Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 191/88, de 6 de Outubro

Partilhar:

Sumário

DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DA NORMA PARCIAL DO NUMERO 1, ALÍNEA B), DA BASE XIX DA LEI 2127/65, DE 3 DE AGOSTO (PROMULGA AS BASES DO REGIME JURÍDICO DOS ACIDENTES DE TRABALHO E DOENÇAS PROFISSIONAIS).

Texto do documento

Acórdão 191/88

Processo 176/88

Acordam no Tribunal Constitucional (T. Const.):

I Introdução

1 - O procurador-geral da República adjunto que representa o Ministério Público (MP) no T. Const. veio, nos termos dos artigos 281.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, peticionar que o T. Const. apreciasse e declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante da alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, uma vez que a referida norma já havia sido julgada inconstitucional em três casos concretos através dos seguintes acórdãos:

Acórdão 181/87, de 20 de Maio de 1987, dado no processo 205/85 da 2.ª Secção e publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 162, de 17 de Julho de 1987, p. 8846;

Acórdão 449/87, de 18 de Novembro de 1987, dado no processo 268/86 da 2.ª Secção e publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 41, de 19 de Dezembro de 1988, p. 1622; e Acórdão 72/88, de 23 de Março de 1988, dado no processo 204/86 da 2.ª Secção e ainda inédito.

Para tanto alega que a aludida norma viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP:

Quer na medida em que só concede direito a pensão por morte resultante de acidente de trabalho ao viúvo da vítima, desde que este esteja afectado de doença física ou mental que lhe reduza sensivelmente a capacidade de trabalho ou tenha mais de 65 anos de idade;

Quer na medida em que limita o montante da pensão do viúvo a 30% da retribuição base da vítima.

E isto porque, e sem qualquer justificação para a diferenciação, se prevê na alínea a) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127:

Que à viúva, e sem que esta tenha de satisfazer qualquer das condições exigidas para o viúvo, seja concedida pensão por morte do marido em acidente de trabalho; e Que o montante da pensão dela seja elevado para 40% da retribuição base da vítima quando a viúva perfizer 65 anos ou em caso de doença física ou mental que afecte a sua capacidade de trabalho.

Termina pedindo que à declaração de inconstitucionalidade da norma em causa seja dado o sentido de passar a ser aplicável aos viúvos o regime prescrito para as viúvas na alínea a) do n.º I da base XIX da Lei 2127.

2 - Notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei 28/82, veio o Presidente da Assembleia da República a oferecer o merecimento dos autos e, do mesmo passo, a fazer juntar parecer da Auditoria Jurídica da Assembleia da República, no qual, e em resumo, se sustenta o seguinte: o n.º 2 do artigo 281.º da CRP estabelece que o T. Const. aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos.

Comentando esta norma, Gomes Canotilho e Vital Moreira referem tratar-se de um processo oficioso, cuja iniciativa pertence legalmente a qualquer dos juízes do T. Const. ou ao MP (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., p. 539).

Ora, consultando os acórdãos citados, os Acórdãos n.os 181/87, 449/87 e 72/88, verifica-se que todos eles consideraram inconstitucional a alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127.

De facto, e no que se refere à atribuição de pensão do cônjuge sobrevivo de vítima de acidente de trabalho, a alínea b) do n.º 1 da base XIX estabelece efectivamente um regime pior para o viúvo que aquele que a alínea a) do n.º 1 da mesma base XIX estabelece para a viúva.

Daqui resulta, como se salienta naqueles acórdãos, que existe na referenciada alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 uma clara violação do princípio da igualdade do artigo 13.º da CRP.

Deste modo, verificam-se os pressupostos formais e materiais da declaração de inconstitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127.

II - Delimitação da parte do pedido de que o T. Const. poderá conhecer

3 - Determina o n.º 2 do artigo 281.º da CRP que o T. Const. aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos, precisando o artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, por um lado, que a iniciativa caberá a qualquer dos juízes ou ao MP e, por outro lado, que a petição terá de ser instruída com cópias das correspondentes decisões.

Já se viu que, na hipótese sub judice, o requerente foi o representante do MP no T. Const. Resta agora acrescentar que nos Acórdãos n.os 181/87, 449/87 e 72/88, todos eles tirados em processos de fiscalização concreta de constitucionalidade e de que se juntaram as devidas cópias, se julgou inconstitucional a norma da alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127, na parte em que apenas atribui ao viúvo, no caso de falecimento do outro cônjuge em acidente de trabalho e havendo casado antes do acidente, uma pensão anual de 30% da retribuição base da vítima, e isto desde que esteja afectado de doença física ou mental que lhe reduza sensivelmente a capacidade de trabalho ou seja de idade superior a 65 anos à data da morte da mulher.

Verificam-se, pois, os pressupostos processuais, constitucional e legalmente exigidos, para que o T. Const. possa apreciar e declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, daquele segmento normativo, e apenas deste.

Consequentemente, não tem de ser estendida a investigação e a eventual declaração de inconstitucionalidade, como parece liminarmente sugerir a petição do MP, a toda a norma da alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127: a pronúncia de inconstitucionalidade nos três acórdãos do T. Const. em que o pedido se baseia não teve tal extensão.

Note-se, aliás, que o próprio MP, sem embargo da amplitude que vestibularmente dá ao pedido, logo a seguir, quando procede ao confronto da norma da alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 com o artigo 13.º da CRP, acaba por dar ao pedido, e claramente, uma dimensão bem mais reduzida.

4 - Por fim, tem-se por pertinente salientar ainda - o que se regista, para o caso de se vir a declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do trecho em causa da norma da alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 - que não há espaço na competência do T. Const. para este indicar então a valência significativa que, de futuro, deverá, porventura, caber à norma da alínea a) do n.º 1 da mesma base XIX.

Na verdade, o T. Const. só tem poderes para se debruçar sobre o sentido das normas sujeitas a juízo de constitucionalidade, e esse não é o caso da norma da alínea a) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127. Aliás, quando desenvolve uma actividade hermenêutica, a sua intervenção é sempre meramente instrumental:

as normas em questão haverão de ser interpretadas unicamente em relação com o juízo final sobre a sua constitucionalidade.

Por tudo isto, não se conhecerá do pedido do MP na parte em que se refere à norma da alínea a) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127.

5 - Em suma, há que averiguar apenas se o segmento em questão da norma da alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 (tal como ele foi definido na decisão de inconstitucionalidade de cada um dos Acórdãos n.os 181/87, 449/87 e 72/88) é, de facto, inconstitucional, designadamente por violação do princípio da igualdade consignado no artigo 13.º da CRP.

III - O segmento normativo da alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 face ao princípio constitucional da igualdade 6 - Dispõe a base em referência da Lei 2127, na parte que interessa agora, e muito particularmente, ter em conta, o seguinte:

Base XIX

Pensões por morte

1 - Se do acidente resultar a morte, os familiares da vítima receberão as seguintes pensões anuais:

a) Viúva, se tiver casado antes do acidente: 30% da retribuição base da vítima, até perfazer 65 anos, e 40%, a partir desta idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho;

b) Viúvo, se tiver casado antes do acidente e estiver afectado de doença física ou mental que lhe deduza sensivelmente a capacidade de trabalho ou se for de idade superior a 65 anos à data da morte da mulher, enquanto se mantiver no estado de viuvez: 30% da retribuição base da vítima;

[...] Numa primeira nota, observa-se que, tanto na previsão da alínea a) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 como na previsão da alínea b) do n.º 1 da mesma base XIX, «doença física ou mental que afecte sensivelmente a capacidade de trabalho do cônjuge sobrevivente» equivale, por força do disposto no artigo 55.º, n.º 1, do Decreto 360/71, de 21 de Agosto, a «doença física ou mental que reduza definitivamente a capacidade geral de ganho do cônjuge supérstite em mais de 0,75».

7 - Dito isto, impõe-se agora recordar que o segmento normativo cuja (in)constitucionalidade há que apurar - segmento retirado da alínea b) do n.º 1 da base XIX - dispõe que ao viúvo, havendo casado antes do acidente de trabalho de que veio a falecer o outro cônjuge, só cabe uma pensão anual de 30% da retribuição base da vítima se estiver afectado de doença física ou mental que lhe reduza sensivelmente a capacidade de trabalho ou se for de idade superior a 65 anos à data da morte da mulher (não se põe, assim, em causa esta norma enquanto reconhece ao viúvo, em caso de morte infortunística do outro cônjuge, o direito a uma pensão anual, mas apenas enquanto define certos parâmetros desse mesmo direito).

Por sua vez, da alínea a) do n.º 1 da base XIX decorre um segmento normativo paralelo que dispõe para similar situação do cônjuge supérstite que seja do sexo feminino, estatuindo-se aí, e nessa particular área, que à viúva, havendo casado antes do acidente de trabalho de que veio a falecer o outro cônjuge, cabe sempre uma pensão anual, que corresponderá a 30% da retribuição base da vítima até ela, viúva, perfazer 65 anos e a 40% dessa retribuição base a partir daquela idade de 65 anos ou desde que padeça de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho.

Fazendo o cotejo destes dois segmentos normativos, verificam-se as seguintes diferenças de regulamentação:

a) A viúva, até perfazer 65 anos, e não afectada de doença física ou mental que lhe reduza sensivelmente a capacidade de trabalho, tem direito a uma pensão anual correspondente a 30% da retribuição base da vítima, seu marido;

a') O viúvo, até perfazer 65 anos, e não afectado de doença física ou mental dessa dimensão, não tem direito a qualquer pensão anual;

b) A viúva, até perfazer 65 anos, e afectada de doença física ou mental daquele nível, tem direito a uma pensão anual correspondente a 40% da retribuição base da vítima, seu marido;

b') O viúvo, até perfazer 65 anos, e afectado de igual doença física ou mental, tem direito a uma pensão anual correspondente a 30% da retribuição base da vítima, sua mulher;

c) A viúva com mais de 65 anos, esteja ou não afectada da apontada doença física ou mental, tem direito a uma pensão correspondente a 40% da retribuição base da vítima, seu marido;

c') O viúvo com mais de 65 anos, quer esteja ou não afectado de doença do mesmo tipo, tem direito a uma pensão correspondente a 30% da retribuição base da vítima, sua mulher.

Estas diferenças de regulamentação justificar-se-ão, porventura, face ao disposto no artigo 13.º da CRP? 8 - Estatui esse artigo da CRP do seguinte modo:

Artigo 13.º

Princípio da igualdade

1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2 - Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.

Considerando o princípio da igualdade numa particular perspectiva, ou seja como princípio vinculativo do próprio legislador, escreveu-se no parecer 1/76 da Comissão Constitucional (Pareceres, ed. oficial, 1.º vol., p. 11):

A igualdade perante a lei reclama [...], não que todos sejam tratados, em quaisquer circunstâncias, por forma idêntica, mas sim que recebam tratamento semelhante os que se acham em condições semelhantes.

Com isto se abre, porém, a questão de saber o que deve entender-se por «condições semelhantes».

A semelhança nas situações da vida nunca pode ser total: o que importa é distinguir quais os elementos de semelhança que têm de registar-se - para além dos inevitáveis elementos diferenciadores - para que duas situações devam dizer-se semelhantes em termos de merecerem o mesmo tratamento jurídico.

Só que a solução deste problema já não poderá achar-se na base de critérios puramente formais.

A resposta é, no entanto, facilitada quando o legislador constitucional se não limita a enunciar o princípio geral da igualdade, mas especifica os títulos - ou alguns deles - que não podem fundar um tratamento diferenciado entre cidadãos.

Quando isto acontece, tem de entender-se, em princípio, que viola a regra constitucional da igualdade o preceito que dá relevância a um desses títulos para, em função dele, beneficiar ou prejudicar um grupo de cidadãos perante os restantes.

Ora, no n.º 2 do artigo 13.º da CRP, acabado de transcrever, elenca-se, ainda que de modo meramente enunciativo, uma série de factores em função dos quais é proibido privilegiar, beneficiar, prejudicar ou privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever certos cidadãos em relação aos outros. Por isso, quando ao nível normativo se estabelece uma diferenciação que se escora em um desses factores (ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica e condição social), será de presumir, ao menos à partida, que se está perante uma discriminação constitucionalmente inadmissível.

9 - E, se posterior investigação revelar que tal factor é a única e exclusiva causa da diferenciação, então será certo e seguro que se registará infracção ao princípio constitucional da igualdade. Ao invés, se no decurso dessa mesma investigação se apurar que a menção de um dos títulos de discriminação do n.º 2 do artigo 13.º da CRP esconde, afinal, uma outra motivação, que, numa análise objectiva da situação - e em ordem à realização de uma sociedade mais equilibrada -, imporá que, segundo critérios próprios da justiça distributiva, se ditem normações distintas para grupos diversos de cidadãos, então o juízo a extrair destes dados haverá de ser diametralmente oposto.

E isto há-de ser assim, porquanto o princípio da igualdade que o artigo 13.º da CRP expressamente afirma é antes um princípio de dimensão substancial e que exige, por isso mesmo, que o legislador, para corrigir diferenças derivadas de simples situações de facto ou para contrabalançar discriminações vindas do passado e com grande carga tradicional, estabeleça compensações em favor dos grupos de cidadãos em cada caso mais desfavorecidos.

Revertendo ao caso em análise, observa-se que as distinções regulamentativas constantes das alíneas a) e b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 têm por referência mais imediata o sexo dos beneficiários da pensão anual.

Então - e como se escreveu no Acórdão 456 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983 - «o que há fundamentalmente que averiguar é se essa diferenciação baseada no sexo será susceptível de justificação: as cláusulas ou motivos listados no n.º 2 do artigo 13.º podem exigir, porque acompanhados de particulares condicionalismos, e no respeito pelo princípio da igualdade, uma diversificação dispostiva. Essa diversificação de tratamento jurídico tem, todavia, de alicerçar-se em motivações objectivas e razoáveis, assentes na própria natureza das coisas. São 'assim de admitir - escreveu-se no parecer 5/82, igualmente inédito - as desigualdades que mostram ter um fundamento material bastante e de proscrever aquelas outras que, por carência de tal fundamento, se revelem verdadeiramente arbitrárias'».

10 - Situando a investigação neste campo, impõe-se assinalar que subjacente às diferenças normativas apontadas entre a alínea a) e a alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 estará a ideia de que a viúva tem, por si própria, e quase sempre, menos rendimentos que o viúvo, pelo que, desse modo, e em tal quadro normativo, se estaria apenas a procurar compensar a situação económica (mais desfavorecida) da viúva, ora atribuindo-lhe pensão em casos em que o viúvo dela não beneficia, ora atribuindo-lhe uma maior pensão em casos em que o viúvo já dela goza.

E desde logo se dirá que, se, por via da referência ao sexo dos viúvos, as alíneas a) e b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 estivessem efectivamente a separar os cônjuges supérstites mais providos de meios dos menos providos de meios e a beneficiar compensatoriamente estes últimos, então sempre se teria de concluir que a diferenciação normativa em favor das viúvas entroncaria numa motivação objectiva e razoável e não consequenciaria, por isso mesmo, qualquer violação do princípio constitucional da igualdade, entendido este na dimensão que lhe é mais característica, ou seja, numa dimensão puramente substancial.

Será, no entanto, assim? 11 - Numa breve análise sociológica da situação da mulher em Portugal, escreveu-se, a este propósito, no citado Acórdão 456 da Comissão Constitucional:

Se é certo que tempos atrás, e na sequência de uma secular tradição discriminativa, a maioria das mulheres em Portugal trabalhava no lar, recebendo aquelas, poucas, que trabalhavam no exterior salários, em regra, inferiores aos dos homens, mesmo em lugares iguais, não menos certo é que a situação evoluiu.

Trata-se, sem dúvida, de uma situação complexa, a da mulher no mercado do trabalho, difícil de retratar a pincelada larga. De qualquer modo, sem se pretender ser exaustivo, e com base em documentação emitida pela Comissão da Condição Feminina, em especial Cadernos Condição Feminina, de Isabel Romão, alinham-se de seguida, e em esquema, alguns dos traços mais característicos de tal situação:

Em 1970 a mão-de-obra feminina, que representava quase um quarto da população activa, caracterizava-se pela sua juventude (dos 10 aos 14, dos 15 aos 19 e dos 20 aos 24 anos as taxas de actividade feminina, e dentro de cada grupo etário, eram, respectivamente, de 10,6%, 45,7% e 46,3%), pelo declínio da sua participação no mercado do trabalho a partir dos 25 anos (quase metade da população activa feminina - 42% - tinha menos de 24 anos) e pelo fraco volume de emprego das mulheres com idade média;

A mulher começava a trabalhar muito jovem em virtude do abandono dos estudos numa idade precoce, por vezes antes do fim do ensino primário;

A partir dos 25 anos dava-se uma queda acentuada nas taxas de actividade no período que coincidia com o grupo etário em que a frequência de partos era maior (mesmo a jovem esposa que conservava o emprego após o casamento tendia a abandoná-lo depois do nascimento do primeiro ou do segundo filho);

Para lá dos 35 anos, e apesar de os filhos se irem tornando autónomos, as taxas de actividade feminina continuavam a decrescer progressivamente até à terceira idade (a mulher, ao contrário do sucedido noutros países, não procurava reinserir-se no mercado do trabalho após os 35 anos);

Entretanto, em 1981 o número de mulheres activas mais que duplicara: em 1970 era de 815000 e em 1981, de 1851000;

Nos últimos anos a taxa de actividade feminina passou a atingir o seu ponto máximo no grupo etário dos 25-29 anos, registando-se, assim, um retardamento no abandono da actividade por parte da mulher;

Nestes últimos tempos ainda, e a partir dos 29 anos, a taxa de actividade feminina tem continuado a decrescer, mas a um ritmo mais lento, tendendo a diminuir o número de mulheres que então deixam o sector económico;

O trabalho feminino é predominantemente exercido por mulheres sós, cabendo às casadas a mais baixa taxa de participação na vida económica em 1970 as mulheres casadas constituíam apenas 36,7% do total das mulheres activas com profissão, predominando em sectores com mais exigências no referente a instrução ou preparação específica (eram fundamentalmente técnicas superiores, empregadas não agrícolas, empregadas dos sectores público e privado e trabalhadoras manuais qualificadas);

Nessa altura, e de um modo geral, as mulheres concentravam-se num número bastante limitado de ramos de actividade, quase sempre em ramos de mais baixo nível de remuneração, poucas tinham acesso a postos de direcção ou chefia e a mão-de-obra feminina mantinha-se num baixo nível de qualificação.

[Três diplomas, após a Revolução de Abril, vieram permitir, no entanto, o acesso das mulheres à magistratura (Decreto-Lei 492/74, de 27 de Setembro), à carreira diplomática (Decreto-Lei 308/74, de 6 de Julho) e a todos os cargos da carreira administrativa local (Decreto-Lei 251/74, de 12 de Junho)];

Todavia, a percentagem de mulheres na categoria de profissões liberais e científicas em relação ao total de trabalhadoras femininas era então superior à percentagem de homens na mesma categoria em relação ao total de trabalhadores masculinos;

Embora às mulheres caiba um salário médio per capita inferior ao dos homens, o que se deve ao facto de as mulheres empregadas predominarem nos sectores económicos mais mal remunerados, certo é que já há bastantes anos se vem afirmando, e cada vez mais intensamente, o princípio da igualdade de remuneração entre mão-de-obra feminina e masculina para trabalho de valor igual, apesar das diferenças existentes de empresa para empresa [artigo 115.º do Decreto-Lei 47032, artigo 53.º, alínea a), da CRP e artigo 9.º do Decreto-Lei 392/79, de 20 de Setembro];

Nos períodos de crise económica registados na última década, quer os despedimentos, quer a contracção na oferta de postos de trabalho, têm afectado selectivamente a mulher, pelo que é bem mais elevada a taxa de desemprego feminino que a taxa de desemprego masculino.

Como decorre destes dados - inevitavelmente incompletos -, a participação do homem e a participação da mulher no mercado do trabalho tem pesos diversos. Sem embargo deste juízo global, verdade é que as diferenciações existentes tendem a abrandar. Designadamente, e neste sentido, é de destacar o Decreto-Lei 392/79, de 20 de Setembro - lei da igualdade no trabalho -, que visa impedir quaisquer situações de discriminação entre homens e mulheres no trabalho: em especial, em tal diploma garante-se o acesso das mulheres a qualquer emprego, profissão ou posto de trabalho (artigo 4.º, n.º 1), assegura-se às trabalhadoras, dentro de cada empresa, e para o mesmo lugar, o direito a salário igual ao dos trabalhadores (artigo 9.º, n.º 1) e garante-se às trabalhadoras o acesso ao mais alto nível hierárquico da sua profissão (artigo 10.º, n.º 1).

Tudo isto mostra que o posicionamento da mulher no mercado do trabalho não é ainda hoje igual ao do homem. Mas revela também que se caminha para uma perfeita igualização. E, se os maiores salários estão, em geral, do lado dos homens (porque ocupam, em regra, os postos de trabalho mais bem remunerados), observam-se já significativos grupos de mulheres e de homens que auferem salários idênticos, e mesmo de mulheres que, em número relevante, têm rendimentos superiores aos dos homens.

Isto vale mesmo para as mulheres casadas, mau grado o facto de representarem, de entre os sectores da população activa feminina definíveis em função do estado civil das participantes, o sector quantitativamente menos representativo do mercado do trabalho. É que, por outro lado, as mulheres casadas activas situam-se, em geral, no lote das mulheres empregadas mais bem remuneradas.

12 - Apesar da interferência de situações novas, como a da proliferação dos contratos a prazo e dos salários em atraso, este quadro, no seu essencial, mantém hoje ainda plena actualidade e, face a ele, há que afirmar, e decididamente, que as discriminações que se observam nas alíneas a) e b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127, e anteriormente assinaladas, radicam-se fundamentalmente no sexo dos viúvos e surgem, no momento actual, em clara dessintonia com a realidade social e jurídica.

Na verdade, e nos tempos presentes, apesar de a inserção no mercado do trabalho de homens e mulheres se não processar em termos perfeitamente parelhos e apesar de nesse mesmo mercado se registarem ainda bastantes casos de desfavorecimento da mulher, o certo é que as diferenças entre homens e mulheres trabalhadores se têm vindo, sucessivamente, a diluir, quer ao nível fáctico, quer ao nível jurídico, pelo que a dicotomia classificativa constante das alíneas a) e b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 e a diversa regulamentação que aí se estabelece para uma e outra das classes previstas são objectivamente injustificáveis e perfeitamente irrazoáveis. E são-no porquanto, nas actuais circunstâncias fácticas e jurídicas, e considerado um lapso de tempo razoável (o indispensável para que às estatísticas possa ser atribuído um mínimo de significação), verificar-se-á que nem os cônjuges supérstites femininos são sempre, ou mesmo em número muito significativo de casos, economicamente mais pobres que os respectivos consortes masculinos vítimas de morte infortunística, nem que os cônjuges supérstites masculinos são sempre, ou mesmo em número muito significativo de casos, economicamente mais afortunados que as respectivas consortes femininas vítimas de morte infortunística.

13 - Assim, e na linha do Acórdão 456 da Comissão Constitucional e dos Acórdãos n.os 181/87, 449/87 e 72/88 do T. Const., há que concluir que, se as diferenças normativas constantes das alíneas a) e b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127 ainda poderiam ter alguma justificação em tempos passados e nos quadros de uma sociedade altamente discriminatória, em que, de um modo geral, a mulher era condenada às tarefas domésticas ou ao desempenho dos trabalhos mais mal remunerados (o que daria algum sentido à intervenção correctiva do legislador), hoje, em que se caminha decididamente para a igualização do homem e da mulher em confronto com o mercado do trabalho, já tal diversificação dispositiva não tem um suficiente suporte objectivo. Ela radica-se essencialmente no sexo dos interessados e viola, por isso, o princípio constitucional da igualdade, tal como, em termos materiais, o artigo 13.º da CRP o afirma.

IV Decisão

14 - Pelos motivos expostos - e sem pôr em causa o direito do viúvo a ser recebedor de pensão por morte infortunística, do outro cônjuge, calculável em função da retribuição base da vítima -, o T. Const. decide declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 1 da base XIX da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, na parte apenas em que atribui ao viúvo, em caso de falecimento do outro cônjuge em acidente de trabalho, e havendo casado previamente ao acidente, uma pensão anual de 30% da retribuição base da vítima, e isto desde que esteja afectado de doença física ou mental que lhe reduza sensivelmente a capacidade de trabalho ou seja de idade superior a 65 anos à data da morte da mulher.

Lisboa, 20 de Setembro de 1988. - Raul Mateus - Vital Moreira - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida - Mário de Brito - Antero Alves Monteiro Dinis - José Martins da Fonseca - José Magalhães Godinho.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/1988/10/06/plain-42534.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/42534.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1965-08-03 - Lei 2127 - Presidência da República

    Promulga as bases do regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.

  • Tem documento Em vigor 1966-05-27 - Decreto-Lei 47032 - Ministério das Corporações e Previdência Social - Gabinete do Ministro

    Promulga a regulamentação jurídica do contrato individual de trabalho - Revoga a legislação anterior em tudo o que for contrário às disposições do presente diploma, designadamente a Lei n.º 1952, o artigo 3.º e seus §§ 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 6.º do Decreto Lei n.º 38596, o Decreto-Lei n.º 38768, e os 1.º e seu § único, 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 43182.

  • Tem documento Em vigor 1971-08-21 - Decreto 360/71 - Ministério das Corporações e Previdência Social

    Promulga a regulamentação da Lei n.º 2127 no que respeita à reparação dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.

  • Tem documento Em vigor 1974-06-12 - Decreto-Lei 251/74 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro

    Faculta a todos os cidadãos portugueses, independentemente do seu sexo, o acesso aos cargos judiciários ou do Ministério Público e aos quadros dos funcionários de justiça.

  • Tem documento Em vigor 1974-07-06 - Decreto-Lei 308/74 - Ministério dos Negócios Estrangeiros

    Introduz alterações na redacção do Decreto Lei nº 47331, de 23 de Novembro de 1966, que aprovou a Lei Orgânica do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Publica em anexo o mapa do serviço diplomático.

  • Tem documento Em vigor 1974-09-27 - Decreto-Lei 492/74 - Ministério da Administração Interna - Direcção-Geral de Administração Local

    Altera o Código Administrativo.

  • Tem documento Em vigor 1979-09-20 - Decreto-Lei 392/79 - Ministério do Trabalho

    Garante às mulheres a igualdade com os homens em oportunidades e tratamento no trabalho e no emprego. Institui, junto do Ministério do Trabalho a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, definindo a sua composição, competências e funcionamento. Comete a fiscalização do disposto neste diploma a Inspecção do Trabalho e, fixa multas punitivas das violações nele contido.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2003-06-17 - Acórdão 232/2003 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade do segmento normativo que contém o critério respeitante aos candidatos que tenham acedido ao ensino superior integrados no contingente da Região Autónoma dos Açores, constante da parte final da alínea a) do n.º 7 do artigo 25.º do Regulamento do Concurso do Pessoal Docente da Educação Pré-Escolar e Ensinos Básico e Secundário.(Pocesso nº 306/2003)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda