Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 535/2014, de 27 de Novembro

Partilhar:

Sumário

Julga inconstitucionais as normas constantes dos artigos 5.º, n.º 8, da Lei n.º 19/2003, de 20 de junho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º 55/2010, de 24 de dezembro, e do artigo 3.º, n.º 4, da Lei n.º 55/2010, de 24 de dezembro, na numeração que lhe foi atribuída pela Lei n.º 1/2013, de 3 de janeiro (financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais)

Texto do documento

Acórdão 535/2014

Processo 32614

Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional

Relatório

Nos autos de aplicação de multa da Secção Regional da Madeira do Tribunal de Contas instaurados contra Jaime Ernesto Nunes Vieira Ramos, nos termos do artigo 66.º, n.º 1, c), da Lei 98/97, de 26 de Agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas), foi proferida sentença em 12 de fevereiro de 2014, condenando o demandado pela prática de uma infração dolosa, com fundamento no disposto nos artigos 202.º, n.º 3, da Constituição, e 10.º e 66.º, n.º 1, c) e d), da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, na multa de (euro). 3.360,00.

O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, pedindo a fiscalização da constitucionalidade da norma vertida no artigo 5.º, n.º 8, da Lei 19/2003, na redação que lhe veio dar a Lei 55/2010, de 24 de dezembro (concretamente na versão interpretativa retroativa, consagrada no respetivo artigo 3.º, n.º 4).

Foram apresentadas alegações pelo Recorrente, com as seguintes conclusões:

"O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta sentença de fls. 62 a 109, proferida pelo Tribunal de Contas - Secção Regional da Madeira, nos termos resultantes "dos arts. 70.º n.º 1 al.º a) e 71.º n.º 1 ambos" da Lei 28/82 de 15 de setembro.

Este recurso tem por objeto a "mui douta sentença do Tribunal proferida no processo autónomo de multa supra referenciado, da qual resulta que foi desaplicada a norma vertida no artigo 5.º n.º 8 da Lei 19/2003, na redação que lhe veio dar a Lei 55/2010 de 24/12 (concretamente na versão interpretativa retroativa consagrada no respetivo artigo 3.º n.º 4) [...]".

O fundamento invocado é o de ter sido aquela norma "[...] julgada inconstitucional por ofensa: ao princípio do juiz natural ínsito no artigo 32.º n.º 9 da Constituição que dispõe que «[n]enhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior» [...];ao disposto no artigo 214.º n.º 1 da Constituição da República na medida em que firma a subtração da competência material jurisdicional do Tribunal de Contas para fiscalizar a aplicação dos dinheiros públicos) [...]".

O n.º 8, do artigo 5.º da Lei 19/2003, de 20 de junho, na redação dada pelo artigo 1.º da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, veio atribuir, ao Tribunal Constitucional, a competência para a fiscalização respeitante "às subvenções públicas auferidas por grupos parlamentares ou deputado único representante de um partido e aos deputados não inscritos em grupo parlamentar ou aos deputados independentes na Assembleia da República e nas assembleias legislativas das regiões autónomas, ou por seu intermédio, para a atividade política e partidária em que participem".

Por sua vez, o n.º 4, do artigo 3.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, decreta que aquela disposição tem natureza interpretativa.

Em ambos os casos estamos perante normas legais sediadas num diploma legislativo não dotado de valor reforçado, que regulam, por um lado, a competência do Tribunal Constitucional, e determinam, por outro, a natureza da norma de competência e o seu regime de aplicação no tempo.

Ora, de acordo com o conjugadamente disposto nos artigos 166.º, n.º 2, e 164.º, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, os atos reguladores das matérias de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, designadamente quanto à competência, para além de se integrarem na reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, devem, ainda, revestir a forma de Lei Orgânica.

Acontece que, conforme resulta da mera consulta da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, esta não reveste a forma de Lei Orgânica dispondo, assim, sobre matéria que só por meio desta espécie de lei de valor reforçado pode ser regulada.

Em face do exposto, as normas legais corporizadas no n.º 8, do artigo 5.º da Lei 19/2003, de 20 de junho, na redação dada pelo artigo 1.º da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, ao regerem sobre matéria da competência do Tribunal Constitucional; bem como a norma contida no n.º 4, do artigo 3.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, ao, indiretamente, dispor sobre a sua aplicação no tempo, violam a imposição constitucional resultante do disposto, conjugadamente, nos artigos 166.º, n.º 2; e 164.º, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, encontrando-se, assim, feridas de inconstitucionalidade formal.

Para a eventualidade de, assim, se não entender, dir-se-á que a norma contida no n.º 8, do artigo 5.º da Lei 19/2003, de 20 de junho, na redação dada pelo artigo 1.º da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, aplicável retroactivamente nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 3.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, na redação atribuída pela Lei 1/2013, de 3 de janeiro, não viola materialmente o plasmado no n.º 9, do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que esta norma constitucional respeita às garantias do processo criminal, matéria à qual é estranha a interpretação normativa cuja constitucionalidade é questionada.

Todavia, tal interpretação normativa, ao ter sido configurada pelo legislador da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, como retroactivamente - ou no mínimo retrospectivamente - modificadora da competência para a fiscalização das contas dos grupos parlamentares/representações parlamentares, é suscetível de violar o princípio da segurança jurídica ínsito no princípio do Estado de direito democrático.

Por fim, no que concerne à suposta violação do disposto no n.º 1 do artigo 214.º da Constituição da República Portuguesa, imputada à norma constante do n.º 8, do artigo 5.º da Lei 19/2003, de 20 de junho, na redação que lhe foi dada pelo artigo 1.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, não se nos afigura que ocorra qualquer lesão material da disposição constitucional invocada, uma vez que do texto do referido artigo 214.º não resulta, diretamente, a atribuição de competência ao Tribunal de Contas para fiscalizar todas as aplicações de dinheiros públicos - com exceção das aludidas nas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 214.º -, não constituindo a não atribuição, em situações concretamente identificadas, dessa competência, por parte do legislador ordinário, qualquer violação de princípios ou regras constitucionais.

Em face do exposto, deverão ser julgadas formalmente inconstitucionais as normas jurídicas contidas no artigo 5.º, n.º 8, da Lei 19/2003, na redação que lhe foi dada pelo artigo 1.º da Lei 55/2010 de 24/12; bem como a norma jurídica resultante da conjugação destas com a plasmada no n.º 4, do artigo 3.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, na redação atribuída pela Lei 1/2013, de 3 de janeiro, ou, caso assim se não entenda, julgar materialmente inconstitucional a aplicação retroativa - ou, no mínimo, retrospetiva - da norma ínsita no artigo 5.º, n.º 8, da Lei 19/2003, na redação que lhe foi dada pelo artigo 1.º da Lei 55/2010 de 24/12, por violação do princípio da segurança jurídica ínsito no princípio constitucional do Estado de direito democrático, plasmado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, negando, em consequência, provimento ao presente recurso.

Nos termos do acabado de explanar, deverá o Tribunal Constitucional julgar formalmente inconstitucionais, ou se assim se não entender, materialmente inconstitucionais, as normas sob escrutínio, negando provimento ao presente recurso, assim fazendo a costumada JUSTIÇA."

O Demandado apresentou contra-alegações, pronunciando-se pela não inconstitucionalidade das normas em causa.

Fundamentação

1 - Da delimitação do objeto do recurso

Os autos onde foi proferida decisão que recusou a aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade respeitam à aplicação de uma multa pela Secção Regional da Madeira do Tribunal de Contas, por falta de colaboração do Demandado, no âmbito da auditoria à utilização das subvenções parlamentares transferidas pela Assembleia Legislativa da Madeira no período entre 2008 a 2010.

O Demandado, na contestação apresentada, suscitou a questão prévia da incompetência do Tribunal de Contas para proceder à fiscalização da utilização das referidas subvenções naquele período, atribuindo essa competência ao Tribunal Constitucional.

A sentença recorrida, pronunciando-se sobre esta questão prévia, sustentou a competência do Tribunal de Contas, afastando a aplicação do disposto no n.º 8, do artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 1.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, por violação da reserva material de jurisdição do Tribunal de Contas, assim como o disposto no artigo 3.º, n.º 4, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, na numeração que lhe foi atribuída pela Lei 1/2013, de 3 de janeiro, por violação dos princípios do juiz natural e da segurança jurídica.

O artigo 5.º, n.º 8, da Lei 19/2003, de 20 de junho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 1.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, dispõe o seguinte:

"A fiscalização relativa às subvenções públicas auferidas por grupos parlamentares ou deputado único representante de um partido e aos deputados não inscritos em grupo parlamentar ou aos deputados independentes na Assembleia da República e nas assembleias legislativas das regiões autónomas, ou por seu intermédio, para a atividade política e partidária em que participem, cabe exclusivamente ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 23.º".

Já o artigo 3.º, n.º 4, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, na numeração que lhe foi atribuída pela Lei 1/2013, de 3 de janeiro, determina:

"O disposto no n.º 8 do artigo 5.º da Lei 19/2003, de 20 de junho, introduzido pela presente lei, tem natureza interpretativa."

Este último preceito, apesar de se tratar de uma disposição transitória, definidora da natureza da norma contida no n.º 8, do artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, para efeitos da sua aplicação no tempo, tem autonomia normativa, pelo que estamos perante uma recusa aplicativa de duas dimensões normativas conexas, mas distintas.

Assim, apesar da fórmula aparentemente unitária utilizada pelo Recorrente no requerimento de interposição de recurso, deve considerar-se que este tem por objeto a constitucionalidade das duas normas acima mencionadas.

Quanto à metodologia a seguir pelo Tribunal na apreciação deste recurso, uma vez que um eventual juízo de inconstitucionalidade que possa vir a recair sobre a norma constante do artigo 5.º, n.º 8, da Lei 19/2003, de 20 de junho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 1.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, atingirá consequencialmente a norma transitória constante do artigo 3.º, n.º 4, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, na numeração que lhe foi atribuída pela Lei 1/2013, de 3 de janeiro, uma vez que esta tem por objeto a qualificação da natureza daquela, deve o Tribunal iniciar a sua apreciação pela primeira das normas acima transcritas.

2 - Da constitucionalidade do artigo 5.º, n.º 8, da Lei 19/2003, de 20 de junho

2.1 - Apesar do disposto no n.º 8, do artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, ter sido introduzido pelo artigo 1.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, a sua origem é bem mais distante.

Na verdade, em 20 de novembro de 2008, deu entrada na Assembleia da República um Projeto-Lei que recebeu o n.º 606/X, apresentado conjuntamente pelo Partido Socialista e pelo Partido Social Democrata, que se propunha proceder a diversas alterações à lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais - a Lei 19/2003, de 20 de junho.

Pese embora este projeto, no seu texto inicial, não contemplar qualquer referência à competência aqui em análise, após a sua aprovação na generalidade, no decurso da sua discussão, na especialidade, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, foi apresentada uma proposta de aditamento de um n.º 8, ao artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, com uma redação muito semelhante à que mais tarde viria a ser introduzida pelo artigo 1.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro.

Essa proposta de alteração foi justificada nos seguintes termos:

"As leis orgânicas das assembleias legislativas dos Açores e da Madeira, preveem a atribuição de subvenções aos respetivos grupos parlamentares, para o seu funcionamento e ainda, por seu intermédio, para intervenção política, no âmbito regional, como órgãos partidários que são.

É conhecida a discussão doutrinária sobre a natureza jurídica dos grupos parlamentares, enquanto emanações dos partidos, por um lado, e parte integrante dos parlamentos, por outro.

Adiante-se que esta duplicidade, lhes empresta um caráter híbrido.

Ora, tal circunstância vem gerando dúvidas quanto à entidade competente para a fiscalização das verbas atribuídas aos grupos parlamentares para o seu funcionamento, ou, por seu intermédio, para a ação política em que se envolvem e de que não se dissociam enquanto órgãos partidários.

Ora, uma matéria com esta delicadeza, onde se pretende rigor, transparência e segurança, não pode estar sujeita a tal incerteza.

Acresce não ser desejável que, relativamente a dois órgãos superiores do Estado, como é o Tribunal Constitucional e o Tribunal de Contas, possam subsistir situações de conflitualidade ou de sobreposição, particularmente, em matéria de fiscalização de dinheiros públicos.

As dúvidas de interpretação da lei vigente, estão bem patentes, quer no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/2005, de 8 de julho (Diário da Assembleia da República, 2.ª série, de 19 de julho), e no Acórdão do mesmo Tribunal n.º 26/2009, de 20 de janeiro, e bem ainda no Parecer da Procuradoria-Geral da República, de 25 de setembro de 2008, emitido a pedido da assembleia legislativa da Madeira.

Curiosamente, e não é a primeira vez que tal acontece, a solução correta, correspondente àquilo que o legislador pretendeu e estatuiu, não foi a que fez vencimento.

É, pois, necessário fixar, nesta oportunidade, o sentido e alcance da lei vigente, por via de normas interpretativas que clarifiquem e permitam ultrapassar, com coerência, esta questão.

Trata-se, assim, de matéria em que, dada a natureza interpretativa das normas agora introduzidas, se quer deixar claro o que o legislador já tinha pretendido através da lei vigente, de modo a que não haja qualquer conflito ou sobreposição, institucionalmente indesejável, relativamente ao Tribunal de Contas e ao Tribunal Constitucional, quer no respeitante a situações anteriores, ou seja, ao passado, quer no que se refere a situações atuais, ou seja, ao presente, quer, obviamente, em relação ao futuro.

Aliás, não há razões para que os grupos parlamentares das assembleias legislativas tenham, a este propósito e nesta matéria, trato diferente do dado aos grupos parlamentares da Assembleia da República."

Esta alteração veio a ser aprovada na referida Comissão Parlamentar e incluída no texto que foi aprovado em Plenário, dando origem ao Decreto 285/X, o qual, remetido ao Presidente da República para promulgação, foi objeto de veto, por razões estranhas àquela concreta alteração, tendo esta iniciativa legislativa caducado em 14 de outubro de 2009.

Só em 17 de junho de 2010 o Partido Comunista Português, através da apresentação do Projeto de Lei 317/XI, viria a retomar uma proposta de alteração da lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, que contemplava o aditamento de um número, ao seu artigo 5.º, determinando a competência do Tribunal Constitucional para proceder à fiscalização relativa às subvenções públicas auferidas por grupos parlamentares para desenvolverem atividade política e partidária.

Foi este Projeto que, conjuntamente com o Projeto-Lei 299/XI, apresentado pelo Bloco de Esquerda, estiveram na origem da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, que aditou um n.º 8, ao artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, com a seguinte redação:

"A fiscalização relativa às subvenções públicas auferidas por grupos parlamentares ou deputado único representante de um partido e aos deputados não inscritos em grupo parlamentar ou aos deputados independentes na Assembleia da República e nas assembleias legislativas das regiões autónomas, ou por seu intermédio, para a atividade política e partidária em que participem, cabe exclusivamente ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 23.º".

A decisão recorrida recusou a aplicação deste preceito, alegando que o mesmo violava a reserva material de jurisdição do Tribunal de Contas, resultante do disposto no artigo 214.º da Constituição.

Contudo, o Recorrente, que nas alegações apresentadas se pronunciou pela improcedência do recurso obrigatório, arguiu também a existência de uma inconstitucionalidade formal, invocando que o ato legislativo onde se insere este preceito não revestiu a forma de Lei Orgânica, exigida pelo artigo 166.º, n.º 2, da Constituição.

Não estando o Tribunal limitado, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, aos parâmetros invocados pela decisão que recusou a aplicação da norma que é objeto do recurso, começaremos por verificar a existência do vício formal alegado pelo Recorrente.

2.2 - Nos termos do n.º 2, do artigo 166.º, da Constituição, "revestem a forma de Lei Orgânica os atos previstos nas alíneas a) a f)..., do artigo 164.º...".

E a alínea c), do artigo 164.º, da Constituição, inclui nas matérias da exclusiva competência da Assembleia da República a aprovação da legislação sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, o que inclui necessariamente a definição das suas competências, para além daquelas que já lhe estão constitucionalmente cometidas, conforme admite o n.º 3, do artigo 223.º, da Constituição (neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em "Constituição da República Portuguesa anotada", vol. II, pág. 312, 4.ª ed., Coimbra Editora, Jorge Miranda, em "Constituição Portuguesa anotada", tomo II, pág. 520, ed. 2006, Coimbra Editora, e o acórdão 59/95, do Tribunal Constitucional, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).Na verdade, a tarefa de regular o processo inclui, por imperativo lógico, a definição das competências. Como se disse no aresto acima citado, "...sendo o processo um meio necessário para o exercício de competência é ilógico comandar o fim, atribuindo a competência, se não existirem os meios, isto é, o processo, assim como é ilógico atribuir o poder para criar competência sem atribuir o poder para criar o meio processual que torna possível o exercício da competência. Seria impor deveres que não podem ser cumpridos e conferir poderes que não podem ser realizados. Seria, em suma, vontade legislativa que não pretende eficácia".

As leis orgânicas, introduzidas pela revisão constitucional de 1989, são leis a que a Constituição atribui um valor reforçado (artigo 112.º, n.º 3) que, por incidirem sobre matérias particularmente sensíveis, estão sujeitas a um procedimento qualificado e a um regime alargado de fiscalização preventiva.

Assim, a sua aprovação exige, na votação final global, uma maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções (artigo 168.º, n.º 5, da Constituição), a sua fiscalização preventiva pode também ser requerida pelo Primeiro-Ministro ou por um 1/5 dos Deputados da Assembleia da República em efetividade de funções (artigo 278.º, n.º 4, da Constituição) e o veto político do Presidente da República só é superável por uma maioria de 2/3 dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções (artigo 136.º, n.º 3, da Constituição).

Além disso, as leis orgânicas que versem o tema da organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, incluindo, portanto, as que definem as competências deste órgão, devem ainda ser obrigatoriamente votadas na especialidade pelo Plenário (artigo 168.º, n.º 4, da Constituição). Pode, pois, dizer-se que elas são não apenas reserva de parlamento, mas, mais do que isso reserva de plenário(Gomes Canotilho, em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pág. 752, 7.ª ed., Almedina).

Esta reserva de órgão e também de ato, assume a configuração de uma reserva total, na medida em que a respetiva legislação deve ser esgotante do tema em questão, não deixando um qualquer espaço de conformação a outros intervenientes ou a outro tipo de atos legislativos.

Como escreve Blanco de Morais:

"No que respeita às leis orgânicas, a expressão absorve toda a complexidade inerente ao regime jurídico de uma disciplina normativa, simultaneamente envolvida por uma reserva de órgão, e por outra de ato.

Assim, a primeira muralha da reserva "cerrada" ou "clausurada" da Lei Orgânica é representada, num plano exterior à sua natureza reforçada tomada em sentido próprio, pela reserva absoluta de competência da Assembleia da República, a qual se perfila como um "defeso" contra adversários normativos externos e que, como tal, passa a ser primariamente chamada à colação quando se registem colisões normativas interorgânicas.

A segunda e mais relevante muralha defensiva da reserva orgânica, como vedação cerrada é composta pela reserva procedimental de ato, a qual, contrariamente à anterior foi concebida precisamente no plano intrínseco do estatuto reforçado da norma, para enfrentar um potencial "adversário normativo interno", composto pelas restantes leis editadas pela Assembleia da República"(In "As Leis Reforçadas", pág. 701-702, ed. de 1998, Coimbra Editora).

Pretendeu-se com estas exigências procedimentais, na matéria aqui em questão, alcançar um consenso alargado na definição das matérias relativas à organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, atento o papel decisivo que elas desempenham na eficácia das normas constitucionais.

2.3 - Se é inegável que a Lei 55/2010, de 24 de dezembro, não assumiu a forma de Lei Orgânica, estando também desde logo ausente o cumprimento do requisito imposto pelo artigo 168.º, n.º 4, da Constituição, resta saber se a norma subiudicio, dada a sua natureza e a matéria versada, exigia a sua emissão sob tal formalismo e respeito pelo respetivo procedimento.

O n.º 8, do artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, aditado pelo artigo 1.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, determinou que é da competência exclusiva do Tribunal Constitucional a fiscalização das subvenções públicas auferidas por grupos parlamentares ou deputado único representante de um partido e aos deputados não inscritos em grupo parlamentar ou aos deputados independentes na Assembleia da República e nas assembleias legislativas das regiões autónomas, ou por seu intermédio, para a atividade política e partidária em que participem.

E o artigo 3.º, n.º 4, do mesmo diploma, na numeração que lhe foi atribuída pela Lei 1/2013, de 3 de janeiro, conferiu natureza interpretativa àquele preceito.

Estamos, pois, perante uma norma interpretativa por determinação do legislador, a qual, numa dimensão voluntarista, encerra uma interpretação que se pretendeu autêntica de norma anteriormente editada, e que, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, se integra na lei interpretada.

No entendimento do legislador, expresso no referido artigo 3.º, n.º 4, a atribuição da competência contida no novo n.º 8, do artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, não correspondeu à consagração de uma nova competência do Tribunal Constitucional, não tendo um cariz inovador, mas apenas pretendeu fixar o sentido de uma norma anterior, resolvendo uma polémica interpretativa quanto ao âmbito de uma competência já anteriormente atribuída a este Tribunal.

Para determinar a necessidade desta norma constar de Lei Orgânica importa relembrar a evolução legislativa em tema de regime relativo ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais e as pronúncias do Tribunal Constitucional nesta matéria.

2.4 - A primeira vez que o legislador procedeu autonomamente à definição de um regime geral relativo ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, bem como do dever de prestação das respetivas contas, sucedeu com a aprovação da Lei 72/93, de 30 de novembro. Antes da publicação de legislação específica sobre o financiamento partidário, as subvenções atribuídas aos partidos e aos grupos parlamentares eram previstas nas leis que regulavam a orgânica da Assembleia da República (Lei 32/77, de 25 de maio; Lei 5/83, de 27 de julho; Lei 77/88, de 1 de julho; Lei 59/93, de 17 de agosto).

Mantendo o que já dispunha a Lei 77/88, de 1 de julho, regista-se que o legislador previu, a par com as modalidades de financiamento privado admitidas, o "financiamento público [dos partidos] para a realização dos seus fins próprios" (artigo 6.º), tendo estabelecido, no mesmo preceito, que esses recursos eram "as subvenções para financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais previstas na presente lei" e "a subvenção atribuída pelo Parlamento Europeu, nos termos das normas comunitárias aplicáveis".

No artigo 7.º, e sob a epígrafe "Subvenção estatal ao financiamento dos partidos", o legislador previu, no n.º 1, a concessão a "cada partido que haja concorrido a ato eleitoral, ainda que em coligação, e que obtenha representação na Assembleia da República, [de] uma subvenção anual, desde que a requeira ao Presidente da Assembleia da República", definindo no n.º 2 do mesmo artigo, o critério legal de determinação do montante da subvenção e, nos números seguintes, o critério de distribuição em caso de coligação eleitoral e a forma de pagamento em duodécimos.

E nos artigos 13.º e 14.º estabeleceu-se desde logo a competência do Tribunal Constitucional para se pronunciar sobre a regularidade e a legalidade das contas anuais dos partidos, emitindo um parecer, a publicar no Diário da República, e para aplicar as respetivas coimas e sanções acessórias. Já quanto ao financiamento das campanhas eleitorais, era à Comissão Nacional de Eleições que competia apreciar a legalidade e a regularidade das contas (artigo 21.º), sendo o respetivo Presidente competente para a aplicação das coimas, com recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 26.º).

Contudo, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão 228/95 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt) decidiu sobrestar na tomada de qualquer decisão sobre a apreciação de contas relativas ao ano de 1994 dos partidos políticos, visto que a Lei 72/93, de 30 de novembro, não só não revestia a forma de Lei Orgânica, como não definia nem regulava o processo a observar pelo Tribunal na apreciação das contas dos partidos políticos, pelo que determinou que os autos ficassem a aguardar a conclusão do processo legislativo relativo à aprovação da necessária Lei Orgânica.

2.5 - Aproveitando a discussão na Assembleia da República de um Projeto lei (n.º 354/VI) em que se propunha uma alteração pontual da Lei 28/82, de 15 de novembro, visando a possibilidade de conferir urgência a alguns processos de fiscalização da constitucionalidade, introduziu-se no artigo 9.º, daquela lei, uma alínea e), que passou a atribuir competência ao Tribunal Constitucional para apreciar a regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e a aplicação das correspondentes sanções. A atribuição da competência para fiscalizar as contas dos partidos políticos foi, pois, efetuada pela Lei 88/95, de 1 de setembro, a qual, foi aprovada "nos termos dos artigos 167.º, c), e 169.º, n.º 2, da Constituição" - preceitos que previam a forma de Lei Orgânica -, remetendo o legislador para "os termos da lei", o modo de exercício desta competência.

A previsão da competência do Tribunal Constitucional para apreciar a regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e a aplicação das correspondentes sanções passou, assim, a constar da Lei 28/82, de 15 de novembro, que dispunha sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, enquanto os termos em que se deveria proceder ao exercício dessa nova competência estariam incluídos nos diplomas que definiam o regime de financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

Satisfazendo outro dos requisitos exigidos pelo Tribunal Constitucional no Acórdão 228/95 para proceder à apreciação das contas dos partidos políticos, a Lei 27/95, de 18 de agosto, introduziu alterações ao artigo 13.º da Lei 72/93, de 30 de novembro, dispondo sobre os termos como o Tribunal Constitucional deveria proceder a essa apreciação.

2.6 - A Lei 72/93, de 30 de novembro, viria a ser revogada pela Lei 56/98, de 18 de agosto. Neste diploma, continuou a contemplar-se entre as "fontes de financiamento da atividade dos partidos" as subvenções públicas (artigo 2.º). E explicitando a sua natureza, o artigo 6.º estabeleceu na sua alínea a) que estas são "as subvenções para financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais previstas na presente lei" e na alínea b) "outras legalmente previstas". Mantendo nos seus n.os1 a 4 o regime da subvenção estatal ao financiamento dos partidos que vinha da anterior lei, o artigo 7.º passou, porém, a prever, no seu n.º 5, que a "subvenção prevista nos números anteriores é também concedida aos partidos que, tendo concorrido à eleição para a Assembleia da República e não tendo conseguido representação parlamentar, obtenham um número de votos superior a 50 000".

Nos artigos 13.º e 14.º continuou a prever-se o modo como se operava a pronúncia do Tribunal Constitucional sobre a regularidade e a legalidade das contas anuais e aplicação das respetivas coimas. Já a apreciação das contas das campanhas eleitorais manteve-se a cargo da Comissão Nacional de Eleições, com recurso para o Tribunal Constitucional (artigos 23.º e 28.º).

As alterações a esta lei, introduzidas pela Lei 23/2000, de 23 de agosto, e pela Lei Orgânica 1/2001, de 14 de Agosto, não introduziram alterações relevantes nestes pontos.

2.7 - A matéria do "financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais" veio a ser objeto de nova regulação pela Lei 19/2003, de 20 de junho.

Este diploma, no que concerne às fontes de financiamento público, manteve, no essencial, o regime que já vinha das leis anteriores, procedendo a uma melhor caracterização das receitas próprias dos partidos políticos (artigos 3.º e 8.º); a uma mais precisa regulação da subvenção pública para as campanhas eleitorais, nestas se incluindo as eleições para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu, para as Assembleias Legislativas Regionais e para as autarquias locais; na fixação de limites de despesas de campanha eleitoral e na previsão de responsabilidade dos mandatários financeiros pela elaboração e apresentação das contas de campanha (artigos 15.º a 22.º); e numa maior densificação do regime de prestação e de julgamento das contas dos partidos e das campanhas eleitorais (artigos 12.º a 14.º), tendo para este efeito criado a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos com a função de coadjuvar o Tribunal Constitucional, na sua apreciação e fiscalização (artigos 23.º e seguintes), vindo a organização e funcionamento desta Entidade a ser desenvolvida na Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro.

A intervenção do Tribunal Constitucional para apreciar numa primeira e única instância as contas dos partidos políticos passou a abranger também as contas das campanhas eleitorais, cessando a intervenção da Comissão Nacional de Eleições nesta matéria (artigos 23.º, 26.º e 27.º), sendo também da sua competência a aplicação das respetivas coimas (artigo 33.º). A previsão legal destas competências foi reafirmada e complementada pelas disposições da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro (com entrada em vigor prevista para a mesma data em que entrou em vigor a referida Lei 19/2003, ou seja, 1 de janeiro de 2005), diploma que veio regular a organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos - entidade criada pela Lei 19/2003, de 20 de junho, caracterizada como um órgão independente, que funciona junto do Tribunal Constitucional e que tem como atribuição coadjuvá-lo tecnicamente na apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e das campanhas. A Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro, dispôs sobre as competências do Tribunal para decidir sobre a obrigação legal de apresentação de contas dos partidos e das campanhas (artigos 29.º e 40.º), para decidir sobre a prestação de contas dos partidos e das campanhas (artigos 32.º e 43.º) e para decidir do sancionamento dos partidos e das candidaturas (artigos 34.º e 45.º), prevendo-se ainda outras competências do Tribunal, como a de apreciar recursos de certos atos da Entidade (artigos 23.º e 46.º, n.º 3).

Como constou do Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República, sobre o Projeto Lei 503/IX, que esteve na origem da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro, pretendeu-se "absorver no presente diploma a regulamentação que integra a Lei 19/2003 quanto à organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, acautelando a sua aprovação com Lei Orgânica ao abrigo do disposto nos artigos 164.º, alíneas c) e h), e 166.º, n.º 2, da Constituição".

2.8 - Entretanto o Tribunal Constitucional foi chamado a apreciar um pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade de normas constantes de um decreto legislativo regional que visava alterar as regras relativas às subvenções atribuídas aos grupos parlamentares da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, sendo invocado, além do mais, que integrando essas subvenções o conceito de financiamento dos partidos políticos, a respetiva legislação constitui matéria que cabe na reserva absoluta da Assembleia da República.

O Tribunal, no seu Acórdão 376/2005 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), concluiu pela constitucionalidade das normas impugnadas, com fundamento em que, não tendo as subvenções, cuja concessão os preceitos impugnados previam, a natureza de financiamentos diretos ou mediatos aos partidos representados na Assembleia Regional, era de concluir, que as normas sindicadas não integravam o regime de financiamento dos partidos políticos para os efeitos dos artigos 164.º, alínea h), e 51.º, n.º 6, da Constituição, mesmo que entendidos de forma conjugada.

Subjacente a esta decisão esteve o pensamento de que tais subvenções, tendo em vista a sua finalidade, têm um diferente fundamento material das que se inserem num quadro geral de financiamento da vida dos partidos, pelo que não se lhes aplicam necessariamente as mesmas exigências constitucionais que incidem sobre os financiamentos partidários, em sentido estrito.

Nesse sentido escreveu-se nesse acórdão:

"...Mesmo que se entenda, a propósito da desvelação da natureza jurídica dos grupos parlamentares, que estes podem ser vistos como "órgãos dos partidos políticos" (cf. Pietro Rescigno, «L'attivitàdidirittoprivato dei Gruppiparlamentari», in GiurisprudenzaCostituzionale, 1961, pp. 295 e ss.), e que se assuma a existência de um "nexo jurídico entre o grupo parlamentar-órgão do partido e o grupo parlamentar-órgão do Estado" [cf. Biscaretti di Ruffia, «I partitipoliticinell'ordinamentocostituzionale», in Il Politico, 1950, p. 16, referido por José Luis García Guerrero, Democracia representativa de partidos y grupos parlamentarios, cit, p. 253; e, entre nós, Jorge Miranda, «Grupo parlamentar», in Aa. Vv., Polis, Lisboa, pp. 136-137, que depois de afirmar que são órgãos dos partidos "por mediatizarem a participação destes na Assembleia", reconhece que eles se assumem como "sujeitos da ação parlamentar [...] elementos que dinamizam a competência da Assembleia"], sempre se deverá reconhecer que dessa "visão de Janus", desse nexo, já decorre uma diferenciada atuação funcional que implica, no plano do financiamento público, para além da afetação dos meios indispensáveis à prossecução da generalidade das atividades partidárias, que, também por essa via, se permita o desenvolvimento da especifica - formal, material e juridicamente distinta - atuação parlamentar.

Anote-se, de resto, que a generalidade da doutrina que reconhece aos grupos parlamentares a natureza de órgãos dos partidos políticos não deixa de mitigar essa posição, compatibilizando tal natureza com as funções específicas exercidas pelos grupos, reconhecendo-lhes, de um lado, no seio das assembleias legislativas, a natureza de órgãos destas que intervêm com "uma atividade própria no procedimento de formação do ato estatal" e que "esgotam a sua atividade na esfera jurídica do ente" que integram, e, do outro, igualmente, a natureza de "órgão externo" que, assumindo a sua "plena autonomia", "tem competência para formar ou manifestar a vontade de um ente ou, em geral, de estabelecer relações jurídicas com outros sujeitos", acabando por concluir que "não existem problemas dogmáticos para configurar o grupo parlamentar típico como órgão externo do partido e interno do Parlamento" (cf., neste sentido, cf. Costantino Mortati, Istituzionididirittopubblico, Pádua, 1976, p. 880, onde escreve: "os grupos parlamentares são parte da organização interna dos partidos de quem são expressão, ainda que, ao mesmo tempo, sejam considerados órgãos internos das Assembleias, com uma função que é preparatória das decisões que correspondem propriamente àquelas; assumindo assim uma duplicidade de competências e de responsabilidades face às entidades de que são parte [integrante]"; e José Luis García Guerrero, Democracia representativa de partidos y grupos parlamentarios, cit., pp. 252 e ss., depois de acolher a distinção entre "órgão interno" e "órgão externo").

E tal asserção não deixa de ser potenciada no domínio de uma conceção que, concretizando a ideia de que "os grupos não são meros elementos facultativos e acessórios dos parlamentos, mas sim centrais e determinantes de toda a atividade aí desenvolvida" (cf. Alejandro Saiz Arnaiz, Los grupos parlamentarios, cit., pp. 293-294), perspetive os grupos parlamentares como órgãos das assembleias legislativas (cf., com mais indicações, Alejandro Saiz Arnaiz, Los grupos parlamentarios, cit., pp. 293, n. 7, 29 30 e 35; Yves Guchet, Droitparlementaire, Paris, 1996, p. 37 e Wolfgang Demmler, Der AbgeordneteimParlament der Fraktionen, 1994, pp. 197 e ss.).

...

Mesmo que se afirme existir algum nexo de dependência política dos grupos e representações parlamentares em face dos partidos, nexo este que pode até ser visto na circunstância de alguns dos estatutos dos partidos os poderem ter como seus órgãos estatutários, é indefetível reconhecer-lhes, sempre, uma autonomia funcional no seio da instituição parlamentar assente em poderes parlamentares próprios, funcionalmente preordenados à realização das tarefas de natureza parlamentar.

2.3 - Ora, esta autonomia funcional - ou, pelo menos, a particular relevância que os grupos parlamentares assumem enquanto elementos constitutivos da vida parlamentar - tem manifestos reflexos ao nível da compreensão das subvenções outorgadas para a prossecução e cumprimento das tarefas parlamentares, enquanto conditio sine qua non da realização da função parlamentar - e, bem assim, da efetivaatuação do complexo orgânico de soberania legislativa do Estado -, havendo que reconhecer as necessárias diferenciações de qualidade perante o problema do financiamento da atividade partidária realizada sem aquela conexão orgânica fundamental.

Tal constatação torna-se, de resto, bem patente ao nível da discussão global sobre o(s) financiamento(s) dos partidos porquanto, independentemente do modelo que aí seja adotado - com o "fiel da balança" a pender para o financiamento público ou para o financiamento privado, com os fundamentos e as consequências aí inerentes (cf. Hans Peter Schneider, Democracia y constitución, Madrid, 1991, pp. 273 e ss.) -, as subvenções "de âmbito parlamentar" são, em todo o caso, reconhecidas como instrumentos de atuação no seio das assembleias legislativas.

Nesta medida, como condição operacional que caberá aos parlamentos efetivar no âmbito do seu complexo de autonomia organizacional, essa matéria presta-se a ser menos sensível às tensões político-jurídicas latentes no debate comummente traçado em torno do financiamento da atividade partidária tout court (cf. Martin Morlok, «Finanziamentodella politica e corruzione: il caso Tedesco», in Quadernicostituzionali, 1999, fasc. 2, p. 263).

...

2.4 - Daí resulta que as subvenções conexionadas com a vida do parlamento, contendendo, na sua essência, com "as condições formais e materiais de exercício" dessa atividade e por respeitarem a um domínio de natureza orgânico-funcional, têm um diferente fundamento material das que se inserem num quadro geral de financiamento da vida dos partidos. Se estas podem ser outorgadas independentemente da representação parlamentar dos partidos, sendo causadas pelo especial papel político que estes desempenham enquanto elementos vitais do pluralismo democrático, já aquelas, sendo causadas pelo desempenho da função parlamentar, «respondem seguramente também a exigências "internas" da instituição parlamentar, conexionadas com a sua funcionalidade, com particular referência à tentativa de conciliar, por um lado, a quantidade de produção normativa com a qualidade da mesma e de, por outro lado, tornar mais eficaz o processo de decisão política [e com acrescida validade democrática]» (a expressão é de Giancarlo Rolla, «Riforma dei regolamentiparlamentari ed evoluzionedella forma di governo in Italia», in Rivistatrimestraledidirittopubblico, 2000, fasc. 3, p. 603; são "fundos que são utilizados pelas Câmaras para o seu próprio funcionamento" - pode ler-se num texto dos Servicios Jurídicos de la Secretaría Generaldel Congresso, mencionado por Alejandro Saiz Arnaiz, Los grupos parlamentarios, cit., pp. 183-184).

...

Nesta linha de pensamento, não pode desconsiderar-se o facto de o regime aplicável ao financiamento dos partidos políticos qua tale assumir como fundamento subvencional do financiamento público a realização dos seus fins próprios independentemente da afetação de recursos relativos à prossecução de uma atividade parlamentar.

Na verdade, ainda que a representatividade na Assembleia da República seja assumida como critério do montante subvencional a atribuir pelo Estado, é manifesto que a ratio, subjacente a tal financiamento, não tem a natureza instrumental da subvenção que é concedida para realização de fins estritamente parlamentares e que a estes está funcionalmente condicionada.

Tal especificidade não deixou de ser assumida pelo legislador ordinário que, na Lei 19/2003, de 20 de junho, prevê que a subvenção pública para financiamento dos partidos políticos seja concedida, também, aos que "tendo concorrido à eleição para a Assembleia da República e não tendo conseguido representação parlamentar, obtenham um número de votos superior a 50 000, desde que a requeiram ao Presidente da Assembleia da República".

No fundo, trata-se, aqui, de acolher a particular relevância político-jurídica dos partidos ao nível da "representação política global da coletividade", como veículos de "formação e expressão da vontade popular", "projetada para o povo como elemento do Estado-coletividade" (cf. Marcelo Rebelo de Sousa, Os partidos políticos no direito constitucional português, cit. pp. 444 e ss.).

Contudo, é igualmente inegável que o sistema constitucional reserva aos partidos políticos um importante papel ao nível da "participação no funcionamento do sistema de governo constitucionalmente instituído" - aí se integrando a "que se efetua através dos órgãos de soberania, a que se exerce noutros órgãos do Estado e ainda a que respeita aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas" (cf. Marcelo Rebelo de Sousa, Os partidos políticos no direito constitucional português, cit., p. 446). E, nessa participação, vai assumido um conjunto de "diferenças sensíveis" que demarcam a atuação dos partidos solusipse da que é institucionalmente enquadrada como dimensão componente - e constitutiva - do funcionamento dos próprios órgãos do Estado.

Por outro lado, acentuando agora a especificidade da representação de cariz parlamentar, não deixa de resultar dos pertinentes dados constitucionais que a intervenção dos partidos, nesta sede, é, em boa medida, mediatizada pelos grupos parlamentares que assim se configuram como específicos sujeitos da atividade, organização e funcionamento do órgão parlamentar - como se entendeu no já referido Acórdão 63/91. E dessa estruturação da orgânica - e da dinâmica - parlamentar (por alguns entendida como uma "estruturação grupocrática" - cf. José Luis García Guerrero, Democracia representativa de partidos y grupos parlamentarios, cit., p. 411), mesmo reconhecendo-se que os grupos parlamentares são "uma [ideo]lógica emanação dos partidos" (cf. a Sentencia n.º 36/90 do Tribunal Constitucional espanhol, onde, apesar disso, se reconhece ser "indubitável a relativa dissociação conceptual" e a "independência de vontades presente em ambos") e um interface na realização do fim supra referido, decorrerá, também entre nós, uma forçosa ponderação diferenciadora entre as condições de funcionamento dos partidos - a que concernem as subvenções outorgadas no seio do artigo 5.º da Lei 19/2003 - e as condições de funcionamento dos órgãos de natureza parlamentar, norteadas pelo quidspecificum de estarem instrumentalizadas, vinculadas e predispostas ao funcionamento desse complexo orgânico.

E, assim, enquanto as primeiras são compreendidas no âmbito de uma escolha-opção legiferante na composição de um modelo de financiamento da atividade partidária, as segundas não podem deixar de ser reclamadas pela própria natureza das coisas, não só em função do exercício da função parlamentar, mas igualmente atendendo às exigências materiais que aí vão assumidas e que são vistas como condição de dignidade desse exercício e dos seus resultados.

...

2.6 - É, neste contexto, que devem ser compreendidas as subvenções previstas no diploma em crise.

...

São...subvenções dirigidas ao financiamento da atividade parlamentar, porquanto se traduzem na mobilização de recursos que, por natureza, no seio da organização e funcionamento dos serviços da Assembleia, devem ser tidos como conditio sine qua non da atuação parlamentar, aqui encontrando a sua causa e aqui esgotando os seus efeitos."

Posteriormente, o Tribunal Constitucional, chamado a apreciar preventivamente nova alteração, proveniente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, aos preceitos que regulavam a atribuição das referidas subvenções, considerou, no Acórdão 26/2009 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), que estas concretas alterações modificavam deliberadamente a natureza daquelas subvenções, as quais deviam agora ser encaradas como um verdadeiro financiamento público partidário e, portanto, sujeitas às respetivas exigências constitucionais, tendo, por essa razão, julgado inconstitucionais as normas sob apreciação, por violação de reserva de lei estadual.

Com fundamento nestas posições jurisprudenciais, o Tribunal Constitucional, que até aí não tinha sancionado a inclusão das subvenções atribuídas aos grupos parlamentares na rubrica das receitas, nas contas anuais apresentadas pelos Partidos Políticos, passou a considerar essa inclusão uma irregularidade sancionável com a aplicação de uma coima.

Assim o fez nos Acórdãos n.º 515/2009, respeitante às contas de 2006, 428/2010, respeitante às contas de 2007, 394/2011, respeitante às contas de 2008, e 314/2014, respeitante às contas de 2009, onde entendeu que "no caso de subvenções atribuídas aos grupos parlamentares, não estão em causa financiamentos aos partidos qua tale, isto é, financiamentos afetos à realização dos seus fins próprios, mas sim subvenções geneticamente fundadas no exercício da atividade parlamentar, de onde resulta não só a sua justificação constituinte mas também o limite material último à respetiva disposição por parte de partidos e grupos parlamentares beneficiários, o que implica, necessariamente, a inadmissibilidade da sua direta integração, como receita dos partidos, nas contas anuais destes".

2.9 - Se as alterações à Lei 19/2003, de 20 de junho, efetuadas pelo artigo 31.º do Decreto-Lei 287/2003, de 12 de novembro, e pelo artigo 152.º da Lei 164-A/2008, de 31 de dezembro, não assumem na presente discussão qualquer relevância, o mesmo não sucede com as modificações operadas pela Lei 55/2010, de 24 de dezembro.

Se até à aprovação deste diploma, a Lei 19/2003, de 20 de junho, tal como todas as leis que a antecederam na definição do regime relativo ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, nunca tinham referido expressamente as subvenções aos grupos parlamentares como integrando os financiamentos públicos aos partidos políticos aí considerados, como acima verificámos, com as alterações introduzidas pelo artigo 1.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, nos números 4 a 6, do artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, passou a regular expressamente tais subvenções, a par das subvenções públicas aos partidos políticos já anteriormente previstas.

E no n.º 8 do mesmo artigo atribuiu-se ao Tribunal Constitucional a competência para fiscalizar as subvenções públicas auferidas por grupos parlamentares ou deputado único representante de um partido e aos deputados não inscritos em grupo parlamentar ou aos deputados independentes na Assembleia da República e nas assembleias legislativas das regiões autónomas, ou por seu intermédio, para a atividade política e partidária em que participem, o que constitui a norma aqui em apreciação.

Contudo, isso não significou que as contas relativas à utilização destas subvenções passassem a integrar as contas anuais dos partidos políticos, uma vez que nos n.os 8, 9 e 10, do artigo 12.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, estabeleceu-se o seguinte:

"...

8 - São igualmente anexas às contas nacionais dos partidos, para efeitos da apreciação e fiscalização a que se referem os artigos 23.º e seguintes, as contas dos grupos parlamentares e do deputado único representante de partido da Assembleia da República.

9 - As contas das estruturas regionais referidas no n.º 4 devem incluir, para efeitos da apreciação e fiscalização a que se referem o n.º 8 do artigo 5.º e os artigos 23.º e seguintes, as relativas às subvenções auferidas diretamente, ou por intermédio dos grupos parlamentares e do deputado único representante de um partido, das assembleias legislativas das regiões autónomas.

10 - Para efeitos da necessária apreciação e fiscalização, os deputados não inscritos em grupo parlamentar da Assembleia da República e os deputados independentes das assembleias legislativas das regiões autónomas apresentam, ao Tribunal Constitucional, as contas relativas às subvenções auferidas, nos termos do n.º 8 do artigo 5.º e dos artigos 23.º e seguintes, com as devidas adaptações."

Daí que, questionado sobre as consequências das alterações entretanto introduzidas pela Lei 55/2010, de 24 de dezembro, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 711/2013, respeitante ao sancionamento das irregularidades detetadas nas contas dos Partidos Políticos de 2008, sublinhou o seguinte:

"O Bloco de Esquerda, o Partido Comunista Português e o Partido Socialista alegam ter entrado em vigor nova legislação que prevê que a consolidação das contas dos partidos, integrando como receita a subvenção atribuída aos respetivos grupos parlamentares, é legal, dando razão aos partidos que assim o vinham fazendo, não obstante o entendimento contrário do Tribunal Constitucional.

Reportam-se os citados Partidos à atualredação dos artigos 5.º, n.os 4 a 6 da Lei 19/2003, introduzida pela Lei 55/2010, de 24 de dezembro, posto que tais números se referem, agora, à "subvenção [para cada grupo parlamentar] para encargos de assessoria aos deputados e outras despesas de funcionamento", ao que o atual n.º 8 do mesmo artigo (introduzido pelo mesmo diploma citado) estatui que "A fiscalização relativa às subvenções públicas auferidas por grupos parlamentares [...], para a atividade política e partidária em que participem, cabe exclusivamente ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 23.º".

Aqueles Partidos entendem que a atualredação daqueles artigos veio ao encontro do reivindicado pelos mesmos, aceitando como legal a consolidação das contas nos termos operados por vários deles ou a integração das contas dos grupos parlamentares nas contas dos mesmos partidos, mesmo que não haja consolidação.

Não é essa, porém, a leitura do Tribunal Constitucional.

De acordo com a alínea c) do artigo 3.º da Lei 19/2003 (que se mantém na sua formulação originária), constituem receitas dos partidos políticos, além do mais, as subvenções públicas, nos termos da lei. Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado (vide, Acórdãos n.os 376/2005, 26/2009, 515/2009, 498/2010 e 394/2011), tais subvenções destinam-se aos partidos políticos, pela sua atividade própria, não se confundindo com as subvenções atribuídas a grupos parlamentares.

Afirma o Partido Socialista e seus responsáveis a quem vem imputada responsabilidade financeira que a Lei 55/2010, de 24 de dezembro, "veio incluir na subvenção pública para financiamento dos Partidos Políticos a subvenção atribuída aos grupos parlamentares". Vejamos.

O atual n.º 4 do artigo 5.º da Lei 19/2003, introduzido pela Lei 55/2010 (que manteve intocada a epígrafe "Subvenção pública para financiamento dos partidos políticos"), dispõe que "A cada grupo parlamentar, ao deputado único representante de um partido e ao deputado não inscrito em grupo parlamentar da Assembleia da República é atribuída, anualmente, uma subvenção para encargos de assessoria aos deputados e outras despesas de funcionamento correspondente a quatro vezes o IAS anual, mais metade do valor do mesmo, por deputado, a ser paga mensalmente, nos termos do n.º 6". Tais subvenções são pagas por conta de dotações especiais para o efeito inscritas no Orçamento da Assembleia da República.

Estas subvenções encontravam-se anteriormente previstas no artigo 47.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Serviços da Assembleia da República (LOFAR) - Lei 77/88, de 1 de julho, sucessivamente alterada e integralmente republicada pela Lei 28/2003, de 30 de julho -, cujos n.os 4 a 6 correspondiam aos atuais n.os 4 a 6 da Lei 19/2003, posto que a citada Lei 55/2010 revogou aquele artigo 47.º da LOFAR, transpondo o respetivo teor para a lei de Financiamento dos Partidos. Ou seja, na prática, a Lei 55/2010, de 24 de dezembro, operou uma deslocação sistemática daqueles preceitos, retirando-os da LOFAR para os colocar na Lei 19/2003.

É desta transposição sistemática que os Partidos retiram a conclusão de que a lei veio consagrar o entendimento que vinham propugnando, contrariando a posição do Tribunal Constitucional nesta matéria.

Sucede que a inserção sistemática de uma norma não altera, sem mais, a natureza do facto ou instituto que a mesma regula, pois que esse não é o único critério hermenêutico aplicável. Importa, pois, analisar se a alteração sistemática é, no caso, suficiente para se concluir de forma diversa da que vem sendo alinhada pelo Tribunal Constitucional.

Ora, como se salientou, o texto dos atuais n.os 4 a 6 da Lei 19/2003 é, no essencial, idêntico ao dos pretéritos n.os 4 a 6 do artigo 47.º da LOFAR. Trata-se de uma subvenção "para encargos de assessoria aos deputados e outras despesas de funcionamento" dos grupos parlamentares. A lei não refere qualquer outra finalidade, mormente de estrita índole partidária, antes mantendo a sua formulação antecedente, reportada à assessoria aos deputados e despesas de funcionamento dos grupos parlamentares. De resto, o entendimento veiculado na defesa apresentada pelo PS de que "o financiamento público dos grupos parlamentares é também - direta ou indiretamente - financiamento público dos partidos políticos que tais grupos parlamentares representam" já antes foi ponderado pelo Tribunal Constitucional (nos Acórdãos atrás citados, em especial o Acórdão 376/2005) e não infirmou o entendimento de que se trata de subvenções cuja razão fundadora é a atividade parlamentar.

Recorde-se, neste particular, que o já mencionado artigo 3.º da Lei 19/2003, sempre previu como receitas próprias dos partidos políticos "as subvenções públicas, nos termos da lei", o que não convenceu o Tribunal Constitucional a considerar aquelas subvenções aos grupos parlamentares, previstas na lei (LOFAR), como receitas dos partidos.

Por outro lado, o entendimento dos Partidos nesta matéria estendia-se ainda às subvenções atribuídas aos grupos parlamentares das assembleias legislativas regionais (sem distinção de razões em relação às subvenções percebidas pelos grupos parlamentares da Assembleia da República). No entanto, o atual artigo 5.º da Lei 19/2003 apenas se reporta as estas últimas subvenções. Logo, mesmo o argumento sistemático perderia validade nos casos (como o do PCP) em que o que está em causa é a subvenção atribuída a um grupo parlamentar de uma assembleia legislativa regional, posto que, neste caso, o citado artigo 5.º nem sequer é aplicável.

Ao exposto acresce que, perante o vertido no atual n.º 8 do artigo 12.º da Lei 19/2003, introduzido pela Lei 55/2010, o próprio apelo à inserção sistemática perde força argumentativa. Assim, dispõe-se nesta norma relativa ao regime contabilístico, que "São igualmente anexas às contas nacionais dos partidos, para efeitos da apreciação e fiscalização a que se referem os artigos 23.º e seguintes, as contas dos grupos parlamentares e do deputado único representante de partido da Assembleia da República".

Ou seja, a própria lei distingue as contas dos partidos das contas dos grupos parlamentares (ou do deputado único representante de partido) da Assembleia da República, postulando que as segundas devem ser anexas às primeiras (e não integradas nas primeiras).

De resto, tal distinção resulta clara do disposto no n.º 8 do artigo 5.º, segundo o qual "A fiscalização relativa às subvenções públicas auferidas por grupos parlamentares ou deputado único representante de um partido e aos deputados não inscritos em grupo parlamentar ou aos deputados independentes na Assembleia da República e nas assembleias legislativas das regiões autónomas, ou por seu intermédio [...] cabe exclusivamente ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 23.º". Em suma, não obstante a epígrafe do artigo 5.º ter permanecido inalterada, o texto do mesmo distingue as subvenções dos partidos políticos das atribuídas a grupos parlamentares.

É certo que o referido n.º 8 do artigo 5.º se reporta às subvenções públicas auferidas por aqueles grupos parlamentares ou deputados únicos, independentes ou não inscritos em grupos parlamentares "para a atividade política e partidária em que participem". Porém, este trecho - para além das dificuldades de interpretação que possa causar no futuro em matéria de determinação das subvenções a fiscalizar - insere-se numa mera norma adjetiva de atribuição de competência, não assumindo qualquer relevância substantiva ou, pelo menos, não alterando a natureza da subvenção prevista nos n.os 4 e 6 do mesmo artigo.

Pelas mesmas razões, também o disposto nos números 9 e 10 do artigo 12.º da Lei 19/2003, quanto à fiscalização das "subvenções auferidas diretamente ou por intermédio dos grupos parlamentares e do deputado único representante de um partido, das assembleias legislativas regionais", nada traz de novo, seja porque remetem para a norma adjetiva constante do n.º 8 do artigo 5.º, seja porque, como já se frisou, tais subvenções nem sequer se encontram referidas nos demais números deste artigo 5.º

Ou seja, o entendimento já afirmado por este Tribunal Constitucional quanto à natureza da subvenção em causa não se alterou: trata-se de subvenções especificamente fundadas no exercício da atividade parlamentar e cujo limite material de disposição está adstrito a essa mesma atividade, que não genericamente afetas ou afetáveis à realização dos fins próprios dos partidos. E não é a nova inserção sistemática que o altera."

2.10 - Mantendo a linha de pensamento que vem sendo seguida pelo Tribunal Constitucional desde o seu acórdão 376/2005, quanto à natureza das subvenções concedidas aos grupos parlamentares, assim como a leitura que foi efetuada pelo acórdão 711/2013 quanto às implicações das alterações introduzidas pela Lei 55/2010, de 24 de dezembro, verifica-se que a norma aqui em análise, qualificada pelo legislador como interpretativa, visou fixar o sentido da anterior norma adjetiva que atribuía ao Tribunal Constitucional competência para apreciar a regularidade e a legalidade das contas dos partidos políticos e aplicar as correspondentes sanções, ou seja a que atualmente consta da alínea e), do artigo 9.º, da LTC.

A norma aqui fiscalizada não é, pois, uma disposição reguladora dos termos como deve ser exercida a competência do Tribunal Constitucional nesta matéria, mas uma norma que define o âmbito dessa competência, precisando que esta abrange a utilização das subvenções atribuídas aos grupos parlamentares, ao deputado único representante de um partido, aos deputados não inscritos em grupo parlamentar ou aos deputados independentes na Assembleia da República e nas assembleias legislativas das regiões autónomas.

Sendo uma norma definidora de uma competência do Tribunal Constitucional, independentemente da discussão que se possa travar sobre o seu eventual caráter inovador e da consequente desconformidade da qualificação efetuada pelo legislador, ela só podia ser emitida sob a forma e obedecendo aos requisitos procedimentais de uma Lei Orgânica, por força do disposto nos artigos 166.º, n.º 2, e 164.º, c), da Constituição.

Na verdade, mesmo uma norma que apenas vise fixar o sentido de disposição anterior, necessariamente inserida em Lei Orgânica, não só terá que ser emitida pela Assembleia da República, como também terá que revestir a forma e respeitar os procedimentos exigidos a este tipo legislativo, porque também ela versa um tema, relativamente ao qual, como já acima se disse, não há apenas reserva de órgão, mas também reserva de ato, sendo essa reserva absoluta, na medida em que a respetiva legislação deve ser esgotante do tema em questão, não deixando um qualquer espaço de conformação nem a outros intervenientes, nem a outro tipo de atos legislativos.

O formalismo e a tramitação agravada do processo legislativo, reclamados pelas especiais sensibilidades inerentes a determinadas matérias, com vista a obter consensos políticos mais alargados e fiscalizações mais abertas nesses domínios, não respeita apenas à criação das respetivas normas, mas também à sua interpretação autêntica, alteração ou revogação, uma vez que também estes atos conformam o regime legal dessas matérias.

Como se disse no Acórdão 32/87 e se reafirmou nos Acórdãos n.º 372/91 e 139/92, deste Tribunal (todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), "...seja qual for a índole da lei interpretativa em causa, a interpretação autêntica, isto é, a fixação obrigatória (para todos os operadores jurídicos) do sentido de uma norma, feita pelo «legislador» - é algo que integra o próprio exercício da função normativa...", e por isso só tem legitimidade para tal interpretação - ou seja para impor a injunção nela contida - o próprio autor da norma interpretada, isto é, o órgão que detém competência para, abinitio produzi-la. E nessa atividade o legislador parlamentar está sujeito às regras relativas à forma e ao procedimento que a temática legislativa exige para a sua criação.

Por estas razões, mesmo aceitando, sem discussão, a qualificação efetuada pelo legislador, não tendo a norma constante do n.º 8, do artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, sido emitida sob a forma de Lei Orgânica e não tendo a sua aprovação observado todos os procedimentos previstos para este tipo de lei, deve a mesma ser julgada inconstitucional, por violação do disposto no artigo 166.º, n.º 2, com referência ao artigo 164.º, c), e no artigo 168.º, n.º 4, todos da Constituição.

Tendo-se obtido este juízo de inconstitucionalidade, por violação dos preceitos constitucionais invocados pelo Recorrente, em face da suficiência do julgamento efetuado, é dispensável a confrontação da mesma norma com os parâmetros invocados pela decisão recorrida para recusar a sua aplicação, não se tomando aqui posição sobre a questão suscitada na decisão recorrida, relativa à inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 5.º, n.º 8, da Lei 19/2003, de 20 de junho, por violação da reserva de jurisdição do Tribunal de Contas.

O juízo de inconstitucionalidade que recai sobre a norma constante do artigo 5.º, n.º 8, da Lei 19/2003, de 20 de junho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 1.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, estende-se consequencialmente à norma contida no artigo 3.º, n.º 4, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, na numeração que lhe foi atribuída pela Lei 1/2013, de 3 de janeiro, uma vez que esta tinha por único objeto a qualificação da natureza daquela primeira norma.

Confirmando-se a inconstitucionalidade das normas desaplicadas pela decisão recorrida, deve o recurso interposto pelo Ministério Público ser julgado improcedente.

Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) julgar inconstitucional, por violação do artigo 166.º, n.º 2, com referência ao artigo 164.º, c), e do artigo 168.º, n.º 4, todos da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 5.º, n.º 8, da Lei 19/2003, de 20 de junho, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 1.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, e do artigo 3.º, n.º 4, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, na numeração que lhe foi atribuída pela Lei 1/2013, de 3 de janeiro;

e, em consequência,

b) julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.

Sem custas.

Lisboa, 2 de julho de 2014. - João Cura Mariano - Maria José Rangel de Mesquita - Pedro Machete - Ana Guerra Martins - João Pedro Caupers - Fernando Vaz Ventura - Maria Lúcia Amaral - José Cunha Barbosa - Carlos Fernandes Cadilha - Maria de Fátima Mata-Mouros - Lino Rodrigues Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro - Joaquim de Sousa Ribeiro.

208239242

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/3764305.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1977-05-25 - Lei 32/77 - Assembleia da República

    Aprova a Lei Orgânica da Assembleia da República, publicando em anexo o respectivo quadro de pessoal.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1983-07-27 - Lei 5/83 - Assembleia da República

    Altera a Lei n.º 32/77, de 25 de Maio (Lei Orgânica da Assembleia da República).

  • Tem documento Em vigor 1988-07-01 - Lei 77/88 - Assembleia da República

    Aprova a lei orgânica da Assembleia da República.

  • Tem documento Em vigor 1993-08-17 - Lei 59/93 - Assembleia da República

    Altera a Lei Orgânica da Assembleia da República, aprovada pela Lei n.º 77/88, de 1 de Julho.

  • Tem documento Em vigor 1993-11-30 - Lei 72/93 - Assembleia da República

    Regula o financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

  • Tem documento Em vigor 1995-03-10 - Acórdão 59/95 - Tribunal Constitucional

    PRONUNCIA-SE PELA INCONSTITUCIONALIDADE DAS SEGUINTES NORMAS CONSTANTES DO DECRETO 185/VI DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, SOBRE O CONTROLO PÚBLICO DE RENDIMENTOS E PATRIMÓNIO DOS TITULARES DE CARGOS PÚBLICOS: - NUMERO 2 DO ARTIGO 5, NA PARTE EM QUE SE REFERE AOS JUIZES DO TRIBUNAL DE CONTAS (EXCLUINDO-OS DA PREVISÃO DE APLICAÇÃO DE SANÇÃO, QUALIFICADA DISCIPLINARMENTE, COMO GRAVE DESINTERESSE PELO CUMPRIMENTO DO DEVER PROFISSIONAL), POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 18, NUMERO 2 , E 13 DA CONSTITUICAO, - NUMERO 1 DO ART (...)

  • Tem documento Em vigor 1995-08-18 - Lei 27/95 - Assembleia da República

    Altera a Lei 72/93, de 30 de Novembro (regula o financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais), designadamente no que se refere ao regime contabilístico e a apreciação das contas dos partidos pelo Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1995-09-01 - Lei 88/95 - Assembleia da República

    ALTERA A LEI 28/82, DE 15 DE NOVEMBRO, QUE APROVA A LEI ORGÂNICA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (NA REDACÇÃO CONFERIDA PELAS LEIS 143/85, DE 26 DE NOVEMBRO E 85/89, DE 7 DE SETEMBRO) NO ATINENTE AS CONTAS DOS PARTIDOS, AS DECLARAÇÕES DE TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS, AO RECURSO DE APLICAÇÃO DE COIMAS, A APLICAÇÃO DE COIMAS EM MATÉRIA DE CONTAS DOS PARTIDOS POLÍTICOS, A NAO APRESENTAÇÃO DAS CITADAS CONTAS, ASSIM COMO NO QUE SE REFERE AOS PROCESSOS RELATIVOS A DECLARAÇÕES DE RENDIMENTOS E PATRIMÓNIO DOS TITULARES (...)

  • Tem documento Em vigor 1997-08-26 - Lei 98/97 - Assembleia da República

    Aprova a lei de organização e processo do Tribunal de Contas, que fiscaliza a legalidade e regularidade das receitas e das despesas pública, aprecia a boa gestão financeira e efectiva responsabilidade por infracções financeiras exercendo jurisdição sobre o Estado e seus serviços, as Regiões Autónomas e seus serviços, as Autarquias Locais, suas associações ou federações e seus serviços, bem como as áreas metropolitanas, os institutos públicos e as instituições de segurança social. Estabelece normas sobre o f (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-08-18 - Lei 56/98 - Assembleia da República

    Regula o regime aplicável aos recursos financeiros dos partidos políticos e das companhas eleitorais.

  • Tem documento Em vigor 2000-08-23 - Lei 23/2000 - Assembleia da República

    Primeira alteração às Leis 56/98, de 18 de Agosto (financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais), e 97/88, de 17 de Agosto (afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda).

  • Tem documento Em vigor 2001-08-14 - Lei Orgânica 1/2001 - Assembleia da República

    Aprova a lei que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais. Altera o regime de financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

  • Tem documento Em vigor 2003-06-20 - Lei 19/2003 - Assembleia da República

    Regula o regime aplicável ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

  • Tem documento Em vigor 2003-07-30 - Lei 28/2003 - Assembleia da República

    Altera a Lei n.º 77/88, de 1 de Julho, que aprova a Lei Orgânica da Assembleia da República, e procede à sua republicação publicando em anexo o texto consolidado com novo título - Lei de Organização e Funcionamento dos Serviços da Assembleia da República (LOFAR).

  • Tem documento Em vigor 2003-11-12 - Decreto-Lei 287/2003 - Ministério das Finanças

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 26/2003, de 30 de Julho, aprova o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e o Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, altera o Código do Imposto do Selo, altera o Estatuto dos Benefícios Fiscais e os Códigos do IRS e do IRC e revoga o Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, o Código da Contribuição Autárquica e o Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doaçõ (...)

  • Tem documento Em vigor 2005-01-10 - Lei Orgânica 2/2005 - Assembleia da República

    Regula a organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

  • Tem documento Em vigor 2010-12-24 - Lei 55/2010 - Assembleia da República

    Altera (terceira alteração) a Lei n.º 19/2003, de 20 de Junho, que regula o regime aplicável ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, no sentido de reduzir as subvenções públicas e os limites máximos dos gastos nas campanhas eleitorais.

  • Tem documento Em vigor 2013-01-03 - Lei 1/2013 - Assembleia da República

    Altera a Lei n.º 19/2003, de 20 de junho, que regula o regime aplicável ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, consagrando nova redução na subvenção e no limite das despesas nas mesmas e limitando o montante da subvenção que pode ser canalizado para as despesas com outdoors.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda