Acórdão 451/87
Processo 125/84
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
1 - De harmonia com o disposto no artigo 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, conjugado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, o Provedor de Justiça requereu ao Tribunal Constitucional que declarasse, com força obrigatória geral, «a inconstitucionalidade das normas constitutivas do Decreto-Lei 380/82, de 15 de Setembro, na parte em que aprovou o Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas».
Invoca o Provedor de Justiça que «os artigos 56.º, alínea d), e 58.º, n.º 2, alínea a), do texto originário da Constituição reconheciam, como reconhecem actualmente os artigos 55.º, alínea d), e 57.º, n.º 2, alínea a), às comissões de trabalhadores e às associações sindicais o direito de participarem na elaboração da legislação do trabalho». Ora, segundo o requerente, «não há dúvida de que o citado decreto-lei, como estatuto jurídico-laboral que é, constitui, a esta luz, legislação do trabalho, dado que regula direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição e, por outro lado, se subsume nos critérios definido de legislação de trabalho constantes do artigo 2.º da Lei 16/79, de 26 de Maio».
Recorda ainda o Provedor de Justiça que foi exactamente este o entendimento do Tribunal Constitucional no seu Acórdão 31/84 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 17 de Abril de 1984) a propósito de diploma congénere - o Decreto-Lei 381/82, de 15 de Setembro - que aprovou o Estatuto do Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas.
Assim sendo, como na elaboração do diploma ora em apreço não foi possibilitada a participação das comissões de trabalhadores e das associações sindicais representativas dos trabalhadores por ele abrangidos, conclui que deve o mesmo ser declarado inconstitucional, «na parte em que aprovou o Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas».
2 - Notificado o Primeiro-Ministro para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, nos termos do disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, não foi recebida, em tempo ou sobre o assunto, qualquer resposta.
Cumpre decidir.
3 - Pede o Provedor de Justiça que se declare a inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei 380/82, na parte em que aprovou o Estatuto do Pessoal dos Serviços Departamentais das Forças Armadas.
Ao pedir a declaração de inconstitucionalidade das normas daquele diploma apenas nessa parte, há-de entender-se que o pedido do requerente se restringe, assim, à norma constante do artigo 1.º do mencionado decreto-lei, que é aquela em que se procede à aprovação do Estatuto em causa.
Só, pois, essa norma irá ser objecto de apreciação por este Tribunal.
4 - Alega o requerente que o Estatuto aprovado pela norma em apreço se subsume no conceito de legislação do trabalho e que, por isso, se exigia constitucionalmente a participação das associações sindicais e das comissões de trabalhadores na sua elaboração.
À questão de saber se, no caso vertente, nos defrontamos com legislação do trabalho, responde este Tribunal afirmativamente, com segurança.
É que, muito embora a Constituição não defina o conceito de legislação do trabalho, parece que esta há-de ser «a que visa regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações» (cf. parecer 17/81, Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16.º, p. 14), ou, se assim melhor se entender, há-de abranger a «legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição» (cf. Acórdão 31/84, cit.).
Ora, não oferece dúvidas que, qualquer que seja a perspectiva, o Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas se enquadra na noção de legislação de trabalho. Aliás, tal enquadramento resulta, ainda, quer do disposto no artigo 2.º da Lei 16/79, de 26 de Maio, quer do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei 45-A/84, de 3 de Fevereiro, muito embora se possa entender que o primeiro daqueles diplomas não abrangia os trabalhadores da função pública, e sendo certo que o segundo - esse a eles expressamente destinado - ainda se não encontrava em vigor à data da publicação do Estatuto em análise.
É que, assinale-se, este Estatuto trata de matérias como as da constituição e cessação da relação de serviço, das carreiras e quadros, dos direitos e deveres dos trabalhadores, das suas responsabilidades e garantias, das condições da prestação de trabalho, da suspensão da prestação de trabalho, da apreciação e preparação profissionais e dos critérios de fixação das remunerações. E não se vê como se possa sustentar que elas não se integram na noção de «legislação do trabalho».
5 - Conforme já acontecera no processo que dera origem ao citado Acórdão 31/84, o verdadeiro órgão autor da norma - ou seja, o Conselho da Revolução - não foi ouvido, por ter sido extinto com a entrada em vigor da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro.
No entanto, e como já então sucedera, há-de ter-se por certo que na elaboração do decreto-lei em apreço não foram ouvidas as organizações representativas dos trabalhadores.
Com efeito, a referência a tal audição, caso tivesse existido, haveria de constar do preâmbulo do diploma em causa, o que não acontece. Assim sendo, tem de se presumir que ela não ocorreu.
6 - Na sua versão originária, dispunha a Constituição, na alínea d) do seu artigo 56.º, que constituía direito das comissões de trabalhadores «participar na elaboração da legislação do trabalho e dos planos económico-sociais que contemplem o respectivo sector». E a alínea a) do n.º 2 do artigo 58.º acrescentava que constitui direito das associações sindicais «participar na elaboração da legislação do trabalho».
Poder-se-ia colocar a questão de saber se o Conselho da Revolução devia ter ouvido, na fase de elaboração do diploma em apreço, as comissões de trabalhadores que eventualmente existissem nos Serviços Departamentais das Forças Armadas, na medida em que, por um lado, a Constituição só garante o direito de constituir comissões de trabalhadores no âmbito das empresas, mas, por outro lado, o artigo 41.º da Lei 46/79, de 16 de Setembro, veio permitir a constituição de comissões de trabalhadores na função pública. Todavia, muito embora este Tribunal já tenha entendido que as comissões de trabalhadores existentes nos serviços públicos não beneficiam do direito de participar na elaboração de legislação do trabalho (cf. Acórdão 22/86, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 29 de Abril de 1986), a verdade é que a resposta a tal questão é irrelevante no caso sub judice, porquanto se verifica que também as associações sindicais não foram ouvidas, pelo que sempre se há-de concluir pela inconstitucionalidade da norma impugnada.
Com efeito, o referido direito de participação - conforme se salientou no já citado Acórdão 31/84 - havia de ser considerado como um direito fundamental dos trabalhadores, ainda que face à versão originária da Constituição, pelo que beneficiava «do regime dos direitos, liberdades e garantias, sendo, em consequência, directamente aplicável com vinculação das entidades públicas e privadas» (cf. artigos 17.º e 18.º da lei fundamental, na sua primitiva redacção).
Não se vendo motivo para alterar esta jurisprudência já firmada, desnecessário se torna qualquer outro desenvolvimento adicional a propósito da matéria em apreço.
Cabe, apenas, assinalar que a Constituição, ao garantir o direito de associação sindical, não distinguia - como não distinguem - entre os trabalhadores da Administração Pública e os restantes trabalhadores, pelo que aqueles não podiam ver esse direito arbitrariamente restringido, não se descortinando, aliás, em que medida qualquer interesse público constitucionalmente protegido poderia constituir fundamento válido para impedir a participação das associações sindicais representativas daqueles trabalhadores na elaboração da respectiva «legislação de trabalho».
Finalmente, não se deixe também de referir que o facto de tais trabalhadores se enquadrarem em serviços dependentes das Forças Armadas em nada altera os dados da questão em apreço. Com efeito, ainda aqui se não vê que tal circunstância assuma qualquer particular relevo para efeitos de saber se as associações sindicais devem ou não ser ouvidas sobre problemas exclusivamente atinentes ao estatuto jurídico-laboral de funcionários e agentes que não são militares, nem tão-pouco militarizados; isto sabendo-se que não é possível colocar factualmente em causa a existência de associações sindicais no âmbito da função pública.
7 - Desde a data da sua entrada em vigor, foram decerto praticados muitos actos administrativos em execução do Estatuto aprovado pela norma em apreço. Designadamente, e como é óbvio, processaram-se admissões, efectuaram-se concursos, verificaram-se progressões e promoções nas carreiras, terão sido aplicadas penas disciplinares, criaram-se expectativas.
Da declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex tunc (cf. CRP, artigo 282.º, n.º 1) resultaria a invalidade de todos esses actos administrativos, afinal praticados sem base legal. E embora não seja claro se todos eles poderiam ainda vir a ser impugnados ou se apenas o poderiam ser aqueles em que ainda não tivesse decorrido o prazo legalmente estabelecido para a respectiva impugnação contenciosa, a verdade é que se suscitaria uma situação de indesejável insegurança jurídica e, eventualmente, se multiplicariam os casos de iniquidade.
Ora, este Tribunal dispõe dos meios necessários para remediar estas situações, usando da faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 282.º da lei fundamental. Por isso, é inteiramente justificável que, por razões de equidade e de segurança jurídica, sejam ressalvados os efeitos produzidos até à data da publicação da presente declaração de inconstitucionalidade.
8 - Nestes termos, declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 380/82, de 15 de Setembro, por violação do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 58.º da Constituição, na sua versão originária.Por razões de equidade e de segurança jurídica, são ressalvados os efeitos produzidos pela norma ora julgada inconstitucional até à data da publicação deste acórdão no Diário da República.
Lisboa, 3 de Dezembro de 1987. - Luís Nunes de Almeida - Martins da Fonseca - Mário de Brito - Vital Moreira - Antero Alves Monteiro Dinis - José Manuel Cardoso da Costa (vencido, tanto pelas razões constantes da minha declaração de voto no Acórdão 31/84 como pelas expendidas na declaração que igualmente apus ao parecer 17/81 da Comissão Constitucional, aqui aplicáveis mutatis mutandis) - Raul Mateus (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Messias Bento (vencido pelas razões que expus na declaração de voto que anexei ao Acórdão 31/84) - Armando Manuel Marques Guedes.
Declaração de voto
1 - O Tribunal Constitucional, segundo o meu voto, não deveria ter declarado a inconstitucionalidade da norma do artigo 1.º do Decreto-Lei 380/82, de 15 de Setembro, que aprovou o Estatuto do Pessoal Civil dos Serviços Departamentais das Forças Armadas.
De facto, a prévia auscultação de sindicatos do sector não era condição, em perspectiva constitucional, da validade formal daquela norma.
2 - Segundo o artigo 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, texto primitivo, constituía direito dos sindicatos participar na elaboração da legislação do trabalho.
Já no Acórdão 75/85 do Tribunal Constitucional (Diário da República, 1.ª série, n.º 118, de 23 de Maio de 1985) - e na linha da doutrina traçada no Acórdão 31/84 deste mesmo Tribunal e já antes no parecer 17/81 da Comissão Constitucional, ambos citados no corpo do acórdão a que esta declaração de voto vai apendiculada - se entendeu que o pessoal civil daqueles serviços departamentais estava integrado na organização militar e fazia parte, numa visão funcional e objectiva, a que era natural à lei fundamental, texto de 1976, das próprias Forças Armadas, sendo, por isso, o Conselho da Revolução competente, nos termos do artigo 148.º, n.º 1, alínea a), para editar o diploma em que se situa a norma ora em causa. Na verdade, dispunha aquele preceito da Constituição, forma originária, que, na qualidade de órgão político e legislativo em matéria militar, competia ao Conselho da Revolução fazer leis e regulamentos sobre a organização, o funcionamento e a disciplina das Forças Armadas.
Nesta mesma óptica, e sem embargo de a norma em questão tratar de matéria laboral, certo é que a vertente dominante é ainda a militar, pelo que a norma do artigo 1.º do Decreto-Lei 380/82 não é legislação de trabalho no sentido exigido pelo artigo 58.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, redacção de 1976.
A ausência no iter legislativo da tramitação prevista naquele preceito constitucional, a verificar-se, seria assim irrelevante.
3 - De qualquer forma, regista-se que não ficou positivamente provado que o Conselho da Revolução tenha deixado de ouvir os sindicatos.
Sendo assim, e mesmo nos quadros da análise adversa, não seria, por dúvidas sobre a efectiva existência de um dos elos da cadeia de raciocínio por que se moveu o acórdão, de chegar a declaração de inconstitucionalidade.
Raul Mateus.