Acórdão 639/2005/T. Const. - Processo 189/2005. - 1 - Pelo Tribunal do Trabalho do Barreiro intentaram Domingos Cecília de Jesus, Eugénio Joaquim Barranhas, José da Conceição Nunes Lopes, Fernando Alves Talhadas, Carlos Alberto Faísca de Jesus, Manuel António Gatinho Guerreiro, Mário Pereira Dias, Manuel Francisco Moreira Galhardo, Jorge da Silva Chula, Fernanda de Jesus Marques Harrington Sena, Francisco Manuel do Rosário Soares, Baltazar Ambrósio Baião Madeira, Hélder Guerreiro Carvalho, António Manuel da Conceição Augusto, Custódio Máximo Raposinho dos Santos, João Codices Figueiras, António de Matos Marques, Algir Orlando Rodrigues Prosódio, Alberto Chaves Ferreira, Álvaro Augusto Fernandes Custódio, Victor Manuel Jesus Silva, José Manuel Guerreiro Amaro, José Herculano Neto Gabriel, António Manuel Marques dos Santos (posteriormente falecido, intervindo nos autos, como habilitados, Maria de Lurdes Marques Moura dos Santos e Sérgio Manuel Marques Moura), Mário José Almeida Cavaco, José dos Santos Fernandes, José Manuel de Jesus Ferreira, José António Portela, Aristides do Rosário Almeida, Martinho Eduardo Silveira Fortio, Valentim José Cartaxo de Paiva Caracho, António Marcelino Costa Nogueira, João Agostinho Tavares Malheiro Fera, Joaquim Augusto dos Santos Roque, Manuel Cecília Domingos Fernandes, José Manuel Bento Pola, António Joaquim Oliveira Santos, Francisco José Pedras, Rogério Mário de Sousa, Bernardino Gouveia da Costa Tavares, Manuel Duarte Gomes Nogueira, Manuel Marques Pereira, João Augusto Loureiro Monteiro, Orlando Pires Alves, Agostinho Fernando Rodrigues Gomes e Manuel Bento Costa Ramalho, contra QUIMITÉCNICA, S. A., acção, seguindo a forma de processo comum, solicitando a condenação da ré a pagar-lhes determinadas importâncias, que discriminaram, que lhes seriam devidas a título de diuturnidades de antiguidade e de diferença de subsídio de alimentação e, bem assim, de montantes, cujo quantitativo se apuraria em execução de sentença, que igualmente lhes seriam devidos a título de remuneração de trabalho em dias de descanso semanal, obrigatório e complementar, de trabalho suplementar, de descanso compensatório por trabalho suplementar efectuado em dias de descanso e de trabalho nocturno, de complemento de subsídio de doença profissional ou acidente de trabalho, de subsídio de antecipação e prolongamento, de subsídio de medicamentos, de subsídio de livros escolares e de compensação por mudança de turno.
Invocaram, para tanto, em síntese, que, tendo a ré tido a sua génese na QUIMIGAL, E. P., que, por via do Decreto-Lei 25/89, de 20 de Janeiro, foi transformada na QUIMIGAL, S. A., a qual, por sua vez, foi "desmembrada", dando origem a várias empresas, de entre as quais a aludida ré, aos trabalhadores desta eram de aplicar as regras do acordo de empresa da QUIMIGAL, E. P., publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 7, de 22 de Fevereiro de 1986, acordo esse que, por via de certas cláusulas, lhes conferiria o direito às importâncias reclamadas e que a ré se recusava a pagar, pretextando que tal acordo não era aplicável.
Tendo, por sentença proferida em 23 de Agosto de 2002, sido entendido ser aplicável à relação laboral entre as partes o acordo de empresa da QUIMIGAL, E. P., e, em consequência, julgada procedente a acção e o pedido reconvencional nela formulado pela ré, sendo relegado para execução de sentença o apuramento dos quantitativos devidos aos autores, apelaram os autores e a ré para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por Acórdão de 15 de Outubro de 2003, negou ambos os recursos.
De novo inconformada pediu a ré revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na alegação adrede produzida, para o que ora releva, a ré formulou as seguintes "conclusões":
"9) O artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei 25/89 teve como objectivo determinar e apontar, de forma inequívoca, que os trabalhadores passavam, automaticamente, para as novas empresas resultantes da QUIMIGAL, S. A., não havendo lugar a qualquer outra solução alternativa, designadamente a que consta da parte final do n.º 1 do artigo 37.º da LCT;
10) E transitavam sujeitos às regras estabelecidas na legislação aplicável, o artigo 37.º da LCT no que respeita aos aspectos individuais e o artigo 9.º do Decreto-Lei 519-C1/79 no que respeita à regulamentação das relações colectivas de trabalho;
11) Portanto, a douta decisão recorrida, ao decidir pela sobrevigência do AE/Quimigal, errou na interpretação do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 e violou o disposto no artigo 37.º da LCT e o artigo 9.º do Decreto-Lei 519-C1/79, este último com a redacção que detinha ao momento da privatização da recorrente;
12) Sendo o processo de privatização da QUIMIGAL, S. A., a via política encontrada para viabilizar e assegurar a continuidade desta empresa, através da sua divisão em actividades autónomas e com maior capacidade, seria contra natura que se pretendesse sujeitar as novas empresas a um AE/QUIMIGAL perfeitamente desajustado e que havia sido pensado e negociado para vigorar numa estrutura empresarial gigantesca e multifacetada;
13) Não se pode conceber, perante propósito tão claro e importante, que o legislador quisesse a sobrevigência do AE/QUIMIGAL pondo em causa a viabilidade das novas empresas que consubstanciavam a continuidade da QUIMIGAL, S. A.;
14) E, na verdade, embora não sendo legítimo procurar interpretar o Decreto-Lei 25/89 com a alínea c) do n.º 1 do artigo 296.º da Constituição da República Portuguesa e a Lei Quadro das Privatizações, designadamente o seu artigo 19.º, porque posteriores, o que é certo é que estas mesmas disposições legais jamais permitem a conclusão a que chega a decisão recorrida;
15) Quer o legislador constitucional quer o legislador ordinário apenas pretendem assegurar a neutralidade do processo de reprivatização em relação aos trabalhadores envolvidos, em qualquer fase do processo, mantendo os seus direitos e obrigações, mas não lhes concedendo novos direitos;
16) Nenhuma razão política ou social, nenhum factor legitimador, permite a conclusão da decisão recorrida de que os trabalhadores das empresas privatizadas têm mais um direito que todos os restantes trabalhadores - o direito ao IRCT aplicável no momento da privatização;
17) Logo, ao interpretar dessa forma o n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 estaria este ferido de inconstitucionalidade material por violar o princípio da igualdade e não discriminação consagrado no artigo 13.º da Constituição da República;
18) Por outro lado, a interpretação do já citado artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei 25/89 feita no acórdão recorrido, que manteve a decisão de primeira instância recorrida, acaba por interferir na conformação do direito à contratação colectiva, originando ainda um desequilíbrio injustificado no âmbito do exercício do direito à autonomia colectiva;
19) Como já se demonstrou, o direito à contratação colectiva é um direito fundamental dos trabalhadores, pelo que qualquer alteração à sua forma ou ao seu conteúdo é matéria que não é da competência do Governo, sendo certo que o Decreto-Lei 25/89 emanou do exercício da competência do Governo e não ao abrigo de qualquer autorização legislativa da Assembleia da República;
20) Logo, a interpretação do artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei 25/89, que o acórdão recorrido consagra, implicaria a inconstitucionalidade orgânica desta disposição legal, por violação do disposto nos artigos 57.º, n.º 3, e 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República na versão de 1982, hoje artigos 56.º, n.º 3, e 165.º, n.º 1, alínea b)."
O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 15 de Fevereiro de 2005, negou a revista.
Nesse aresto, e quanto à questão de saber se à relação entre as "partes" era aplicável o acordo de empresa da QUIMIGAL, foi retomado o entendimento perfilhado pelo Acórdão uniformizador de jurisprudência 1/2000, de 16 de Dezembro de 1999, publicado na 1.ª série-A do Diário da República de 2 de Fevereiro de 2000, entendimento esse segundo o qual o artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 veio estabelecer um regime especial para salvaguarda de todos os trabalhadores envolvidos no processo de privatização da QUIMIGAL, E. P., que se sobrepõe ao regime geral constante do artigo 9.º da LRCT aprovada pelo Decreto-Lei 519-C-1/79, de 29 de Dezembro, regime esse que não era aplicável aos casos de reprivatização de empresas públicas e por via do qual se visou assegurar aos trabalhadores transferidos para as empresas a criar pela cisão da QUIMIGAL, S. A., a manutenção de todos os direitos e regalias de que eram titulares na QUIMIGAL, E. P., independentemente de terem como fonte a lei o contrato individual de trabalho ou a convenção colectiva, sendo que a introdução da alínea c) do n.º 1 do artigo 296.º da Constituição, ao prescrever que os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares, visou afirmar a peculiaridade do processo de reprivatização, com o fim de impedir o retrocesso social desses trabalhadores, resultado que só seria conseguido se se entendesse que no bloco de direitos e obrigações da titularidade dos trabalhadores transferidos para as empresas criadas a partir da QUIMIGAL, S. A., estava integrado o acordo de empresa que vinculava a QUIMIGAL, E. P., sob pena de ficar defraudado o objectivo daqueles artigo 6.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 289.º
E, enfrentando as questões da invocada ofensa do princípio da igualdade e de inconstitucionalidade orgânica, concluiu o acórdão:
Quanto ao primeiro vício, que o mesmo se não deparava, pois que "ao estipular-se a manutenção dos direitos, obrigações e regalias dos trabalhadores, [...] está-se a tratar de forma igual todos os trabalhadores transferidos para as empresas criadas a partir da cisão da QUIMIGAL, S. A.", não se podendo "afirmar a existência de uma discriminação desses trabalhadores das empresas privatizadas em relação aos restantes trabalhadores em geral, pois [...] nada impede que razões objectivas determinem a diferença de tratamento em relação àqueles trabalhadores, quando o próprio ordenamento constitucional lhes salvaguardou - nas empresas objecto de reprivatização - a manutenção dos direitos e obrigações de que eram titulares".
Pelo que tange ao segundo vício, que, identicamente, o mesmo se não vislumbrava, já que "não se verifica qualquer limitação ao direito de contratação colectiva, mas sim o que está em causa com a aludida interpretação do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 é a manutenção dos direitos, obrigações e regalias dos trabalhadores constantes de um acordo de empresa", nada impedindo "a substituição desse acordo de empresa por outro instrumento de regulamentação colectiva; isto é, da interpretação do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 não resulta a manutenção, indefinidamente, dos direitos e obrigações constantes do AE/QUIMIGAL, antes é imposto um limite a tal vigência, até que o AE seja substituído por outro instrumento de regulamentação colectiva.
Aliás, não deixa de existir o direito à contratação colectiva pela circunstância de se impor um limite temporal mínimo de vigência dessa mesma contratação colectiva - n.º 1 do artigo 11.º da LRCT - e a vigência efectiva até à sua substituição por outro IRCT - n.º 2 do mesmo preceito legal".
Do acórdão prolatado em 15 de Fevereiro de 2005 veio a autora interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez por intermédio de requerimento com o seguinte teor:
"QUIMITÉCNICA - Serviços, Comércio e Indústria de Produtos, S. A., recorrente nos autos à margem referenciados, notificada do douto acórdão proferido, vem pelo presente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos, nos termos dos artigos 69.º e seguintes da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com as revisões operadas pelas Leis 88/95, de 1 de Setembro e 13-A/98, de 26 de Fevereiro, e ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, por força da interpretação defendida pela decisão recorrida do artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei 25/89, de 20 de Janeiro, a qual, a ser procedente, tornaria esta norma ferida de inconstitucionalidade material por violação do princípio da não discriminação consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa e ferida também de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que incidindo a mesma sobre a conformação do direito à contratação colectiva não seria da competência do Governo legislar sobre esta matéria, de acordo com o estabelecido nos artigos 57.º, n.º 3, e 168.º, n.º 1, alínea b), da CRP na versão de 1982 e que hoje são os artigos 56.º, n.º 3, e 165.º, n.º 1, alínea b) (v. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 517/98 e 634/98).
A questão da constitucionalidade foi suscitada pela recorrente na contestação apresentada no tribunal de 1.ª instância e foi mantida nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e nas alegações do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça."
Pretendendo-se a apreciação por este Tribunal da conformidade constitucional de uma norma alcançada por interpretação de dado preceito, e já que a dimensão interpretativa não foi indicada no requerimento de interposição de recurso, foi a impugnante, por despacho proferido em 14 de Março de 2005 pelo relator, convidada a prestar, de forma precisa, tal indicação, vindo ela, na sequência, a apresentar "requerimento" com o seguinte teor:
"QUIMITÉCNICA - Serviços, Comércio e Ind[ú]stria de Produtos, S. A., recorrente nos autos à margem referenciados, tendo sido notificada para indicar, de forma precisa, a dimensão interpretativa que foi dada pelo acórdão recorrido ao n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89, de 20 de Janeiro, vem dar cumprimento ao douto despacho nos termos seguintes:
Conforme se refere no requerimento de interposição do recurso, a interpretação defendida pelo acórdão recorrido em relação ao n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 tornaria esta disposição legal ferida de inconstitucionalidade material e também orgânica.
Material, porquanto considera incluído no âmbito dos direitos salvaguardados ao abrigo do já citado n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 o direito dos trabalhadores da QUIMIGAL a verem continuar a aplicar-se-lhes o designado 'AE/QUIMIGAL' após a desafectação do estabelecimento em que prestavam serviço para a nova empresa criada a partir da QUIMIGAL, e não considerando, como deveria ser, que a este tipo de situações se aplica o disposto no artigo 9.º do Decreto-Lei 519-C1/79, à semelhança do que ocorre em todas as situações da mesma natureza.
Portanto e sem qualquer justificação aceitável, os trabalhadores da QUIMIGAL teriam um tratamento de privilégio em relação a todos os restantes trabalhadores na mesma situação de cessão total ou parcial do estabelecimento em que prestavam serviço para outra empresa já constituída ou a constituir.
Esta situação de privilégio viola o disposto no artigo 13.º da CRP (princípio da igualdade e não discriminação).
Orgânica, porquanto ao reconhecer aos trabalhadores da QUIMIGAL tal direito, o legislador do Decreto-Lei 25/89 interferiu directamente na configuração do direito de contratação colectiva, impondo a aplicação de um IRCT por tempo indeterminado a uma empresa e aos trabalhadores transferidos, quando essa mesma empresa ou a associação patronal que eventualmente a representasse não participou nem foi parte na negociação do instrumento em causa.
Por outras palavras, tal interpretação assumida pelo acórdão recorrido interfere no direito de contratação colectiva e no seu exercício, designadamente por parte das associações sindicais.
Esta matéria, inserida no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, é, em termos de competência legislativa, da reserva relativa da Assembleia da República [v. artigos 57.º, n.º 3, e 168.º, n.º 1, alínea b), da CRP, versão de 1982, e artigos 56.º, n.º 3, e 165.º, n.º 1, al[ínea] b), versão actual, e ainda os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 517/98 e 634/98].
Ora o legislador do Decreto-Lei 25/89 não estava cometido de autorização legislativa para legislar sobre esta matéria.
Assim, a inconstitucionalidade orgânica é evidente."
Tendo o relator, em 30 de Março de 2005, lavrado decisão, ex vi do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei 28/82, a não tomar conhecimento do objecto do recurso, da mesma reclamou a QUIMITÉCNICA.
Este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão 290/2005, decidiu atender a reclamação e determinar o prosseguimento dos autos.
Consequentemente, foi determinada a produção de alegações.
2 - Rematou a QUIMITÉCNICA a alegação por si produzida com as seguintes "conclusões":
"a) Pelas razões invocadas, o artigo 6.º, n[.º]2, do Decreto-Lei 25/89, entendido como pretendem o Acórdão do STJ recorrido e o Acórdão 1/2000, cria uma flagrante desigualdade de tratamento entre, por um lado, os trabalhadores transferidos da QUIMIGAL, S. A., a partir desta última, face aos demais trabalhadores.
a.1) Desigualdade que não se justifica a qualquer título que seja, já que nenhum processo de reestruturação e reprivatização de uma EP legitima que os trabalhadores envolvidos sejam privilegiados em relação aos restantes trabalhadores, adquirindo, como seria o caso, a ver apropriado um novo direito, que seria o da apropriação do AE QUIMIGAL nos seus contratos individuais de trabalho.
b) Por outro lado, entre as novas entidades criadas, enquanto empregadores, e os demais empregadores nova discriminação injustificada resultará da interpretação acolhida pelo acórdão recorrido, consubstanciada na sujeição a um IRCT para além do período temporal que a lei consagrara para toda e qualquer empresa quando se está perante uma situação de transferência de uma empresa ou estabelecimento a qualquer título.
c) Pelo que tais discriminações são violadoras do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, ou seja, a interpretação aludida do artigo 6.º d[o] Decreto-Lei 25/89 implicaria a sua inconstitucionalidade material.
d) A interpretação do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 defendida no acórdão recorrido também consubstancia uma nova confrontação do direito da contratação colectiva, aliás profundamente incorrecta, e desvirtuamento do papel dos parceiros sociais na contratação colectiva, sendo certo que conforme também já se demonstrou que sendo o direito de contratação colectiva um direito fundamental dos trabalhadores, não tendo o Decreto-Lei 25/89 precedido de autorização legislativa a interpretação em causa originaria a inconstitucionalidade orgânica da invocada disposição legal."
Por seu turno, os recorridos não vieram a produzir resposta à alegação.
Cumpre decidir.
3 - Após ter ocorrido a nacionalização das empresas Amoníaco Português, S. A. R. L., Nitratos de Portugal, S. A. R. L., e Companhia União Fabril, S. A. R. L., foram tais empresas, por intermédio do Decreto-Lei 530/77, de 30 de Dezembro, fundidas na empresa pública a que se deu a denominação de QUIMIGAL - Química de Portugal, E. P.
Em 20 de Julho de 1988 veio a lume a Lei 84/88, por intermédio da qual se possibilitou que as empresas públicas, ainda que nacionalizadas, fossem, mediante decreto-lei, transformadas em sociedades anónimas de capitais públicos ou de maioria de capitais públicos, nos termos da Constituição e dessa lei (cf. o seu artigo 1.º e, também, o seu artigo 8.º).
De harmonia com tal diploma, a possibilitada transformação não poderia implicar a reprivatização do capital nacionalizado (com excepção dos casos previstos no n.º 2 do artigo 83.º da versão da Constituição emergente da revisão constitucional operada pela Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro), devendo salvaguardar que a maioria absoluta fosse sempre detida pela parte pública e que a representação da parte pública nos órgãos sociais fosse sempre maioritária (cf. o n.º 1 do artigo 2.º). E, por outro lado, determinou-se que a sociedade anónima que viesse a resultar da transformação continuaria a personalidade jurídica da empresa pública transformada, mantendo todos os direitos e obrigações legais ou contratuais desta (cf. o n.º 1 do artigo 3.º).
Na sequência da possibilidade conferida pela referida Lei 84/88, editou o Governo o Decreto-Lei 25/89, de 20 de Janeiro, que procedeu à transformação da QUIMIGAL - Química de Portugal, E. P., numa sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos denominada QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., a qual, conforme se preceituou no seu artigo 2.º, sucedeu automática e globalmente àquela empresa pública, continuando a personalidade jurídica desta e conservando a universalidade dos direitos e obrigações legais, estatutárias e contratuais que constituíam o património desta no momento da transformação.
Por entre outras disposições, consagrou-se no artigo 6.º daquele Decreto-Lei 25/89:
"Artigo 6.º
1 - Os trabalhadores e pensionistas na QUIMIGAL - Química de Portugal, E. P., mantêm perante a QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., todos os direitos e obrigações que detiverem à data da entrada em vigor do presente diploma.
2 - Os direitos, obrigações e regalias dos trabalhadores que fiquem afectos à QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., serão transferidos para as empresas a criar a partir desta sociedade, a partir da data em que sejam constituídas e conforme a respectiva subordinação.
3 - Os funcionários do Estado, de autarquias locais, de institutos públicos e de empresas públicas ou de sociedades anónimas de capitais públicos podem ser autorizados a exercer funções na QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., em regime de requisição, conservando todos os direitos e regalias inerentes ao seu quadro de origem, incluindo antiguidade, reforma e outras regalias.
4 - A situação dos trabalhadores da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., que sejam chamados a ocupar cargos nos órgãos da empresa, bem como os que sejam requisitados para exercer funções em outras empresas ou serviços públicos, em nada será prejudicada por esse facto, regressando aos seus lugares logo que terminem o mandato ou o tempo de requisição."
Após a revisão constitucional operada pela Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho, ficou prevista na Constituição a possibilidade de reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 (sendo que, antes daquela revisão constitucional, se impunha a regra segundo a qual todas as nacionalizações efectuadas depois de 15 de Abril de 1974 eram conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras - cf. o artigo 83.º da versão originária da lei fundamental e da versão decorrente da revisão constitucional operada pela Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro -, admitindo-se apenas, e a título excepcional, a possibilidade de as pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas, fora dos sectores básicos da economia, serem integradas no sector privado, desde que os trabalhadores não optassem pelo regime de autogestão ou de cooperativa).
Assim, na sequência da terceira revisão constitucional, o artigo 85.º do diploma básico comportou a seguinte redacção:
"Artigo 85.º
Nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974
1 - A reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 só poderá efectuar-se nos termos da lei quadro aprovada por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções.
2 - As pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas situadas fora dos sectores básicos da economia poderão ser reprivatizadas nos termos da lei."
E, do mesmo passo, veio-se a prescrever no n.º 3 do artigo 87.º que a lei definiria os sectores básicos nos quais era vedada a actividade às empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza, vindo-se, por outro lado, a consagrar no texto constitucional uma disposição final e transitória - o artigo 296.º, que assim passou a rezar:
"Artigo 296.º
Princípios para a reprivatização prevista no n.º 1 do artigo 85.º
A lei quadro prevista no n.º 1 do artigo 85.º observará os seguintes princípios fundamentais:
a) A reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 realizar-se-á, em regra e preferencialmente, através de concurso público, oferta na bolsa de valores ou subscrição pública;
b) As receitas obtidas com as reprivatizações serão utilizadas apenas para amortização da dívida pública e do sector empresarial do Estado, para o serviço da dívida pública resultante de nacionalização ou para novas aplicações de capital no sector produtivo;
c) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares;
d) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização adquirirão o direito à subscrição preferencial de uma percentagem do respectivo capital social;
e) Proceder-se-á à avaliação prévia dos meios de produção e outros bens a reprivatizar, por intermédio de mais de uma entidade independente."
No seguimento da possibilidade aberta pela terceira revisão constitucional, foi editada a Lei 11/90 - Lei Quadro das Privatizações -, que veio a revogar a Lei 84/88, salvaguardando, porém, o que se dispôs no seu artigo 27.º, que assim comanda:
"Artigo 27.º
Disposição transitória
1 - Os processos de transformação operados nos termos da Lei 84/88, de 20 de Julho, deverão concluir-se ao abrigo dessa legislação, salvo se o Governo preferir convolá-los em processo de reprivatização ao abrigo da presente lei, mediante prévia alteração do respectivo diploma de transformação.
2 - Nos processos que não forem convolados nos termos número anterior poderá ser reduzido para um ano o prazo previsto no n.º 3 do artigo 5.º da Lei 84/88, de 20 de Julho, devendo ser assegurado o cumprimento dos requisitos constantes das alíneas c) e d) do n.º 1 e do n.º 5 do artigo 5.º da mesma lei."
Em 15 de Outubro de 1990, o Governo editou o Decreto-Lei 319/90, cujos objectivos ficaram definidos no respectivo exórdio da seguinte forma:
"A futura reprivatização da QUIMIGAL, S. A., não pode deixar de ter em conta a sua prévia reestruturação empresarial, definida pelo Governo e concretizada através de empenhamento financeiro nacional com aprovação comunitária.
A estratégia dessa reestruturação assenta fundamentalmente em dois vectores: a autonomização jurídica e empresarial de áreas de actividades que integram a QUIMIGAL, deixando a esta uma função residual de exercício indirecto de actividades económicas, com as características de sociedade gestora de participações sociais; alienação de capital social das sociedades resultantes daquelas autonomizações e, bem assim, de participações em outras sociedades, de acordo com as opções por áreas de actividade, visando o seu fortalecimento através de parceiros sociais criteriosamente escolhidos e mantendo um controlo estratégico sobre as várias empresas incluídas naqueles sectores de actividade.
A prossecução desses objectivos, essenciais à valorização da empresa, através da sua reestruturação e saneamento económico-financeiro, exige e justifica que, enquanto decorra esse processo, a alienação das participações de ambos os tipos, bem como da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção nacionalizados, se faça através de venda directa, assumindo-se apenas para a QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., a alienação do capital social nos termos preferenciais da Lei 11/90, de 5 de Abril, para a qual se convola o processo de reprivatização da empresa como é facultado pelo artigo 27.º da mesma lei, não sendo despiciendo salientar o facto de o valor daquela vir necessariamente a reflectir a melhoria económico-financeira resultante daquelas operações, traduzindo-se, pois, num benefício efectivo quer para o Estado quer para os que venham a adquirir acções da QUIMIGAL aquando da sua reprivatização.
Na mesma ordem de ideias se justifica que, também transitoriamente, enquanto decorra o processo de reestruturação empresarial e de reequilíbrio financeiro da empresa, as receitas das alienações de participação social revertam integralmente para a QUIMIGAL, sem o que dificilmente seria possível a consecução daquele objectivo."
Assim, o Decreto-Lei 319/90 veio conferir nova redacção ao artigo 3.º do Decreto-Lei 25/89, passando o n.º 5 a dispor que a alienação do capital social da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., quando o Estado o julgue oportuno, será regulada nos termos da Lei 11/90, de 5 de Abril, por decreto-lei específico, e vindo a ser aditados os n.os 7, 8 e 9, com a seguinte redacção:
"7 - A alienação de capital social das sociedades resultantes da autonomização de áreas de actividade da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., ainda que pela associação ou fusão com terceiros, para as quais tenham sido transferidos activos produtivos da mesma, bem como a da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção nacionalizados, será feita por venda directa, precedida de consultas limitadas, competindo ao Conselho de Ministros a aprovação do caderno de encargos, a escolha dos adquirentes e a definição das condições específicas da transacção.
8 - O produto total das alienações de participações sociais, incluindo as referidas no n.º 7, será integralmente aplicado na amortização da dívida da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., e do respectivo equilíbrio económico-financeiro.
9 - As disposições constantes dos n.os 1 e 8 vigoram apenas até que a resolução do Conselho de Ministros dê por findo o processo de reestruturação empresarial e de reequilíbrio financeiro da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A."
3.1 - Dos transcritos normativos resulta que, antecedentemente à privatização da empresa, então denominada QUIMIGAL - Química de Portugal, E. P. - empresa pública que resultou da fusão de diversas empresas que, após 25 de Abril de 1974, foram nacionalizadas -, foi ela objecto de transformação numa sociedade anónima que, por força da Lei 84/88, por entre o mais, haveria de obedecer à circunstância de a maioria do respectivo capital social ser sempre detido pela parte pública.
Em face da transformação daquela empresa pública em sociedade anónima de capital maioritariamente público, foram mantidos aos trabalhadores e pensionistas daquela empresa todos os direitos e obrigações que detinham à data da entrada em vigor do diploma que a tal transformação procedeu, manutenção que foi estendida às (futuras e eventuais) criadas empresas que se constituíssem a partir da sociedade que resultou da transformação.
Estava-se, ainda, numa ocasião temporal em que as nacionalizações eram, constitucionalmente, tidas como uma conquista irreversível das classes trabalhadoras, o que implicava a irreversibilidade daquelas.
Com a terceira revisão constitucional, proporcionou-se a oportunidade - nos termos que se viram já de ser reprivatizada a titularidade ou o direito de exploração dos meios de produção nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974, de acordo com uma lei quadro que, também constitucionalmente, haveria, inter alia, de observar o princípio segundo o qual os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manteriam, no processo, todos os direitos e obrigações de que foram titulares (cf., sobre a questão, os n.os 7 e 8 do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 71/90, publicado na 2.ª série do Diário da República de 18 de Julho de 1990).
Entretanto, ou seja, antes da vigência da Lei 11/90 e do Decreto-Lei 319/90, a QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., tinha sido "reestruturada", vindo a ser criadas ou constituídas novas empresas conforme as áreas de actividade económica de que curava aquela sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, empresas essas que ainda não desfrutavam do estatuto de empresas privatizadas (pois que o respectivo capital ficou, originariamente, a pertencer àquela), entre estas se contando a ora impugnante.
3.3 - É neste contexto que o acórdão impugnado sufragou a interpretação do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 cuja harmonia com a Constituição é contestada pela recorrente.
Devendo, desde já e quanto a este ponto, sublinhar-se que se não contém nos poderes de cognição deste Tribunal a questão de saber se a interpretação ínsita na decisão recorrida é aquela que se mostra mais consonante com a hermenêutica de interpretação das leis, não se irá sem dizer que o sentido interpretativo conferido pelo acórdão agora sub specie não deixa, de qualquer forma, de ter um mínimo de correspondência com a literalidade do aludido n.º 2 do artigo 6.º
Na verdade, é perfeitamente sustentável um entendimento segundo o qual dos n.os 1 e 2 daquele artigo resulta a "neutralidade" da transformação da QUIMIGAL - Química de Portugal, E. P., na QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., e da criação das empresas a partir desta última relativamente aos direitos e obrigações, legais ou contratuais, detidos pelos trabalhadores daquela empresa pública.
Nestes termos, o que incumbe a este Tribunal é aferir da compatibilidade ou não compatibilidade com a lei fundamental por banda do sentido normativo acolhido na decisão recorrida.
Se bem se entende a tese da recorrente, como resulta do relato levado a efeito no presente aresto, a mesma perfilha a óptica segundo a qual deveria o n.º 2 do artigo 6.º ser entendido no sentido de, mantendo embora os trabalhadores e pensionistas da QUIMIGAL - Química de Portugal, E. P., ao tempo da transformação dessa empresa numa sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, o acervo de direitos e obrigações de que desfrutavam no período em que aquela empresa era caracterizada como empresa pública, tal manutenção não haveria de subsistir quando fossem "criadas" ou "constituídas" novas empresas "a partir" da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., e nos respectivos estabelecimentos fossem "colocados" alguns desses trabalhadores; e isso sob pena de, sustentando-se entendimento diverso, se postar uma dimensão interpretativa conflituante com a Constituição em duas vertentes:
Por um lado, porque, por seu intermédio, se concederia aos trabalhadores da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., uma posição diversificada relativamente aos demais trabalhadores, quer de empresas públicas quer privadas, sem que existisse um fundamento razoável para tanto, desta sorte se violando o princípio da igualdade postulado pelo artigo 13.º, n.º 1, do diploma básico, tendo em conta que, quanto aos últimos, em situações de "constituição" de novas empresas a partir da "empresa mãe", regeria o artigo 9.º do Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro - LRCT;
Por outro, porque, ao reconhecer aos trabalhadores da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., o direito de "continuarem" a ser regidos pelo acordo de empresa elaborado ao tempo da QUIMIGAL - Química de Portugal, E. P. (e posteriormente "acolhido" pela QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A.), após a "desafectação" do estabelecimento onde prestavam serviços - por via da criação de novas empresas tituladas por esta -, estar-se-ia a derrogar a aplicação do regime do mencionado artigo 9.º do Decreto-Lei 519-C1/79 e, desse modo, a conformar o direito de contratação colectiva, "com um substancial reforço das associações sindicais outorgantes do AE QUIMIGAL", pelo que, não tendo o Decreto-Lei 25/89 sido precedido de autorização legislativa, enfermava o mesmo de inconstitucionalidade orgânica.
3.4 - Começando pelo segundo dos alegados vícios de enfermidade constitucional, entende-se que a resposta a essa questão não pode deixar de ser negativa.
Efectivamente, as normas dos n.os 1 e 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 limitam-se a salvaguardar a posição jurídica dos trabalhadores de uma empresa que, por um actos reveladores do jus imperium do Estado, começou por ser criada "a partir" de outras empresas cuja nacionalização aquele mesmo jus determinou, empresa essa que veio a ser transformada numa sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos e "a partir" da qual iriam ser "criadas" ou "constituídas" novas empresas, salvaguarda essa que regeria tão-só para os momentos da transformação e das eventuais "criação" ou "constituição", não se podendo, neste particular, olvidar que, nesses momentos, a maioria do capital, quer da empresa transformada quer das empresas a "criar" ou "constituir", pertencia à mesma entidade - o Estado.
Não se vislumbra, assim, que o intuito daqueles normativos fosse o de impor, designadamente nas empresas a "criar" ou a "constituir" nas áreas de actividade económica da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., a manutenção imutável do ou dos instrumentos de regulação colectiva que regiam as relações laborais entre essa ou essas empresas e os seus trabalhadores que "transitaram" para os estabelecimentos dessa ou dessas empresas. E muito menos se retira que fosse desiderato do legislador ditar a impossibilidade de virem a ser adoptados novos instrumentos de regulação colectiva.
Não se pode, por isso, considerar que o n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 25/89 é de perspectivar como um normativo que interfira directamente no domínio da contratação colectiva; e, nesta senda, a supor-se que esse domínio poderá ser reconduzido à matéria atinente aos direitos, liberdades e garantias, que carecesse ele de autorização parlamentar para a sua edição.
3.5 - No que ao primeiro vício tange, recorde-se que a recorrente imposta a questão de a norma inserta no n.º 2 do falado artigo 6.º se revelar desconforme com o princípio da igualdade precipitado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, já que veio a conferir aos trabalhadores que passariam a laborar nas empresas "criadas" ou "constituídas" a partir da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., uma situação jurídica diversa do regime geral que se extrai do artigo 9.º do Decreto-Lei 517-C/79.
Independentemente do problema de saber se seria possível equiparar a eventual "criação" ou "constituição" de empresas, por áreas de actividade económica "a partir" da QUIMIGAL - Química de Portugal, S. A., à situação contemplada no artigo 9.º do Decreto-Lei 519-C1/79 (que refere que em caso de cessão, total ou parcial, de uma empresa ou estabelecimento, a entidade empregadora cessionária ficará obrigada a observar, até ao termo do respectivo prazo de vigência, e no mínimo de 12 meses contados da cessão, o instrumento de regulamentação colectiva que vincula a entidade empregadora, salvo se tiver sido substituído por outro), o que não deixa de ser certo é que não são realidades semelhantes a dos trabalhadores de uma empresa pública (e, bem assim, do respectivo titular), constituída em resultado da fusão de várias empresas nacionalizadas - empresa essa que foi transformada numa sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, havendo, quanto a esta, o intento de o Estado de criar outras empresas resultantes da autonomização das suas áreas de actividade, cujo capital era detido por ele - e a dos trabalhadores de uma qualquer outra empresa, que se não formou atendendo ao condicionalismo que ditou a formação da QUIMIGAL - Química de Portugal, E. P., e na qual se verificou uma cessão, total ou parcial, de uma nova empresa ou estabelecimento.
A respeito do princípio da igualdade, tem este Tribunal mantido uma firme jurisprudência cuja ilustração, tratamento e resenha, bem como a indicação de posições doutrinárias, se podem extrair do seu relativamente recente Acórdão 232/2003, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º vol., p. 7 a p. 51.
Desse aresto respigam-se as seguintes asserções:
"O Acórdão 319/2000 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º vol., pp. 497 e segs.), apoiando-se no Acórdão 563/96 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33.º vol., pp. 47 e segs.), procedeu a uma síntese da jurisprudência constitucional relativa ao princípio da igualdade. Assim:
"[O] Tribunal Constitucional teve já a oportunidade de se pronunciar diversas vezes sobre as exigências do princípio constitucional da igualdade, que, no fundo, se reconduz à proibição do arbítrio, proibição essa que, naturalmente, não anula a liberdade de conformação do legislador onde ele a não infrinja. Assim, por exemplo, no Acórdão 563/96 [...], publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33.º vol., pp. 47 e segs., foram assim descritas:
'1.1 - O princípio da igualdade do cidadão perante a lei é acolhido pelo artigo 13.º da Constituição da República, que, no seu n.º 1, dispõe, genericamente, terem todos os cidadãos a mesma dignidade social, sendo iguais perante a lei, especificando o n.º 2, por sua vez, que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado, de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.
Princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., p. 129), o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição)' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).
Muito trabalhado, jurisprudencial e doutrinariamente, o princípio postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais) - cf., entre tantos outros, e além do já citado Acórdão 186/90, os Acórdãos n.os 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93, 516/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, 1.ª série, de 3 de Março de 1988, e 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990, de 30 de Julho de 1993, de 6 de Outubro do mesmo ano e de 19 de Janeiro e 30 de Agosto de 1994, respectivamente.
1.2 - O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento razoável, racional e objectivamente fundadas, sob pena de, assim não sucedendo, estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes, no ponderar do citado Acórdão 335/94.
Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 127, e, por exemplo, o Acórdão 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados Acórdãos n.os 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (tertium comparationis). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, p. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, p. 425; Acórdão 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 381; Alves Correia, ob. cit., p. 402), o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da diferença de modo que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.'
O n.º 2 do artigo 13.º da Constituição da República enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente - presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do princípio da igualdade - mas que são enunciados a título meramente exemplificativo: cf., v. g., os Acórdãos n.os 203/86 e 191/88, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Agosto de 1986, e, 1.ª série, de 6 de Outubro de 1988, respectivamente, na esteira do Parecer 1/86, da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 1.º, pp. 5 e segs., máxime p. 1. A intenção discriminatória [...] não opera, porém, automaticamente, tornando-se necessário integrar a aferição jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalístico, de razoabilidade e de adequação pressupostos pelo princípio da igualdade."
Registe-se ainda que quer a Comissão quer o Tribunal Constitucional admitiram já a hipótese de, em certos casos, se proceder a diferenciações de tratamento ou, noutra perspectiva, a 'discriminações positivas' (sobre a jurisprudência constitucional nesta matéria, cf., por todos, Luís Nunes de Almeida e Armindo Ribeiro Mendes, 'Les discriminations positives - Portugal', Annuaire International de Justice Constitutionnelle, vol. XIII, 1997, pp. 223 e segs.).
Assim, no Parecer 33/81 (in Pareceres da Comissão Constitucional, 17.º vol., pp. 139 e segs.), a Comissão Constitucional concluiu pela não inconstitucionalidade de normas de um decreto regulamentar da Região Autónoma dos Açores que disciplinava a matéria relativa ao pessoal auxiliar dos estabelecimentos de ensino primário e de educação pré-escolar nos Açores, dando preferência, no preenchimento dos lugares, a indivíduos do sexo feminino. O Tribunal Constitucional, por seu turno, não enjeitou a possibilidade de discriminações positivas em benefício das mulheres no Acórdão 191/88 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12.º vol., pp. 239 e segs.) e também no Acórdão 231/94 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º vol., pp. 205 e segs.). Noutra ocasião, o Tribunal admitiu um tratamento mais favorável do sexo feminino em razão do peso exercido pelas 'tarefas domésticas' (Acórdãos n.os 609/94 e 713/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29.º vol., pp. 173 e segs., e 34.º vol., pp. 215 e segs., respectivamente).
O debate em torno das discriminações positivas pela jurisprudência constitucional não se cinge, todavia, à questão das desigualdades em razão do género. A título ilustrativo, pode referir-se que, no Parecer 15/81, a Comissão Constitucional considerou que não violava a Constituição um regulamento ministerial sobre o preço dos transportes aéreos entre o continente e as Regiões Autónomas que estabelecia uma discriminação de preços favorável aos residentes nessas regiões (in Pareceres da Comissão Constitucional, 15.º vol., pp. 129 e segs.). Aí se afirmou, designadamente:
'Sucede [...] que tais discriminações favoráveis ou positivas têm uma razão de ser evidente, não configurando, por isso, uma violação ao princípio da igualdade, tal como é postulado na nossa Constituição (artigo 13.º): o legislador considera atendível a circunstância de os cidadãos portugueses residirem habitualmente nas Regiões Autónomas, em ilhas afastadas do continente, para introduzir reduções dos preços de viagens aéreas que, de alguma maneira, minorem os inconvenientes da insularidade e do desigual desenvolvimento sócio-económico das próprias Regiões Autónomas [...]
Há certas situações da vida em que o legislador constitucional considera lícito criar regimes mais favoráveis para certos grupos humanos, em nome mesmo de uma tendencial igualdade de oportunidades ou igualdade de tratamento de facto.'
Mais tarde, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade de uma norma que atribuía uma preferência na admissão à Marinha, em regime de voluntariado, aos órfãos dos antigos membros desse ramo das Forças Armadas por entender que não existia um fundamento material razoável para essa discriminação (Acórdão 336/86, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º vol., pp. 263 e segs.). Finalmente, no Acórdão 1/97 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., pp. 7 e segs.), o Tribunal pronunciou-se pela inconstitucionalidade de uma lei que impunha ao Ministério da Educação a criação de vagas suplementares no ensino superior público, ultrapassando o numerus clausus previamente fixado, de forma a permitir o ingresso de candidatos que, na fase de candidatura de Setembro, tivessem obtido uma classificação superior à obtida por candidatos admitidos na fase de candidatura de Julho - o Tribunal entendeu que o fundamento avançado para essa discriminação positiva (a compensação por anomalias surgidas no decurso de certos exames da 1.ª fase) não era adequado, uma vez que o sistema que se pretendia instituir acabaria por beneficiar estudantes que não haviam realizado exames na 1.ª fase e que, por conseguinte, nunca haviam sido lesados pelas eventuais anomalias que aí tivessem ocorrido.
É particularmente interessante, a este respeito, o Acórdão 44/84 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3.º vol., 1984, pp. 133 e segs.), onde o Tribunal Constitucional decidiu não declarar a inconstitucionalidade de uma norma de um decreto-lei que estabelecia como critério de preferência na colocação de clínicos gerais 'a opção pelo concelho de residência, verificada através do recenseamento eleitoral'. O Tribunal lembrou que 'o princípio da igualdade não deve nem pode ser interpretado em termos absolutos, impedindo nomeadamente que a lei discipline diversamente quando diversas são as situações que o seu dispositivo visa regular', mas, ao mesmo tempo, que 'há violação do princípio da igualdade quando o legislador estabelece distinções discriminatórias. Assim é quando tais distinções são materialmente infundadas, quando assentam em motivos que não oferecem carácter objectivo e razoável; isto é, quando o preceito em apreço não apresenta qualquer fundamento material razoável'. No caso em apreço, o Tribunal considerou, em síntese, que a utilização da residência como critério de preferência na colocação de clínicos gerais não se mostrava injustificada, arbitrária ou irrazoável em face do princípio da igualdade, porquanto "uma maior inserção do médico na zona onde é chamado a exercer funções não é irrelevante 'em termos de garantir uma maior qualidade do serviço a prestar'". Para o efeito, o Acórdão 44/84 não deixou de recordar o Parecer 1/76 da Comissão Constitucional (in Pareceres da Comissão Constitucional, 1.º vol., pp. e 5 segs.), onde, justamente a propósito de uma preferência baseada na residência para a recondução ou colocação de professores em estabelecimentos de ensino na Região Autónoma da Madeira, bem como no acesso a estágios nesses estabelecimentos, se deixou afirmado:
'[...] poderá sustentar-se que elevar a critério de preferência a residência anterior no lugar do posto de trabalho pretendido, mais do que criar um privilégio pessoal, corresponde a dar relevância a um factor que importa ao bem do serviço público, por ser de presumir que a qualidade e o rendimento deste subirão se o funcionário se achar integrado no ambiente social correspondente ao local onde é chamado a desempenhar a sua função.
Acresce que a residência - relação entre a pessoa e o lugar onde ela centra a sua vida - não é algo que de uma vez para sempre se defina, não é algo que adira ao homem como qualidade ou marca dele inseparável (sob este aspecto, é flagrante o contraste com a origem, ainda mais do que com a nacionalidade).
Por isso mesmo, a preferência que em certas condições tome por base a residência não é de natureza a criar desigualdades estruturais entre cidadãos, aí onde existir um mínimo de mobilidade da população.'
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional, numa situação onde estava justamente em causa uma pretensa desigualdade no recrutamento de professores (Acórdão 412/2002, in Diário da República, 2.ª série, de 16 de Dezembro de 2002), recordou que o princípio da igualdade abrange fundamentalmente três dimensões ou vertentes: a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação, significando a primeira a imposição da igualdade de tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para situações manifestamente desiguais (tratar igual o que é igual; tratar diferentemente o que é diferente); a segunda, a ilegitimidade de qualquer diferenciação de tratamento baseada em critérios subjectivos (v. g., ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social), e a última surge como forma de compensar as desigualdades de oportunidades.
Nesse acórdão, o Tribunal apoiou-se ainda em duas anteriores decisões suas, começando por citar o que se disse no Acórdão 180/99 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43.º vol, pp. 135 e segs.):
'O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos n.os 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol. (1988), pp. 233 e segs., e 16.º vol. (1990), pp. 383 e segs., 395 e segs. e 411 e segs., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. IV, 2.ª ed., 1993, pp. 213 e segs., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6.ª ed., 1993, pp. 564-565, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, pp. 125 e segs.].'
Lembrou, depois, a linha argumentativa do Acórdão 409/99 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 44.º, pp. 461 e segs.):
'O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (cf., quanto ao princípio da igualdade, entre outros, os Acórdãos n.os 186/90,187/90,188/90,1186/96 e 353/98, publicados no Diário da República, respectivamente, de 12 de Setembro de 1990, de 12 de Fevereiro de 1997 e o último ainda inédito).'
Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma 'fundamentação razoável' (vernünftiger Grund), tal como sustentou o 'inventor' do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. F. Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419 e segs.). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: '[E]stando em causa [...] um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela ratio do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A ratio do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério' (cf. Princípio da Igualdade: Fórmula Vazia ou Fórmula 'Carregada' de Sentido?, separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma autora: '[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à ratio do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a ratio do tratamento jurídico exija que seja este critério o critério concreto a adoptar, e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a ratio do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada sociedade' (ob. cit., pp. 31-32).
Também a jurisprudência constitucional se orienta nesse sentido. Assim, o Tribunal Constitucional alemão já teve ensejo de afirmar que 'um tratamento arbitrário é aquele que [...] não é compreensível por uma apreciação razoável das ideias dominantes da lei fundamental' (42 BVerfGE 64, 74) e que '[A] máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual não é possível encontrar um motivo razoável que surja da natureza das coisas ou que, de alguma outra forma, seja compreensível em concreto, isto é, quando a disposição tenha de ser qualificada como arbitrária' (1 BVerfGE 14, 52; mais recentemente, cf. 12 BVerfGE 341, 348; 20 BVerfGE 31, 33; 30 BVerfGE 409, 413; 44 BVerfGE 70, 90; 51 BVerfGE 1, 23; 60 BVerfGE 101, 108).
Caminhos idênticos foram percorridos pelo Tribunal Constitucional português (a título meramente exemplificativo, cf. os Acórdãos n.os 44/84, 186/90, 187/90 e 188/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3.º vol., pp. 133 e segs., e 16.º vol., pp. 383 e segs., 395 e segs. e 411 e segs., respectivamente). No Acórdão 39/88, o Tribunal teve ocasião de dizer: '[O] princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes' (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pp. 233 e segs.). E, curiosamente, também nos Estados Unidos se alude à necessidade de, no estabelecimento de diferenciações, obedecer a um cânone de razoabilidade (reasonableness) (cf. J. Tussman e J. tenBroek, 'The equal protection of the laws', California Law Review, n.º 37, 1949, p. 344, citado por Gianluca Antonelli, 'La giurisprudenza italiana e statunitense sul principio di solidarietà', Studi parlamentari e di politica costituzionale, n.os 125-126, 1999, p. 89; sobre o princípio da razoabilidade na jurisprudência norte-americana, cf. Giovanni Bognetti, 'Il principio di ragionevolezza e la giurisprudenza della Corte Suprema degli Stati Uniti', in AA. VV., Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale. Riferimenti comparatistici, Milão, 1994, pp. 43 e segs.).
Neste domínio em especial, merece destaque a evolução da jurisprudência constitucional italiana que, tendo firmado em termos absolutos a ideia da discricionariedade do legislador (sentenze n.os 28/1957 e 56/1958), veio pouco depois indagar se uma dada lei se apresentava 'destituída de qualquer justificação' e se a mesma detinha uma 'razão idónea' (sentenza n.º 46/1959). Na sentenza n.º 15/1960, a Corte disse que era sua jurisprudência constante considerar que 'o princípio da igualdade é violado mesmo quando a lei, sem um motivo razoável, procede a um tratamento diverso de cidadãos que se encontram em situação idêntica'. A doutrina, de seu lado, não andou longe destas asserções: já Mortati afirmava, por exemplo, que o legislador tinha 'a obrigação de não violar as leis da lógica' (Istituzioni di diritto pubblico, Pádua, 1958, p. 715; mais recentemente, cf. a mesma obra, 9.ª ed., actualizada, Pádua, 1976, pp. 1412 e segs.). Mais tarde, Carlo Lavagna teve a percepção clara da necessidade do recurso a um princípio de razoabilidade - que definiu como 'la utilizzazione razionale dei contesti umani nella costruzione di norme sulla base delle prescrizioni-fonte' - e enunciou os diversos critérios da sua ponderação: a correspondência (corrispondenza), o juízo sobre a finalidade (giudizio sulle finalità), a pertinência (pertinenza), a congruência (congruità) meios/fins, a coerência (coerenza), a evidência (evidenza) e, enfim, a motivação (motivazione) (cf. 'Ragionevolezza e legittimità costituzionale', in Studi in memoria di Carlo Esposito, vol. III, Pádua, 1973, pp. 1573 e segs.). De igual modo, Vezio Crisafulli reconheceu que o Tribunal, ao indagar de eventuais violações do princípio da igualdade, fá-lo, designadamente, com base numa 'cláusula geral de razoabilidade' (cf. Lezioni di diritto costituzionale, t. II, 5.ª ed., revista e actualizada, Pádua, 1984, p. 372). Contrariando a tese do 'racional como razoável' (Aulis Aarnio), Gustavo Zagrebelski veio distinguir a ideia de racionalidade - que, em seu entender, corresponderia à coerência lógica - da ideia de razoabilidade, estando esta ligada a uma adequação aos valores de justiça que funciona primacialmente como um vínculo negativo do legislador [cf. La giustizia costituzionale, 2.ª ed., Bolonha, 1988, pp. 147 e segs.; idem, 'Su tre aspetti della ragionevolezza', in AA. VV., Il principio ..., cit., pp. 179 e segs., em esp. pp. 181-184 (onde parece aproximar os conceitos de razoabilidade e racionalidade)]. E, justamente naquele primeiro sentido - isto é, no sentido de uma racionalidade coerente -, aludiu o Tribunal Constitucional italiano, na sua sentenza n.º 204/1982, a um 'cânone geral de coerência' (generale canone di coerenza) [cf., sobre a evolução jurisprudencial do Tribunal Constitucional italiano, A. Agrò, 'Commento all'art 3 Cost.', in G. Branca (org.), Commentario della Costituzione, vol. I, Bolonha e Roma, 1975, pp. 141 e segs.; Paolo Barile, 'Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale', in AA. VV., Il principio ..., cit., pp. 21 e segs.; Livio Paladin, 'Ragionevolezza (principio di)', in Enciclopedia del Diritto - Aggiornamento, vol. I, Milão, 1997, em esp. pp. 900 e segs.].
Destaque-se, por outro lado, que também a jurisprudência do Conselho Constitucional francês fez referência à necessidade de o legislador se nortear por critères rationnels et objectifs. Particularmente no que respeita ao princípio da igualdade perante os encargos públicos, o Conselho admitiu a introdução de discriminações, desde que as mesmas se fundassem em critérios objectivos e racionais - cf. as decisões 83-164 DC, de 29 de Dezembro de 1983, 89-270 DC, de 29 de Dezembro de 1989, e 91-298 DC, de 24 de Julho de 1991, citadas por Louis Favoreu, 'Conseil Constitutionnel et ragionevolezza: d'un rapprochement improbable à une communicabilité possible', in AA. VV., Il principio..., cit., p. 224.
Interessa assinalar, por fim, que a mais recente jurisprudência do Bundesverfassungsgericht procura, de certo modo, superar os limites estreitos da teoria da proibição do arbítrio, aumentando, de certo modo, a 'densidade do controlo' (Kontrolldichte), por meio de uma nova fórmula do seguinte teor: '[E]sta norma constitucional (o artigo 3.º, n.º 1) obriga a tratar de modo igual todos os homens perante a lei. Consequentemente, este direito fundamental é sobretudo violado se um grupo de destinatários da norma em comparação com outros destinatários da norma é tratado de modo diferente, sem que existam entre os dois grupos diferenças de tal natureza (Art) e de tal peso (Gewicht) que possam justificar o tratamento desigual' (cf. F. Alves Correia, ob. cit., p. 425; v., ainda, Dian Schefold, 'Aspetti di ragionevolezza nella giurisprudenza costituzionale tedesca', in AA. VV., Il principio..., cit., pp. 121 e segs.).
[...]
Tal proibição não alcança assim as discriminações positivas, em que a diferenciação de tratamento se deve ter por materialmente fundada ao compensar desigualdades de oportunidades. Mas deve considerar-se que inclui ainda as chamadas 'discriminações indirectas', em que, e sempre sem que tal se revele justificável de um ponto de vista objectivo, uma determinada medida, aparentemente não discriminatória, afecte negativamente em maior medida, na prática, uma parte individualizável e distinta do universo de destinatários a que vai dirigida."
No contexto da postura que se colhe do que se veio de extractar, porque se não postam - do modo que, aliás, já acima se deixou focado - como situações exactamente iguais as dos trabalhadores de uma empresa pública "criada" a partir de outras empresas privadas que, por intermédio de um condicionalismo económico, financeiro, político e social muito peculiar, foram objecto de uma nacionalização - nacionalização essa que, claramente, se foi projectar no modo de actividade, gestão, administração e até no domínio de relações entre os trabalhadores dessas empresas e quem então figurava como entidade patronal -, e aqueloutra de trabalhadores das empresas cujas entidades empregadoras não sofreram tais vicissitudes, não pode deixar de considerar-se que existe uma razão suficientemente idónea (o que o mesmo é dizer, com fundamento atendível) ou racional para, relativamente aos primeiros, se salvaguardar a corte de direitos e obrigações que, por instrumento de regulação colectiva de trabalho, lhes vieram a ser conferidos já no domínio da nacionalização, mesmo que uma tal salvaguarda se possa visualizar globalmente como conferente de uma posição jurídica mais favorável relativamente aos segundos, caracterizando-se, assim, essa salvaguarda como algo representativo de uma "discriminação positiva".
Poder-se-ia, inclusivamente, sustentar que foi o reconhecimento da própria não identidade de situações entre os trabalhadores das empresas resultantes da nacionalização e dos das demais que levou o legislador constituinte a gizar norma tal como a que se surpreende na alínea c) do artigo 296.º da versão da lei fundamental advinda da Lei Constitucional 1/89 e que ainda hoje se mantém [cf. alínea c) do n.º 1 do artigo 293.º].
4 - Pelo que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 16 de Novembro de 2005. - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Vítor Gomes - Gil Galvão - Artur Maurício.