Acórdão 229/94
Processo 174/92
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O Procurador-Geral da República veio, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa, requerer a este Tribunal que aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas do capítulo IV dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (ou seja: dos seus artigos 25.º a 31.º) e, bem assim, do artigo 20.º do Regulamento do Departamento de Jogos (anexo II aos ditos Estatutos) - Estatutos e Regulamento aprovados pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 322/91, de 26 de Agosto.
O requerente, para fundamentar o pedido, alegou, em síntese, o seguinte:
a) As normas dos artigos 25.º a 31.º dos Estatutos e, bem assim, a do artigo 20.º do Regulamento do Departamento de Jogos contêm «o regime jurídico-funcional dos trabalhadores» da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e esse regime é «claramente inovador»; de facto, diz
b) Até à publicação dos ditos Estatutos, «o regime do pessoal da Misericórdia de Lisboa estava essencialmente moldado segundo um regime de direito público» e, nos Estatutos, ficou «estruturado com base na disciplina do contrato individual de trabalho»;
c) «Os preceitos citados constituem inquestionavelmente 'legislação do trabalho', na medida em que alteram radicalmente o regime profissional até então vigente para os trabalhadores da Misericórdia de Lisboa, dispondo ainda sobre aspectos essenciais da relação jurídico-laboral, como sejam a fixação das remunerações e o estabelecimento de horários de trabalho»;
d) Por isso, devia «ter sido facultada às associações sindicais representativas dos trabalhadores interessados a possibilidade de participarem na sua elaboração, o que não se verificou»;
e) Em consequência, as normas em causa (ou seja: as dos artigos 25.º a 31.º dos Estatutos e a do artigo 20.º do Regulamento) «são formalmente inconstitucionais, por violação da alínea a) do artigo 56.º da Constituição»;
f) «Acresce que o artigo 25.º dos Estatutos não se limita a prescrever a aplicação pura e simples do regime geral do contrato individual de trabalho, estabelecendo a possibilidade de serem introduzidas certas 'adaptações'»;
g) Ora, ao abrigo da possibilidade aberta pelo dito artigo 25.º, o artigo 30.º dos Estatutos e o artigo 20.º do Regulamento introduzem «adaptações» ao regime geral do contrato individual de trabalho que, para os trabalhadores da Misericórdia de Lisboa que optarem por esse regime jurídico, vai implicar «que pontos essenciais de uma relação laboral, moldada segundo o direito privado, sejam definidos por acto unilateral da entidade patronal, em vez de o serem através do instrumento resultante dos processos de contratação colectiva».
É o que sucede com as remunerações dos trabalhadores em regime de contrato individual de trabalho e com as remunerações complementares devidas pela não sujeição a horário determinado, que são fixadas (e revistas) pela mesa da Misericórdia (artigo 30.º, n.os 1 e 2, dos Estatutos), e, bem assim, com os horários de trabalho a praticar no Departamento de Jogos e suas modalidades, que - segundo o requerente supõe - são fixados pela direcção do mesmo, tendo em conta as especiais características e conveniências dos serviços (artigo 20.º do Regulamento citado);
h) Essas normas (as do artigo 30.º dos Estatutos e do artigo 20.º do Regulamento) denegam, assim, «aos trabalhadores em regime de contrato individual de trabalho e respectivas associações sindicais o direito de contratação colectiva, em pontos essenciais da relação laboral»;
i) O Decreto-Lei 322/91 - que aprovou os Estatutos e o Regulamento que contêm essas normas - configura-se, por isso, «como 'lei restritiva' do direito conferido pelo n.º 3 do artigo 56.º da Constituição, ao mesmo tempo que vem consagrar desvios ou limitações sensíveis quanto ao âmbito de vigência do referido direito de contratação colectiva, tal como este é regulado pelo diploma que, em termos genéricos, desenvolve e concretiza o disposto no n.º 4 do artigo 56.º da Constituição» (no caso, o Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei 87/89, de 23 de Março).
De facto, os ditos artigos (o 30.º dos Estatutos e o 20.º do Regulamento) «excluem um círculo perfeitamente determinável de trabalhadores (os que hajam optado nos termos e prazos referidos no artigo 26.º dos Estatutos da Misericórdia) ao serviço de certa entidade patronal (a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) do âmbito de aplicação do diploma que, em consonância com o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 56.º da Constituição, conforma o direito de contratação colectiva»;
j) Os referidos artigos 30.º dos Estatutos e 20.º do Regulamento violam, pois, o n.º 3 do artigo 18.º da Constituição, que impõe que «as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias» revistam «carácter geral e abstracto»;
l) Mas, «mesmo que, porventura, assim se não entenda, as referidas normas não podem deixar de se configurar como organicamente inconstitucionais, por violação do preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º, conjugado com os artigos 18.º, n.º 2, e 56.º, n.º 3, da Constituição», pois as restrições dos direitos, liberdades e garantias devem «necessariamente constar de acto legislativo com a forma de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei autorizado pelo Governo», e «o Decreto-Lei 322/91 surge editado nos termos da alínea a) do artigo 201.º da Constituição».
2 - O Primeiro-Ministro, notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, veio sustentar «a plena conformidade constitucional dos preceitos» legais que constituem objecto do pedido.
Alegou ele, em síntese:
a) Com o Decreto-Lei 322/91, de 26 de Agosto, o que se pretendeu (conforme se lê no respectivo preâmbulo) foi reorganizar a actividade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através da aprovação de «uns estatutos que, definindo a sua identidade, a reconduzam à pureza original, ainda que permitam actuar sem as limitações que, em crescendo, foram afectando a sua acção»;
b) «Com esse escopo» (e entre outras diversas alterações), nos novos Estatutos «subordinou-se a actividade dos trabalhadores da Santa Casa da Misericórdia a um diverso paradigma jus-laboral, instituindo como regime-regra o aplicável ao contrato individual de trabalho - sem, todavia, afectar a situação dos que eram já trabalhadores desta instituição. A estes foi dada a possibilidade de opção por um dos dois regimes, sem dar azo a qualquer ofensa ou perigo de lesão de quaisquer posições jurídicas adquiridas.»
Estamos, assim, «perante um procedimento não inovador, no que concerne à definição das regras aplicáveis ao contrato de trabalho».
«Consequência natural desta opção político-organizativa é a de permitir que uma pessoa colectiva de direito público fique, no que concerne à gestão do seu pessoal, subordinada a regras de direito privado»;
c) Mas daí a necessidade de «adaptação dos critérios e regras da pessoa colectiva pública - isto é, cuja natureza implica a intervenção dos princípios da legalidade e da competência - ao funcionamento de um regime criado para ser aplicado a organizações de natureza muito diversa: empresas».
É isto que explica que, no artigo 25.º dos Estatutos, se disponha que a aplicação do contrato individual de trabalho ao pessoal da Misericórdia de Lisboa se fará com as «adaptações decorrentes» dos mesmos Estatutos;
d) «Tais adaptações não se reportam», porém, «à disciplina substancial da relação de trabalho, mas sim, conforme transparece do preâmbulo, à necessidade de salvaguardar os 'direitos e regalias que as acções e omissões legislativas do passado integraram na esfera jurídica dos seus trabalhadores com vínculo definitivo, considerando-se como tal os trabalhadores com a situação jurídico-laboral regularizada e sem termo'.»
«A primeira razão de ser destas adaptações radica, obviamente, na instituição da faculdade de opção pela manutenção de um regime de emprego público»;
e) Daí que «se afigura aberrante pretender que a modificação do enquadramento jurídico-laboral dos trabalhadores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, produto de uma opção político-organizativa, de um acto de gestão, seja susceptível de recondução ao conceito de 'legislação do trabalho'».
De facto, «o Estado, ao criar uma pessoa colectiva de direito público não integrada na administração central do Estado, é livre de determinar qual o regime laboral aplicável, se o do direito público, se o do direito privado. Obviamente, quando tal aconteça, não se tratará de 'legislação do trabalho', antes de um novo procedimento de organização dos serviços.»
«Ora, podendo fazê-lo ab initio, é-lhe, do mesmo modo, permitido que o faça noutro qualquer momento, desde que não ocorra lesão de quaisquer posições jurídicas suficientemente subjectivadas (o que não acontece no presente diploma, no qual se confere aos actuais trabalhadores uma faculdade de opção)»;
f) Os preceitos legais sub iudicio não assumem, pois, a natureza de legislação do trabalho, já que neles «não ocorre a conformação da esfera jurídica dos trabalhadores, apenas se opta por um dos regimes possíveis, em sede de organização da pessoa colectiva em causa».
«Quer dizer, os preceitos em causa não assumem a natureza de 'legislação do trabalho', como não a possuem os actos internos de uma qualquer empresa nos quais se institua o regime de trabalho por turnos ou se defina o esquema de organização de férias»;
g) «Este simile adquire, aliás, reforçada pertinência no caso em apreço, relativamente à imputação de que se visariam estabelecer adaptações substanciais à lei do trabalho.»
A fixação do horário de trabalho cabe, na verdade, à entidade patronal, integrando-se no seu poder de direcção. «Daí que o lugar próprio do horário de trabalho seja o regulamento de empresa.»
«Parece evidente que os Estatutos da Santa Casa da Misericórdia funcionam, na parte aqui em causa e relativamente aos trabalhadores abrangidos pela lei geral do trabalho, como um verdadeiro regulamento da empresa.»
«Na verdade, tratando-se de uma pessoa colectiva de direito público cujo estatuto - ou seja, a norma de organização interna - é definido por lei, aos princípios da liberdade e da autonomia substituem-se os da legalidade e da competência.»
«Ora, é pacífico que os regulamentos de empresa não cabem no conceito de 'legislação do trabalho', atendendo ao poder de que são emanação - o poder de direcção, que, por seu turno, decorre da própria liberdade de empresa - e ao respectivo âmbito de aplicação»;
h) «Logo, e esta é a conclusão óbvia, não apenas não nos encontramos diante de 'legislação do trabalho', como não existe uma intervenção inovadora: o espaço no qual se intervém é aquele que a lei reserva à entidade patronal no campo da conformação das condições de trabalho, da organização do trabalho na empresa»;
i) «No atinente às disposições relativas à fixação de salários e remunerações complementares», «só a partir de uma interpretação literalista e que prescinda por completo de toda a envolvente normativa da matéria se poderá pretender que [o artigo 30.º dos Estatutos] confere [...] a possibilidade de impor unilateralmente os montantes destas atribuições retributivas.»
«Ao invés, cura-se aqui de determinar o órgão a quem cabe exprimir a vontade da pessoa colectiva, sem quebrar a lógica contratual e de abertura à autonomia colectiva que informa a lei geral do trabalho»;
j) Os artigos 30.º dos Estatutos e 20.º do Regulamento do Departamento de Jogos «não constituem legislação do trabalho, nem acarretam restrição de quaisquer posições jurídicas».
São é «meras normas de organização; de organização interna da instituição em causa. E que apenas constam de diploma com força de lei porque se trata de uma pessoa colectiva de direito público.»
«A questão é simples: a submissão destas relações [das relações jurídico-laborais dos trabalhadores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que optaram pelo regime do contrato individual de trabalho] à lei geral do trabalho implica necessariamente a recepção de uma lógica contratual em detrimento de uma lógica estatutária; logo, os poderes da Santa Casa da Misericórdia relativamente aos seus trabalhadores são os mesmos, nem mais, nem menos, do que os conferidos a qualquer entidade patronal; aí, onde se admite a fixação unilateral (v. g., organização do tempo de trabalho), cabe, também, à Santa Casa um tal poder potestativo; no campo reservado à autonomia e ao encontro de vontades (a fixação da retribuição), também a Santa Casa terá de obter o assentimento dos trabalhadores; simplesmente, porque a Santa Casa tem a natureza de pessoa colectiva de direito público, é imperioso que o diploma que aprova os seus Estatutos defina as competências e os procedimentos internos para se determinar como é formada a vontade contratual da pessoa colectiva.»
3 - Cumpre, então, decidir.
II - Fundamentos
4 - Enquadramento das questões jurídico-constitucionais a resolver:
4.1 - Referência ao quadro legal anterior. - Até à entrada em vigor do Decreto-Lei 322/91, de 26 de Agosto - que aprovou os Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e os Regulamentos dos Departamentos de Gestão Imobiliária e de Jogos, nela integrados -, a Misericórdia de Lisboa regia-se pelo Decreto-Lei 40397, de 24 de Novembro de 1955.
Este último diploma legal havia reorganizado a instituição no propósito de a valorizar, reconhecendo-lhe, como se escreveu no respectivo preâmbulo, «na hierarquia da assistência, e por forma expressa, a categoria que devem conferir-lhe a natureza e extensão da função que exerce e os numerosos e complexos serviços e estabelecimentos a seu cargo».
No domínio do citado Decreto-Lei 40397, a Misericórdia de Lisboa - que gozava de personalidade jurídica e de autonomia administrativa e financeira - estava «sujeita ao regime dos artigos 113.º e seguintes do Decreto-Lei 35108, de 7 de Novembro de 1945, na parte que não for especialmente regulada neste diploma» (cf. artigo 1.º).
Significa isto que, na respectiva «área de influência», era a Misericórdia de Lisboa quem organizava e mantinha os estabelecimentos e serviços de assistência que se mostrassem necessários (cf. artigos 113.º e 114.º, § 1.º). E ainda que «os lugares de direcção eram de livre nomeação ministerial e exercidos em comissão de serviço, renovável por períodos de três anos, com os vencimentos a estipular pelo Ministro do Interior, ouvido o das Finanças» (cf. artigo 119.º referido ao § 1.º do artigo 114.º).
A administração da Misericórdia competia à mesa, que era composta por um provedor e dois adjuntos (cf. artigo 16.º), sendo que, para a gerência da lotaria, a ela acresciam um representante do Ministério do Interior e outro do Ministério das Finanças (cf. citado artigo 16.º).
O provimento do pessoal da Misericórdia era feito, a solicitação da respectiva mesa, pelo Ministro do Interior, «de harmonia com o disposto nos artigos 171.º e 172.º do já citado Decreto-Lei 35108, de 7 de Novembro de 1945, e mais legislação aplicável, em tudo quanto não for especialmente previsto neste diploma» (cf. artigo 27.º em conjugação com o n.º 9 do artigo 17.º).
O pessoal da Misericórdia de Lisboa (cujo quadro, respectivas categorias e remunerações constavam do mapa anexo), no que respeitava «à disciplina, faltas, licenças, antiguidades, limites de idade e ajudas de custo», estava sujeito ao «regime geral dos funcionários civis do Estado» (cf. artigo 35.º).
4.2 - O actual quadro legal. - Foi, entretanto, publicado o já atrás citado Decreto-Lei 322/91, de 26 de Agosto, em cujo preâmbulo começou por se pôr em destaque «a importância da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, na sua múltipla perspectiva - histórica, social, patrimonial e económica».
Afirmou-se também, nesse preâmbulo, ser propósito do Governo dotar a Misericórdia de Lisboa de uns «estatutos que, definindo a sua identidade, a reconduzam à pureza original, ainda que naturalmente adequados aos nossos dias, e lhes permitam actuar sem as limitações que, em crescendo, foram afectando a sua acção». E acrescentou-se: «Assim, com os presentes Estatutos, tem-se em vista criar condições para maior eficácia na prossecução dos objectivos sociais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, apetrechando-a com os meios de gestão e enquadrando os instrumentos de criação de recursos do modo mais adequado a suportar a sua insubstituível acção de solidariedade social.»
Dos «traços marcantes dessa intenção», sublinhados no preâmbulo, recolhem-se, para o que agora importa, os seguintes:
a) «A unidade de gestão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, consubstanciada na existência de uma só mesa»;
b) «A definição de um regime de pessoal consentâneo com a evolução e características específicas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, salvaguardando-se, contudo, os direitos e regalias que as acções e omissões legislativas do passado integraram na esfera jurídica dos seus trabalhadores com vínculo definitivo, considerando-se como tal os trabalhadores com a situação jurídico-laboral regularizada e sem termo»;
c) «O acento da tutela fiscalizadora da acção e gestão da instituição, como consequência da assunção da sua verdadeira natureza jurídica, ou seja, de uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa.»
O Decreto-Lei 322/91, de 26 de Agosto - que, repete-se, aprovou os Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e os Regulamentos dos Departamentos de Gestão Imobiliária e de Jogos -, qualifica a dita Misericórdia como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa (cf. artigo 1.º, n.º 1, dos Estatutos).
A administração da Misericórdia compete, agora, à mesa (composta pelo provedor, pelo vice-provedor e por três adjuntos - cf. artigo 13.º, n.º 1, dos Estatutos) e ao provedor (cf. artigo 12.º, n.º 1, dos Estatutos).
4.3 - É aos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e ao Regulamento do respectivo Departamento de Jogos que pertencem as normas que, segundo o requerente, são inconstitucionais.
É, pois, a análise das questionadas normas, sub specie constitutionis, que vai fazer-se, tratando-se separadamente das demais as dos artigos 30.º dos Estatutos e 20.º do Regulamento.
Vejamos, então.
5 - Os artigos 25.º a 29.º e 31.º dos Estatutos, em confronto com o artigo 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição. - Os mencionados preceitos legais inscrevem-se no capítulo IV dos Estatutos, subordinado à rubrica «Do pessoal».
Preceituam eles como segue:
Artigo 25.º
Regime geral
O regime jurídico aplicável ao pessoal da Misericórdia de Lisboa, incluindo os seus departamentos, é o do contrato individual de trabalho, com as adaptações decorrentes dos presentes Estatutos.
Artigo 26.º
Direito de opção
1 - O pessoal com vínculo definitivo, à data da entrada em vigor dos presentes Estatutos, à Misericórdia de Lisboa tem o direito de opção definitiva e individual pelo regime jurídico do contrato individual de trabalho.
2 - A opção prevista no número anterior deve constar de documento particular, devidamente assinado, e determina a cessação do actual regime profissional.
3 - A opção referida no n.º 1 deve ser comunicada no prazo de 120 dias após a entrada em vigor dos presentes Estatutos.
4 - Aos trabalhadores da Misericórdia de Lisboa que à data da entrada em vigor dos presentes Estatutos se encontrem em exercício de funções noutros organismos ou no gozo de licenças, o prazo referido no número anterior é contado a partir do reinício de funções na Misericórdia de Lisboa.
5 - Aos trabalhadores da Misericórdia de Lisboa que optarem pelo regime do contrato individual de trabalho é contada a totalidade do tempo de serviço até então prestado, designadamente para efeitos de atribuição das pensões a que tiverem direito, consoante o regime aplicável.
Artigo 27.º
Regime transitório
O pessoal com vínculo definitivo à Misericórdia de Lisboa na data da entrada em vigor destes Estatutos e que não exerça a opção prevista no n.º 1 do artigo anterior mantém todos os direitos e regalias de que seja titular e é integrado em quadro a criar especificamente para o efeito, cujos lugares são extintos à medida que vagarem, sem prejuízo das respectivas carreiras.
Artigo 28.º
Regime de segurança social e fiscal
Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, o pessoal da Misericórdia de Lisboa fica sujeito aos regimes gerais ou especialmente aplicáveis no que respeita a segurança social e fiscalidade.
Artigo 29.º
Mobilidade
1 - Os funcionários e agentes do Estado, de institutos públicos e de autarquias locais, bem como os trabalhadores de empresas públicas, podem ser chamados, nos termos previstos na lei, a desempenhar funções na Misericórdia de Lisboa ou seus departamentos, em regime de destacamento, requisição ou comissão de serviço, com garantia do seu lugar de origem e dos direitos nele adquiridos, considerando-se esse período como serviço prestado nos respectivos quadros.
2 - Os trabalhadores da Misericórdia de Lisboa que integrem o estatuído no artigo 27.º podem, nos termos previstos na lei, ser chamados a desempenhar funções no Estado ou em institutos públicos, autarquias locais e empresas públicas, em regime de requisição ou de comissão de serviço, com garantia do seu lugar de origem e dos direitos por eles adquiridos, considerando-se esse período como serviço prestado na Misericórdia de Lisboa.
Artigo 31.º
Quadros, mapas e regulamentos
A mesa da Misericórdia de Lisboa aprovará, nos termos dos presentes Estatutos, os quadros e mapas do pessoal neles previstos e elaborará os necessários regulamentos internos.
O pessoal da Misericórdia de Lisboa - que, no domínio do Decreto-Lei 40397, de 24 de Novembro de 1955, estava sujeito a um regime de direito público (cf., especialmente, os artigos 27.º e 35.º) - ficou, agora, submetido ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, com as adaptações decorrentes dos Estatutos (cf. artigo 25.º).
O regime jurídico do contrato individual de trabalho só é, no entanto, obrigatório para o pessoal admitido já na vigência destes Estatutos, pois «o pessoal com vínculo definitivo à Misericórdia de Lisboa na data da entrada em vigor destes Estatutos» o que pode é optar por esse regime jurídico, devendo tal opção ser «comunicada no prazo de 120 dias após a entrada em vigor» dos Estatutos (ou do reinício de funções na Misericórdia, achando-se a exercer funções noutros organismos ou no gozo de licença) e «constar de documento particular, devidamente assinado» (cf. artigo 26.º, n.os 1, 2, 3 e 4). Se não fizer essa opção, mantém ele «todos os direitos e regalias de que seja titular e é integrado em quadro a criar especificamente para o efeito, cujos lugares são extintos à medida que vagarem, sem prejuízo das respectivas carreiras» (cf. artigo 27.º).
Os trabalhadores com vínculo definitivo à Misericórdia de Lisboa que não optem pelo regime jurídico do contrato individual de trabalho podem ser chamados a desempenhar funções no Estado ou em institutos públicos, autarquias locais e empresas públicas, em regime de requisição ou de comissão de serviço, nos termos da lei (ou seja, nos termos do disposto nos artigos 7.º, n.º 1, 24.º e 27.º do Decreto-Lei 427/89, de 31 de Outubro, e do artigo 5.º, n.os 1, 2 e 3, do Decreto-Lei 323/89, de 26 de Setembro). Tal sucedendo, mantêm eles a garantia do seu lugar de origem e dos direitos por eles adquiridos, considerando-se esse período como serviço prestado na Misericórdia de Lisboa (cf. artigo 29.º, n.º 2).
Semelhantemente, podem ser chamados a desempenhar funções na Misericórdia de Lisboa ou nos seus departamentos os funcionários e agentes do Estado, de institutos públicos e de autarquias locais, e bem assim os trabalhadores de empresas públicas, que ali servirão em regime de destacamento, de requisição ou de comissão de serviço, mantendo o seu lugar de origem e os direitos nele adquiridos. O período de serviço prestado na Misericórdia considera-se como tendo sido prestado nos respectivos quadros (cf. artigo 29.º, n.º 1).
Aos trabalhadores da Misericórdia de Lisboa que optarem pelo regime do contrato individual de trabalho é contada a totalidade do tempo de serviço até então prestado, máxime para efeitos de atribuição de pensões a que tiverem direito (cf. artigo 26.º, n.º 5).
O pessoal da Misericórdia de Lisboa fica sujeito aos regimes gerais ou especialmente aplicáveis no que respeita a segurança social e fiscalidade (cf. artigo 28.º).
Os quadros do pessoal da Misericórdia e, bem assim, os mapas neles previstos serão aprovados pela respectiva mesa, nos termos destes Estatutos, sendo também a mesa quem elaborará os necessários regulamentos internos (cf. artigo 31.º).
As normas ora sub iudicio - cujo sentido acaba de apontar-se - serão, então, inconstitucionais por violação do artigo 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República?
O artigo 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição garante às associações sindicais o direito de participar na elaboração da legislação do trabalho.
Prescreve-se aí:
2 - Constituem direitos das associações sindicais:
a) Participar na elaboração da legislação do trabalho;
Os trabalhadores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (melhor dizendo: as associações sindicais que os representam) - trabalhadores que, recorda-se, tinham um estatuto de funcionários públicos - gozavam (e gozam, naturalmente) deste direito de participação na elaboração da legislação do trabalho.
Este direito é, na verdade, garantido a todas as associações sindicais pela citada alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição, representem elas trabalhadores da Administração Pública ou outra categoria de trabalhadores.
Com efeito, a Constituição, ao garantir o direito ao sindicato (e os direitos de que gozam as associações sindicais), não distingue entre uma e outra de tais categorias; e, por isso, os trabalhadores da Administração Pública - tal como se escreveu no Acórdão 451/87, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 14 de Dezembro de 1987 - «não pode(m) ver esse direito arbitrariamente restringido, não se descortinando, aliás, em que medida qualquer interesse público constitucionalmente protegido poderia constituir fundamento válido para impedir a participação das associações sindicais representativas daqueles trabalhadores na elaboração da respectiva 'legislação do trabalho'» (cf. também o Acórdão 93/92, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 28 de Maio de 1992).
O exercício desse direito de participação na elaboração da legislação do trabalho, constitucionalmente garantido às associações sindicais representativas dos trabalhadores da Administração Pública, acha-se, de resto, regulado pelo Decreto-Lei 45-A/84, de 3 de Fevereiro (cf., especialmente, os artigos 1.º, n.º 2, 2.º, 3.º, 4.º e 9.º).
Este artigo 9.º do Decreto-Lei 45-A/84 dispõe como segue:
1 - É reconhecido aos trabalhadores da Administração Pública o direito de participarem, através das suas associações sindicais:
a) Na elaboração da legislação relativa ao regime geral ou especial da função pública;
b) Na gestão das instituições de segurança social e de outras organizações que visem satisfazer o interesse dos trabalhadores;
c) No controlo de execução dos planos económico-sociais.
2 - A participação a que se refere a alínea a) do número anterior tem a natureza de consulta, podendo para o efeito constituir-se comissões técnicas especializadas, considerando-se abrangidas por essa disposição, além das matérias da competência do Governo, aquelas para que este tenha solicitado autorização legislativa.
...
A participação na elaboração da legislação de trabalho pelas associações sindicais representativas dos restantes trabalhadores acha-se regulada pela Lei 16/79, de 26 de Maio, que, no seu artigo 2.º, enuncia o que deve entender-se por legislação de trabalho. Dispõe-se aí:
1 - Entende-se por legislação de trabalho a que vise regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações, designadamente:
a) Contrato individual de trabalho;
b) Relações colectivas de trabalho;
c) Comissões de trabalhadores, respectivas comissões coordenadoras e seus direitos;
d) Associações sindicais e direitos sindicais;
e) Exercício do direito à greve;
f) Salário mínimo e máximo nacional e horário nacional de trabalho;
g) Formação profissional;
h) Acidentes de trabalho e doenças profissionais.
2 - Considera-se igualmente matéria de legislação de trabalho, para efeitos da presente lei, o processo de aprovação para ratificação das convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Só pode dizer-se que houve participação das associações sindicais na elaboração da legislação de trabalho se, antes de determinado diploma legal ser definitivamente aprovado, lhes foi dado conhecimento do respectivo projecto, a fim de que sobre ele se pudessem pronunciar.
Escreveu-se, com efeito, no Acórdão 22/86, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Abril de 1982:
A participação das associações sindicais na elaboração da legislação do trabalho há-de traduzir-se no conhecimento, por parte delas, do texto dos respectivos projectos de diploma legal, antes naturalmente de eles serem definitivamente aprovados, desse modo se lhes dando a possibilidade de se pronunciarem sobre os mesmos, seja formulando críticas, dando sugestões, emitindo pareceres, ou até fazendo propostas alternativas - o que tudo deve ser tido em conta na elaboração definitiva da normação que se pretende produzir.
Não se trata, por conseguinte, de qualquer participação das referidas organizações sindicais no trabalho dos órgãos legislativos, nem, muito menos, de uma qualquer espécie de «direito de veto». Tal como se não trata de impor aos órgãos de poder qualquer obrigação de consagrar nos diplomas legais esta ou aquela solução.
Do que, pois, tão-só se trata - vistas as coisas do lado do órgão legislativo - é de um dever de consulta dos trabalhadores: e, no tocante às sugestões, críticas, pareceres ou propostas que eles até si fizeram chegar, da obrigação de as tomar em consideração, acolhendo aquelas que o justifiquem.
[Sobre o tema, v. também, por último, o Acórdão 93/92, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 28 de Maio de 1992.]
No presente caso, é de presumir que essa participação não teve lugar, pois nenhuma referência é feita à audição das associações sindicais interessadas no preâmbulo do Decreto-Lei 322/91, de 26 de Agosto, aqui sub iudicio (cf., neste sentido, o já citado Acórdão 93/92, que segue a jurisprudência que sempre este Tribunal adoptou sobre a matéria, como se pode ver nos Acórdãos n.os 451/87 e 15/88, publicados no Diário da República, 1.ª série, de 14 de Dezembro de 1987 e de 3 de Fevereiro de 1988, respectivamente).
Não tendo havido audição das associações sindicais, as normas legais ora em apreciação, se deverem ser qualificadas como legislação de trabalho, serão inconstitucionais, por violação do citado artigo 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
Pois bem: este Tribunal tem vindo a afirmar (designadamente no Acórdão 107/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 21 de Junho de 1988) que, «apesar de o texto constitucional não definir o que seja 'legislação do trabalho', pode dizer-se que esta há-de ser 'a que visa regulamentar as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações' (cf. parecer 17/81, Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16.º, p. 14), ou, se assim melhor se entender, há-de abranger 'a legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição' (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 31/84, 451/87 e 15/88, Diário da República, 1.ª série, de, respectivamente, 17 de Abril de 1984, 14 de Dezembro de 1987 e 3 de Fevereiro de 1988)». E esta mesma doutrina repetiu-a no já citado Acórdão 93/92, (cf. também o Acórdão 155/92, Diário da República, 2.ª série, de 2 de Setembro de 1992).
Legislação de trabalho é, pois, aquela em que se explicita e desenvolve o conjunto de poderes e de faculdades que a Constituição garante aos trabalhadores por conta de outrem e às suas organizações (e os respectivos deveres) - aquela, em suma, em que se define o conteúdo dos respectivos direitos fundamentais e regulamenta o seu exercício.
Ora, nas normas sub iudicio, tal como se diz na resposta do Primeiro-Ministro, «não ocorre conformação da esfera jurídica dos trabalhadores, apenas se opta por um dos regimes possíveis em sede de organização da pessoa colectiva em causa». Opta-se pelo regime do contrato individual de trabalho, que assim vem substituir a relação de emprego público, vigente até então, mas sem que se atinjam as relações jurídico-laborais já existentes (designadamente no que concerne ao direito à carreira), a menos, claro é, que os interessados optem pelo novo regime.
As normas que traduzem tal opção - opção que, em síntese, se reconduz à afirmação de que, para futuro (salvo manifestação de vontade em contrário dos que já sejam trabalhadores da Misericórdia com vínculo definitivo), as relações jurídico-laborais ficam sujeitas a um estatuto de direito privado - mais não são do que a escolha de um determinado modelo organizatório. Não versam elas sobre «o regime geral ou especial da função pública» (cf. artigo 9.º do Decreto-Lei 45-A/84), nem sobre qualquer das matérias enunciadas no artigo 1.º da Lei 16/79. Não são, assim, legislação de trabalho.
Assim sendo, não violam elas o artigo 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
6 - O artigo 20.º do Regulamento do Departamento de Jogos e o artigo 30.º, n.º 2, dos Estatutos (este apenas quanto ao horário de trabalho), em confronto: com o artigo 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição; com o artigo 18.º, n.º 2, conjugado com os n.os 3 e 4 do mesmo artigo 56.º; e com a alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º, conjugado com aquele artigo 56.º, n.º 3. - O artigo 20.º do Regulamento do Departamento de Jogos reza assim:
Os horários a praticar no Departamento de Jogos, bem como as suas modalidades, são estabelecidos tendo em atenção as especiais características e conveniências dos serviços.
Por sua vez, o n.º 2 do artigo 30.º dos Estatutos dispõe:
2 - O pessoal afecto aos departamentos ou unidades específicas de acção social e saúde pode ser chamado ao exercício de funções imprescindíveis ao funcionamento normal da instituição e que devam ser desempenhadas por pessoal permanente, sem estar sujeito a horário determinado, mediante o pagamento de remunerações complementares a definir pela mesa.
O desempenho de funções pelo «pessoal afecto aos departamentos ou unidades específicas de acção social e saúde» (afecto, designadamente, ao Departamento de Jogos) pode, pois, não estar sujeito a «horário determinado» (cf. artigo 30.º, n.º 2, dos Estatutos), sendo (no tocante ao pessoal afecto ao Departamento de Jogos), em atenção «às especiais características e conveniências dos serviços» (cf. artigo 20.º do Regulamento) que se estabelecerão esses horários, «bem como as suas modalidades» (cf. artigo 20.º do Regulamento de Jogos, conjugado com o n.º 2 do artigo 30.º dos Estatutos).
Dizer que é a entidade patronal quem fixará os horários de trabalho (máxime, os que deverem praticar-se no Departamento de Jogos), atendendo, para o efeito, «às especiais características e conveniências de serviço» (isto é: atendendo, por exemplo, a que as operações dos concursos do Totobola se realizam, necessariamente, nos fins-de-semana), é repetir algo que está aí no ordenamento jurídico.
O artigo 49.º da Lei do Contrato Individual de Trabalho dispõe, na verdade, que, «dentro dos condicionalismos legais» - isto é, observando o que a esse respeito se preceitua no Decreto-Lei 409/71, de 27 de Setembro (alterado pelo Decreto-Lei 398/91, de 16 de Outubro) e, eventualmente, em convenção colectiva (cf. n.º 7 do artigo 5.º do Decreto-Lei 409/71) -, é à entidade patronal que compete estabelecer o horário de trabalho, distribuindo as horas do período normal de trabalho entre os limites do período de funcionamento (cf. também o artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei 409/71).
Cabe, com efeito, à entidade patronal organizar a vida da empresa, máxime elaborando «regulamentos internos» (regulamentos de empresa), donde constem, entre o mais, normas relativas à «organização e disciplina do trabalho», entre elas, normas sobre a distribuição no tempo das horas de trabalho contratadas e que constituem o chamado «período normal de trabalho» (cf. artigos 39.º, n.º 2, e 45.º, n.º 1, da Lei do Contrato Individual de Trabalho. Cf. também Bernardo da Gama Lobo Xavier, Regime Jurídico do Contrato de Trabalho, Coimbra, 1972, pp. 105, 107 e 114; A. L. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, I, 7.ª ed., Coimbra, 1991, pp. 210 e 286; e Lei do Contrato de Trabalho, Coimbra, 1970, p. 124).
Bem se compreende, de resto, que assim seja, uma vez que o trabalhador, no exercício da sua liberdade negocial (da sua autonomia), ao celebrar o contrato de trabalho com o empregador, obrigou-se para com este a prestar a sua actividade intelectual ou manual «sob a autoridade e direcção» dele. Pois é esse poder de direcção que a entidade patronal exercita quando fixa o horário de trabalho, com observância, claro é, da atinente regulamentação legal e convencional.
Sendo isto assim, desde logo por falta de qualquer sentido inovatório, a norma relativa a horários de trabalho, constante do artigo 20.º do Regulamento do Departamento de Jogos, conjugada com a do artigo 30.º, n.º 2, dos Estatutos, não constitui legislação que deva ser precedida de prévia audição das associações sindicais interessadas. E, por isso, não há violação da alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição.
Os horários de trabalho, a fixar pelo Departamento de Jogos, devendo, embora, atender «às especiais características e conveniências dos serviços», têm, obviamente, como se disse já, de respeitar a correspondente regulamentação legal (e convencional, se a houver).
Por isso, logo por aí, não pode a norma em causa violar o direito à contratação colectiva, garantido às associações sindicais pelo artigo 56.º, n.os 3 e 4, da Constituição, que dispõe:
3 - Compete às associações sindicais exercer o direito de contratação colectiva, o qual é garantido nos termos da lei.
4 - A lei estabelece as regras respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções colectivas de trabalho, bem como à eficácia das respectivas normas.
Aquela norma não obsta, com efeito, a que a matéria de horários de trabalho possa ser objecto de convenção colectiva nos termos permitidos por lei [cf. artigo 5.º do Decreto-Lei 409/71, de 27 de Setembro (redacção do Decreto-Lei 398/91, de 16 de Outubro), e artigo 6.º do Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro].
Por último, ao editar essa norma (reafirmando um poder que a Lei do Contrato Individual de Trabalho atribui à entidade patronal), o Governo não legislou inovatoriamente sobre matéria incluída na reserva parlamentar, ou seja, sobre «direitos dos trabalhadores», nem, como decorre do que se disse, restringiu, pouco ou muito, um qualquer desses direitos, designadamente aquele direito à contratação colectiva.
Assim, a norma em causa não viola o artigo 168.º, n.º 1, alínea b), conjugado com o artigo 56.º, n.º 3, e com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.
7 - O artigo 30.º, n.os 1 e 2, dos Estatutos (o n.º 2 apenas quanto às remunerações complementares), em confronto com o artigo 56.º, n.os 3 e 4, conjugados com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. - Dispõe o artigo 30.º dos Estatutos:
1 - Dentro dos limites orçamentais estabelecidos e aprovados, as tabelas de remunerações dos trabalhadores da Misericórdia de Lisboa em regime de contrato individual de trabalho são fixadas pela mesa e revistas, nomeadamente, com base nos elementos oficiais fixados para o efeito.
2 - O pessoal afecto aos departamentos ou unidades específicas de acção social e saúde pode ser chamado ao exercício de funções imprescindíveis ao funcionamento normal da instituição e que devam ser desempenhadas por pessoal permanente, sem estar sujeito a horário determinado, mediante o pagamento de remunerações complementares a definir pela mesa.
No tocante às remunerações dos trabalhadores da Misericórdia de Lisboa em regime de contrato individual de trabalho, dispõe o artigo 30.º dos Estatutos o seguinte:
a) As tabelas das remunerações normais «são fixadas pela mesa» «dentro dos limites orçamentais estabelecidos e aprovados» e por ela «revistas, nomeadamente, com base nos elementos oficiais fixados para o efeito» (cf. n.º 1);
b) É também a mesa que define as remunerações complementares, a pagar ao «pessoal afecto aos departamentos ou unidades específicas de acção social e saúde» (máxime, ao pessoal afecto ao Departamento de Jogos), por virtude do «exercício de funções imprescindíveis ao funcionamento normal da instituição», sem sujeição «a horário determinado» - horário que assim, quanto ao pessoal do Departamento de Jogos, é estabelecido «tendo em atenção as especiais características e conveniências dos serviços» (cf. o n.º 2, por si e conjugado com o artigo 20.º do Regulamento do Departamento de Jogos).
Este é, de facto, o sentido mais evidente das normas em causa e é também - segundo tudo indica - o sentido com que elas estão a ser aplicadas pela Misericórdia de Lisboa.
Esta, na verdade (em resposta à pergunta que se lhe fez nesse sentido) - depois de dizer que, dos 3800 trabalhadores, apenas 70 optaram pelo regime de contrato individual de trabalho -, informou, no que aqui importa, o seguinte:
a) «A questão salarial [para 1991] foi falada, naturalmente, mas não discutida», porque:
a') «Todas as remunerações foram actualizadas de acordo com o definido para a função pública, tendo sido feito o ajustamento pelo líquido em relação aos trabalhadores que optaram ou que, entretanto, foram admitidos, dado o diferencial de desconto no tocante às contribuições para os regimes de segurança social»;
a'') «O peso dos trabalhadores da função pública, em termos relativos, é tão elevado que qualquer outra solução seria [...] inexequível, até por injusta»;
b) «No próximo futuro e enquanto esta realidade - sistema misto - se mantiver e a legitimidade dos parceiros sociais históricos escassear - a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa não é instituição privada de solidariedade social e os sindicatos da função pública não abrangem os trabalhadores de direito privado da pessoa colectiva de utilidade pública administrativa que, hoje, é a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa -, entendemos que é de tentar manter a mesma orientação, sempre flexibilizada pela parametrização que o legislador estatuiu no artigo 30.º»
Significa isto, pois, que as remunerações dos trabalhadores da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (remunerações normais ou ordinárias e remunerações complementares) são fixadas (e revistas), unilateralmente, pela respectiva mesa (ou seja, pela entidade patronal), em vez de serem ajustadas em negociação colectiva (ou seja, por contrato colectivo, acordo colectivo ou acordo de empresa: cf. artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei 87/89, de 23 de Março).
Porque o teor verbal do texto o não consente (e esse é o limite de toda a interpretação), não é possível fazer, aqui, interpretação conforme à Constituição, em termos de ler o artigo 30.º dos Estatutos como definindo ele apenas «as competências e os procedimentos internos para se determinar a vontade contratual da pessoa colectiva» Misericórdia de Lisboa, como se defende na resposta.
Na norma em causa, o que se faz - repete-se - é atribuir à mesa da Misericórdia de Lisboa a possibilidade de impor, unilateralmente, os montantes das remunerações aos trabalhadores em regime de contrato individual de trabalho. Para o efeito, a mesa partirá, decerto, das remunerações que vinham a ser praticadas e actualizá-las-á de acordo com o que for definido para a função pública. Assim fez, pelo menos, para 1992.
Sendo isto assim, a norma sub iudicio retira aos trabalhadores da Misericórdia de Lisboa, que optaram pelo regime do contrato individual de trabalho ou que, entretanto, foram ou vierem a ser admitidos na vigência dos presentes Estatutos, o direito de contratação colectiva, que a Constituição lhes garante, para ser exercido pelas respectivas associações sindicais nos termos da lei (cf. artigo 56.º, n.os 3 e 4, transcritos atrás).
Claro é que a Constituição não veda ao legislador que, quando decide submeter os trabalhadores de uma determinada instituição ao regime do contrato individual de trabalho, o faça com «adaptações».
Há, de resto, inúmeros exemplos de situações desse tipo no nosso ordenamento jurídico.
Assim - e a título meramente exemplificativo -, o artigo 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril (regime jurídico das empresas públicas), estabelece que «o estatuto do pessoal das empresas públicas deve basear-se no regime do contrato de trabalho», o que significa que não tem por que reproduzi-lo, podendo adaptá-lo. E, particularmente no que concerne à regulamentação colectiva de trabalho, o artigo 1.º, n.º 3, do Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro, prescreve que ele se aplica «às empresas públicas e de capitais públicos, com ressalva do disposto na respectiva regulamentação legal e nos estatutos de cada uma delas».
No diploma sub iudicio, constitui exemplo de «adaptação» do regime do contrato individual de trabalho o disposto no artigo 29.º, n.os 1 e 2, dos Estatutos, pois aí se estabelece uma intercomunicação entre os trabalhadores da Misericórdia, por um lado, e os do Estado, dos institutos públicos, das autarquias locais e das empresas públicas, por outro - intercomunicação que não existe entre as empresas privadas, no âmbito das quais vigora de pleno a lei geral do trabalho.
O legislador pode prescrever «adaptações» do tipo das mencionadas, mas não pode introduzir alterações tais que descaracterizem ou desnaturem o regime do contrato individual de trabalho por que optou.
Ora, a fixação das remunerações dos trabalhadores em regime de contrato individual de trabalho é um campo especialmente aberto à autonomia da vontade e, assim, à regulamentação colectiva, como, de resto, ensina a doutrina.
A este propósito, escreve Bernardo da Gama Lobo Xavier [«Introdução ao estudo da retribuição no direito do trabalho português», in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano I (2.ª série), n.º 1 (Fevereiro-Março, 1986), p. 75]:
O montante dos salários depende essencialmente de um tabelamento ou de uma tarifa emergente das convenções colectivas, nas quais estão fixados (dentro do respectivo âmbito geográfico e profissional) os diversos salários para as várias categorias profissionais.
E, em nota, acrescenta o mesmo autor:
É claro que no nosso sistema as retribuições abrangidas por essa fixação salarial podem ser aumentadas pelo ajuste directo ou até pela própria política das empresas: contudo, na ordem prática, o salário define-se fundamentalmente em função da contratação colectiva.
De resto, o artigo 5.º do Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro (alterado pelo Decreto-Lei 87/89, de 23 de Março), prescreve:
Artigo 5.º
As convenções colectivas de trabalho podem regular:
a) As relações entre as partes outorgantes, nomeadamente no que toca à verificação do cumprimento da convenção e aos meios de resolução de conflitos decorrentes da sua aplicação e revisão;
b) Os direitos e deveres recíprocos dos trabalhadores e das entidades patronais vinculados por contratos individuais de trabalho, nomeadamente aqueles cuja fixação a lei remete para a regulamentação colectiva.
O artigo 30.º, n.os 1 e 2, dos Estatutos (na parte em que atribuem à mesa da Misericórdia competência para fixarem as remunerações dos trabalhadores em regime de contrato de trabalho) é, pois, inconstitucional.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral - por violação das disposições conjugadas dos artigos 56.º, n.os 3 e 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição -, da norma do artigo 30.º, n.os 1 e 2, dos Estatutos da Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei 322/91, de 26 de Agosto, mas tão-só na parte em que atribui à mesa da Misericórdia competência para fixar e rever, unilateralmente, as remunerações (normais e complementares) dos seus trabalhadores em regime de contrato individual de trabalho;
b) Não declarar a inconstitucionalidade das restantes normas objecto do pedido.
Lisboa, 8 de Março de 1994. - Messias Bento (relator) - José de Sousa e Brito - Armindo Ribeiro Mendes - Bravo Serra - Antero Alves Monteiro Dinis - Fernando Alves Correia - António Vitorino - Alberto Tavares da Costa - Guilherme da Fonseca - Vítor Nunes de Almeida - Luís Nunes de Almeida.