação dos condicionamentos constitucionais à transferência de competências para as autarquias locais nas regiões autónomas.
II
Da inconstitucionalidade das normas do decreto enviado ao Representante da República para assinatura como decreto legislativo regional intitulado "Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público"
15 - Como é sabido, e tem sido objeto de jurisprudência constantemente clarificadora por parte do Tribunal Constitucional, o estatuto das autarquias locais (aí incluídas as atribuições e competências das autarquias locais e o regime das finanças locais) é matéria pertencente à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea q), da CRP.
16 - Esta reserva relativa de competência legislativa implica que apenas a Assembleia da República pode legislar sobre a matéria, salvo autorização ao Governo, ou às Assembleias Legislativas Regionais nos casos constitucionalmente admissíveis.
17 - Quanto a esta última possibilidade, muito embora a CRP hoje permita que as Regiões Autónomas possam ser autorizadas pela Assembleia da República a legislar sobre algumas matérias da reserva relativa de competência legislativa desta última, tal não é o caso do estatuto das autarquias locais, que está expressamente excluído de qualquer intervenção legislativa regional deste tipo, de acordo com o disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea b), e artigo 228.º, n.º 1, ambos da CRP. Ou seja, não existem quaisquer circunstâncias nas quais as Regiões Autónomas possam legislar sobre as competências das autarquias locais situadas no seu território.
18 - Este quadro constitucional de reserva de competência legislativa em matéria de estatuto das autarquias locais fornece a matriz constitucional orgânico-formal essencial para a compreensão do sistema normativo formado pela Lei 50/2018, de 16 de agosto, e o vasto elenco de decretos-leis que se lhe seguiram. Vejamos em que termos.
19 - O artigo 1.º desta Lei-quadro afirma que "A presente lei estabelece o quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, concretizando os princípios da subsidiariedade, da descentralização administrativa e da autonomia do poder local".
20 - Por seu turno, o artigo 2.º estabelece um conjunto de princípios e garantias relevantes e o artigo 3.º assenta o princípio da universalidade, que já se mencionou supra e que merecerá ainda referência.
21 - Neste momento, porém, é essencial atentar no artigo 4.º, cuja redação é a seguinte:
"Artigo 4.º
Concretização da transferência das competências
1 - A transferência das novas competências, a identificação da respetiva natureza e a forma de afetação dos respetivos recursos são concretizadas através de diplomas legais de âmbito setorial relativos às diversas áreas a descentralizar da administração direta e indireta do Estado, os quais estabelecem disposições transitórias adequadas à gestão do procedimento de transferência em causa.
2 - A transferência das novas competências para as autarquias locais e entidades intermunicipais é efetuada em 2019, admitindo-se a sua concretização gradual nos seguintes termos:
a) Até 15 de setembro de 2018, as autarquias locais e entidades intermunicipais que não pretendam a transferência das competências no ano de 2019 comunicam esse facto à Direção-Geral das Autarquias Locais, após prévia deliberação dos seus órgãos deliberativos nesse sentido;
b) Até 30 de junho de 2019, as autarquias locais e entidades intermunicipais que não pretendam a transferência das competências no ano de 2020 devem observar o procedimento referido na alínea anterior.
3 - Todas as competências previstas na presente lei consideram-se transferidas para as autarquias locais e entidades intermunicipais até 1 de janeiro de 2021, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 40.º
4 - A transferência das novas competências é objeto de monitorização permanente e transparente da qualidade e desempenho do serviço público, promovendo a adequada participação da comunidade local na avaliação dos serviços descentralizados, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 6.º"
22 - O realçado das expressões no n.º 1 é nosso, e destina-se a destacar o seguinte: é a própria Lei-quadro que procede à transferência de competências e não cada um dos decretos-leis subsequentes.
23 - Atente-se, aliás, nos artigos 11.º e seguintes da Lei-quadro, os quais estabelecem, para cada área, quais as competências que são objeto de transferência. Todas estas normas se iniciam com a expressão "É da competência dos órgãos municipais...".
24 - Fica claro, portanto, que a transferência de competências decorre da própria Lei 50/2018, de 16 de agosto, e que os decretos-leis setoriais posteriores vêm apenas "concretizar" essa mesma transferência.
25 - De resto, o próprio Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, é expresso ao afirmar que "concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público, ao abrigo do artigo 27.º da Lei 50/2018, de 16 de agosto".
26 - Foi a própria Assembleia da República, portanto, que assumiu a sua competência legislativa nesta matéria, realizando ela mesma a transferência de competências para as autarquias locais.
27 - Os decretos-leis posteriores não são decretos-leis autorizados, justamente porque não é deles que decorre a transferência de competências ou, dito de outro modo, não é deles que resultam as alterações ao estatuto das autarquias locais.
28 - Estes decretos-leis são apenas factos normativos aos quais fica condicionada a efetiva concretização daquela transferência de competências. Veja-se, aliás, o disposto no artigo 43.º da Lei 50/2018, de 16 de agosto, a respeito da sua entrada em vigor: segundo o n.º 1 deste mesmo artigo, a lei "entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação", mas de acordo com o n.º 2, "[a] transferência das competências previstas na presente lei efetua-se nos termos do disposto no artigo 4.º".
29 - Este regime diz respeito à transferência de competências do Estado para autarquias locais e para as entidades intermunicipais.
30 - Coisa diferente é a transferência de competências das regiões autónomas para as autarquias locais situadas no seu âmbito territorial.
31 - Conforme se referiu supra no enquadramento das questões objeto do presente requerimento (I), o artigo 9.º, n.º 1, da Lei-quadro determinou que "[o] disposto na presente lei não abrange as atribuições e competências das regiões autónomas.".
32 - Segundo o n.º 2 do mesmo artigo 9.º da Lei-quadro, "[a] transferência de atribuições e competências para as autarquias locais nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira é regulada por diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas assembleias legislativas, nos termos da alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º, do n.º 1 do artigo 167.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, tendo em conta os princípios da autonomia regional e da especificidade da relação entre os órgãos dos governos regionais e as autarquias locais".
33 - A Assembleia da República optou, pois, por consagrar a seguinte dualidade: a transferência de atribuições e competências do Estado para as autarquias locais opera por efeito da Lei-quadro (muito embora dependente dos decretos-leis de concretização). Já a transferência de atribuições e competências das regiões autónomas para as autarquias locais carece de um regime jurídico adicional, da iniciativa de cada Região, e até hoje inexistente.
34 - É certo que o Estado pode transferir atribuições e competências suas para quaisquer autarquias locais, estejam elas localizadas no território continental ou regional. Melhor dito ainda, por força do princípio da universalidade, inscrito no artigo 3.º, n.º 1, da Lei-quadro, a transferência das competências do Estado é para todas as autarquias locais, independentemente da sua localização.
35 - Assim, os referidos decretos-leis poderiam concretizar essa transferência para autarquias situadas no território regional: mas apenas se se tratasse de competências estaduais. Por outras palavras, a Lei 50/2018, de 16 de dezembro, só se aplicará nas regiões autónomas quanto a uma eventual transferência de competências do Estado para autarquias situadas na Madeira ou nos Açores.
36 - Quando se trate da transferência de competências regionais, a situação é já bem diferente, dado o disposto no citado artigo 9.º da Lei-quadro.
37 - Com efeito, a transferência de atribuições e competências regionais para as autarquias locais é, como diz o artigo 9.º, n.º 2, regulada por diploma próprio e dependente de iniciativa legislativa regional junto da Assembleia da República: isto é, uma lei parlamentar específica, cuja iniciativa deve partir da Assembleia Legislativa de cada uma das Regiões Autónomas.
38 - A referência, neste artigo 9.º, n.º 2, aos artigos 165.º, n.º 1, alínea q), 167.º, n.º 1, e 227.º, n.º 1, alínea f), todos da CRP, não deixam qualquer margem para dúvida a este respeito:
a) O 165.º, n.º 1, alínea q), como visto, inclui na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República o estatuto das autarquias locais;
b) O artigo 167.º, n.º 1, disciplina a iniciativa legislativa junto da Assembleia da República, como primeiro passo do procedimento legislativo parlamentar, que cabe, no respeitante às regiões autónomas, às respetivas Assembleias Legislativas;
c) E o artigo 227.º, n.º 1, alínea f), diz respeito à competência regional para "[e]xercer a iniciativa legislativa, nos termos do n.º 1 do artigo 167.º, mediante a apresentação à Assembleia da República de propostas de lei e respetivas propostas de alteração".
39 - Deste modo, é inequívoco que a Assembleia da República exclui a aplicabilidade da Lei 50/2018, de 16 de agosto, às regiões autónomas no tocante à transferência de competências destas para as autarquias nelas situadas, fazendo-o depender de uma nova lei, de iniciativa da respetiva região. Esta opção é compreensível por duas ordens de razão.
40 - Pelo prisma das Regiões Autónomas, por um lado, a transferência de suas competências para as autarquias pode implicar alguma erosão dos respetivos estatutos político-administrativos que estabelecem o âmbito material da autonomia regional. Ora, qualquer iniciativa com implicações estatutárias é reservada às próprias regiões, nos termos do artigo 226.º, n.º 1, da CRP. Por outro lado, ainda que se trate de matéria não expressamente referida nos estatutos mas emergente de diplomas regionais que de algum modo os concretizam (cf. infra, pontos 56 e ss.), não poderia a Assembleia da República invadir a competência normativa regional. Assim se justifica a necessidade de uma iniciativa legislativa regional.
41 - Já pelo prisma das Autarquias Locais, estando em causa a afetação da sua esfera de competências - logo, do seu estatuto -, exigir-se-á sempre uma intervenção da Assembleia da República.
42 - Para cada Região, terá então que vir a ser aprovada uma lei parlamentar, da iniciativa da respetiva Assembleia Legislativa, só depois podendo concretizar-se o processo de transferência de atribuições e competências das regiões para as autarquias nelas situadas.
43 - Ora, tal lei não existe ainda: não existe para nenhuma das Regiões Autónomas, nem foi até ao momento exercida a correspondente iniciativa legislativa por qualquer delas, tanto quanto é do conhecimento do requerente.
44 - E, assim sendo, a adaptação que o decreto sub judice pretende realizar não pode ter lugar.
45 - O sistema gizado pelo legislador parlamentar limita o âmbito de aplicação dos decretos-leis de concretização, entre os quais se situa o Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que o decreto sub judice pretende adaptar.
46 - Se a lei a que os mesmos dão concretização se aplica apenas no tocante à transferência de atribuições e competências do Estado para as autarquias locais, o âmbito de aplicação daqueles não pode ser mais vasto.
47 - Ora, a adaptação que o decreto sub judice pretende do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, configura assim o exercício da competência legislativa regional de modo inovador relativamente ao estatuto das autarquias locais, em violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da CRP, que o próprio decreto no seu introito invoca.
48 - Parece inevitável concluir que não é uma verdadeira adaptação de legislação nacional aquilo a que o legislador regional agora está a proceder, mas antes a uma normação inovadora em matéria de estatuto das autarquias locais que esbarra com o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea q), e nos artigos 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos da CRP.
49 - O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre as relações entre as Regiões Autónomas e as Autarquias Locais situadas no seu território. Cumpre, portanto, recordar jurisprudência resultante do Acórdão 420/2018, de 9 de agosto de 2018, depois igualmente adotada no Acórdão 450/2019, de 5 de agosto de 2019, ambos votados por unanimidade.
50 - Impõe-se primeiramente recuperar uma síntese constante do ponto 18.3 do douto Ac. TC n.º 420/2018: "Incluída no estatuto das autarquias locais, e portanto sujeita à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, está a regulação das atribuições das autarquias locais e das competências dos seus órgãos (cf., neste sentido, a título exemplificativo, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 329/99 e 377/99; na doutrina, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. ii, 4.ª edição revista, Coimbra, 2010, p. 332, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra, 2007, p. 454)."
51 - Não existem, portanto, quaisquer dúvidas que o decreto sub judice bole com o estatuto das autarquias locais: é seu objeto alterar as competências das autarquias locais. Pelo que é inequívoco que está em causa uma matéria de reserva legislativa da Assembleia da República - artigo 165.º, n.º 1, alínea q), da CRP -, para mais matéria não autorizável para legislação pelas Regiões - artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), da CRP.
52 - Pelo que a matéria sobre a qual dispõe o decreto sub judice "se situa no domínio estatutário das autarquias de modo a entender-se incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, afetando por isso a Assembleia Legislativa Regional um espaço de normação reservado, pela Constituição, aos órgãos de soberania e configurando a existência um vício de inconstitucionalidade orgânica" (vide ponto 19 do Ac. TC n.º 420/2018).
53 - Igualmente rico é o Ac. TC n.º 450/2019 (cit.), que no seu ponto 17 assenta: "Independentemente de saber qual é, ou até mesmo se existe, um critério unitário, de conteúdo materialmente apreensível, que possa dizer-se subjacente à delimitação do universo das matérias reservadas à competência legislativa da Assembleia da República insuscetíveis de delegação legislativa às Assembleias Legislativas Regionais (a este propósito, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo iii, Coimbra Editora, 2007, Anotação ao artigo 228.º, p. 360, e J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. ii, 4.ª ed., 2010, Anotação ao artigo 227.º, p. 667), não há dúvida de que o propósito do legislador de revisão constitucional (2004) foi, quanto à matéria prevista na alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, o de manter a conformação do "estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais", na esfera de competência legislativa dos órgãos de soberania (Assembleia da República e Governo, mediante autorização parlamentar), sem possibilidade de interferência, sequer mediante autorização daquela Assembleia, do poder legislativo regional.
Sem prejuízo do conjunto de poderes cometidos pela Constituição às regiões autónomas na relação com as autarquias locais nelas sediadas - como o poder de criar e extinguir autarquias locais, bem como modificar a respetiva área, nos termos da lei [artigo 227.º, n.º 1, alínea l)], o de exercer tutela sobre as autarquias locais [idem, alínea m)] e o de elevar povoações à categoria de vilas ou cidades [idem, alínea n)], - as demais matérias respeitantes às autarquias locais - como a eleição e o estatuto dos eleitos locais [artigo 164.º, alíneas l) e m)], o regime de criação, extinção e modificação das autarquias locais [artigo 164.º, alínea n)] e a respetiva criação, extinção e modificação (idem), o regime da elaboração e organização dos orçamentos das autarquias locais [artigo 164.º, alínea r)], o estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais [artigo 165.º, n.º 1, alínea q)], a participação das organizações de moradores no exercício do poder local [artigo 165.º, n.º 1, alínea r)] e regime e forma de criação das polícias municipais [artigo 165.º, n.º 1, alínea aa)] - encontram-se reservadas à competência legislativa da Assembleia da República, absoluta e relativa, sem possibilidade de autorização às Assembleias Legislativas Regionais.
Conforme se concluiu no Acórdão 420/2018, "por força do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 228.º, n.º 1, da Constituição, o enquadramento infraconstitucional das autarquias locais - sem excecionar as autarquias locais existentes nas Regiões Autónomas - assume um caráter unitário, de âmbito nacional, decidido no plano parlamentar nacional" (itálico aditado).
A razão de ser da opção do legislador constituinte (e de revisão) foi igualmente explicitada no aludido aresto. De acordo com o que aí se escreveu, tal opção repousa "na compreensão da autonomia das autarquias locais (e da sua existência) no quadro do Estado unitário (artigo 6.º da CRP) e na organização democrática do Estado (artigo 235.º, n.º 1)", que aponta, por sua vez, "para a igualdade estatutária das autarquias locais existentes (municípios e freguesias), diferenciando o continente e as Regiões Autónomas tão só quanto à existência das (ainda não criadas) regiões administrativas (artigo 236.º, n.os 1 e 2). No demais, as condições específicas das 'ilhas' poderão determinar o estabelecimento, por lei, de outras formas de organização territorial autárquica (artigo 236.º, n.º 3), que não os atualmente previstos municípios e freguesias" (itálico aditado).
54 - Sem prejuízo de outros aspetos referidos no mesmo Ac. TC n.º 450/2019, deve ainda tomar-se em consideração o teor do seu ponto 18:
"Ao reservar à Assembleia da República a definição do 'estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais', sem limitação às 'bases gerais' ou ao 'regime geral' daquele estatuto, a alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição comete, à partida, à lei parlamentar a definição de todo o regime daquela matéria. Trata-se, pois, de um caso em que a inclusão de determinada matéria na reserva relativa de competência da AR opera in toto (cf., neste sentido, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. iii, tomo v, Atividade Constitucional do Estado, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, n.º 68, p. xxx, ou Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. ii, Organização Económica, Organização do Poder Político, artigos 80.º a 201.º, 2.ª ed., Lisboa, UCP, 2018, Anotação ao artigo 164.º, iii, p. 529).
A questão está, assim, em saber o que deve considerar-se incluído no âmbito material do 'estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais', a que alude a alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
Conforme sublinhado no aresto que vimos acompanhando, a 'cláusula de reserva relativa prevista na alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, invocada como fundamento determinante de inconstitucionalidade [também] nos presentes autos, assume relevância no quadro da garantia constitucional da autonomia do poder local, tal como resulta do regime constitucional contido no seu título vii, dedicado ao Poder Local, e artigos que o integram (artigos 235.º a 262.º)'. É esse o quadro que permite apreender (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição..., Anotação ao artigo 165.º, i, pp. 543-544), ainda que sem os esgotar, o significado e alcance da matéria integrada na reserva prevista naquela alínea.
Ao perspetivar, no seu artigo 6.º, a estrutura do Estado unitário, a Constituição estabelece um 'princípio constitucional geral - a unidade do Estado - e quatro princípios de âmbito específico, que qualificam aquele sem o contrariarem: a autonomia regional, a autonomia local, o princípio da subsidiariedade e a descentralização administrativa' (J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, 4.ª ed., 2007, Anotação ao artigo 6.º, p. 232).
Na arquitetura dos poderes que integram o Estado unitário e na correlação entre eles estabelecida, o princípio constitucional da autonomia local - que, tal como dali decorre, se apresenta como 'um dos pilares fundamentais em que assenta a organização territorial da República Portuguesa' (Acórdão 494/2015) - assume, nos termos da própria Constituição, uma vertente garantística: ao estabelecer que a 'organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais', enquanto 'pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas', o artigo 235.º da Constituição 'tem um sentido de garantia institucional, assegurando a existência de administração local autárquica autónoma' em todo o território nacional (Acórdão 296/2013).
O recorte desta garantia institucional e a definição do seu exato âmbito têm subjacente a ideia de que as autarquias locais têm por objetivo, 'a prossecução de interesses próprios das populações respetivas (artigo 235.º, n.º 2)'; e que, tal como decorre do artigo 3.º, n.º 1, da Carta Europeia da Autonomia Local, tal objetivo 'pressupõe e exige, entre outros, o direito e a capacidade de as autarquias regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob a sua responsabilidade e no interesse das respetivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos' (Acórdão 296/2013)".
55 - E neste mesmo aresto, no ponto 20, salientava ainda o Tribunal Constitucional que:
"A exclusão da possibilidade de as Assembleias Legislativas Regionais concorrerem na conformação do estatuto das autarquias locais da respetiva região, incluindo o regime dos seus funcionários [pois neste caso era esse o domínio material em causa, muito embora no caso em apreço, mutatis mutandis, seja a mesma a razão de decidir], não é, além do mais, suscetível de afetar a autonomia regional, tal como a perspetiva o artigo 225.º da Constituição: nem quanto aos seus fundamentos, que assentam nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares; nem quanto os seus fins, que consistem na participação democrática dos cidadãos, no desenvolvimento económico-social, na promoção e defesa dos interesses regionais, mas também no reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses.
O que tal exclusão, na verdade, evidencia é que, do ponto de vista jurídico-constitucional, autonomia regional e autonomia local são conceitos autónomos, não aglutinadores ou sequer sobreponíveis; correspondem-lhes, na verdade, realidades normativa e organicamente diferenciadas, que se relacionam entre si como dois círculos justapostos e contíguos, com as linhas de interceção e de interpenetração que decorrem do exercício pelos órgãos de governo próprios de cada região dos poderes não reservados aos órgãos de soberania."
56 - Atentemos ainda no domínio material em causa, identificado no artigo 2.º do diploma sub judice. Recordando-o, os órgãos municipais territorialmente competentes (isto é, no âmbito de jurisdição de cada município), passariam a ter competência para:
"a) A regulação e fiscalização do estacionamento nas vias e espaços públicos, dentro das localidades, para além dos destinados a parques ou zonas de estacionamento, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal;
b) A instrução e decisão de procedimentos contraordenacionais rodoviários por infrações leves relativas a estacionamento proibido, indevido ou abusivo nos parques ou zonas de estacionamento, vias e nos demais espaços públicos quer dentro das localidades, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal, incluindo a aplicação de coimas e custas."
57 - O Decreto Legislativo Regional 36/2006/M, de 17 de agosto, adaptou às competências da Administração Regional Autónoma o Decreto-Lei 44/2005, de 23 de fevereiro, que altera o Código da Estrada e os seus regulamentos.
58 - O artigo 3.º deste diploma veio assentar a competência do membro do Governo Regional com a tutela dos transportes terrestres para a emissão de um vasto conjunto de regulamentos exigidos pelo Código da Estrada.
59 - Por seu turno, o artigo 4.º deste Decreto Legislativo Regional, sob a epígrafe "Correspondências orgânicas", veio determinar o seguinte:
"1 - O serviço a que se reporta o artigo 12.º do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de fevereiro, é a direção regional com a tutela dos transportes terrestres.
2 - Tem competência para aplicação das coimas e sanções acessórias correspondentes às contraordenações previstas no Código da Estrada e seus regulamentos o diretor regional com a tutela dos transportes terrestres, que poderá delegá-la, nos termos legais."
60 - O referido artigo 12.º do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de fevereiro, que era então a versão em vigor do Código da Estrada, estabelecia que "[n]as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira as competências cometidas à Direcção-Geral de Viação são exercidas pelos organismos e serviços das respetivas administrações regionais."
61 - E o citado n.º 2 revela também, inequivocamente, que estas são competências regionais, e não estaduais.
62 - Hoje, a competência do Diretor Regional de Estradas resulta do artigo 5.º, n.º 2, alínea e), do Decreto Regulamentar Regional 21/2016/M, de 30 de setembro (orgânica da Direção Regional de Estradas, alterado pelo Decreto Regulamentar Regional 7/2019/M, de 18 de setembro).
63 - A Direção Regional de Estradas integra a administração direta da Região Autónoma da Madeira, no âmbito da Secretaria Regional de Equipamentos e Infraestruturas [artigo 5.º, n.º 1, alínea d), do Decreto Regulamentar Regional 9/2020/M, de 20 de janeiro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto Regulamentar Regional 3/2022/M, de 2 de março].
64 - No âmbito continental, as competências em matéria contraordenacional rodoviária pertencem à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária [artigos 2.º, n.º 1; 4.º, n.º 1, alíneas c) e d); 5.º, n.º 1, alínea b), 8.º, n.º 2, todos do Decreto Regulamentar 28/2012, de 12 de março, e artigo 169.º do Código da Estrada].
65 - A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária pertence à administração direta do Estado, estando subordinada ao poder de direção do Ministro da Administração Interna [artigo 16.º, n.º 2, alínea d), do Decreto-Lei 32/2022, de 9 de maio].
66 - É certo que o Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro (que o diploma sub judice pretende adaptar), alterou o Código da Estrada, designadamente o seu artigo 169.º, n.º 7, estabelecendo que "A competência para o processamento e aplicação de coimas nas contraordenações rodoviárias por infrações leves relativas a estacionamento proibido, indevido ou abusivo nos parques ou zonas de estacionamento, nas vias e nos demais espaços públicos quer dentro das localidades, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal, é da respetiva câmara municipal".
67 - Porém, esta alteração atributiva de competências às câmaras municipais tem de ser entendida no contexto do sistema da Lei 50/2018, de 16 de agosto.
68 - Com efeito, o Código da Estrada, enquanto tal, não é matéria de reserva parlamentar; mas algumas das matérias nele incluídas podem sê-lo, e, quando assim seja, é necessário respeitar a repartição das regras constitucionais de competência legislativa.
69 - Em circunstâncias normais, um decreto-lei que introduzisse uma alteração ao Código da Estrada que constituísse simultaneamente uma alteração das competências autárquicas - isto é, que tocasse o estatuto das autarquias locais - careceria de autorização legislativa para o efeito.
70 - No caso vertente isso não foi considerado necessário, certamente, porque a inovação competencial foi realizada pela própria Lei-quadro, no seu artigo 27.º, que, sob a epígrafe "Estacionamento público", estabeleceu que "É da competência dos órgãos municipais regular, fiscalizar, instruir e decidir os procedimentos contraordenacionais rodoviários em matéria de estacionamento nas vias e espaços públicos dentro das localidades, para além dos destinados a parques ou zonas de estacionamento."
71 - Deste modo, deverá o legislador ter considerado que, também aqui, o Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, constituía uma mera concretização daquela transferência de competências, simplesmente adequando a redação do Código da Estrada nesta parte.
72 - Assim, a conclusão adequada a uma interpretação conforme à Constituição parece ser a de que esta alteração ao Código da Estrada, concedendo aquelas competências às câmaras municipais, apenas produz efeitos no território continental.
73 - E aqui importa esclarecer ainda: dizemos no território continental porque, muito embora o sistema da Lei-quadro permita a transferência de competências do Estado para autarquias localizadas nas regiões autónomas, no caso tal não pode suceder visto que as competências em matéria de contraordenações rodoviárias estão regionalizadas e a Lei-quadro não habilita a transferência de atribuições e competências das Regiões para as autarquias, como se viu resultar do respetivo artigo 9.º
74 - Em especial, na Região Autónoma da Madeira, as contraordenações rodoviárias são da competência da autoridade regional: dela provêm as correspondentes notificações e a ela cabe a respetiva condução procedimental e aplicação de coimas.
75 - Pode considerar-se fazer todo o sentido que as Regiões Autónomas descentralizem estas competências para as autarquias locais situadas no seu âmbito territorial: o requerente não o contesta em termos substanciais.
76 - A questão é que uma transferência de competências tem de observar o quadro constitucional de reserva de competência legislativa e, no caso vertente, o legislador parlamentar condicionou essa possibilidade à aprovação de uma lei da Assembleia da República de iniciativa regional, nos termos expostos.
77 - Aliás, a própria Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira parecia ciente da problemática subjacente ao presente requerimento de apreciação de constitucionalidade, ou seja, da necessidade de, previamente à concretização de qualquer descentralização de competências da Região para as autarquias locais aí sediadas, ser necessário existir uma lei parlamentar de adaptação da Lei 50/2018, de 16 de agosto, à Região, a aprovar no seguimento de uma iniciativa legislativa regional. Tal é evidenciado pelo facto de, logo em junho de 2019, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira ter aprovado a Resolução 17/2019/M, publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, n.º 93, 1.ª série, de 12 de junho de 2019, através da qual se recomendou ao Governo Regional "a criação de um Grupo de Trabalho com vista à adaptação, à Região Autónoma da Madeira, das Leis n.os 50/2018 e 51/2018, de 16 de agosto". Tal resolução é particularmente clarificadora quando refere que as conclusões de tal grupo de trabalho "serão determinantes na definição da iniciativa legislativa da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira".
78 - No seguimento da referida Resolução 17/2019/M, o Governo Regional aprovou a Resolução 19/2020, publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, n.º 17, 1.ª série, de 28 de janeiro de 2020, determinando a "criação e composição de um Grupo de Trabalho com vista à adaptação à Região das Leis n.os 50/2018 e 51/2018, ambas de 16 de agosto, avaliando as transferências das competências para as Autarquias Locais da Região". No preâmbulo desta Resolução faz-se menção ao conjunto de normas relativas à iniciativa legislativa regional junto da Assembleia da República que constam do artigo 9.º, n.º 2, da Lei-quadro, revelando também o Governo Regional estava ciente da necessidade da existência de uma lei própria de descentralização de competências regionais para as autarquias locais situadas na Madeira. É impressivo que esta resolução refira que "a transferência de atribuições e competências para as Autarquias Locais das Regiões Autónomas é regulada por diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas assembleias legislativas, nos termos da alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º, do n.º 1 do artigo 167.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição da República Portuguesa, tendo em conta os princípios da autonomia regional e da especificidade da relação entre os órgãos dos Governos Regionais e as Autarquias Locais".
79 - Mas isto nunca deu lugar a qualquer iniciativa legislativa da Assembleia Legislativa junto da Assembleia da República.
80 - Para o caso em análise, é ainda irrelevante a circunstância eventual de as autarquias locais da Região - individual ou coletivamente - concordarem com a atribuição das novas competências que lhes adviriam do decreto sub judice. O facto de a Associação de Municípios da Região Autónoma da Madeira ter sido ouvida previamente à aprovação do mesmo em nada obsta ao raciocínio acima exposto, porquanto tal não é suscetível de alterar o quadro constitucional de repartição de competência legislativa.
81 - A questão central é o sistema normativo de transferência de competências das Regiões para as autarquias em geral, que pode teoricamente abranger quaisquer das matérias referidas na Lei 50/2028, de 16 de agosto (matérias essas que têm graus de relevância distintos, e diferentes impactos a diversos níveis, até mesmo financeiros).»
A final, o requerente sintetiza o pedido de fiscalização preventiva que formula:
«Nestes termos, requer-se ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade, com os fundamentos supra, de todas as normas do Decreto sub judice, por organicamente inconstitucionais, em face da ausência de competência legislativa do legislador regional, em violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea q), 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), 228.º, n.º 1, e 237.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, nos termos expostos.»
4 - Resposta do autor das normas
Notificada a ALRAM, enquanto órgão autor das normas sindicadas, na pessoa do seu Presidente, ao abrigo do disposto nos artigos 54.º, 55.º, n.º 3, e 56.º, n.os 1, 2 e 4, da LTC, para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, o mesmo apresentou resposta, sustentando a não inconstitucionalidade das normas sob fiscalização nos seguintes termos:
«[...]
Notificada a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, através do seu Presidente, ora signatário, do requerimento de Sua Excelência o Representante da República para a Região Autónoma da Madeira, com vista à fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas constantes do decreto legislativo regional intitulado "Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público", aprovado em sessão Plenária da Assembleia Legislativa da Madeira do passado dia 15 de junho, vem o mesmo apresentar a resposta, em pronúncia relativamente ao mesmo, de acordo com o seguinte:
1.º
Segundo se aduziu no requerimento de fiscalização preventiva da constitucionalidade, o Decreto em apreço, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira e enviado para assinatura como decreto legislativo regional, intitulado de adaptação do regime contido no Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, ultrapassou os limites constitucionais da competência legislativa da Região Autónoma da Madeira, em suma, por respeitar a matéria plasmada no n.º 1 do artigo 237.º da Constituição da República Portuguesa e consubstanciar área do estatuto das autarquias locais, contida na reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, prevista na alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º também da Constituição da República, gerando-se, pois, inconstitucionalidade orgânica, segundo a perspetiva que subjaz ao requerimento ora em resposta.
2.º
No entanto, e com o devido respeito pelas razões sustentadas, o diploma adaptado à Região Autónoma da Madeira pela iniciativa sub judice, concretamente, o Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, constitui um diploma aprovado pelo Governo da República, abrangendo a mesma matéria do diploma regional.
3.º
O referido decreto-lei invoca, entre as normas habilitantes da sua aprovação, a contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição da República Portuguesa, que configura uma norma de competência legislativa do Governo da República para "Fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República".
4.º
Acresce que inexiste norma em lei, seja a Lei 50/2018, de 16 de agosto, ou outra, que de forma expressa tenha cometido ao Governo da República ou sequer que tenha remetido para decreto-lei a regulação normativa da matéria que é versada no referido Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, o qual, outrossim, não se baseia em lei que tenha concedido autorização legislativa ao Governo para a sua aprovação.
5.º
Por outro lado, o Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, emitido, como se referiu já, ao abrigo de norma de competência legislativa do Governo da República em matéria não reservada, não estabeleceu um regime delimitado e circunscrito ao território continental nacional, dando azo ao exercício da iniciativa legislativa, mediante diploma próprio da Região, de adaptação do referido decreto-lei.
6.º
Assim, o decreto legislativo regional ora sub judice opera a adaptação do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que não se circunscreveu ao âmbito do território continental, se erige sobre matéria não reservada à Assembleia da República e estabelece, inclusive, alterações ao Código da Estrada (veja-se o artigo 8.º) concedendo competências às câmaras municipais, de forma generalizada ao âmbito nacional.
7.º
As normas contidas no Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, adaptado à Região Autónoma da Madeira pelo decreto legislativo regional ora em apreço, operam clara e inevitavelmente, como se vê dos seus termos, sobre competências autárquicas, como se denota em várias das suas normas, a começar pelo artigo 2.º, epígrafe "Transferência de competências", e corpo do n.º 1, "É da competência dos órgãos municipais".
8.º
Assim sendo, não estará em causa, na iniciativa regional, matéria de reserva de lei, nomeadamente estatuto das autarquias locais, a que se refere a alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, mas sim a adaptação de um regime não restrito ao continente português, constante, ele próprio, de decreto-lei e como tal aprovado pelo Governo da República, habilitado na sua competência legislativa sobre matéria não reservada.
9.º
A finalizar, tem-se presente que em apreciação está a presente adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, pelo decreto legislativo regional sub judice e nenhuma outra medida ou eventualidade de outras medidas, que inexistem e que não releva, de todo, mencionar na presente sede.
Em conformidade com o exposto:
Julgamos, pois, que as normas constantes do decreto legislativo regional enviado à fiscalização preventiva da constitucionalidade se incluem na competência legislativa da Região Autónoma da Madeira, consagrada na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, cujo exercício cabe, exclusivamente, à Assembleia Legislativa da Madeira, nos termos do n.º 1 do artigo 232.º da Lei Fundamental do Estado Português, não enfermando de vício de inconstitucionalidade.»
II. Fundamentação
A. Conhecimento do pedido
5 - Considerando a legitimidade do requerente, fundada no artigo 278.º, n.º 2, da CRP, bem como a circunstância de o pedido conter todas as indicações a que se refere o artigo 51.º, n.º 1, da LTC e a observância dos prazos aplicáveis (artigo 278.º, n.º 3, da Constituição e artigos 54.º, 56.º, n.º 4, 57.º, n.os 1 e 2, e 58.º da LTC), nada obsta ao conhecimento da questão de constitucionalidade formulada nos presentes autos, nem à consideração da resposta apresentada pelo órgão autor da norma impugnada.
B. Enquadramento normativo
6 - A ALRAM aprovou, em 15 de junho de 2022, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, no n.º 1 do artigo 228.º e no n.º 1 do artigo 232.º da CRP e, ainda, na alínea c) do n.º 1 do artigo 37.º, na alínea ll) do artigo 40.º e no n.º 1 do artigo 41.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (aprovado pela Lei 13/91, de 5 de junho, revisto e alterado pelas Leis 130/99, de 21 de agosto e 12/2000, de 21 de junho), o Decreto que visa a «Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público».
O diploma tem o objeto acabado de referir e repetido no seu artigo 1.º, assumindo conteúdo e estrutura praticamente idênticos aos do Decreto-Lei 107/2018, de 28 de novembro, que a ALRAM visa adaptar à RAM. Uma vez que o diploma da República, como se explica no preâmbulo do Decreto ora em apreciação, «passou a permitir aos órgãos municipais [do continente], sem necessidade de prévia autorização da administração central do Estado, a fiscalização do estacionamento nas vias e espaços públicos, dentro das localidades e fora das localidades sob jurisdição municipal, bem como a competência para a instrução e decisão de procedimentos contraordenacionais rodoviários, incluindo a aplicação de coimas e custas, por infrações leves relativas ao estacionamento proibido, indevido ou abusivo nos parques ou zonas de estacionamento, vias e nos demais espaços públicos, dentro das localidades e fora das localidades sob jurisdição municipal», pretende o legislador regional adaptar o quadro legislativo de «transferência de competências para as autarquias locais» à RAM. Ainda de acordo com o respetivo preâmbulo, visa «estabelecer os termos em que as autarquias da Região Autónoma da Madeira passarão a exercer competências em matéria de estacionamento público» - sem deixar, no entanto, de sublinhar logo neste preâmbulo que «a transferência de atribuições e competências para as autarquias locais nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira é regulada por diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas assembleias legislativas» (itálico nosso).
Antes de nos determos com mais atenção no Decreto sob sindicância, importa dar uma nota explicativa sobre o que se passou, nesta sede, ao nível da legislação da República.
7 - No dia 16 de agosto de 2018, foi publicada a «Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais» (Lei 50/2018, de 16 de agosto), muitas vezes apelidada, sobretudo antes da sua publicação, simplesmente «lei da descentralização». Esta Lei foi acompanhada por outras modificações legislativas - nomeadamente à Lei das Finanças Locais (Lei 73/2018, de 3 de setembro) e ao Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, cujas alterações foram aprovadas por intermédio da Lei 51/2018, de 16 de agosto (a qual, no seu artigo 3.º, aditou um artigo 80.º-C à citada Lei das Finanças Locais, cujo n.º 1 é de sentido idêntico ao que consta do artigo 9.º, n.º 2, da Lei 50/2018, de 16 de agosto: «[o] financiamento de novas competências a transferir da administração direta ou indireta do Estado para as autarquias locais das Regiões Autónomas é regulado por diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas assembleias legislativas.») - e necessitava e necessita ainda de um extenso pacote de legislação setorial para a sua densificação: de acordo com o n.º 1 do seu artigo 4.º, «[a] transferência das novas competências, a identificação da respetiva natureza e a forma de afetação dos respetivos recursos são concretizadas através de diplomas legais de âmbito setorial relativos às diversas áreas a descentralizar [...]».
A propósito desta Lei, Vieira de Andrade assinala («A nova lei portuguesa da descentralização administrativa: apreciação crítica», in: Descentralização Administrativa: Perspetiva Luso-Espanhola, Instituto Jurídico, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, coord. Suzana Tavares da Silva, 2018, pp. 269-278) a importância do exame do Tribunal Constitucional a respeito da anterior Lei 75/2013, de 12 de setembro - no âmbito de um processo de fiscalização preventiva, ao pronunciar-se, no Acórdão 296/2013, pela inconstitucionalidade de algumas normas do modelo de fiscalização então proposto, em especial com base numa «ideia central, a do imperativo constitucional da densidade legal, isto é, de que a Lei, da competência do Parlamento, deveria ser, ela própria, suficientemente densa na determinação das atribuições e competências a transferir para as autarquias locais» (cf. p. 271) -, destacando que a Lei 50/2018, de que nos ocupamos, constitui «uma lei-quadro das transferências, que são concretizadas através de diplomas legais (decretos-leis) de âmbito setorial, relativos às diversas áreas a descentralizar (educação, saúde, ação social, proteção civil, património, transportes, habitação, cultura, etc.)» (id., ibidem, p. 272), respondendo assim à exigência de densidade legal imposta pelo Tribunal Constitucional.
No mesmo escrito, Vieira de Andrade põe em evidência o que considera ser uma das maiores vulnerabilidades da concretização do modelo, a da universalidade da prestação de serviços sociais básicos como a educação, a habitação, a saúde e a ação social (bem como da igualdade de oportunidades e da qualidade no acesso a esses bens) em face das «assimetrias regionais e as diferenças de dimensão entre os municípios» (ibidem, p. 274). O que se compreende, precisamente porque se trata de atribuições a ser transferidas ou partilhadas do (entre o) Estado para (e os) municípios.
Como é dito no pedido, o artigo 4.º, n.º 1, da Lei 50/2018 determina que «[a] transferência das novas competências, a identificação da respetiva natureza e a forma de afetação dos respetivos recursos são concretizadas através de diplomas legais de âmbito setorial relativos às diversas áreas a descentralizar da administração direta e indireta do Estado, os quais estabelecem disposições transitórias adequadas à gestão do procedimento de transferência em causa», sendo certo que, ao abrigo de tal norma, o Governo da República já emitiu uma série de decretos-leis de concretização deste modelo da descentralização, em domínios tão diversos como, entre outros, o da promoção turística (Decreto-Lei 99/2018, de 28 de novembro); das vias de comunicação (Decreto-Lei 100/2018, de 28 de novembro); da justiça (Decreto-Lei 101/2018, de 29 de novembro); das estruturas de atendimento ao cidadão (Decreto-Lei 104/2018, de 29 de novembro); da habitação (Decreto-Lei 105/2018, de 29 de novembro); da gestão do património imobiliário público sem utilização (Decreto-Lei 106/2018, de 29 de novembro); da educação (Decreto-Lei 21/2019, de 30 de janeiro); da cultura (Decreto-Lei 22/2019, de 30 de janeiro); da saúde (Decreto-Lei 23/2019, de 30 de janeiro); ou das competências dos órgãos municipais no domínio do policiamento de proximidade (Decreto-Lei 32/2019, de 4 de março).
O mesmo aconteceu em relação ao domínio que o Decreto que nos ocupa pretende regular, através do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, o qual, de acordo com o seu artigo 1.º, «concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público, ao abrigo do artigo 27.º da Lei 50/2018, de 16 de agosto».
Em suma, com base na chamada «lei da descentralização» foi instituído um sistema de transferência de competências para as autarquias locais, com destaque para os municípios, que visa a concretização do princípio da descentralização em termos que até aqui não tinham paralelo e que tem vindo a ser paulatinamente concretizado pelo legislador da República.
8 - Concluindo, no continente foi instituído um modelo de descentralização que assenta na referida «Lei-quadro», a qual necessita de um extenso pacote de legislação setorial para a sua densificação: a opção foi por «delimitar em abstrato na lei e transferir as novas competências para todos os Municípios e para todas as freguesias, independentemente da sua vontade [...] e das respetivas diversidades, em área, população e recursos» (cf. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 272), sendo depois a transferência das novas competências, a identificação da sua natureza e a forma de afetação dos recursos respetivos concretizadas através de diplomas legais de âmbito setorial (cf. artigo 4.º da Lei-quadro).
Apesar de a lei só produzir efeitos após a aprovação dos respetivos diplomas legais de âmbito setorial, de acordo com o n.º 1 do seu artigo 44.º, a verdade é que a transferência das competências resulta da Lei e não dos decretos-leis subsequentes, os quais se limitam a concretizar a transferência, em termos setoriais. O que, em termos organizativos, conduz à conclusão incontornável - salientada no pedido dirigido ao Tribunal - de que foi a Assembleia da República que assumiu a sua competência legislativa nesta matéria (cf. ponto 26), sendo os decretos-leis de concretização «apenas factos normativos aos quais fica condicionada a efetiva concretização daquela transferência de competências» (cf. ponto 28).
9 - A Lei-quadro que temos vindo a referir (Lei 50/2018, de 16 de agosto) tomou uma opção clara em relação às regiões autónomas, às quais é dedicado o respetivo artigo 9.º Depois de excluir, em termos expressos, a sua aplicação às mesmas (n.º 1: «O disposto na presente lei não abrange as atribuições e competências das regiões autónomas») determina, no n.º 2, que «[a] transferência de atribuições e competências para as autarquias locais nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira é regulada por diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas assembleias legislativas, nos termos da alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º, do n.º 1 do artigo 167.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição [...]».
E com esta referência aproximamo-nos, a passos largos, da questão de constitucionalidade a enfrentar nestes autos: o legislador regional parece ter ignorado a Lei 50/2018, nomeadamente a disposição por último citada, não sendo tal diploma legal referido, em momento algum, no preâmbulo ou no articulado do Decreto enviado ao Representante da República para assinatura, em 8 de julho de 2022. A técnica legislativa usada foi, pelo contrário, recorrer ao diploma da República concretizador da transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público, publicado ao abrigo do artigo 27.º da Lei 50/2018, de 16 de agosto (o Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro), e fazer um diploma dele decalcado, apenas com algumas (poucas) diferenças, para ter em conta as especificidades da RAM.
Mas esquecendo o fundamental: o Decreto-Lei 107/2018 resultava da concretização da Lei 50/2018, a qual atribui um mandato expresso para o Governo da República o fazer, ressalvando, no entanto, a atribuição de tal incumbência no que às regiões autónomas se refere, uma vez que o artigo 9.º é de uma clareza cristalina ao prescrever que o disposto em tal lei não abrange as atribuições e competências das regiões autónomas. O que se compreende: algumas das competências a descentralizar podem pertencer às regiões e não ao Estado. Razão pela qual se impõe uma intervenção legislativa própria, que leve em consideração a natureza regionalizada desses poderes.
Pelo menos no que à Lei diz respeito, não está em causa o âmbito material do diploma sindicado (o domínio do estacionamento público): qualquer que ele fosse, a Lei 50/2018 não atribui competências às Assembleias Legislativas das regiões autónomas dos Açores e da Madeira para emitirem decretos legislativos regionais para a sua concretização, uma vez que ela não se aplica às regiões autónomas. E daí o Representante da República pôr em relevo no pedido, ainda que em termos constitucionais (mas o mesmo se passa em termos legais), a «dimensão sistemática» da questão dos autos, «na medida em que a resposta a que se chegue neste caso pode ser relevante para a determinação dos condicionamentos constitucionais à transferência de competências para as autarquias locais nas regiões autónomas» (cf. ponto 14).
Em conclusão: a Lei-quadro que tem vindo a ser referida não confere poderes à ALRAM para a elaboração do Decreto sindicado. Analisemos, então, se tal poder poderá resultar da Constituição, efetuando um percurso sobre as normas da CRP eventualmente violadas e sobre alguma jurisprudência pertinente deste Tribunal. Mas antes de tal percurso, impõe-se que se olhe com mais atenção para o Decreto questionado e para o pedido dirigido a este Tribunal.
C. O Decreto sob apreciação
10 - Como já foi referido e resulta do pedido, com o Decreto intitulado «Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público», pretende a ALRAM atribuir, na Região, aos «órgãos municipais territorialmente competentes» competência para, nos termos do respetivo artigo 2.º, n.º 1:
«a) A regulação e fiscalização do estacionamento nas vias e espaços públicos, dentro das localidades, para além dos destinados a parques ou zonas de estacionamento, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal;
b) A instrução e decisão de procedimentos contraordenacionais rodoviários por infrações leves relativas a estacionamento proibido, indevido ou abusivo nos parques ou zonas de estacionamento, vias e nos demais espaços públicos quer dentro das localidades, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal, incluindo a aplicação de coimas e custas.»
Aquele Decreto visa adaptar à RAM o Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público, sendo este o seu objeto, de acordo com o respetivo artigo 1.º
D. Normas constitucionais relevantes
11 - Nos termos do pedido apresentado ao Tribunal Constitucional, o Decreto sub judice é organicamente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea q), 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), 228.º, n.º 1, e 237.º, n.º 1, todos da CRP. Antes de analisarmos o conteúdo destes preceitos e de verificarmos se existem outras normas constitucionais que devam ser convocadas, uma questão prévia se coloca: o pedido é dirigido a todas as normas do Decreto apresentado para assinatura, o mesmo é dizer, refere-se ao Decreto na sua totalidade. No entanto, tal não constitui uma novidade na jurisprudência deste Tribunal, nem o pedido formulado em tais termos tem sido óbice para uma pronúncia de inconstitucionalidade (vide os Acórdãos n.os 235/1994, 355/1997, 711/1997, 352/1999, 4/2000, 473/2002 e, em especial, o Acórdão 10/2008).
12 - No caso, o pedido incidente sobre a totalidade do diploma parece justificar-se, pois o que está em causa não é a especificidade de alguma ou algumas das suas normas mas o diploma na sua globalidade, como resultado de o seu objeto (artigo 1.º) e a transferência de competências que ele visa (artigo 2.º) serem alegadamente inconstitucionais. Se assim for, parece lógico que não se mantenha nenhuma das normas do Decreto, que perderão todo o seu sentido.
13 - Numa síntese das normas constitucionais invocadas no pedido e procurando encontrar o seu sentido convergente ou a sua teleologia comum, elas referem-se a uma questão de inconstitucionalidade orgânica, por alegadamente faltar à ALRAM a competência legislativa para emitir o Decreto submetido a assinatura do Representante da República para a RAM. Mas naturalmente que esta teleologia comum necessita de ser densificada, para apurar, num momento posterior, se os preceitos constitucionais invocados foram ou não violados.
13.1 - Em primeiro lugar deve ser convocado o artigo 165.º, n.º 1, alínea q), da CRP, nos termos do qual «[é] da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: [...] [e]statuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais».
A reserva relativa de competência legislativa do Parlamento, plasmada neste preceito, implica que só a Assembleia da República possa legislar sobre as matérias aí previstas, salvo autorização ao Governo ou às Assembleias Legislativas das regiões autónomas. No entanto, a autorização a estas últimas é limitada, excluindo-se alguns dos domínios previstos no artigo 165.º O que obriga à articulação deste preceito com outras prescrições da Lei Fundamental: por um lado, com a alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º, segundo a qual as regiões autónomas têm poderes legislativos em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta, mas com exceção de algumas delas - nomeadamente da prevista na mencionada alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º; por outro lado, com o n.º 1 do artigo 228.º da CRP, o qual prescreve que «[a] autonomia legislativa das regiões autónomas incide sobre as matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania» (itálico nosso).
A articulação entre as normas referidas parece conduzir-nos a uma primeira conclusão: uma vez que foi a própria Lei 50/2018, de 16 de agosto, a proceder à transferência de competências para os municípios e que em tal lei é excecionada a transferência de atribuições e competências para as autarquias locais das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira (a qual será regulada em diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas Assembleias Legislativas) e tendo em conta que tal Lei (ainda) não existe, não poderá ser um decreto-lei de concretização da referida Lei-quadro a base legal para a emissão do decreto legislativo regional. E somando a isso a circunstância de as atribuições das autarquias locais serem da competência exclusiva da Assembleia da República, com a nota de insuscetibilidade de autorização à Assembleia Legislativa da região autónoma respetiva, o Decreto sindicado não poderá, numa primeira abordagem, deixar de ser considerado inconstitucional. Todavia, este raciocínio tem de ser desenvolvido, à luz dos demais preceitos constitucionais convocados.
Importa desde logo notar, com Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. ii, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2010, p. 325), que «[o] alcance da reserva de competência legislativa da AR não é idêntico em todas as matérias», distinguindo os autores três níveis, e situando a alínea q), que nos interessa, no «nível mais exigente, em que toda a regulamentação legislativa da matéria é reservada à AR», não se circunscrevendo, assim, ao regime geral nem, tão-pouco, às bases gerais do regime.
Dúvidas não existem também quanto ao facto de o «estatuto das autarquias locais», previsto na alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º, abranger «seguramente a sua organização, as suas atribuições e a competência dos seus órgãos» (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 332) - até por referência ao disposto no n.º 1 do artigo 237.º da Constituição - aspeto que se mostra decisivo na análise do diploma sindicado, reportado à transferência de competências para os órgãos municipais territorialmente competentes da RAM.
O poder legislativo das Assembleias Legislativas das regiões autónomas tem vindo a ser aumentado na história da CRP de 1976, desde logo na segunda revisão constitucional, consagrando-se com a revisão constitucional de 2004 o poder legislativo de as Assembleias Legislativas das regiões autónomas editarem decretos legislativos mesmo em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta - com o que somos remetidos para a alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP. Não obstante este poder, «[o] princípio continua a ser o de que as Assembleias Legislativas não podem, no âmbito das competências legislativas reservadas aos órgãos de soberania, editar decretos legislativos regionais», pelo que «[a] violação deste princípio conduzirá a nulidade e consequente inconstitucionalidade dos decretos legislativos das regiões autónomas». E a malha torna-se ainda mais apertada como resultado do facto de a Assembleia da República ter de observar limites «quanto a algumas matérias de reserva relativa, subtraídas ex constitutione da intervenção das Assembleias Legislativas», entre as quais se consta o estatuto das autarquias locais (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 666 e seg.).
O círculo parece estar fechado: estamos seguramente no âmbito de reserva de competência legislativa da Assembleia da República; ainda que se trate de reserva relativa, no domínio em causa não pode haver autorização às Assembleias Legislativas das regiões autónomas para legislar. Apesar de haver uma lei da Assembleia da República sobre o tema, essa lei não abrange as atribuições e competências das regiões autónomas e o decreto-lei do Governo invocado não pode, naturalmente, autorizar o que não foi autorizado pelo Parlamento dentro da sua esfera de competência reservada. A acrescer a tudo isto, um último argumento: no n.º 2 do artigo 9.º da Lei 50/2018 dispõe-se que «[a] transferência de atribuições e competências para as autarquias locais nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira é regulada por diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas assembleias legislativas, nos termos da alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º, do n.º 1 do artigo 167.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição» (itálico nosso).
13.2 - Há outro parâmetro de constitucionalidade a abordar neste âmbito: o artigo 228.º da CRP disciplina a autonomia legislativa das regiões autónomas, a qual, nos termos do n.º 1, «incide sobre as matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania». No entanto, esta nota nada modifica quanto ao juízo de inconstitucionalidade sugerido, por duas ordens de razões: em primeiro lugar, o Estatuto Político-Administrativo da RAM (aprovado pela Lei 13/91, de 5 de junho, e alterado pela última vez por intermédio da Lei 2/2000, de 21 de junho) não contém qualquer norma sobre as atribuições e competências das autarquias locais, limitando-se a atribuir competência legislativa à Assembleia Legislativa da região autónoma para criar e extinguir autarquias locais, bem como para modificar a respetiva área, nos termos da lei [alínea g) do artigo 37.º, n.º 1], a prever a tutela sobre as autarquias locais e a sua demarcação territorial como matéria de interesse específico para efeitos de definição dos poderes legislativos ou de iniciativa legislativa da Região [artigo 40.º, alínea b)], regulando ainda as finanças das autarquias locais (artigo 122.º). Todavia, e em segundo lugar, mesmo que o Estatuto da RAM contivesse uma norma que fosse convocável para a situação em apreço, a verdade é que está constitucionalmente vedado aos estatutos «a criação de poderes não enquadráveis em competências constitucionalmente fixadas» (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 659).
Por esta razão é que, em jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional a propósito deste artigo 228.º, n.º 1, da CRP, se tem afirmado (seguindo o recente Acórdão 180/2022, tirado também no âmbito de um processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade e convocando jurisprudência anterior, apoiando-se em larga medida no Acórdão 450/2019, sobre o qual nos debruçaremos com mais atenção infra, 14) que decorrem daqui «dois diferentes tipos de limitações às competências legislativas das regiões autónomas»: «um limite positivo, no sentido em que apenas pode[m] versar, no âmbito regional, sobre matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo; e um limite negativo, no sentido em que não pode incidir sobre matérias reservadas aos órgãos de soberania {artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1 [da Constituição]}». Acrescentando-se, em relação ao limite negativo, aquele que agora nos interessa, que «a atividade legislativa do órgão não pode incidir sobre matérias reservadas a órgãos de soberania. Embora mitigado pela cláusula prevista no artigo 227.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, quando prevê que as Assembleias Legislativas Regionais podem "legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta [...]", a verdade é que a própria norma constitucional afasta expressamente a possibilidade de essa autorização parlamentar se referir a algumas matérias que se encontram enunciadas no artigo 165.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. [...] Por esse motivo, o ato legislativo que abrogue esta regra essencial de repartição da competência legiferante entre órgãos constitucionais estará ferido de inconstitucionalidade orgânica.».
Em conclusão, tudo aponta, como é avançado no pedido, para que o Decreto enviado para assinatura do Representante da República ultrapasse o limite negativo resultante da articulação entre os artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da CRP - limite esse consubstanciado na impossibilidade de a atividade legislativa regional incidir sobre matérias reservadas a órgãos de soberania da República.
13.3 - Também o artigo 237.º da CRP deve ser convocado neste percurso, para realçar o disposto no seu n.º 1: «As atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa.». Como já sabemos, a lei aqui mencionada, em articulação com a reserva de lei plasmada na alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, é uma lei da competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo. Quanto ao princípio da descentralização administrativa plasmado no preceito acabado de citar, curaremos dele já de seguida, com remissão para o artigo 6.º da CRP.
13.4 - O artigo 6.º da CRP, por seu turno, menciona, a propósito do Estado unitário, o facto de ter de ser respeitado na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e o princípio da descentralização democrática da Administração Pública. Quanto à referência ao regime autonómico insular, será apenas necessário referir que ele abrange, entre outras dimensões, a da «autonomia normativa, traduzida fundamentalmente na competência legislativa e regulamentar para as Regiões Autónomas se dotarem de ordenamento jurídico autónomo» (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 223), competência essa que, como é bom de ver, resulta dos preceitos constitucionais atrás referidos e tem de ser exercida dentro dos limites deles resultantes.
Quanto ao princípio da descentralização administrativa, neste artigo 6.º da CRP ele tem uma dimensão mais ampla e mesmo no seu sentido mais estrito pressupõe «o apelo a duas dimensões cumulativas: (1) a autonomização de determinadas administrações (autonomia jurídica) em entidades jurídicas autónomas, destacadas da administração direta do Estado; (2) a autoadministração dessas entidades mediante a intervenção de representantes dos interessados na gestão administrativa» (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. ult. cit., p. 234 e seg.). Como tal, para aquilo que releva na argumentação deste acórdão, interessa-nos mais dar um passo atrás (cf. infra, 13.3) para nos centrarmos no conceito de descentralização administrativa do artigo 237.º, n.º 1, da CRP, ainda que tendo presente, com Gomes Canotilho e Vital Moreira, que o princípio respetivo é «apenas um critério geral», sendo a Constituição «totalmente omissa quanto à definição concreta das matérias de competência autárquica» (ob. cit., vol. ii, p. 724). Por isso, o modelo usado pelo legislador da República foi o de prever uma Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais, concretizando assim, entre outros, o princípio da descentralização administrativa.
13.5 - Como foi já diversas vezes referido, o legislador da República optou por determinar que a Lei-quadro em questão não abrangesse as atribuições e competências das regiões autónomas, determinando no n.º 2 do artigo 9.º que tal transferência «é regulada por diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas assembleias legislativas, nos termos da alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º, do n.º 1 do artigo 167.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição [...]» (itálico nosso). Num momento em que percorremos as normas constitucionais relevantes para a dilucidação das questões emergentes do pedido em apreciação, falta-nos uma análise das duas últimas normas aqui referidas.
A alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP prevê, entre os poderes das regiões autónomas, o de «[e]xercer a iniciativa legislativa, nos termos do n.º 1 do artigo 167.º, mediante a apresentação à Assembleia da República de propostas de lei e respetivas propostas de alteração», poder que pertence às respetivas Assembleias Legislativas «e visa permitir que as regiões autónomas possam desencadear leis em matérias que estão vedadas à legislação regional (i. e., matérias da competência reservada da AR e outras matérias reguladas por lei da República)» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., vol. ii, p. 672 e seg.) - o que demonstra, sem mais explicações, a pertinência deste poder no caso em apreço.
O artigo 167.º da CRP, do seu lado, determina, no seu n.º 1, que a iniciativa da lei compete, no respeitante às regiões autónomas, às respetivas Assembleias Legislativas, devendo circunscrever-se a assuntos respeitantes às regiões autónomas. Ora, a Lei-quadro em que toda a questão se deveria ter baseado - e não num decreto-lei destinado à sua concretização - faz depender a sua aplicação às regiões autónomas, no que à transferência de competências destas para as autarquias locais nelas situadas se refere, de uma nova lei, de iniciativa da respetiva região. Trata-se de uma opção político-legislativa da Assembleia da República, que este órgão entendeu tomar, exprimindo a sua intenção de não legislar sobre a matéria sem uma iniciativa prévia das assembleias legislativas regionais, sinalizando desse modo o seu respeito pela autonomia político-legislativa das regiões autónomas. Indicando essa mesma Lei-quadro os preceitos constitucionais ora em apreciação, o que deixa muito pouco espaço (ou, porventura, nenhum espaço) para outro entendimento.
13.6 - Uma última nota sobre a competência contraordenacional que a alínea b) do artigo 2.º do Decreto sindicado pretendia atribuir aos órgãos municipais da RAM. Nos termos desta disposição, tais órgãos passa(ria)m a ser detentores da competência para «[a] instrução e decisão de procedimentos contraordenacionais rodoviários por infrações leves relativas a estacionamento proibido, indevido ou abusivo nos parques ou zonas de estacionamento, vias e nos demais espaços públicos quer dentro das localidades, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal, incluindo a aplicação de coimas e custas.». A verdade é que, apesar do relevo da matéria, o problema não é diferente daquele que tem vindo a ser analisado: pese embora a possibilidade de a ALRAM poder legislar sobre a definição dos atos ilícitos de mera ordenação social e respetivas sanções [cf. artigo 37.º, n.º 1, alínea j) do citado Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira], a Lei 50/2018, de 16 de agosto, não habilita a transferência de atribuições e competências das regiões para as autarquias, nos termos do seu artigo 9.º, pelo que o vício é, nesta sede, exatamente o mesmo do que afeta o diploma na sua globalidade, porque o que está em causa é a transferência das competências aí previstas para os órgãos municipais da RAM.
E a circunstância de o Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, ter alterado o Código da Estrada, passando a prever (no respetivo artigo 169.º, n.º 7) a competência das câmaras municipais para o processamento e aplicação de coimas nas contraordenações rodoviárias por infrações leves relativas a estacionamento proibido, indevido ou abusivo dentro das localidades (ou fora destas, desde que em domínios sob jurisdição municipal) nada muda: tal alteração, repetimos, ocorreu num contexto específico, o da Lei 50/2018, de 16 de agosto, que determina no seu artigo 27.º a competência dos órgãos municipais para o efeito de «regular, fiscalizar, instruir e decidir os procedimentos contraordenacionais rodoviários em matéria de estacionamento nas vias e espaços públicos dentro das localidades». Também aqui foi por efeito direto da Lei-quadro que se produziu a transferência de competências, sendo o Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, uma mera concretização de tal transferência. Razão pela qual, em função do disposto no artigo 9.º da Lei-quadro, tal atribuição apenas produz efeitos no território continental, não havendo base legal ou constitucional para a atribuição de competências aos municípios da RAM em matéria de contraordenações rodoviárias.
E. Jurisprudência constitucional relevante
14 - As questões de constitucionalidade discutidas nos presentes autos estão relacionadas com jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional, o que facilmente se compreende em função da natureza não controvertida das normas constitucionais pertinentes.
Assim, sem prejuízo dos acórdãos já carreados ao longo da fundamentação, bastamo-nos, neste momento, com a transcrição de alguns trechos de um Acórdão relativamente recente do Tribunal Constitucional, o qual, para além de abordar as questões de constitucionalidade que ora nos ocupam, tem assinaláveis semelhanças com o caso dos autos: refere-se a um processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, igualmente reportado a um Decreto da ALRAM e em que o requerente foi, também, o Representante da República para a RAM. Aludimos ao Acórdão 450/2019, em relação ao qual são de pôr em destaque, desde logo, as considerações tecidas no respetivo ponto 17:
«Recortado a partir da conjugação dos artigos 112.º, n.os 1, 4 e 5, 227.º, 228.º e 232.º, n.º 1, da Constituição, o poder legislativo das regiões autónomas - cometido às Assembleias Legislativas Regionais - encontra-se sujeito a um duplo limite: um limite positivo, no sentido em que apenas pode versar, no âmbito regional, sobre matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo; e um limite negativo, no sentido em que não pode incidir sobre matérias reservadas aos órgãos de soberania [artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1].
Este limite negativo é, no entanto, mitigado pela cláusula prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição: tratando-se de matérias sob reserva relativa de competência da Assembleia da República, o poder legislativo regional pode ser exercido desde que, por um lado, se não trate de matéria abrangida pelas alíneas a) a c), na primeira parte da alínea d), alíneas f) e i), segunda parte da alínea m), e alíneas o), p), q), s), t), v), x) e aa) do n.º 1 do artigo 165.º, e, por outro, a Assembleia Legislativa Regional tenha sido autorizada a legislar mediante lei parlamentar.
Independentemente de saber qual é, ou até mesmo se existe, um critério unitário, de conteúdo materialmente apreensível, que possa dizer-se subjacente à delimitação do universo das matérias reservadas à competência legislativa da Assembleia da República insuscetíveis de delegação legislativa às Assembleias Legislativas Regionais [...], não há dúvida de que o propósito do legislador de revisão constitucional (2004) foi, quanto à matéria prevista na alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, o de manter a conformação do "estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais", na esfera de competência legislativa dos órgãos de soberania (Assembleia da República e Governo, mediante autorização parlamentar), sem possibilidade de interferência, sequer mediante autorização daquela Assembleia, do poder legislativo regional.
Sem prejuízo do conjunto de poderes cometidos pela Constituição às regiões autónomas na relação com as autarquias locais nelas sediadas [...] as demais matérias respeitantes às autarquias locais - como [...] o estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais [artigo 165.º, n.º 1, alínea q)] [...] - encontram-se reservadas à competência legislativa da Assembleia da República, absoluta e relativa, sem possibilidade de autorização às Assembleias Legislativas Regionais.»
Sendo também inequivocamente adequado recuperar o que foi dito no ponto 18 do mesmo Acórdão:
«Ao reservar à Assembleia da República a definição do "estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais", sem limitação às "bases gerais" ou ao "regime geral" daquele estatuto, a alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição comete, à partida, à lei parlamentar a definição de todo o regime daquela matéria. [...]
A questão está, assim, em saber o que deve considerar-se incluído no âmbito material do "estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais", a que alude a alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
Conforme sublinhado no aresto que vimos acompanhando, a "cláusula de reserva relativa prevista na alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, invocada como fundamento determinante de inconstitucionalidade [também] nos presentes autos, assume relevância no quadro da garantia constitucional da autonomia do poder local, tal como resulta do regime constitucional contido no seu título vii, dedicado ao Poder Local, e artigos que o integram (artigos 235.º a 262.º)". É esse o quadro que permite apreender (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição..., Anotação ao artigo 165.º, i, pp. 543-544), ainda que sem os esgotar, o significado e alcance da matéria integrada na reserva prevista naquela alínea.»
Por último, este Acórdão 450/2019 acrescenta, no seu ponto 20, a propósito da vertente garantística assumida pelo princípio constitucional da autonomia local, decorrente do artigo 6.º da CRP, o seguinte:
«A segunda dimensão - talvez aquela a que mais diretamente responde a reserva relativa de competência estabelecida na alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição - prende-se com a relação das autarquias locais entre si e de cada uma delas com a região autónoma correspondente, no caso de aí se encontrar sediada.
[...]
A exclusão da possibilidade de as Assembleias Legislativas Regionais concorrerem na conformação do estatuto das autarquias locais da respetiva região, incluindo o regime dos seus funcionários, não é, além do mais, suscetível de afetar a autonomia regional, tal como a perspetiva o artigo 225.º da Constituição: nem quanto aos seus fundamentos, que assentam nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares; nem quanto aos seus fins, que consistem na participação democrática dos cidadãos, no desenvolvimento económico-social, na promoção e defesa dos interesses regionais, mas também no reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses.
O que tal exclusão, na verdade, evidencia é que, do ponto de vista jurídico-constitucional, autonomia regional e autonomia local são conceitos autónomos, não aglutinadores ou sequer sobreponíveis; correspondem-lhes, na verdade, realidades normativa e organicamente diferenciadas, que se relacionam entre si como dois círculos justapostos e contíguos, com as linhas de interceção e de interpenetração que decorrem do exercício pelos órgãos de governo próprios de cada região dos poderes não reservados aos órgãos de soberania.»
A pertinência do Acórdão supracitado em relação à questão que nos ocupa é evidente, como evidente se revela que as normas constitucionais em apreço - e que são, tendencialmente, as mesmas - não poderão conduzir a diferente conclusão. Vejamos, a finalizar, porque deverá ser assim.
F. Síntese final
15 - Cumpre fazer uma avaliação final sobre a questão de constitucionalidade supra enquadrada e confirmar se o juízo de inconstitucionalidade que tem vindo a ser fortemente sugerido se confirma ou se, pelo contrário, deverá ser afastado, nomeadamente quando confrontado com os argumentos esgrimidos na resposta dada pelo Presidente da ALRAM ao pedido.
Recuperando os termos do pedido, incide o mesmo, globalmente, sobre o Decreto intitulado «Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público», aprovado em sessão plenária da ALRAM no dia 15 de junho de 2022, visando proceder a tal transferência para os órgãos municipais competentes da RAM.
De acordo com o requerente, o Decreto na sua globalidade (ou, na sua expressão, «todas as normas do Decreto sub judice») é organicamente inconstitucional «em face da ausência de competência legislativa do legislador regional, em violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea q), 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), 228.º, n.º 1, e 237.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa», argumentos que foram explanados com desenvolvimento neste Acórdão. Resta fazer uma avaliação final de tal alegação, confrontando-a com os argumentos do órgão autor do diploma sob sindicância.
16 - A tese central expendida na resposta do Presidente da ALRAM assenta no que julgamos ser um equívoco fundamental e que atesta a relevância das considerações feitas a propósito da Lei 50/2018, de 16 de agosto - «Lei da descentralização» ou, mais exatamente, «Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais» (cf. supra, B.). Na verdade, o Presidente da ALRAM sustenta a constitucionalidade do Decreto sindicado - ou, se se preferir, afasta a sua invocada inconstitucionalidade orgânica - no argumento central de que o Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, foi emitido «ao abrigo de norma de competência legislativa do Governo da República em matéria não reservada» e «não estabeleceu um regime delimitado e circunscrito ao território continental nacional, dando azo ao exercício da iniciativa legislativa, mediante diploma próprio da Região, de adaptação do referido decreto-lei» (5.º) - pelo que o Decreto sub judice se teria limitado a adaptar tal decreto-lei, não circunscrito ao âmbito do território nacional em matéria não reservada à Assembleia da República (6.º).
Ora, esta linha argumentativa esquece o fundamental do sistema de descentralização instituído com a muitas vezes citada Lei-quadro, na sequência da qual foi publicado o Decreto-Lei 107/2018. Aliás, convém chamar a atenção para o facto de que, se é verdade que a alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da CRP é referida como norma habilitante do decreto-lei (cf. 3.º), antes dela é mencionado o n.º 1 do artigo 4.º da Lei 50/2018, de 16 de agosto.
Depois, não é correto afirmar que «inexiste norma em lei, seja a Lei 50/2018, de 16 de agosto, ou outra, que de forma expressa tenha cometido ao Governo da República ou sequer tenha remetido para decreto-lei a regulação normativa da matéria» (4.º). E uma vez que tal modelo foi já tratado com bastante desenvolvimento (nomeadamente a propósito do «Enquadramento normativo» - supra, B.), optamos agora por recorrer às palavras do legislador da República, no preâmbulo do Decreto-Lei 107/2018, a invocada base legal para a emissão do Decreto em apreciação.
De acordo com esse preâmbulo:
«a Lei 50/2018, de 16 de agosto, que estabelece o quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, vem atribuir aos órgãos municipais a competência para regular, fiscalizar, instruir e decidir os procedimentos contraordenacionais rodoviários em matéria de estacionamento nas vias e espaços públicos sob jurisdição municipal, para além dos destinados a parques ou zonas de estacionamento.
O presente decreto-lei concretiza, nos termos do n.º 1 do artigo 4.º da referida lei, a transferência dessa competência.
Os órgãos municipais passam a ter a competência, sem necessidade de prévia autorização da administração central do Estado, para a fiscalização do estacionamento nas vias e espaços públicos dentro das localidades e fora das localidades sob jurisdição municipal, bem como a competência para a instrução e decisão de procedimentos contraordenacionais rodoviários, incluindo a aplicação de coimas e custas, por infrações leves relativas ao estacionamento proibido, indevido ou abusivo nos parques ou zonas de estacionamento, vias e nos demais espaços públicos, dentro das localidades e fora das localidades sob jurisdição municipal.» (itálicos nossos).
As palavras do preâmbulo, complementadas com as disposições da Lei-quadro agora mencionadas, a que se devem somar as determinações do n.º 1 do seu artigo 3.º (ao prever a universalidade da transferência de competências) e do artigo 4.º, tanto no seu n.º 1 (a transferência das novas competências e a identificação da respetiva natureza, bem como a forma de afetação dos recursos respetivos, são concretizadas através de diplomas legais de âmbito setorial relativos às diversas áreas a descentralizar - devendo atentar-se, em particular, na palavra «concretizadas» a que o dispositivo legal recorre) como no n.º 3 {«[t]odas as competências previstas na presente lei consideram-se transferidas para as autarquias locais [...] até 1 de janeiro de 2021 [...]»} - e ainda confirmadas pelo artigo 27.º da Lei, que prescreve que «[é] da competência dos órgãos municipais regular, fiscalizar, instruir e decidir os procedimentos contraordenacionais rodoviários em matéria de estacionamento nas vias e espaços públicos dentro das localidades» - são suficientes para demonstrar o que é afirmado desde o início: a transferência das competências resulta da Lei 50/2018 e não dos decretos-leis de concretização. Resulta de uma lei que é inequívoca ao determinar que não abrange as atribuições e competências das autarquias locais das regiões autónomas (artigo 9.º, n.º 1), sendo a transferência neste âmbito «regulada por diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas assembleias legislativas» (n.º 2). Ora, não existindo tal lei, falta a base legal para a ALRAM emitir um Decreto com o objeto e o âmbito daquele ora sindicado.
Assim, e ao contrário do que é dito no artigo 8.º da resposta do Presidente da ALRAM, não é verdade que não esteja em causa matéria de reserva de lei, «mas sim a adaptação de um regime não restrito ao continente português»: está em causa matéria de reserva de lei, na medida em que estão em causa atribuições e competências das autarquias locais das regiões autónomas, matéria compreendida no respetivo «estatuto» e que não só está submetida a reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, pela alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, como está excluída a possibilidade de autorização a qualquer uma das regiões autónomas, de acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da Lei Fundamental. A matéria em apreço não está - nem poderia estar - prevista no Estatuto Político-Administrativo da RAM, razão pela qual são igualmente violados a alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º e o n.º 1 do artigo 228.º da CRP, verificando-se, por último, a transgressão do artigo 237.º, n.º 1, da CRP, uma vez que estamos a curar de atribuições das autarquias locais regionais que não estão reguladas na lei, que no caso teria de ser uma lei da Assembleia da República.
A ALRAM desconsiderou o facto de a Lei 50/2018, de 16 de agosto, ser o diploma fundamental nesta sede. Se não o tivesse feito, deveria ter procedido nos termos do n.º 2 do seu artigo 9.º, usando os seus poderes de iniciativa legislativa [resultantes do n.º 1 do artigo 167.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição] com vista à elaboração, pela Assembleia da República, de um diploma próprio sobre a transferência de atribuições e competências para as autarquias locais na RAM, diploma esse que serviria, nos termos jurídico-constitucionais e legais, como base legal para a emissão de um decreto como o que foi recebido para assinatura no Gabinete do Representante da República para a RAM.
Não o tendo feito, incorreu no vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação dos preceitos constitucionais supracitados - vício que se projeta sobre o regime do Decreto na sua globalidade ou, o que é dizer o mesmo, sobre todas as suas normas.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional pronuncia-se pela inconstitucionalidade de todas as normas constantes do Decreto enviado ao Representante da República para a Região Autónoma da Madeira para assinatura como decreto legislativo regional intitulado «Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público», aprovado em sessão plenária da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira no dia 15 de junho de 2022, por violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea q), 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), 228.º, n.º 1, e 237.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Atesto os votos de conformidade dos conselheiros Lino Ribeiro, José João Abrantes e Mariana Canotilho. José Eduardo Figueiredo Dias.
Lisboa, 4 de agosto de 2022. - José Eduardo Figueiredo Dias - Assunção Raimundo - Joana Fernandes Costa - Gonçalo Almeida Ribeiro - Afonso Patrão (com declaração de voto) - José Teles Pereira - Maria Benedita Urbano - António José da Ascensão Ramos - Pedro Machete.
Declaração de voto
Acompanho o acórdão e a sua fundamentação. Não subscrevo, porém, a parte final do ponto 13.5, relativa à norma do n.º 2 do artigo 9.º da Lei 50/2018, de 16 de agosto, na medida em que legitima a opção da Assembleia da República de restringir às Assembleias Legislativas das regiões autónomas a iniciativa legislativa quanto à transferência de competências para as autarquias nesse território.
De acordo com aquela norma, Deputados, grupos parlamentares e Governo ficam impedidos de, nos termos do n.º 1 do artigo 167.º da Constituição, exercer iniciativa legislativa nesta matéria. Fixa-se, assim, um procedimento legislativo próximo daquele que a Constituição reserva aos Estatutos Político-Administrativos e às leis relativas à eleição dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas (artigo 226.º da Constituição). Prevendo-se, pois, um ato legislativo reforçado, porque subordinado a um específico procedimento legislativo.
Ora, nenhuma lei pode criar novas categorias de atos legislativos, nos termos do n.º 5 do artigo 112.º da Constituição. A Constituição não admite ao legislador ordinário a modificação do poder de iniciativa legislativa nem o valor normativo de outras leis. - Afonso Patrão.
115630476
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5043926.dre.pdf .
Ligações deste documento
Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):
-
1982-11-15 -
Lei
28/82 -
Assembleia da República
Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.
-
1991-06-05 -
Lei
13/91 -
Assembleia da República
Aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
-
1999-08-21 -
Lei
130/99 -
Assembleia da República
Revê o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, e procede à sua republicação.
-
2000-03-16 -
Lei
2/2000 -
Assembleia da República
Autoriza o Governo a legislar sobre a realização dos Censos 2001(XIV Recenseamento Geral da População e IV Recenseamento Geral da Habitação). Esta autorização legislativa tem a duração de 90 dias.
-
2000-06-21 -
Lei
12/2000 -
Assembleia da República
Altera (segunda alteração) o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 13/91 de 5 de Junho.
-
2003-11-12 -
Decreto-Lei
287/2003 -
Ministério das Finanças
No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 26/2003, de 30 de Julho, aprova o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e o Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, altera o Código do Imposto do Selo, altera o Estatuto dos Benefícios Fiscais e os Códigos do IRS e do IRC e revoga o Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, o Código da Contribuição Autárquica e o Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doaçõ (...)
-
2005-02-23 -
Decreto-Lei
44/2005 -
Ministério da Administração Interna
No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio e posteriormente alterado. Republicado na íntegra com todas as alterações.
-
2006-08-17 -
Decreto Legislativo Regional
36/2006/M -
Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa
Adapta às competências da Administração Regional Autónoma o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, que altera o Código da Estrada e os seus regulamento.
-
2008-02-04 -
Acórdão
10/2008 -
Tribunal Constitucional
Pronuncia-se pela inconstitucionalidade [apreciação preventiva] , por violação das disposições conjugadas da alínea b) do artigo 161º, da alínea c) do artigo164º, dos nºs 1 e 4 do artigo 226º, da alínea a) do nº 1 do artigo 227º, do nº 1 do artigo 228º e do nº 7 do artigo 231º da Constituição da República Portuguesa, das normas constantes do decreto que estabelece o "Regime de execução das incompatibilidades e impedimentos dos deputados à Assembleia Legislativa da Madeira", aprovado pela Assembleia Legislat (...)
-
2012-03-12 -
Decreto Regulamentar
28/2012 -
Ministério da Administração Interna
Aprova a orgânica da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.
-
2013-09-03 -
Lei
73/2013 -
Assembleia da República
Estabelece o regime financeiro das autarquias locais e das entidades intermunicipais.
-
2013-09-12 -
Lei
75/2013 -
Assembleia da República
Estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico.
-
2016-09-30 -
Decreto Regulamentar Regional
21/2016/M -
Região Autónoma da Madeira - Presidência do Governo
Aprova a estrutura orgânica da Direção Regional de Estradas
-
2018-08-16 -
Lei
50/2018 -
Assembleia da República
Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais
-
2018-08-16 -
Lei
51/2018 -
Assembleia da República
Altera a Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, e o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro
-
2018-11-27 -
Decreto-Lei
97/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio das praias marítimas, fluviais e lacustres
-
2018-11-27 -
Decreto-Lei
98/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da autorização de exploração das modalidades afins de jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogo
-
2018-11-28 -
Decreto-Lei
99/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para as entidades intermunicipais no domínio da promoção turística
-
2018-11-28 -
Decreto-Lei
100/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio das vias de comunicação
-
2018-11-29 -
Decreto-Lei
101/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e das entidades intermunicipais no domínio da justiça
-
2018-11-29 -
Decreto-Lei
102/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos das entidades intermunicipais no domínio dos projetos financiados por fundos europeus e dos programas de captação de investimento
-
2018-11-29 -
Decreto-Lei
103/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e das entidades intermunicipais no domínio do apoio aos bombeiros voluntários
-
2018-11-29 -
Decreto-Lei
104/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio das estruturas de atendimento ao cidadão
-
2018-11-29 -
Decreto-Lei
105/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da habitação
-
2018-11-29 -
Decreto-Lei
106/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da gestão do património imobiliário público sem utilização
-
2018-11-29 -
Decreto-Lei
107/2018 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público
-
2019-01-30 -
Decreto-Lei
20/2019 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais nos domínios da proteção e saúde animal e da segurança dos alimentos
-
2019-01-30 -
Decreto-Lei
21/2019 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da educação
-
2019-01-30 -
Decreto-Lei
22/2019 -
Presidência do Conselho de Ministros
Desenvolve o quadro de transferência de competências para os municípios no domínio da cultura
-
2019-01-30 -
Decreto-Lei
23/2019 -
Presidência do Conselho de Ministros
Concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da saúde
-
2019-03-04 -
Decreto-Lei
32/2019 -
Presidência do Conselho de Ministros
Alarga a competência dos órgãos municipais no domínio do policiamento de proximidade
-
2019-09-18 -
Decreto Regulamentar Regional
7/2019/M -
Região Autónoma da Madeira - Presidência do Governo
Primeira alteração ao Decreto Regulamentar Regional n.º 21/2016/M, de 30 de setembro, que aprova a estrutura orgânica da Direção Regional de Estradas
-
2020-01-20 -
Decreto Regulamentar Regional
9/2020/M -
Região Autónoma da Madeira - Presidência do Governo
Aprova a orgânica da Secretaria Regional de Equipamentos e Infraestruturas
-
2022-03-02 -
Decreto Regulamentar Regional
3/2022/M -
Região Autónoma da Madeira - Presidência do Governo
Primeira alteração ao Decreto Regulamentar Regional n.º 9/2020/M, de 20 de janeiro, que aprova a orgânica da Secretaria Regional de Equipamentos e Infraestruturas
-
2022-05-09 -
Decreto-Lei
32/2022 -
Presidência do Conselho de Ministros
Aprova o regime de organização e funcionamento do XXIII Governo Constitucional
Aviso
NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.
O URL desta página é: https://dre.tretas.org/dre/5043926/acordao-do-tribunal-constitucional-535-2022-de-1-de-setembro