1 - O Provedor de Justiça requer ao Tribunal Constitucional a declaração, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 21.º (condição 3.ª), 28.º (condição 6.ª) e 32.º (condição 3.ª) do Estatuto dos Sargentos e Praças da Armada, aprovado pelo Decreto 44884, de 18 de Fevereiro de 1963, e bem assim do n.º 1.º, n.º 2, alínea c), da Portaria 263/77, de 13 de Maio.
Admitido o pedido, foi notificado o Primeiro-Ministro para se pronunciar, querendo, o que fez, remetendo, com despacho de concordância, fotocópia do parecer 11/86 da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, contestando a existência de inconstitucionalidade das normas referidas no pedido.
Vejamos os fundamentos, tanto do pedido como da sua contestação.
II - As normas postas em causa no pedido são as seguintes:
1) Artigo 21.º (condição 3.ª) do Decreto 44884, de 18 de Fevereiro de 1963;
2) Artigo 28.º (condição 6.ª) do mesmo decreto;
3) Artigo 32.º, ainda desse decreto, que é o que contém o Estatuto dos Sargentos e Praças da Armada;
4) N.º 1.º, n.º 2, alínea c), da Portaria 263/77, de 13 de Maio.
Todas as normas do Decreto 44884 respeitam ao Estatuto dos Sargentos e Praças da Armada e a da Portaria 263/77 regulamenta a admissão de voluntários para as especialidades de pessoal militar não permanente privativo da Força Aérea e dispõem como segue:
Art. 21.º De harmonia com a Lei do Recrutamento e Serviço Militar, os mancebos para serem alistados na Armada devem satisfazer às seguintes condições:
[...] 3.ª Ser solteiro e não ter encargos de família.
Art. 28.º A admissão por voluntariado é feita mediante concurso, devendo os indivíduos que ao mesmo desejem ser admitidos satisfazer às seguintes condições gerais:
[...] 6.ª Ser solteiro e não ter encargos de família quando tenha menos de 25 anos de idade;
[...] Art. 32.º As condições de preferência na admissão por concurso são as seguintes:
[...] 3.ª Ser órfão de militar da Armada;
[...] N.º 1.º, n.º 2, alínea c), da portaria: «São condições de admissão a concurso, a comprovar por meio de documentos legais:
[...] c) Ser solteiro, viúvo ou divorciado, sem encargos de família;
[...]» III - O Provedor sustenta o seu pedido assim:
É fora de dúvida que os preceitos atrás transcritos infringem o disposto no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), na medida em que, sem qualquer razão plausível, por um lado privilegiam os cidadãos solteiros, viúvos ou divorciados sem encargos de família e, correlativamente, prejudicam os que não se encontram nessa situação e por outro lado cria-se um privilégio, injustificado também, a favor dos órfãos de militar da Armada.
A não admissibilidade imposta a quem seja casado ou tenha encargos de família constitui ilegítima discriminação, atenta contra o princípio da livre constituição de família, como factor impeditivo do acesso a uma profissão, o que infringe o preceito do artigo 36.º, n.º 1, da CRP.
IV - A Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros contraria a tese sustentada pelo Provedor de Justiça, argumentando de essencial:
Os preceitos postos em causa não violam o artigo 13.º da CRP porque nesse artigo se reconhece o direito à diferença, desde que esta não ultrapasse os limites da tolerabilidade ou da discricionariedade.
Qualquer dos diplomas que inserem as normas postas em causa tem por objecto regular a admissão, a preparação e a prestação de serviço de pessoal militar não permanente, tendo, pois, como finalidade disciplinar uma matéria bem específica da integração nos corpos militares e, sendo esse o ponto que concretamente interessa, a admissão de cidadãos naqueles corpos por via do voluntariado.
E afirma:
A filosofia subjacente aos dois diplomas é a da disponibilidade para o exercício de funções específicas, a que está inerente a necessidade de ausências duradouras e frequentes treinos intensivos, etc. Esta exigência de disponibilidade total do candidato não é compatível com indivíduos casados ou com encargos de família.
Face ao condicionalismo do exercício da função, a não admissibilidade de casados não é uma discriminação entre casados e entre solteiros, viúvos ou divorciados, mas antes a imposição de uma condição legítima.
Quanto à condição de preferência na admissão aos que forem órfãos de militar da Armada, é apenas uma preferência, enumerada em terceiro lugar, que só entrará em apreciação em caso de igualdade das condições anteriores. E não pode perder-se de vista que a própria CRP prevê discriminações positivas, legitimadoras de tratamento diferenciado, a fim de se alcançar a igualdade substancial, como é precisamente o caso dos órfãos e abandonados (n.º 2 do artigo 69.º), e não ultrapasse os limites da tolerabilidade, antes é uma discriminação pela positiva.
Há que decidir.
V - O pedido abrange quatro disposições - três delas relativas ao Estatuto dos Sargentos e Praças da Armada e uma relativa à Portaria 263/77, de 13 de Maio, do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea.
Todavia, são distintas, quanto ao seu conteúdo, as três disposições do Estatuto, enquanto é comum o conteúdo da disposição do n.º 1.º, n.º 2, alínea c), da portaria com uma daquelas disposições (a condição 6.ª do artigo 28.º do Estatuto), visto que, por um lado, todas as disposições do Estatuto sob apreciação contêm previsões que entre si são diversas - a disposição do artigo 21.º (condição 3.ª) refere-se a condições para ser alistado por recrutamento, a disposição do artigo 28.º (condição 6.ª), a condições para admissão por voluntariado e a disposição do artigo 32.º (condição 3.ª), a uma condição de preferência no concurso de admissão por voluntariado -, mas já, por um lado, as disposições, do artigo 28.º (condição 6.ª) do Estatuto e do n.º 1.º, n.º 2, alínea c), da portaria têm de comum enunciarem ambas, em termos quase semelhantes, as condições para admissão por voluntariado, respectivamente, na Armada e na Força Aérea.
Apreciar-se-á, sucessivamente, a eventual inconstitucionalidade:
a) Da condição 3.ª do artigo 21.º do Estatuto dos Sargentos e Praças da Armada;
b) Da condição 6.ª do artigo 28.º do mesmo Estatuto, bem como do n.º 1.º, n.º 2, alínea c), da Portaria 263/77, de 13 de Maio, do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea;
c) Da condição 3.ª do artigo 32.º do referido Estatuto.
Delimitado o pedido, convém delimitar imediatamente a causa de pedir, pois, em qualquer hipótese, ela é essencialmente uma.
Com efeito, embora o Tribunal não esteja vinculado à causa de pedir invocada - visto que, segundo o artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, ele pode declarar a inconstitucionalidade «com fundamento em violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada» -, é, no entanto, evidente que neste processo a questão da inconstitucionalidade há-de ser apreciada fundamentalmente em função da eventual violação do princípio da igualdade.
O princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes do sistema constitucional global e a sua interpretação tem sido objecto de vasta elaboração jurisprudencial e doutrinal (v., por todos, o Acórdão 76/85, in Diário da República, 2.ª série, de 8 de Junho de 1985, e o Acórdão 80/86, in Diário da República, 1.ª série, de 9 de Junho de 1986, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., Coimbra, 1984, pp. 147 e segs.).
Assim, na sequência da jurisprudência definida pela própria Comissão Constitucional face ao mesmo artigo 13.º da Constituição de República (cf., nomeadamente, o parecer 14/78 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 5.º, p. 109), tem-se por adquirido que o princípio da igualdade «não exige uma parificação absoluta no tratamento das situações, mas apenas o tratamento igual de situações iguais entre si e um tratamento desigual de situações desiguais, de modo que a disciplina jurídica prescrita seja igual quando uniformes as condições objectivas das hipóteses ou previsões reguladas e desigual quando falte tal uniformidade». Ainda, «outra solução, cuja constância vem sendo afirmada em maior ou menor medida por todos, é a de que as diferenciações de tratamento de situações aparentemente iguais se hão-de justificar, no mínimo, por qualquer fundamento material ou razão de ser que se não apresente arbitrária ou desrazoável, por isto ser contrário à justiça e, portanto, à igualdade, de modo que a legislação, não obstante, a margem de livre apreciação que lhe fica para além desse mínimo, não se traduza em 'impulsos, momentâneos ou caprichosos, sem sentido e consequência'».
Por isso - vem acrescentar o Acórdão 73/85 -, «com base nestes pressupostos, os factores determinantes de um tratamento normativo desigual devem comportar, designadamente, uma justificação que busque suporte na consonância entre os critérios adoptados pelo legislador e os objectivos da lei, por um lado, e entre estes e os fins cuja prossecução o texto constitucional comete ao Estado, por outro».
Conclui, em suma, o Acórdão 80/86 que a caracterização de uma norma como inconstitucional por violação do princípio da igualdade «dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, falta de razoabilidade e consonância com o sistema constitucional».
Há que ver se as normas em causa violaram ou não este princípio da igualdade. Comecemos pela condição 3.ª do artigo 21.º do Estatuto.
1 - O artigo 21.º (condição 3.ª) está inserido na secção II do capítulo II do Estatuto, a qual trata da admissão de praças na Armada segundo o sistema de recrutamento, isto é, segundo aquele sistema que visa «fornecer à Armada praças em prestação de serviço militar a que são obrigados todos os portugueses» (artigo 18.º, n.º 1, do Estatuto) e cujo número de mancebos a seleccionar é fornecido pelo Exército mediante requisição anual (artigo 20.º do Estatuto).
O artigo 21.º do Estatuto enuncia as condições que devem satisfazer os mancebos para serem alistados na Armada segundo este sistema de admissão por recrutamento, e que são:
1.ª Altura mínima do 1,60 m;
2.ª Saber ler, escrever e contar;
3.ª Ser solteiro e não ter encargos de família.
Acrescenta o § único do mesmo artigo 21.º que é dada preferência aos mancebos que no acto de apresentação às juntas de recrutamento do Exército declarem desejar servir na Armada.
Como se viu, é apenas sobre a condição 3.ª do artigo 21.º que versa o pedido do Provedor de Justiça.
Ora, tal disposição contém duas partes, ou seja, duas condições para ser alistado na Armada segundo o sistema de admissão por recrutamento:
a) Ser solteiro;
b) Não ter encargos de família.
Há, pois, que as analisar:
a) A imposição da obrigatoriedade de ser solteiro significa que não podem ser alistados na Armada todos os mancebos com outro estado civil: casados, viúvos, divorciados, etc.
Não se vislumbra qualquer fundamento ou razão que materialmente permita discriminar os mancebos solteiros na prestação de serviço militar por recrutamento na Armada relativamente aos mancebos que tenham outro estado civil. Mas se, porventura, o fundamento da condição e da discriminação é a existência de maior disponibilidade para o serviço militar na Armada tão-pouco se descortina qual a razão da discriminação, pois então todos os militares da Armada no activo, incluindo os do serviço permanente, teriam de ser obrigatoriamente, e sempre, solteiros.
É, assim, evidente que é inconstitucional, por violar o artigo 13.º, n.º 1, da CRP, a condição 3.ª do artigo 21.º do Estatuto na parte em que impõe a condição de solteiro para ser alistado segundo o sistema, de admissão por recrutamento na Armada.
b) A segunda parte da condição 3.ª do artigo 21.º do Estatuto impõe que não tenham encargos de família os mancebos a alistar na Armada mediante o sistema de admissão por recrutamento.
Entende o Tribunal que quanto a esta última condição ou parte se devem distinguir duas situações: a situação dos mancebos que no acto de apresentação às juntas de recrutamento declararam desejar fazer serviço na Armada e a situação dos mancebos que não fizeram essa declaração.
A condição 3.ª do artigo 21.º do Estatuto é, como se viu, claramente cindível em duas partes: a que impõe a condição de ser solteiro e a que impõe a condição de não ter encargos de família. Ora, se quanto à primeira parte, isto é, à disposição da condição 3.ª do artigo 21.º, na parte em que impõe a obrigação de ser solteiro, toda ela é inconstitucional, já a segunda parte, isto é, a disposição da condição 3.ª do artigo 21.º, na parte em que impõe a obrigação de não ter encargos de família, só é inconstitucional na medida em que é aplicável a certa situação ou categoria de cidadãos.
Vejamos.
A condição de não ter encargos de família - partindo do princípio que a prestação de serviço é onerosa, em virtude quer da sua duração, quer das exigências de adestramento, quer, sobretudo, das ausências mais frequentes e duradouras - só pode ser entendida como um fundamento material de discriminação entre os mancebos que têm de cumprir o serviço militar obrigatório enquanto manifestação do direito da família à protecção da sociedade e do Estado, consagrado no artigo 67.º da CRP.
Mas, como resulta do § único do artigo 21.º do Estatuto, os mancebos podem, no acto de apresentação às juntas de recrutamento, manifestar a sua vontade de prestar serviço na Armada, e essa declaração dá-lhes preferência para o respectivo alistamento.
Ora, não se justifica qualquer protecção aos mancebos que, mesmo tendo encargos de família, declaram desejar servir na Armada. Nessa medida, e só nessa, isto é, relativamente àqueles que, exercendo um direito, manifestaram a sua preferência de prestar serviço militar na Armada, é inconstitucional a condição 3.ª do artigo 21.º ao impor, sem distinguir, que só podem ser alistados na Armada os mancebos que não tenham encargos de família.
Mas já não é inconstitucional a mesma condição relativamente aos cidadãos que, por qualquer forma, não manifestaram essa vontade de prestar serviço militar na Armada, visto que, aqui, a discriminação (que se mede por não haver encargos de família) tem um fundamento material, que é, em última instância, o direito a um tratamento mais favorável - a protecção que, nos termos do artigo 67.º da CRP, a sociedade e o Estado devem à família. Nesta situação ou quanto a esta categoria de cidadãos que não pretendem prestar o serviço militar obrigatório na Armada, ao impor a condição de não terem encargos de família, não há violação do princípio da igualdade, pois tal discriminação é razoável e está conforme com o sistema constitucional.
E nem se diga que a distinção entre as duas situações ou as duas categorias de cidadãos não é legítima por não estar em causa o mero exercício de um direito (o direito de preferência a ser alistado na Armada), mas o cumprimento do dever de serviço militar, imposto pelo artigo 276.º, n.º 2, da CRP, que, enquanto dever fundamental, deveria prevalecer na interpretação da lei. Muito embora, em certos casos (como é precisamente o caso do dever de serviço militar, que, entre outros, comprime directamente, durante o tempo da respectiva prestação, v. g., a liberdade de escolha de profissão e o direito de a exercer), os deveres fundamentais impliquem automaticamente a limitação de um ou mais direitos fundamentais com eles correlacionados (neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 143), todavia a norma que está em apreciação configura situações manifestamente desiguais (preferir ou não, tendo encargos de família, prestar serviço militar na Armada) e o princípio da igualdade tanto vale e se projecta no exercício de direitos como no cumprimento de deveres.
Por tudo isto se conclui que é inconstitucional a parte final da condição 3.ª do artigo 21.º do Estatuto, na medida em que, conjugada com o § único do mesmo artigo, impõe que não possam ser alistados na Armada os cidadãos que, não obstante terem encargos de família, manifestaram essa preferência, por violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP. Mas já não é inconstitucional a mesma condição relativamente aos cidadãos que não tenham declarado a sua preferência por serem alistados na Armada.
2 - O artigo 28.º (condição 6.ª) do Estatuto e o n.º 1.º, n.º 2, alínea c), da portaria têm de comum regularem, em termos quase semelhantes, condições de admissão por voluntariado, respectivamente, na Armada e na Força Aérea.
A admissão por voluntariado é feita por concurso. Diz o artigo 28.º do Estatuto, entre outras, na sua condição 6.ª, que é condição para a admissão a concurso «ser solteiro e não ter encargos de família quando tenha menos de 25 anos de idade». Dispõe, por sua vez, o n.º 1.º, n.º 2, da portaria que é, entre outras, condição para ser admitido a concurso «ser solteiro, viúvo ou divorciado, sem encargos de família» [alínea c)].
Também aqui seria possível, como se fez para a norma anteriormente apreciada, distinguir, quanto a ambas as disposições, entre as duas partes que horizontalmente compõem cada uma delas:
a) Ser solteiro, eventualmente só até aos 25 anos de idade (Estatuto), ou ser solteiro, viúvo ou divorciado (portaria);
b) Não ter encargos de família, quando tenha menos de 25 anos de idade (Estatuto), ou não ter encargos de família (portaria).
No entanto, tal distinção não tem aqui a mesma relevância, pois agora trata-se de admissão por voluntariado e as discriminações parecem apenas fundar-se no interesse da Armada e da Força Aérea, e não em qualquer intenção de proteger a família.
Assim, é manifestamente claro que são inconstitucionais as discriminações na admissão a concurso para prestação de serviço militar voluntário feitas entre os cidadãos solteiros e todos os demais [artigo 28.º (condição 6.ª) do Estatuto] ou entre os cidadãos solteiros, viúvos ou divorciados e todos os demais [n.º 1.º, n.º 2, alínea c), da portaria], pois violam o princípio da igualdade.
Por outro lado, considerando que se trata da prestação de serviço militar por voluntariado, dir-se-ia ser do interesse da Armada e da Força Aérea que os candidatos não tenham encargos de família, pois não só estarão em melhores condições e mais disponíveis para prestar o referido serviço como trarão, consequentemente, menos encargos a uma e outra. No entanto, tal presumível interesse não é bastante - não pode considerar-se um fundamento material suficiente, razoável e consonante com o sistema constitucional - para fundar qualquer discriminação entre os cidadãos. Para ser considerado válido como material de uma discriminação conforme ao princípio da igualdade, o interesse da Armada e da Força Aérea em que os militares na prestação de serviço militar voluntário não tenham encargos de família teria de ter um âmbito geral e absoluto. Tal âmbito não é possível, visto que acarretaria que os militares em causa não poderiam casar, conclusão que contraria frontalmente o disposto no artigo 36.º, n.º 1, da CRP, ao garantir que «todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade».
De resto, a condição 6.ª do artigo 28.º do Estatuto, ao distinguir entre os candidatos consoante têm mais ou menos de 25 anos de idade, podendo os primeiros mas não os segundos ter encargos de família, confirma que aquele presumível interesse não pode ser invocado como fundamento válido da discriminação.
Assim sendo, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, as normas do artigo 28.º (condição 6.ª) do Estatuto e do n.º 1.º, n.º 2, alínea c), da portaria.
3 - O artigo 32.º do Estatuto diz na sua condição 3.ª que é condição de preferência na admissão por concurso (ou seja na admissão por voluntariado) ser «órfão de militar da Armada».
Aparentemente, esta condição é menos gravosa do que as constantes das normas anteriormente apreciadas, pois se trata de uma mera condição de preferência que só funciona em terceiro lugar para os candidatos que se encontrem em perfeita igualdade em relação às condições precedentes do concurso de admissão. Apesar disso, tal condição é inconstitucional porque discrimina, injustificadamente, os órfãos dos militares da Armada.
É, antes de mais, inconstitucional porque viola o princípio da igualdade nos precisos termos em que ele está consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da CRP, e vem sendo interpretado pela jurisprudência e pela doutrina. A norma em apreciação privilegia certo candidato pelo facto de ele ser órfão de militar da Armada. O artigo 69.º, n.º 2, da CRP apenas estabelece que a especial protecção da sociedade e do Estado a que os órfãos têm direito é aplicável às crianças, isto é, à infância. Mesmo que possa ser sustentado que a orfandade é, em si mesma, para além da infância, uma situação desvantajosa e desigual que pode justificar, materialmente, no caso da prestação do serviço militar, uma certa e especial protecção, não é esse o fundamento do artigo 32.º (condição 3.ª) do Estatuto, pois contempla essa preferência apenas para o serviço militar voluntário e, por outro lado, restringe-a aos órfãos dos militares da Armada.
Ora, é óbvio que uma situação mais difícil e precária quanto a possibilidades e oportunidades tanto pode ocorrer relativamente ao serviço militar voluntário como ao obrigatório, a órfãos de militares da Armada como de qualquer outro ramo das Forças Armadas, a órfãos de militares como a órfãos de civis. Não há qualquer razão nem fundamento - salvo numa visão estritamente corporativa, que a CRP não admite - para proceder a este tipo de discriminação.
Acresce que, para além disso, esta discriminação viola também, expressamente, o artigo 13.º, n.º 2, da CRP, segundo o qual ninguém pode ser privilegiado beneficiado ou prejudicado em razão de ascendência, pois privilegia e beneficia, sem fundamento material, como vimos, os descendentes de militares da Armada.
VI - Assim, face a todo o exposto, não pode deixar de concluir-se que as normas em causa, e na medida aqui definida, violam o princípio da igualdade que a CRP consagra e os princípios democráticos que a inspiram e comandam de nenhum modo consentem.
Nestes termos, decidem declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 13.º da Constituição:
1) Da norma constante da condição 3.ª do artigo 21.º do Decreto 44884, de 15 de Fevereiro de 1963:
a) Na parte respeitante ao requisito de ser solteiro;
b) Na parte respeitante ao requisito de não ter encargos de família enquanto aplicável àqueles que no acto de apresentação à junta de recrutamento hajam manifestado vontade de prestar serviço militar na Armada;
2) Das normas constantes da condição 6.ª do artigo 28.º do citado Decreto 44884, bem como do n.º 1, n.º 2, alínea c), da Portaria 263/77, de 13 de Maio;
3) Da norma constante da condição 3.ª do artigo 32.º do referido Decreto 44884.
Tribunal Constitucional, 3 de Dezembro de 1986.
Magalhães Godinho (relator) - Mário Afonso - Vital Moreira - Messias Bento - Monteiro Diniz - Martins da Fonseca - Mário de Brito - Nunes de Almeida - Raul Mateus - Cardoso da Costa - Armando M. Marques Guedes.