Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito da acção declarativa de condenação proposta por Maria de Lurdes Puga Alvarez contra o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (anteriormente denominado Instituto Nacional de Habitação), que correu seus termos na 1.ª Secção da 14.ª Vara Cível de Lisboa, sob o n.º 429/07.3 TVLSB, a demandante pediu inter alia que o demandado fosse condenado a pagar-lhe a quantia de (euro) 51.802.49, a título de indemnização pelos danos causados pela cessação antecipada das funções que vinha exercendo como vogal no conselho directivo do segundo, em virtude de exoneração por mera conveniência de serviço.Foi proferido despacho saneador, datado de 21 de Novembro de 2007, que conheceu logo do mérito da acção e julgou a aludida pretensão parcialmente procedente.
Na sequência de recursos sucessivamente interpostos pela Autora, tal decisão viria a ser integralmente confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça, mediantes acórdãos proferidos, respectivamente, em 8 de Julho de 2008 e em 4 de Junho de 2009, apresentando este último, na parte que ora releva, a
seguinte fundamentação:
«[...]
1 - A primeira questão colocada pela recorrente é a do cálculo da indemnização devida pelo réu à autora, atendendo à sua exoneração, por mera conveniência de serviço.A questão é contemplada nos n.os 2 e 6 do artigo 6.º do Decreto-Lei 464/82 de
09.12.
No n.º 2 estabelece-se que o gestor exonerado nos casos como o da autora tem direito a uma indemnização correspondente aos ordenados vincendos, até o limite dovencimento anual.
No n.º 6 ressalva-se que essa mesma indemnização será reduzida ao montante da diferença do vencimento como gestor e do vencimento do lugar de origem, se o gestor, como no caso da autora, exerceu as funções em comissão de serviço, ou emrequisição.
As instâncias determinaram os vencimentos anuais da autora no lugar de origem e como gestora, estabelecendo que a respectiva diferença constitui a sua indemnização.A recorrente, porém, entende que deve ser calculado a totalidade dos vencimentos de gestor durante a comissão ou requisição e a totalidade dos vencimentos no lugar de origem no mesmo período e será sobre a diferença desses montantes que deve ser
estabelecido o limite do vencimento anual.
Quid juris?
A intenção do legislador é clara. O gestor exonerado por mera conveniência de serviços tem direito a uma indemnização calculada com base nas remunerações vincendas até ao limite máximo de um vencimento anual.Só que, no caso de comissão de serviço ou requisição, em que existe um lugar de origem, onde, durante o período anual das referidas remunerações vincendas, o gestor exonerado vai receber ordenados, há que descontar estes mesmos ordenados, por forma a tornar iguais para todos os gestores exonerados o cálculo da indemnização. E a única forma de conseguir a finalidade da lei é calcular a indemnização nos termos em
que o fizeram as instâncias.
A não se entender assim, como se assinala na decisão em apreço, poder-se-ia até neutralizar o efeito pretendido no aludido n.º 6 e "que é o de evitar a acumulação derendimentos."
No presente caso, como a diferença dos vencimentos é superior ao vencimento anual da recorrente como gestora é este último que seria, no seu entendimento, o montante da indemnização. O que a não impediria de receber os ordenados no lugar de origem após o termo da comissão ou da requisição. Significaria isto que ia receber realmente mais de que quem não tivesse um lugar de origem e tivesse sido exonerado na mesma altura em que o foi a recorrente, pois este último apenas tinha garantido o vencimentoanual de gestor.
Por isso, não se diga, como o faz a recorrente que esta forma de calcular a indemnizar afecta o princípio constitucional da igualdade de tratamento. E precisamente aocontrário.
A igualdade obtém-se tratando de forma desigual o que é desigual. E só fazendo o desconto a quem tem um lugar de origem é que se assegura que este não é beneficiadoem relação a quem não o tem.
[...]»
O recorrente interpôs então recurso da referida decisão do Supremo Tribunal de Justiça para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da lei do Tribunal Constitucional (LTC), onde, na sequência de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, arguiu a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei 464/82, de 9 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a indemnização devida ao gestor público, que exerça as suas funções em regime de requisição, não pode ser superior à diferença existente entre as remunerações vincendas como gestor público e as processadas no seu lugar de origem, durante o período de um ano.A recorrente apresentou alegações com as seguintes conclusões:
"O princípio da igualdade, enquanto princípio basilar da Constituição da República, desdobra-se em dois comandos: impor um tratamento igual a indivíduos que se encontrem, nomeadamente, em situações económicas tendencialmente iguais e desigual, quando aquelas situações económicas também o forem.
Aplicando este princípio da igualdade, na parte em que ele manda tratar desigualmente o que desigual for, o n.º 6 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82, de 9 de Dezembro, postula que a indemnização devida a um gestor público, cujo mandato antecipadamente cessou por conveniência de serviço, varia consoante este exerça ou não aquelas funções em regime de comissão de serviço ou de requisição.
A situação económica de quem, exercendo funções de gestor público em regime de comissão de serviço ou de requisição, as vê antecipadamente cessar é uma: regressa ao lugar e ao vencimento de origem, ao passo que nos restantes casos é outra:
eventualmente passará a uma situação de desempregado.
Em termos de remunerações auferidas, o dano, no primeiro caso, limita-se às diferenças salariais entre o vencimento auferido como gestor público e o devido pelo lugar de origem a que regressa. E pode mesmo nem sequer se verificar um qualquer dano, bastando que a remuneração abonada no lugar de origem seja superior à auferida pelo exercício das funções de gestor público.
Já, no segundo caso, o dano corresponde à totalidade da remuneração que o gestor deixou de auferir, quando o seu mandato é feito antecipadamente cessar por
conveniência de serviço.
O teor do n.º 6 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82 corresponde, assim, à concretização desse princípio constitucional da igualdade e também reflecte a mera aplicação de um dos princípios básicos do instituto da indemnização por danos, que associa o cálculo do montante da indemnização à determinação dos danos sofridospelo indemnizado.
Já, porém, o n.º 2 do art. 6 do mesmo Decreto-Lei 464/82 não tem por vocação concretizar o princípio da igualdade, antes sim o de limitar a responsabilidade indemnizatória por cessação antecipada e por conveniência de serviço do mandato deum gestor público.
O n.º 2 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82 estabelece um limite indemnizatório que se poderia sintetizar do seguinte modo: em circunstância alguma, o montante da indemnização devida pode ultrapassar uma verba correspondente às remunerações de um ano de vencimentos do gestor público exonerado.Este limite à responsabilidade indemnizatória, pode até nunca operar: será o caso em que a cessação antecipada do mandato ocorre no decurso do último ano deste. E poderá ter uma aplicação bem mais gravosa: será o caso do gestor público, que vê cessado o seu mandato pouco depois de o ter iniciado.
O n.º 2 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82 estabelece um limite - o do montante máximo da indemnização devida - que é aplicado, ou não, depois do valor desta ter
sido determinado.
O dano pela cessação antecipada do mandato há-de sempre ser balizado pelo tempo em que o gestor público, por conveniência de serviço, deixou de exercer aquelasfunções.
Este tempo é convertido nas remunerações vincendas perdidas, caso o gestor público exonerado não exercesse as suas funções em regime de comissão de serviço ou requisição, ou nas diferenças remuneratórias entre os vencimentos abonados ao gestor público e os devidos pelo seu lugar de origem, no caso do exercício de funções se fazer naqueles regimes de comissão de serviço ou requisição.Este é o dano efectivamente sofrido por quem vê cessar antecipadamente as suas funções de gestor público. O n.º 2 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82 estabelece que, independentemente do valor deste dano, o montante máximo da indemnização não pode ultrapassar um determinado montante: o correspondente ao vencimento auferido
ao longo de um ano pelo gestor exonerado.
O n.º 2 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82 funciona, assim, de modo em tudo idêntico ao das cláusulas de limitação de responsabilidade.Sucede, porém que esta norma do n.º 2 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82 foi indevidamente interpretada como fixando um duplo limite na responsabilidade indemnizatória: se o gestor público, cujo mandato foi antecipadamente cessado, o exercia em regime de comissão de serviço ou requisição, a responsabilidade indemnizatória limita-se às diferenças remuneratórias apuradas ao longo de um ano, nos restantes casos, esse limite corresponde ao do valor do vencimento anual do gestor
público exonerado.
Esta interpretação legal é indevida, pois não encontra qualquer sustentação na letra da lei, violando assim uma das regras basilares de interpretação estatuídas no Código Civil.Mas esta interpretação, e é isso que interessa a esse Venerando Tribunal Constitucional, representa uma violação frontal do princípio constitucional da igualdade.
É que este princípio constitucional da igualdade já surge aplicado no n.º 6 do art. 6 do
Ora, nada justifica fixar, aliás ao arrepio da letra da lei, também um duplo limite indemnizatório aos que exercem as funções de gestor público em regime de comissãode serviço ou requisição.
O tratamento desigual é feito pela aplicação do disposto no n.º 6 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82, que diferencia o modo de cálculo da indemnização que, nuns casos, atende aos ordenados vincendos e, nos outros casos, às diferenças remuneratórias, com o pressuposto de serem diferentes as dificuldades sentidas, por força da cessação antecipada de mandato de gestor público, por quem tenha ou nãoum lugar de origem a que possa regressar.
Estabelecer, a par deste tratamento desigual que resulta da aplicação do n.º 6 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82, um outro que advém dum duplo limite na responsabilidade indemnizatória, que decorreria da aplicação do n.º 2 deste mesmo art. 6, viola o princípio constitucional da igualdade. E isto porque:Qual é a justificação para que o limite indemnizatório, estabelecido nesse n.º 2 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82, se situe no montante de um vencimento anual do gestor público exonerado e não em um qualquer outro valor? Porque o legislador estimou que o prazo de um ano seria um limite de tempo razoável para que um gestor público exonerado, não tendo um lugar de origem ao qual pudesse regressar, encontre uma
nova colocação profissional.
Ora, uma vez encontrada uma colocação profissional, a situação deste gestor público exonerado em nada difere da de um outro que, quando também lhe é feito antecipadamente cessar o mandato, regressa ao seu lugar de origem.Pode até dar-se o caso de o gestor público exonerado, que não tenha um lugar de origem, encontre, de imediato, uma nova colocação profissional, porventura até melhor
remunerada da que anteriormente exercia.
Representa, assim, uma violação frontal do princípio da igualdade, ao interpretar o n.º 2 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82, como fixando dois limites indemnizatórios.Para efeitos da identificação de um tecto para a responsabilidade indemnizatória, todos os gestores públicos, cujo mandato é feito cessar antecipadamente, estão em situação de igualdade: sabem à partida que, verificada esta cessação, o limite da indemnização é um e um mesmo: o valor correspondente aos seus vencimentos durante um ano.
É pois aqui, e só aqui, que se situa a divergência entre recorrente e recorrida que o Douto Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça, de aqui se recorre, que veio a resolver, dando razão ao Instituto Nacional de Habitação, mas por força duma interpretação inconstitucional do n.º 2 do art. 6 do Decreto-Lei 464/82 que o Venerando Tribunal Constitucional por certo reparará dando provimento ao presente
recurso.
Sucede, porém, no que a recorrente entende como sendo elemento coadjuvante para a boa resolução do presente recurso, o conhecimento por esse Tribunal das conclusões do processo que correu pela Inspecção Geral das Obras Públicas, em processo de inquérito ao Instituto Nacional de Habitação, a que corresponde o processo 251/02-1, que veio também a defender a tese da recorrida no que respeita ao cálculoda indemnização que lhe é devida.
O relatório do processo de inquérito atrás referido foi remetido para o Tribunal deContas.
A recorrente tem tentado, sempre infrutiferamente, obter certidões relativas a esse processo de inquérito na parte que lhe diz respeito.Recentemente, formulou novo pedido, conforme resulta dos documentos em anexo 1 e 2, seja àquela Inspecção seja ao Tribunal de Contas só que, até agora, também, sem
obter qualquer resposta.
Razão pela qual, e por ser de manifesto interesse para a boa decisão da causa, se requer que seja agora esse Venerando Tribunal Constitucional a providenciar a junção ao processo das certidões já solicitadas pela recorrente.
Em síntese final:
A interpretação adequada e conforme ao princípio constitucional da igualdade do disposto no art. 6 do Decreto-Lei 464/82 para determinação do montante da indemnização devida à recorrente por cessação antecipada e por conveniência de serviço do seu mandato como gestor público deve, portanto, obedecer aos seguintespassos:
Apuramento dos meses que, por força da cessação antecipada, a recorrente deixou de exercer as suas funções de gestor público.Tendo por base esse período de tempo, calcular as diferenças entre as remunerações vincendas devidas pelo exercício de funções como gestor público e no seu lugar de origem. Ao assim proceder, cumpre-se o estatuído no n.º 6 do art. 6 do Decreto-Lei 565/82 e concretiza-se aqui, e só aqui, a aplicação adequada do princípio da
igualdade.
Apurada esta diferença remuneratória, então há apenas que verificar se se aplica ou não o limite de responsabilidade indemnizatória fixado, para TODAS AS SITUAÇÕES,pelo n.º 2 do aludido art. 6.
Deve, assim ser revogada a Douta Decisão de que se recorre tendo em conta a declaração como inconstitucional da Interpretação que foi dada ao n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 464/82 por estar a mesma em desconformidade com o princípio constitucional constante do artigo 13 do CRP."Por seu turno, a entidade recorrida contra-alegou nos seguintes termos:
"A lei distingue dois tipos de gestores públicos (aqueles que à data da sua nomeação como gestor não possuíam outro vínculo e os outros, os quais são nomeados em comissão de serviço ou requisitados), aos quais associa duas formas de cálculo da indemnização devida por cessação de funções.
Assim,
Quando haja lugar ao pagamento de indemnização pela cessação de funções como gestor, isto é, quando a mesma se funde em mera conveniência de serviço, a lei manda atender, como regra geral, ao montante dos vencimentos que o exonerado haveria de auferir até ao termo do seu mandato. Todavia, tal indemnização não pode ultrapassarum determinado limite fixado por lei.
O mesmo é dizer que a lei pretende que a indemnização pela cessação de funções de gestor cubra o prejuízo decorrente do fim do mandato prejuízo esse que, caso não existisse qualquer limitação, ascenderia à totalidade da remuneração expectável até ao termo do mandato por decurso do prazo, pois seria essa a legítima expectativa dogestor.
Todavia, a lei introduz uma limitação à expectativa do gestor cessante. De acordo com a parte final do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 464/82, a expectativa do gestor cessante só é legítima até ao montante máximo do seu vencimento anual como gestor.Isto é, ainda que o termo do mandato se situe para além de um ano em relação ao momento da exoneração, o gestor tem como horizonte máximo da sua legítima expectativa indemnizatória o seu vencimento anual nesse cargo.
É lógica e justa a solução da lei. Ao aceitar a nomeação, o gestor público conhece as possibilidades de cessação do seu vínculo, nomeadamente conhece a margem de liberdade que assiste às entidades que o nomearam, no que respeita à sua exoneração e, consequentemente, à precariedade do seu cargo. Tal precariedade prende-se, claro está, com a natureza do cargo e respectivas funções, matéria essa, no entanto, estranha ao objecto da presente análise. O que importa, porém, realçar é que em função de todos esses elementos, a lei considera que a expectativa do gestor, no que respeita àquela indemnização, só é legítima até certo ponto ou limite-o do seu vencimento anual.
Mas a lei determina ainda um limite adicional nas situações em que a prestação de funções de gestor o é em regime de comissão de serviço ou de requisição.
Nestes casos, estabelece o n.º 6 do artigo 6.º do Decreto-Lei 464/82 que "Quando as funções forem prestadas em regime de comissão de serviço ou de requisição, a indemnização eventualmente devida será reduzida (sublinhado nosso) ao montante da diferença entre o vencimento do gestor e o vencimento do lugar de origem à data da
cessação de funções do gestor."
Mais uma vez, à lógica e justa a solução da lei.Efectivamente, a prestação das funções de gestor em regime de comissão de serviço ou de requisição pressupõe que o gestor nomeado detém um lugar de origem, cujas funções temporariamente abandona para poder exercer o novo mandato para que foi
nomeado.
Ora, a tal lugar de origem corresponde uma determinada remuneração, remuneração essa que, regra geral, é inferior àquela auferida pelo gestor no desempenho desse novocargo para que é nomeado.
Em consequência, é evidente que a nomeação como gestor público traz um maior benefício económico a quem não tinha já um lugar de origem do que a quem tinha já um lugar de origem, no qual percebia a correspondente remuneração. Do mesmo modo, aquando da cessação de funções de gestor, é menos lesado aquele que tem um lugar de origem ao qual retoma, percebendo a respectiva remuneração, do que aquele que não tem um lugar de origem ao qual retornar. Por outras palavras, o lucro cessante daquele que tem tal lugar de origem é menor do que o lucro cessante daquele que, findo o mandato, não tem lugar para onde retomar, percebendo unicamente a indemnização devida e ficando sem qualquer posto de trabalho.Em suma, a atribuição de uma indemnização, motivada pela exoneração do cargo de gestor público, visa compensar o exonerado pelas expectativas que possuía em relação ao mandato. Ora, de acordo, com o supra exposto quando o gestor detenha um lugar de origem, com a correspondente remuneração, como é o caso da ora recorrente, o prejuízo sofrido será bem menor do que se não tiver tal lugar de origem.
Por conseguinte, faz todo o sentido, segundo um critério de justiça material, que o legislador estabeleça uma forma diferenciada de cálculo da indemnização devida aos gestores com cargo de origem, pelo que o n.º 6 do artigo 6.º do Decreto-Lei 464/82 não faz mais do que tomar em consideração esta diferenciação de situações, norteado pelo princípio da igualdade e proporcionalidade (v. artigo 13.º da
Constituição da República Portuguesa).
A dualidade do modo de cálculo da indemnização instituída visa pois reflectir uma diferença de legitimidade material entre os dois tipos de gestores públicos: nenhum pode legitimamente aspirar a mais do que lhe é devido, mas ao gestor que possui lugar de origem é devido legitimamente menos do que ao que não o possui, em matéria de indemnização por exoneração fundada em conveniência de serviço.Por outro lado, a tese sustentada pela recorrente nas suas, aliás, doutas alegações levaria à perda de sentido da caracterização de "reduzida" que o legislador intencionalmente empregou no n.º 6 do artigo 6.º do Decreto-Lei 464/82 para qualificar a indemnização eventualmente devida ao gestor requisitado ou em comissão de serviço exonerado, como também perderiam sentido as diferenças legais introduzidas no artigo 6.º daquele diploma legal, efectuadas sob o espírito da diferenciação material, pois sempre que faltasse mais de um ano para o final do mandato do gestor e este fosse exonerado, à luz da posição da recorrente, a indemnização seria idêntica para o gestor exonerado que não tivesse outro vínculo e para o gestor que regressaria ao lugar de origem, pois ambos receberiam o vencimento
anual do gestor.
Ora, salvo o devido respeito pela posição da recorrente, não nos parece que esta traduza fielmente as intenções do legislador vertidas no artigo 6.º do Decreto-Lei 464/2, uma vez que a correcta interpretação e articulação dos n.os 2 e 6 deste artigo não pode abdicar do critério de justiça material subjacente presente no espírito da lei.
[...]
Face ao exposto, não pode pois proceder a tese avançada pela recorrente, uma vez que a mesma uniformiza soluções que o legislador pretendeu diversas, fazendo coincidir regimes diferentes, pugnando por uma interpretação avessa às regras contidas no artigo 9.º do Código Civil, em claro desrespeito pelo elemento teleológico."Consequentemente e salvo melhor opinião, não nos parece que a interpretação dada ao disposto nos n.os 2 e 6 do artigo 6.º do Decreto-Lei 464/82, pelas diversas instâncias judiciais já intervenientes neste processo, viole o princípio constitucional da
igualdade.
Com efeito, conforme se refere no douto acórdão recorrido, "[...] a igualdade obtém-se tratando-se de forma desigual o que é desigual". A interpretação que o recorrente pretende ver apreciada é, no essencial, a mesma que o Supremo Tribunal de Justiçaperfilhou no Acórdão..."
Fundamentação
1 - O caso concreto e a interpretação normativa questionada Em 1 de Setembro de 2001 a Recorrente, até então assessora principal da Câmara Municipal de Lisboa (CML), tomou posse como vogal nomeada do conselho directivo do Instituto Nacional de Habitação (INH), pelo período de três anos, tendo sido requisitada à CML para efeito da referida nomeação.A Recorrente exerceu as funções de vogal do conselho directivo do INH no período compreendido entre 1 de Setembro de 2001 e 22 de Maio de 2002, em regime de requisição, em virtude de ser funcionária de uma autarquia local (artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei 202-B/82, de 22 de Julho). E como membro do conselho directivo do INH, a Recorrente estava sujeita ao Estatuto do Gestor Público (EGP), então constante do Decreto-Lei 464/82, de 9 de Dezembro (artigo 8.º, n.º 3, do
Decreto-Lei 202-B/82, de 22 de Julho).
Por desempenhar as suas funções em regime de requisição, o serviço que a Recorrente prestou no INH foi considerado como serviço prestado no quadro de origem, com salvaguarda de todos os direitos inerentes (artigo 5.º, n.º 2, do referido EGP).Em 22 de Maio de 2002 a Recorrente foi exonerada, por conveniência de serviço, das funções de vogal do conselho directivo do INH, tendo retomado as funções de
assessora principal na CML.
A Recorrente veio demandar o INH para fazer valer o seu direito a indemnização de determinado valor que alegadamente lhe assiste, em virtude de ter sido exonerada das funções de vogal do conselho directivo do INH com fundamento em conveniência deserviço.
Mais concretamente, tendo sido alegado e ficado provado que a Recorrente, enquanto vogal do INH, auferia um vencimento mensal bruto de (euro) 4.065,57, quando foi exonerada dessas funções em 22 de Maio de 2002, e que passou a auferir, desde então, um vencimento mensal bruto de (euro) 2.575,74, ao retomar as suas funções de assessora principal na CML, a Recorrente pretende que lhe seja paga uma indemnização no montante global de (euro) 51.802,49, correspondente aos vencimentos que, se não tivesse sido exonerada, teria auferido como vogal do conselho directivo do INH desde 22 de Maio de 2002 até 31 de Agosto de 2004 (termo do período de 3 anos pelo qual a Recorrente havia sido nomeada para exercer as funções de vogal do Conselho Directivo do INH), após a dedução dos vencimentos auferidos nesse mesmo período como assessora principal da CML.Tal pretensão foi parcialmente indeferida na medida em que, nas aludidas circunstâncias de facto dadas como provadas, o tribunal recorrido decidiu que a Recorrente apenas tem direito à indemnização no montante global de (euro) 20.857,64, correspondente aos vencimentos que, se não tivesse sido exonerada, teria auferido como vogal do conselho directivo do INH desde 22 de Maio de 2002 até 21 de Maio de 2003 (1 ano), após a dedução dos vencimentos auferidos nesse mesmo período como
assessora principal da CML.
Para tanto, no caso concreto de exoneração de funções fundada em mera conveniência de serviço, o tribunal recorrido aplicou a norma constante do artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei 464/82, de 9 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a indemnização devida ao gestor público, que exerça as suas funções em regime de requisição, não pode ser superior à diferença existente entre as remunerações vincendas como gestor público e as processadas no seu lugar de origem, durante operíodo de um ano.
É esta interpretação normativa - que se salda pelo reconhecimento do direito a uma indemnização de valor muito inferior ao peticionado pela Recorrente - que importa aqui sindicar apenas no plano jurídico-constitucional, uma vez que esta entende que a mesma viola o princípio constitucional estruturante da igualdade.2 - A indemnização devida pela exoneração dos gestores públicos por conveniência de
serviço
O artigo 6.º do EGP prevê expressamente a possibilidade de exoneração do gestor público fundada em mera conveniência de serviço - com contornos diferentes da exoneração, assente exclusivamente na vontade do funcionário, prevista no artigo 29.º do Decreto-Lei 427/89, de 7 de Dezembro -, cujo regime jurídico interessa agora analisar, especialmente na parte respeitante aos respectivos efeitos.A referida disposição legal apresenta a seguinte redacção (na parte que releva para a economia do presente recurso de constitucionalidade):
"1 - O gestor público pode ser livremente exonerado pelas entidades que o nomearam, podendo a exoneração fundar-se em mera conveniência de serviço.
2 - A exoneração dará lugar, sempre que não se fundamente no decurso do prazo, em motivo justificado ou na dissolução do órgão de gestão, a uma indemnização de valor correspondente aos ordenados vincendos até ao termo do mandato, mas não superior
ao vencimento anual do gestor.
[...]
6 - Quando as funções forem prestadas em regime de comissão de serviço ou de requisição, a indemnização eventualmente devida será reduzida ao montante da diferença entre o vencimento como gestor e o vencimento de lugar de origem à data dacessação de funções de gestor.
A solução legal que se traduz na possibilidade de exoneração de gestores públicos fundada na mera conveniência de serviço foi introduzida no ordenamento jurídico nacional com a aprovação do disposto no artigo 1.º, do Decreto-Lei 356/79, de 31 de Agosto, tem sido reproduzida nos sucessivos estatutos dos gestores públicos entretanto aprovados - incluindo o mais recente aprovado pelo Decreto-Lei 71/2007, de 27 de Março - e já mereceu um juízo, negando a sua inconstitucionalidade, formulado pelo Acórdão 160/92 do Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Agosto de 1992), que seguiu o pensamento já anteriormente expresso pela Comissão Constitucional, no Parecer 31/80 (em Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º vol., pág. 15), a propósito da fiscalização preventiva do Decreto 366-E/80 destinado a rever o Estatuto dosGestores Públicos de 1976.
A ampla margem de discricionariedade assim atribuída à Administração Pública quanto à manutenção de um indivíduo no exercício de um cargo (Cfr. Nuno Cunha Rodrigues, em "Breves notas em torno do estatuto do gestor público: a caminho do new public management?", in "Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco", pág. 403-404, do volume III, ed. de 2006, da FDUL) foi considerada materialmente justificada pelo Tribunal Constitucional no referido arestopelas seguintes razões:
"Agindo os gestores públicos dentro do sector público dos meios de produção, a precariedade destes vínculos é algo que bem se compreende face, por um lado, às particulares relações de confiança que devem existir entre a entidade tutelar e o gestor e, por outro, face às particulares exigências de eficácia e rentabilidade que o Estado tem de impor neste sector de propriedade dos meios de produção.Com efeito, sendo a precariedade a tónica deste tipo de prestação de serviços ou de desempenho de cargo, a continuação do exercício de funções depende, momento a momento, da subsistência da relação de confiança que esteve na base da sua designação para o lugar, não podendo, por isso, afirmar-se que se encontra «legalmente protegido» o interesse do funcionário ou gestor na manutenção do cargo ou das funções para que fora discricionariamente designado, o que significa não ser de exigir, em situações como a dos autos, uma obrigação de fundamentar o acto para além da invocação da mera conveniência de serviço...".
A precariedade do referido vínculo, estabelecida por razões de ordem pública, mostra-se, contudo, compensada pela atribuição de uma indemnização ao gestor público exonerado, cujo conteúdo constitui o cerne do presente recurso de
constitucionalidade.
O gestor público que cumpra os deveres do cargo tem uma expectativa legítima de chegar ao termo do mandato para o qual foi nomeado. Se for antecipadamente afastado das suas funções, por causa que não lhe seja imputável, a defraudação daquela expectativa causar-lhe-á, previsivelmente, prejuízos de diversa índole que não é exigível que ele seja obrigado a suportar.Por isso, apesar da licitude do acto de exoneração, o legislador entendeu atribuir aos gestores exonerados uma indemnização à forfait, que salvaguardasse os seus interesses
legítimos.
Assim, o n.º 2, do artigo 6.º, do Decreto-Lei 464/82, de 9 de Dezembro, dispõe que a exoneração fundada em mera conveniência de serviço dá lugar a "uma indemnização de valor correspondente aos ordenados vincendos até ao termo do mandato, mas não superior ao vencimento anual do gestor", acrescentando o n.º 6 da mesma disposição legal que "quando as funções forem prestadas em regime de comissão de serviço ou de requisição, a indemnização eventualmente devida será reduzida ao montante da diferença entre o vencimento como gestor e o vencimento de lugar de origem à data da cessação de funções do gestor".A determinação legal da indemnização que assiste aos gestores públicos exonerados por mera conveniência de serviço, quando os mesmos exerçam as suas funções em regime de comissão de serviço ou de requisição, tem suscitado alguma controvérsia hermenêutica na jurisprudência dos tribunais superiores que recaiu sobre a disposição legal sob apreciação. Após o Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 42/84, de 25 de Julho de 1984 (publicado no B. M. J. n.º 351, pág. 61 e seg.), que considerou que o limite máximo da indemnização do gestor público requisitado ou em comissão de serviço, era o fixado no n.º 2, ou seja os vencimentos de gestor correspondentes a um ano de serviço, o Acórdão do S.T.J. de 25 de Novembro de 1992 (publicado no B.
M. J. n.º 421, pág. 426) sustentou que o limite máximo correspondia à diferença entre esses vencimentos e os auferidos no lugar de origem durante um ano, enquanto o Acórdão do S.T.J. de 25 de Setembro de 2003 (acessível em www.dgsi.pt) seguiu o
critério sustentado por aquele Parecer.
No caso concreto, o tribunal recorrido aplicou a norma constante do artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei 464/82, de 9 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a indemnização devida ao gestor público, que exerça as suas funções em regime de requisição, não pode ser superior à diferença existente entre as remunerações vincendas como gestor público e as processadas no seu lugar de origem, durante operíodo de um ano.
A Recorrente entende que esta interpretação normativa viola o princípio constitucional da igualdade, na medida em que para ela, além do critério estabelecido para o cálculo da indemnização a receber pelos gestores exonerados requisitados, ser mais desfavorável do que aquele que está estabelecido para os restantes gestores sem lugar de origem na função pública, aquele montante indemnizatório ainda está sujeito a um tecto inferior ao que está estabelecido para as indemnizações devidas a estes últimos.Dito isto, importa precisar que a Recorrente não reclama um regime jurídico em matéria de indemnização dos gestores exonerados por mera conveniência de serviço que repute irrelevantes e não reflicta as garantias do emprego e da remuneração inerentes ao exercício das funções de gestor público em regime de requisição. A Recorrente reconhece que os eventuais lucros cessantes verificados na esfera jurídica do gestor público requisitado devem ser naturalmente atenuados ou mesmo anulados pela remuneração ulteriormente recebida no lugar de origem. O que a Recorrente reputa inconstitucional nesta matéria, à luz do princípio da igualdade, é que a indemnização devida a um gestor requisitado tenha como limite máximo a diferença entre as remunerações vincendas como gestor público e as processadas no seu lugar de origem, durante um ano, enquanto a indemnização devida ao gestor público sem lugar de origem na função pública tem como limite o vencimento anual como gestor.
3 - O princípio da igualdade e a desigualdade de indemnizações devidas aos gestores
públicos exonerados
Como tem referido o Tribunal Constitucional «o princípio da igualdade abrange fundamentalmente três dimensões ou vertentes: a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação, significando a primeira a imposição da igualdade de tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para situações manifestamente desiguais [...]; a segunda, a ilegitimidade de qualquer diferenciação de tratamento baseada em critérios subjectivos (v. g., ascendência, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social) e, a última surge como forma de compensar as desigualdades de oportunidades.» (Acórdão 412/2002 em A. T. C., vol. 54.º, pág.
409)
No caso concreto, a Recorrente convoca a vertente da proibição do arbítrio."A interdependência de planos que a estrutura do princípio da igualdade exige implica...que o critério que serve de base ao juízo de qualificação da igualdade encontre a sua justificação no fim a atingir com o tratamento jurídico. E para que tal aconteça a conexão entre o critério e o fim tem de ser razoável e suficiente. Isto quer dizer que o princípio da igualdade não orienta, em concreto, a opção por um ou outro critério valorativo, mas exige que o critério escolhido encontre uma justificação razoável e suficiente no fim ou na ratio do tratamento jurídico" (Maria Glória Garcia em "Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula "carregada" de sentido", em "Estudos sobre o princípio da igualdade", pág. 56, da ed. de 2005, da Almedina):
E nessa matéria, o Acórdão 69/2008 (acessível em www.dgsi.pt) acrescentou que:
«... a propósito do princípio da proibição do arbítrio, decorrente do n.º 1 do artigo 13.º da CRP, tem sempre sublinhado o Tribunal duas ideias essenciais que importa agora recordar. Antes do mais, que não estão aqui em causa - que não podem estar aqui em causa - 'juízos' sobre a bondade das soluções legislativas; depois, que proibindo a Constituição neste domínio apenas «as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor constitucionalmente relevantes» (Acórdão 39/88, in AcTC, 11.º vol., pp. 233 e ss.), deve descobrir-se a ratio das disposições em causa, para, a partir dessa mesma ratio, se poder avaliar se as mesmas possuem ou não uma «fundamentação razoável» (Acórdão 232/2003 e doutrina aí citada: AcTC, 56.º
vol., p. 39).»
Por outro lado, como ensinam J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 399, da 4.ª Edição revista, da CoimbraEditora), importa ter presente que:
«[...] a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da "discricionariedade legislativa" são violados, isto é, quando, a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma "infracção" do princípio do arbítrio.» Na óptica da Recorrente - como se deixou dito atrás -, em matéria de determinação do limite máximo admissível da indemnização por exoneração fundada em mera conveniência de serviço, a interpretação normativa aplicada pelo tribunal recorrido traduz-se num tratamento desigual dos gestores públicos requisitados, relativamente aos gestores públicos sem lugar de origem na função pública, sem que haja fundamentomaterial bastante para tal diferenciação.
Para efectuarmos a ponderação necessária à aferição do parâmetro da igualdade, temos que ter presente que estamos perante a fixação legal duma indemnização à forfait. O legislador não deixou o cálculo do montante indemnizatório devido pelo acto de exoneração, por conveniência de serviço, dependente da prova dos prejuízos realmente sofridos pelos gestores atingidos, tendo-se antes optado, por razões de certeza e igualdade, por efectuar uma liquidação antecipada dos mesmos, com recursoa juízos de prognose abstracta.
As indemnizações fixadas no artigo 6.º, do Decreto-Lei 464/82, de 9 de Dezembro, tiveram unicamente em conta o previsível prejuízo da perda de vencimentos resultante da cessação antecipada das funções de gestor público.Na economia do regime previsto no artigo 27.º, do Decreto-Lei 427/89, a requisição constitui um instrumento de mobilidade pelo qual os funcionários prestam funções transitoriamente, sem ocuparem um lugar do quadro, em organismo ou serviço público diferente daquele a que pertencem, podendo efectuar-se entre os diversos serviços e organismos da Administração central, regional e local, e mesmo entre institutos públicos (Vide Paulo Veiga e Moura, em "Função Pública - Regime jurídico, direitos e deveres dos funcionários e agentes", 1.º volume, pág. 399-401 e 416-420,
da 2.ª Edição, da Coimbra Editora).
Ora, mantendo os gestores em regime de requisição o seu lugar de origem na função pública, onde regressam após a sua exoneração, compreende-se que a sua indemnização inclua apenas a diferença entre o vencimento de gestor e o seu vencimento no lugar de origem, porque só essa diferença é que, num juízo de previsibilidade, é verdadeiramente perdida com a exoneração. Já relativamente aos gestores sem lugar de origem na função pública, não é possível configurar, num juízo de prognose abstracta, o seu ingresso imediato numa função remunerada, pelo que tem justificação que a sua indemnização consista no recebimento dos vencimentos de gestorperdidos por inteiro.
Há ainda que tomar em consideração que a relação de emprego público que os gestores requisitados mantêm após a sua exoneração nos serviços de origem é caracterizada por determinadas limitações que também explicam as diferenças indemnizatórias em caso de exoneração, relativamente aos gestores que não sãosujeitos dessa relação.
Na verdade, é a própria Constituição, na redacção resultante da Revisão de 1982, que prescreve expressamente, em matéria de regime da função pública, por um lado, que não é permitida a acumulação de empregos ou cargos públicos, salvo nos casos expressamente admitidos por lei (artigo 269.º, n.º 4), e, por outro lado, que a lei determina as incompatibilidades entre o exercício de empregos ou cargos públicos ou de outras actividades (artigo 269.º, n.º 5).Acresce que esse regime especial em matéria de acumulação de funções também é aplicável aos funcionários e agentes da administração local, como a Recorrente (artigo
243.º, n.º 2, da C. R. P.).
É fácil compreender o alcance destes traços específicos do regime da função pública.Conforme assinalam Jorge Miranda/Rui Medeiros em anotação ao artigo 269.º da Constituição "... a ratio do n.º 4 encontra-se no princípio da necessária eficácia e unidade de acção da Administração (artigo 267.º, n.º 2). Trata-se de acautelar o cumprimento por parte dos funcionários e agentes das suas tarefas e de, à luz dos princípios de universalidade e de igualdade (artigos 12.º e 13.º), fazer corresponder a cada emprego ou cargo um funcionário ou agente e flanquear o acesso à função pública dos que satisfaçam os correspondentes requisitos..." (in Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, pág. 623, da ed. de 2007, da Coimbra Editora,).
Por outro lado, Gomes Canotilho/Vital Moreira ensinam que "a prescrição do n.º 5 traduz uma imposição legiferante de estabelecimento de incompatibilidades, de modo a garantir não só o princípio da imparcialidade da Administração (cf. artigo 266.º-2) mas também o princípio da eficiência (boa administração). Trata-se de impedir o exercício de actividades privadas que, pela sua natureza ou pelo empenhamento que exijam, possam conflituar com a dedicação ao interesse público ou com o próprio cumprimento dos horários e tarefas da função pública" (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol, pág. 948, da 3.ª Edição, da Coimbra Editora), "Entende-se ser mais rentável e eficaz para o interesse colectivo - afirma Paulo Veiga e Moura (in ob. cit., p. 437) - que os funcionários e agentes só se preocupem com o desempenho das funções próprias da sua categoria, não devendo a sua atenção, dedicação e esforço serem partilhados na prossecução de outros interesses".
Não obstante a denunciada "fuga para o direito privado" a que se tem assistido em vários domínios da Administração Pública para reagir contra o excessivo peso, a inércia e ineficácia da máquina administrativa, a verdade é que o legislador constituinte adoptou um modelo específico de organização dos recursos humanos da Administração Pública, distinto do modelo laboral privado, cuja justificação reside na prossecução do interesse público e na vinculação aos princípios da igualdade, proporcionalidade, boa fé, justiça e imparcialidade (Vide Cláudia Viana, em "O conceito de funcionário público - tempos de mudança?", in Scientia Jurídica, tomo LVI, n.º 312, Out.-Dez. 2007, pág.
610-614).
O legislador ordinário tem tornado operativo o referido comando constitucional em matéria de proibição de acumulação de empregos ou cargos públicos e de estabelecimento de incompatibilidades entre o exercício de funções públicas e o deoutras actividades.
Tomando apenas por referência a legislação vigente no período durante o qual a recorrente foi nomeada para exercer as funções de vogal do conselho directivo do INH - entre 1 de Setembro de 2001 e 31 de Agosto de 2004 -, importa dar conta das soluções adoptadas nas referidas matérias nalguns diplomas com maior relevânciaexplicativa para o caso concreto:
a) Os membros do conselho directivo do INH, sujeitos ao regime especial do Estatuto do Gestor Público, estavam obrigados a exercer as suas funções a tempo inteiro (artigo 8.º n.º 3, do Decreto-Lei 202-B/86, de 22 de Julho, nas redacções sucessivamente dadas pelo Decreto-Lei 460/88, de 14 de Dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º243/2002, de 5 de Novembro).
b) Paralelamente, o pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central e local do Estado, e da administração regional, bem como, com as necessárias adaptações, dos institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos, exercia funções em regime de exclusividade, estando, assim, a acumulação de cargos ou lugares públicos remunerados, bem como o exercício de actividades privadas pelos titulares dos cargos dirigentes, dependentes de previsão legal expressa ou de autorização do membro do Governo competente (artigo 22.º, n.os 1 a3, da Lei 49/99, de 22 de Junho).
c) Residualmente, o exercício de funções públicas nos serviços e organismos da Administração Pública, incluindo os institutos públicos nas modalidades de serviços personalizados do Estado e de fundos públicos, também era norteado pelo princípio da exclusividade, estando, assim, a acumulação de cargos ou lugares na Administração Pública dependente de autorização nos casos e nas condições previstos na lei, e o exercício de outras actividades pelos funcionários ou agentes do Estado dependente de autorização prévia do membro do governo competente (artigos 1.º, n.º 1, e 12.º, do Decreto-Lei 184/89, de 2 de Junho, e artigos 31.º e 32.º do Decreto-Lei n.º427/89, de 7 de Dezembro).
d) Os funcionários autárquicos, nomeadamente os assessores principais, também se encontravam mutatis mutandis sujeitos às limitações referidas em último lugar (artigos 1.º, n.º 1, e 8.º, do Decreto-Lei 409/91, de 17 de Outubro).e) Finalmente, a partir de 1 de Fevereiro de 2004, os membros dos conselhos directivos dos institutos públicos passaram a estar sujeitos ao estatuto do pessoal dirigente da Administração Pública, aprovado pela aludida Lei 49/99 (artigo 25.º, n.º 1, da Lei 3/2004, de 15 de Janeiro, que aprovou a lei quadro dos institutos
públicos).
Da referido quadro normativo resulta que o legislador ordinário não deixou de acentuar a exigência constitucional da regra geral de exercício de funções públicas com carácter de exclusividade e a excepcionalidade da acumulação de funções públicas.E é no âmbito da filosofia orientadora desse quadro que também se deve ler o n.º 6, do artigo 6.º, do Decreto-Lei 484/82, de 9 de Dezembro.
Assim, à luz desta orientação constitucional, é fácil de entender que a lei, coerentemente, também queira impedir um funcionário público, que exerceu transitoriamente as funções de gestor público, de alcançar, pela exoneração, o benefício patrimonial correspondente à acumulação de funções públicas que, em princípio, lhe estava estatutariamente negado, quer antes, quer até durante a própria requisição.
Ora, esta limitação não ocorre na situação dos gestores públicos sem lugar de origem na função pública que também tenham sido exonerados por mera conveniência de serviço, os quais podem retomar plenamente o exercício de outras funções remuneradas no sector privado após a exoneração, porque deixam de estar sob a incidência de qualquer proibição ou restrição de acumulação de funções remuneradas - sendo certo que, ressalvadas as necessárias e pertinentes incompatibilidades legalmente fixadas, estes gestores públicos até já gozavam de alguma generosidade nesta matéria de acumulação de funções privadas durante o próprio mandato como vogal do conselho directivo do INH, conforme resulta do regime jurídico menos vinculado em matéria de autorização de exercício de outras funções remuneradas que se encontrava estatuído no artigo 11.º, n.º 2, do EGP de 1982, e no artigo 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei 202-B/86, na redacção dada pelo Decreto-Lei 460/88, de 14 de Dezembro.
Do exposto resulta que a diferenciação entre as indemnizações fixadas à forfait para a exoneração por conveniência de serviço dos gestores requisitados e dos gestores sem lugar de origem na função pública, não é de modo algum arbitrária, revelando-se
perceptivelmente fundamentada.
Mas, se a Recorrente aceita que a sua indemnização tenha como critério a diferença entre o vencimento de gestor público e aquele que vai auferir no seu lugar de origem, o mesmo já não sucede no que respeita ao valor do limite máximo da sua indemnização,na interpretação da decisão recorrida.
Entendeu o acórdão recorrido, lendo conjugadamente os n.º 2 e 6, do artigo 6.º, do Decreto-Lei 484/82, de 9 de Dezembro, que a indemnização devida aos gestores requisitados, não pode ser superior à diferença existente entre as remunerações vincendas como gestor público e as processadas no seu lugar de origem, durante o período de um ano, enquanto a indemnização devida aos gestores sem lugar de origem na função pública tem como limite o total das remunerações vincendas como gestor público durante o mesmo período de um ano (n.º 2, do artigo 6.º).Nesta interpretação, a ambas as indemnizações à forfait encontra-se aposto um tecto, através do estabelecimento de um número máximo de remunerações vincendas que podem ser consideradas para efeito do seu cálculo.
Com a imposição destes tectos ameniza-se a responsabilidade do Estado, de forma a diminuir o risco de serem pagas indemnizações acima do valor real dos prejuízos sofridos, por força da fixação abstracta antecipada do montante indemnizatório devido pela exoneração por conveniência de serviço. Assentando essa fixação num juízo de prognose abstracta, entendeu-se que só é possível prever que os gestores exonerados vão perder a diferença entre os dois vencimentos (no caso dos gestores requisitados) ou o vencimento de gestor por inteiro (no caso dos gestores sem lugar de origem na função pública) por um período de um ano, mercê da volatilidade das condições de
vida profissional.
Estando esses tectos, na interpretação da decisão recorrida, numa relação de proporcionalidade directa, relativamente ao valor daquelas duas diferentes indemnizações, pode dizer-se que eles integram uma solução jurídica global da questão do cálculo do montante indemnizatório devido pela exoneração dos gestores públicos,por conveniência de serviço.
O critério adoptado para a fixação dos tectos é exactamente o mesmo para as duas indemnizações - perda de retribuições durante um ano -, resultando apenas em valores diferentes porque a indemnização dos gestores requisitados é calculada em função da diferença entre a remuneração que auferiam como gestores públicos e a que vão auferir no seu lugar de origem na função pública, e a indemnização dos gestores sem esse lugar corresponde por inteiro à remuneração que auferiam como gestores públicos.A diferença de tectos reflecte, pois, apenas a diferença de critérios de cálculo das duas indemnizações, pelo que as razões desta última diferenciação se estendem à diferença dos limites máximos das duas indemnizações.
Isto é, se o regime da requisição, com conservação do lugar de origem na função pública, justificava que a indemnização pela exoneração por conveniência de serviço atribuída ao gestor público requisitado fosse inferior à do gestor público sem lugar de origem na função pública, também justifica que os tectos apostos a estas indemnizações
reflictam essa diferença, na mesma medida.
Por isso, também a diferenciação dos limites máximos destas duas indemnizações não se revela arbitrária, uma vez que não se verifica que das escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário, na interpretação fiscalizada, resultem diferenças de tratamento entre os gestores públicos exonerados por conveniência de serviço que não encontrem justificação em fundamentos perceptíveis, inteligíveis e razoáveis, tendo em conta as finalidades que, com a medida da diferença, se visaram.
Decisão
Nestes temos decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei 464/82, de 9 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a indemnização devida ao gestor público, que exerça as suas funções em regime de requisição, não pode ser superior à diferença existente entre as remunerações vincendas como gestor público e as processadas no seu lugar de origem, durante o período de um ano.b) e, consequentemente, negar provimento ao recurso interposto para o Tribunal Constitucional por Maria de Lurdes Puga Alvarez do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nestes autos em 4 de Junho de 2009.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 3 de Março de 2010. - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro - Benjamim Rodrigues - Rui Manuel Moura Ramos.
203088582