Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 522/2021
Sumário: Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º e 7.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro, e dos artigos 1.º, 3.º e 4.º dos Estatutos da Casa do Douro, aprovados pela mesma Lei e dela constantes em anexo; consequentemente, em face desta declaração de inconstitucionalidade, declara também inconstitucionais as demais normas da Lei 73/2019 e dos Estatutos da Casa do Douro, aprovados pela mesma Lei e dela constantes em anexo, globalmente insuscetíveis de subsistir na ordem jurídica; fixa os efeitos da inconstitucionalidade declarada, com força obrigatória geral, de modo a que se produzam apenas a partir da publicação oficial do presente Acórdão.
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Um grupo de trinta e oito deputados à Assembleia da República, pertencentes aos Grupos Parlamentares do Partido Social-Democrata e do Centro Democrático e Social (doravante referidos como os requerentes), solicitaram ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a apreciação e a declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas dos artigos 1.º e 7.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro, dos artigos 1.º, 3.º e 4.º dos Estatutos da Casa do Douro, aprovados pela mesma lei e dela constantes em anexo, e indireta ou consequencialmente das demais normas do mesmo diploma, insuscetíveis de subsistir autonomamente sem aquelas.
2 - Os requerentes alegam, como fundamento do pedido, que as normas objeto do pedido violam o disposto nos artigos 46.º, n.º 3, 18.º, n.º 3, e 267.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP ou Constituição) bem como o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
Os fundamentos apresentados no pedido para sustentar a inconstitucionalidade das normas diretamente impugnadas são, em síntese, os que de seguida se transcrevem.
2.1 - No que diz respeito à violação dos artigos 46.º, n.º 3, 18.º, n.º 3, e 267.º, n.º 4, da Constituição por violação da liberdade de associação e do princípio da proporcionalidade:
«(...)
1 - É comum a distinção entre uma dimensão positiva e uma dimensão negativa da liberdade de associação, entendida como direito individual. Assim, na dimensão positiva da liberdade de associação inclui-se 'o direito de fazer parte ou de aderir a qualquer associação, verificados os pressupostos legais e estatutários, sem privilégios, nem discriminações'. Por seu turno, na dimensão negativa da mesma liberdade inclui-se 'o direito de livremente, a todo o tempo, sair de qualquer associação a que se pertença', bem como 'o direito de não ser coagido a inscrever-se (ou a permanecer) em qualquer associação'. Dito de outro modo, a liberdade associação 'protege tanto a admissão a associação já existente, a atividade na e com a associação e a permanência (a designada liberdade de associação positiva), como correspondentemente o direito de se manter afastado e sair (a designada liberdade negativa de associação), pelo menos na medida em que se trate de uma associação de direito privado'.
2 - Poderia, todavia, sustentar-se que tal como a liberdade de associação não envolve, na sua dimensão positiva, o direito de em conjunto com outros constituir uma associação pública, não envolve também, na sua dimensão negativa, o direito de se manter afastado de uma associação pública.
3 - Este entendimento esquece, todavia, o núcleo da liberdade de associação como direito clássico de defesa perante o Estado e os poderes públicos e, nesse âmbito, não é admissível qualquer distinção quanto à questão de saber se um privado se pretende manter afastado de uma associação privada ou de uma associação pública, ainda que a justificação constitucional das restrições admitidas à liberdade de associação possa ser diversa nos dois casos.
4 - Não restam, pois, dúvidas que o estabelecimento de uma obrigação de um determinado grupo de pessoas entrar para uma associação pública consubstancia uma intervenção no âmbito de proteção da liberdade de associação, consagrada no artigo 46.º da Constituição.
5 - Mas para além disso, a nossa Constituição estabelece limitações específicas às associações públicas, o que não deixa de trazer implícito o reconhecimento de que estas configuram em si mesmas uma restrição à liberdade de associação.
6 - Assim, de acordo com o artigo 267.º, n.º 4, da Constituição, 'as associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos'.
7 - Esta disposição tem sido interpretada no sentido de incluir exigências várias: "que uma associação pública não pode visar a generalidade, ou um conjunto muito amplo, dos interesses de um conjunto delimitado de sujeitos, sem potencial substrato, de forma a deixar espaço para o exercício multiforme da liberdade de associação; em que esse grupo, e apenas ele, partilhe de um interesse próprio, ou um conjunto restrito de interesses próprios, conexos entre si; que esse interesse ou interesses assumam natureza pública, segundo um juízo político-legislativo; que a sua prossecução pelos próprios titulares, organizados em associação, não contrarie princípios ou valores constitucionais; e, por fim, que estes requisitos sejam interpretados em termos restritivos (cf. a expressão 'só'), de modo a que a criação de associações públicas apenas ocorra em casos muito limitados, quando a auto-administração seja inequivocamente a forma organizatória adequada para a realização de uma tarefa pública".
8 - Ora, parece claro que as normas questionadas no presente pedido não satisfazem as exigências mencionadas, pelo menos em dois planos: (i) por um lado, os interesses dos associados, tal como a própria lei os configura, não assumem qualquer natureza pública; (ii) por outro lado, a restauração da Casa do Douro como associação pública não releva de uma interpretação restritiva, mas antes maximalista, da criação de associações públicas.
9 - Com efeito, resulta já com clareza do acima exposto que as atribuições específicas da Casa do Douro, previstas no artigo 3.º dos respetivos Estatutos, não configuram quaisquer 'funções públicas', podendo ser exercidas pelos privados destinatários da obrigação de se associarem.
10 - Essa conclusão torna-se ainda mais evidente se se tiver presente a evolução das funções da Casa do Douro e o modo como a mesma foi sendo esvaziada, praticamente desde o momento em que foi constituída, das funções que podiam justificar a criação de uma associação pública.
11 - Assim, o artigo 10.º do Decreto 21883, publicado no Diário do Governo de 10 de novembro de 1932, que criou a Casa do Douro, estabelecia o seguinte:
'À Casa do Douro, independentemente das atribuições próprias às federações de sindicatos, competem as seguintes:
a) Orientar e fiscalizar a produção vitícola e vinícola em toda a região dos vinhos generosos do Douro, de forma a garantir a genuinidade do produto e as melhores condições de fabrico, prestando a necessária assistência técnica aos associados;
b) Fixar os preços mínimos de venda para os vinhos e mostos produzidos na região;
c) Fixar a quantidade de vinho que deve ser beneficiada em cada ano e autorizar a respetiva beneficiação de harmonia com a qualidade dos mostos;
d) Regularizar o trânsito e a aplicação de aguardentes necessárias à beneficiação dos vinhos;
e) Promover o escoamento anual dos vinhos não beneficiados;
f) Criar e organizar adegas cooperativas, nos termos da legislação em vigor;
g) Intervir no ajustamento dos salários dos trabalhadores rurais, por freguesias, para os diversos trabalhos agrícolas e assegurar a esses trabalhadores a devida assistência;
h) Inventariar, em livro especial, as propriedades que tenham vinha na região demarcada do Douro, averbando todas as indicações que bem definam essas propriedades'.
12 - Se se quiser, pois, apurar o que significam verdadeiramente 'funções públicas' no contexto de uma auto-administração dos produtores de vinha na Região Demarcada do Douro basta pois ter em atenção as atribuições que acabam de ser enunciadas, pois elas representam o verdadeiro paradigma das atribuições que justificam a criação de uma associação pública neste âmbito.
13 - Todavia, a partir deste ponto inicial, o legislador foi procedendo a um gradual e imparável esvaziamento das funções exercidas pela Casa do Douro até atingir, como ponto mais baixo, a situação atual, correspondente às designadas 'funções públicas' previstas nos atuais Estatutos da Casa do Douro.
14 - Esse esvaziamento teve como contraponto a criação do Instituto do Vinho do Porto, logo em 1936, a que depois sucedeu o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, mediante a fusão da Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro com o Instituto do Vinho do Porto, operada pelo Decreto-Lei 278/2003, de 6 de novembro.
15 - Assim, entre as atribuições do Instituto do Vinho do Porto contam-se a de '[f]ixar a quantidade de vinho que deve ser beneficiada em cada ano na região demarcada de vinhos generosos do Douro', como consignava logo o artigo 2.º, alínea d), do Decreto-Lei 26914, de 22 de agosto de 1936.
16 - A evolução legislativa demonstra, com efeito, que, à medida que o Governo foi criando organismos com competências próprias no domínio do controlo da qualidade e quantidade dos vinhos do Douro e do Porto, se foram esvaziando as funções da Casa do Douro, ao ponto de não subsistirem quaisquer funções relevantes atribuídas a esta última.
17 - Neste contexto, compreende-se que a aprovação de qualquer diploma redefinindo os estatutos da Casa do Douro tenha sido normalmente acompanhada de um diploma redefinindo a orgânica dos institutos públicos que realmente prosseguem funções públicas no setor: assim aconteceu, a título de exemplo, com os Decretos-Leis n.os 75/95 e 76/95, ambos de 19 de abril, e com os Decretos-Leis n.os 277/2003 e 278/2003, ambos de 6 de novembro.
18 - Parece, pois, claro que as disposições em crise no presente pedido não observam os limites quanto à criação de associações públicas impostos pelo artigo 267.º, n.º 4, da Constituição.
19 - Para além disso, afigura-se também claro que as normas em crise no presente pedido não observam os limites às restrições à liberdade de associação, entendida na sua dimensão negativa de direito de não ser obrigado a tornar-se membro de uma associação, consagrada no artigo 46.º da Constituição.
20 - De resto, as exigências de proporcionalidade que aqui devem ser observadas estão também subjacentes ao disposto no artigo 267.º, n.º 4, da Constituição, quando submete a criação de associações públicas a um requisito de necessidade ('as associações públicas só podem ser constituídas...').
21 - Como é sobejamente conhecido, o princípio da proporcionalidade subdivide-se em três subprincípios: o subprincípio da adequação, respeitante à eficácia da medida restritiva para atingir fim visado; o subprincípio da necessidade, relativo ao despiste das medidas excessivas para atingir fim visado, isto é, medidas que não se revelam, na prossecução de tal fim, o menos gravosas possíveis para os direitos afetados; o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, que exige que os ganhos para o bem constitucional que justifica a restrição sejam superiores às perdas para o bem constitucional objeto de restrição.
22 - Ora, facilmente se compreende que a restauração da Casa do Douro como associação pública não se apresenta sequer como instrumento idóneo a prosseguir as atribuições específicas previstas no artigo 3.º dos respetivos Estatutos, aprovados como anexo da Lei 73/2019.
23 - Se o que está em causa é a mera representação genérica dos interesses de todos os viticultores da Região Demarcada do Douro, sem que se prevejam quaisquer funções específicas capazes de conformar a produção e a comercialização dos vinhos produzidos na Região do Douro, não pode deixar de se considerar que tais viticultores serão certamente as pessoas indicadas para ajuizar dos modos mais adequados para o efeito de levar a cabo tal representação de interesses através da constituição de associações de direito privado.
24 - Ainda que se pretenda assegurar a existência de um ente coletivo representativo de todos os viticultores - o que, aliás, sempre seria um fim de duvidosa constitucionalidade à luz da própria liberdade de associação, na sua dimensão negativa - a verdade é que essa função é já desempenhada pelo conselho interprofissional, previsto no artigo 6.º da Lei Orgânica do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, aprovada pelo Decreto-Lei 278/2003, de 6 de novembro.
25 - O que acaba de ser dito permite desde logo demonstrar que as normas em crise não observam também o requisito da necessidade, pois se demonstra que é possível assegurar a representação e promoção de interesses dos viticultores através da criação de associações privadas ou da sua representação nos organismos públicos já existentes.
26 - Finalmente, é ainda evidente que a lesão para a liberdade de associação dos viticultores é consideravelmente superior às supostas vantagens - indescortináveis, na verdade - que a obrigação de fazerem parte de uma associação, prevista nas normas legais em causa, significa para a prossecução dos fins pretendidos com a restauração da Casa do Douro como associação pública.
27 - As considerações anteriores permitem-nos mesmo chegar mais longe: se o que está em causa é a mera vontade do legislador no sentido de impor uma associação aos viticultores do Douro, sem no entanto lhes reconhecer o exercício de quaisquer funções significativas na produção e comercialização dos vinhos do Douro e do Porto, então o fim em causa é constitucionalmente ilegítimo, por violação direta da liberdade de associação, consagrada nos artigos 18.º e 46.º da Constituição.»
2.2 - E, no que diz respeito à violação do princípio da igualdade:
«(...)
28 - Nada justifica que apenas os viticultores do Douro sejam obrigados a fazer parte de uma associação pública, quando idêntica exigência não se encontra prevista para os viticultores das demais regiões demarcadas.
29 - A esse propósito basta atentar na organização institucional do setor vitivinícola, estabelecida pelo Decreto-Lei 212/2004, de 23 de agosto, assente na constituição de associações privadas (cf. o artigo 11.º deste diploma).
30 - Nos termos do artigo 22.º, n.º 1, do mencionado diploma, a aplicação do respetivo regime às "Do [denominação de origem] 'Porto' e IG (indicação geográfica) 'Terras Durienses' 'far-se-á sem prejuízo das normas especiais previstas nos respetivos estatutos e regulamentos e salvaguardando as competências próprias da entidade certificadora essa região"'.
31 - Simplesmente, a entidade certificadora da Região do Douro é o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, não a Casa do Douro.
32 - Não existe qualquer razão atendível, em face das atribuições específicas da Casa do Douro, que justifique que apenas os viticultores do Douro sejam obrigados a fazer parte de uma associação pública, com todos os custos inerentes, quando idêntica obrigação não impende sobre os viticultores de qualquer outra região vinícola do País.
33 - Ainda que as características próprias da Região Demarcada do Douro pudessem, em abstrato, justificar a criação de uma associação pública apenas para os viticultores desta região, a verdade é que a ausência de funções significativas previstas na lei para esta associação, aliada à respetiva prossecução por um organismo do Estado sem qualquer equivalente nas demais regiões demarcadas do País, torna a situação existente intolerável à luz do princípio da igualdade.
34 - Torna-se assim claro que as normas objeto do presente pedido violam o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.»
3 - Notificado o Presidente da Assembleia da República, na qualidade de entidade representante do órgão autor da norma (cf. artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de novembro [Lei de organização, funcionamento e processo no Tribunal Constitucional, doravante LTC]), remeteu para os trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação da Lei 73/2019, de 2 de setembro, e enviou uma pequena nota técnica sobre os respetivos trabalhos, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão de Agricultura e do Mar e, em tudo o mais, foi oferecido o merecimento dos autos (cf. fls. 32 a 38).
4 - Constatada a verificação, por parte dos trinta e oito deputados ora requerentes, da condição de legitimidade processual para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade), com força obrigatória geral, de quaisquer normas, nos termos da norma do artigo 281.º, n.º 2, alínea f), da Constituição (a qual atribui a «[um] décimo dos Deputados à Assembleia da República» legitimidade para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, com força obrigatória geral), procedeu-se, em Plenário, à discussão do memorando apresentado pelo Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos e para os efeitos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC.
Nesta sequência, fixada que foi a orientação do Tribunal, foi o processo objeto de distribuição (artigo 63.º, n.º 2, da LTC).
Cumpre agora, completado o processo de formação da decisão, elaborar acórdão em harmonia com aquela orientação e o que então se estabeleceu.
II - Fundamentação
5 - Os requerentes solicitam ao Tribunal Constitucional a fiscalização das normas dos artigos 1.º e 7.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro, dos artigos 1.º, 3.º e 4.º dos Estatutos da Casa do Douro, aprovados pela mesma lei e dela constantes em anexo, e indireta ou consequencialmente das demais normas do mesmo diploma, insuscetíveis de subsistir autonomamente sem aquelas. Isto, com os fundamentos supra transcritos (cf. I, 2.1 e 2.2).
É a seguinte a redação das identificadas normas do diploma em causa:
«Artigo 1.º
Objeto
A presente lei procede à reinstitucionalização da Casa do Douro enquanto associação pública e inscrição obrigatória, procede à aprovação dos estatutos da Casa do Douro e determina a entrega a esta entidade do imóvel que é a sua sede e propriedade conjunta de todos os viticultores da Região Demarcada do Douro, sito na Rua dos Camilos, Peso da Régua.
Artigo 7.º
Estatutos
São aprovados os Estatutos da Casa do Douro, em anexo à presente lei e que dela fazem parte integrante».
Estatutos da Casa do Douro, constantes de anexo da Lei 73/2019, a que se refere o respetivo artigo 7.º:
«Artigo 1.º
Natureza, fins e sede
1 - A Casa do Douro é uma associação pública.
2 - A Casa do Douro tem por objeto a representação e a prossecução dos interesses de todos os viticultores da Região Demarcada do Douro, através do exercício das atribuições e competências previstas nos presentes Estatutos e outras que o Estado, em articulação com os órgãos próprios da Casa do Douro, decida atribuir-lhe.
3 - Casa do Douro tem a sua sede em Peso da Régua.
Artigo 3.º
Atribuições específicas
Na Região Demarcada do Douro, cabem à Casa do Douro, nomeadamente, as seguintes atribuições:
a) Representar os viticultores junto de entidades públicas e privadas, com especial incidência perante o Ministério da Agricultura e os seus serviços, associações interprofissionais, profissionais, económicas e sindicais, assegurando a representação coordenada dos representantes da produção nos organismos interprofissionais;
b) Indicar os representantes da produção nos organismos e entidades públicas e privadas em que lhe seja reconhecido o direito de participação, designadamente no Conselho Interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, I. P.;
c) Defender as denominações de origem e indicações geográficas da região, designadamente participando as infrações às autoridades competentes;
d) Promover a agregação dos viticultores junto de instrumentos de garantia e de seguros que visem aumentar o valor e a qualidade dos vinhos produzidos na Região Demarcada do Douro;
e) Participar na criação e gestão de instituições de carácter mutualista;
f) Apoiar e incentivar a produção vitícola e vitivinícola, em ligação com os serviços competentes e prestar assistência técnica aos viticultores designadamente nos âmbitos da proteção integrada ou biológica, fitossanitário ou ambiental;
g) Promover serviços técnicos aos seus associados, designadamente ao nível da contabilidade e da procura de crédito disponíveis a nível nacional ou internacional;
h) Desenvolver, por si ou por interposta pessoa, planos e ações de formação profissional;
i) Desenvolver atividade comercial no domínio dos fatores de produção ligados à agricultura;
j) Prestar ao organismo interprofissional toda a colaboração no tratamento de assuntos que constituam objeto de interesse para os seus associados, como sejam, receber o manifesto da produção e as declarações de existência e outras que decorram de protocolos de colaboração aceites pelas partes;
k) Promover e colaborar na investigação e experimentação tendentes ao aperfeiçoamento da vinicultura e da viticultura durienses;
l) Participar nas políticas de procura de novos mercados e de promoção dos produtos da região tanto a nível nacional como internacional;
m) Promover a auscultação regular dos agentes económicos, entidades, instituições e autarquias, sobre os problemas da vinicultura e viticultura da região e sobre as linhas estratégicas a adotar;
n) Manter um stock histórico mínimo de vinhos a determinar por portaria do membro do Governo com a tutela da agricultura;
o) Exercer quaisquer outras funções públicas que, de harmonia com a lei e a sua natureza, lhe caibam.
Artigo 4.º
Qualidade de associado
1 - São associados singulares da Casa do Douro todos os viticultores legalmente reconhecidos pelo Estado através do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, I. P.
2 - O reconhecimento referido no número anterior abrange todos os inscritos na qualidade de proprietários, usufrutuários, arrendatários, subarrendatários, parceiros, depositários, consignatários, comodatários ou usuários, que cultivem vinha na região, sem dependência de quaisquer outros requisitos.
3 - Os associados singulares são distribuídos por cadernos organizados por freguesia.
4 - São associados coletivos da Casa do Douro todas as adegas cooperativas e cooperativas vitivinícolas, bem como todas as associações agrícolas existentes na região cuja representatividade no setor vitícola esteja assegurada nos termos do artigo 14.º
5 - São associados de mérito as pessoas singulares que contribuam para o desenvolvimento dos objetivos que a Casa do Douro prossegue e que sejam reconhecidos pelo conselho regional sob proposta da direção.
6 - São associados honorários as pessoas coletivas julgadas merecedoras desta distinção e que sejam reconhecidos pelo conselho geral sob proposta da direção.»
6 - Previamente à análise das questões de constitucionalidade colocadas nos presentes autos, afigura-se pertinente mencionar, ainda que de modo breve, a evolução do quadro normativo da Casa do Douro e do seu perfil institucional - cujas origens remontam à Federação Sindical dos Viticultores da Região do Douro, constituída em 1932 -, que veio a culminar, não sem vicissitudes do processo legislativo, na publicação da Lei 73/2019, de 2 de setembro, em que se inserem as normas sindicadas pelos requerentes.
Assim, na sequência da abolição da organização corporativa operada pelo Decreto-Lei 443/74, de 12 de setembro, e após um período de alguma indefinição institucional, a Casa do Douro veio a ser reconstituída, em 1982, como organização pública com funções de intervenção na regulação e disciplina da produção do vinho do Porto e dos demais vinhos do Douro, através do Decreto-Lei 486/82, de 28 de dezembro.
Por via do mencionado decreto-lei, procedeu-se à extinção da Federação dos Vinicultores da Região do Douro, designada por Casa do Douro, e em sua substituição foi criada a nova Casa do Douro, expressamente qualificada como «pessoa coletiva de direito público dotada de autonomia administrativa e financeira» (cf. artigo 1.º), tendo por objeto «a representação e promoção dos interesses dos vitivinicultores durienses e o exercício das atribuições e competências» (cf. artigo 2.º) que lhe eram atribuídas pelo mesmo decreto-lei.
Nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei 486/82 competia à Casa do Douro, nomeadamente, «executar, manter e controlar [...] o cadastro das vinhas e o ficheiro cadastral dos viticultores», «incentivar e disciplinar a produção vitivinícola [...]», «emitir a documentação de carácter geral relativa à procedência e trânsito dos produtos vínicos produzidos na região» e «desenvolver, quando necessário, as ações tendentes à regularização do mercado dos produtos vínicos e fomento da sua qualidade, bem como ao escoamento dos vinhos não comercializados».
Os estatutos da Casa do Douro só viriam a ser aprovados, todavia, pelo Decreto-Lei 288/89, de 1 de setembro, que não alterou substancialmente a natureza jurídica ou as atribuições previstas no Decreto-Lei 486/82. Contudo, estes estatutos viriam a ser alterados pelo Decreto-Lei 76/95, de 19 de abril, qualificando-se a Casa do Douro expressamente como associação pública (cf. artigo 1.º, n.º 1, desses estatutos) e restringindo-se, nalguma medida, as suas atribuições, que ainda assim preservaram grande relevância, designadamente, «manter e atualizar o registo dos vitivinicultores da Região Demarcada do Douro», «desenvolver, sob a coordenação do organismo a que incumbe tal ação a nível nacional, as medidas de gestão do mercado dos produtos vínicos da Região» e «zelar pelo cumprimento da legislação relativa à Região e aos vinhos nela produzidos, aplicar sanções nos termos e competências que lhe sejam cometidas pela lei ou regulamentos, bem como participar as demais infrações detetadas pelos seus serviços às autoridades administrativas ou judiciais competentes» - cf. artigo 3.º desses estatutos.
O Decreto-Lei 76/95 seria, por sua vez, revogado pelo Decreto-Lei 277/2003, de 6 de novembro, que aprovou novos estatutos. Destes novos estatutos destaca-se a manutenção da Casa do Douro como associação pública (cf. artigo 1.º, n.º 1), a expressa sujeição da Casa do Douro às normas de direito privado nas suas relações contratuais com terceiros (cf. artigo 2.º, n.º 2) e um visível enfraquecimento dos poderes de autoridade ou de intervenção ou regulação da atividade económica. Assim, e embora preservando a incumbência de «manter e atualizar o registo dos viticultores e de todas as parcelas de vinha da Região Demarcada do Douro no respeito pelas normas que venham a ser emitidas pelo Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto», a Casa do Douro deixou de disciplinar ou intervir na produção e comercialização de vinhos, competindo-lhe, em relação com essa vertente, nomeadamente, «apoiar e incentivar a produção vitivinícola, em ligação com os serviços competentes, e prestar apoio e assistência técnica aos viticultores», «colaborar com o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto na execução das medidas decididas pelo Governo no que respeita às regras de comercialização para regularização da oferta na primeira introdução no mercado» e «colaborar na defesa das denominações de origem e indicações geográficas da Região, podendo para o efeito intervir como assistente em processos por crimes respeitantes àquelas designações, bem como participar as infrações detetadas às autoridades competentes».
Dir-se-ia, portanto, que, de entidade (auto)reguladora, dotada de visíveis poderes de autoridade, a Casa do Douro passou, já em 2003, e pelo menos em parte, à condição de auxiliar da atividade (hetero)reguladora da atividade económica em causa, exercida em boa medida pelo Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, cuja Lei Orgânica foi aprovada pelo Decreto-Lei 278/2003, de 6 de novembro, o que é manifestamente indesligável das alterações estatutárias de que foi objeto a Casa do Douro por via do referido Decreto-Lei 277/2003.
Vale a pena referir, aliás, que o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto viria a ser objeto de uma reestruturação operada pelo Decreto-Lei 97/2012, de 23 de abril, que, conforme se lê no respetivo preâmbulo, visou concretizar um «esforço de racionalização estrutural» e traduzir «uma nova compreensão do papel fundamental que o Estado tem desempenhado na Região Demarcada do Douro, a mais antiga região vinícola demarcada e regulamentada do mundo», que impunha àquele Instituto - sob a atual denominação de Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, I. P. (IVDP, I. P.) - uma «crescente intervenção na regulação da produção».
O perfil orgânico, atribuições e poderes do IVDP, I. P., continuam hoje a ser, fundamentalmente, os plasmados no Decreto-Lei 97/2012. Pode, em apertada síntese, afirmar-se que o IVDP, I. P., é um instituto público, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio, tendo por missão promover o controlo da qualidade e quantidade dos vinhos do Porto, regulamentando o processo produtivo, bem como a proteção e defesa das denominações de origem Douro e Porto e indicação geográfica Duriense (cf. artigos 1.º e 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 97/2012). Nesta conformidade, são atribuições do IVDP, I. P., nomeadamente, «propor a orientação estratégica e executar a política vitivinícola para a Região Demarcada do Douro (RDD), designadamente assegurando o conhecimento de toda a fileira e da estrutura de produção e comércio, incluindo a exportação, e as ações que lhe venham a ser delegadas pelo Instituto da Vinha e do Vinho, I. P. (IVV, I. P.)», «promover a convergência dos interesses da produção e do comércio na defesa do interesse geral da RDD, disciplinando, controlando e fiscalizando a produção e a comercialização dos vinhos produzidos na RDD, assegurando o ficheiro das parcelas de vinha desta região, controlando o recenseamento dos viticultores, efetuando as verificações adequadas para este efeito e determinando as correções necessárias», «controlar, promover e defender as denominações de origem e indicação geográfica da RDD» e «instruir os processos de contraordenação e aplicar às infrações detetadas, pelos seus serviços ou por outras entidades, as sanções relativamente às quais disponha de competência» - cf. artigo 3.º, n.º 2, do mesmo decreto-lei.
Foi neste contexto de esvaziamento dos poderes públicos e da atividade (auto)reguladora da Casa do Douro, acompanhado de um simétrico reforço da regulação estadual, através do IVDP, I. P., que foi publicado o Decreto-Lei 152/2014, de 15 de outubro, o qual determinou a extinção da Casa do Douro como associação de direito público, definiu o regime de regularização das suas dívidas e criou as condições para a sua transição para uma associação de direito privado. Lê-se na exposição dos motivos: «Neste contexto, a prossecução dos interesses dos viticultores impõe que a Casa do Douro evolua para uma associação de direito privado e de inscrição voluntária dos agricultores, constituída nos termos do Código Civil, orientada para a representação nos órgãos interprofissionais da RDD e para a prestação de serviços aos viticultores nas áreas que concorram de forma mais direta para a rentabilização da atividade». A futura associação de direito privado, que sucederia à Casa do Douro, seria constituída nos termos da lei geral (cf. artigo 2.º) e teria a possibilidade de usar a designação «Casa do Douro» (cf. artigo 6.º).
7 - Posteriormente, em 5 de abril de 2019, foi aprovado pela Assembleia da República um projeto de lei conjunto dos grupos parlamentares do Partido Socialista, do Bloco de Esquerda, do Partido Comunista Português e do Partido Ecologista «Os Verdes» - o Decreto da Assembleia da República n.º 293/XIII - que «Restaura a Casa do Douro enquanto associação pública e aprova os seus Estatutos». No que concerne às suas atribuições, é reposta a função de defender as denominações de origem e indicações geográficas da região, designadamente, participando as infrações às autoridades competentes, e introduz-se uma nova função de representação dos associados na celebração de acordos coletivos de carácter comercial ou técnico, bem como em convenções coletivas de trabalho.
Tal decreto não foi, porém, promulgado pelo Presidente da República, o qual, em mensagem dirigida à Assembleia da República, a 20 de maio de 2019, justificou assim o veto, pedindo nova apreciação do assunto:
«O diploma ora submetido a promulgação quer 'restaurar' a Casa do Douro como entidade pública, de inscrição obrigatória, e escolhe a natureza de associação pública para o fazer, procedendo a uma transferência para o setor público de matérias e bens a cargo de entidade privada, em termos diversos dos genericamente previstos no nosso quadro constitucional.
O passo dado suscita várias dúvidas. Por que razão não opta por fórmula de Federação independente, cúpula de uma rede de associações, adegas e cooperativas locais, que cobrisse a Região Demarcada, fórmula compatível com quase todas as atribuições previstas no diploma? Por que razão, escolhendo o caminho de uma entidade pública, não adota o modelo de uma Câmara de Agricultura, idêntica às existentes em vários países europeus?
A preferência pela natureza de associação pública levanta, por seu turno, vários problemas que se não podem ignorar. Primeiro, é uma associação pública sem nenhum dos poderes que caracterizam as associações públicas, como os de regulação e disciplina profissional. Segundo, sendo uma associação pública, não deve intervir na contratação coletiva, por tal envolver o exercício de funções sindicais ou patronais.
Ou seja, o diploma cria o que já foi designado como 'quadratura do círculo institucional', ao qualificar como associação pública o que, na verdade, não o parece ser, e, a querer sê-lo, ao conferir-lhe poderes que não lhe devem estar cometidos.
Com o propósito de tentar evitar ou, pelo menos, minimizar o risco de uma oportunidade gorada, solicito, pois, à Assembleia da República que pondere: Primeiro, se não deve dar primazia a uma reflexão mais ampla sobre outras fórmulas, como as atrás enunciadas, ou seja, diversas da opção denominada de 'restauracionista'. Segundo, se, a manter essa opção, não quer repensar a qualificação como associação pública, nos termos em que é feita, ou densificando-a, ou, em alternativa, abrindo espaço para outra qualificação também publicística. Terceiro, se, a manter a qualificação como associação pública, nos termos em que a adora, não está disponível para, pelo menos, expurgar normas que, patentemente, não cabem em tal natureza, como é o caso da intervenção patronal na contratação coletiva de trabalho.
Nestes termos e com tal propósito, devolvo à Assembleia da República, sem promulgação, o Decreto da Assembleia da República n.º 293/XIII - Restaura a Casa do Douro enquanto associação pública e aprova os seus estatutos.»
Perante o veto do Presidente da República, foram apresentadas, na Assembleia da República, propostas de alteração ao referido decreto. Nesse contexto, manteve-se a opção como associação pública de inscrição obrigatória, eliminando-se, no essencial, a função de representação dos associados na celebração de convenções coletivas de trabalho, dando origem a um novo decreto - o Decreto 335/XIII - aprovado por maioria, em 19 de julho de 2019 e promulgado em 26 de julho pelo Presidente da República. O diploma foi, entretanto, publicado como Lei 73/2019, de 2 de setembro.
A Lei 73/2019 - na qual se integram as normas que constituem o objeto do presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade - veio, assim, reinstituir a Casa do Douro como associação pública, embora sem alterar as atribuições e competências que haviam sido transferidas, ao longo do tempo, para a administração indireta do Estado e sediadas, em larga medida, no IVDP, I. P.
8 - No que respeita ao mérito, os requerentes alegam, como fundamento do pedido, que as normas objeto do mesmo violam o disposto nos artigos 46.º, n.º 3, 18.º, n.º 3, e 267.º, n.º 4, da Constituição, bem como o princípio da igualdade, consagrado no seu artigo 13.º
Cumpre apreciar cada uma das questões de constitucionalidade assim colocadas.
A) Primeira questão de constitucionalidade: a liberdade de associação e o regime jus-constitucional das associações públicas
9 - De acordo com as normas sindicadas - em particular os artigos 1.º e 7.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro, e o artigo 1.º, n.º 1, dos Estatutos da Casa do Douro que aquela aprova - a Casa do Douro é reinstitucionalizada enquanto associação pública (de inscrição obrigatória). Tendo o legislador utilizado essa figura jurídica, é pela apreciação da conformidade constitucional das normas sindicadas com o regime jus-constitucional das associações públicas vertido no n.º 4 do artigo 267.º da Lei Fundamental que há que começar.
A figura da associação pública é conceptualmente marcada pela confluência da personalidade jurídica pública e da natureza associativa. Na definição de Freitas do Amaral, constituem associações públicas «as pessoas coletivas públicas, de tipo associativo, destinadas a assegurar autonomamente a prossecução de determinados interesses públicos pertencentes a um grupo de pessoas que se organizam com esse fim» - cf. Curso de Direito Administrativo, 4.ª ed., Coimbra, 2015, pp. 363-364.
Em sentido substancialmente idêntico, embora com formulação mais precisa e desenvolvida, Vital Moreira define associação pública como uma «pessoa coletiva de direito público, de natureza associativa, criada como tal por ato do poder público, que desempenha tarefas administrativas próprias, relacionadas com os interesses dos seus próprios membros, e que, em princípio, se governa a si mesma mediante órgãos próprios que emanam da coletividade dos seus membros, sem dependência de ordens ou orientações governamentais, embora normalmente sujeitas a uma tutela estadual» - cf. Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1999, p. 382.
Como refere ainda este último Autor, «as associações públicas, além das funções de representação e defesa do interesse coletivo dos seus membros, têm geralmente funções de regulação» e «raramente têm funções de administração de prestações» (Administração Autónoma..., cit., p. 384), partilhando diversas características das demais entidades públicas: «criação por ato público, prossecução de interesses públicos, exercício de poderes públicos, tutela estadual» (ibidem, p. 387).
Sobre a prossecução de interesses públicos, importa, ainda, reter a advertência de Vital Moreira: «naturalmente, as associações públicas não podem ter escopo puramente egoísta do grupo subjacente. Elas são públicas justamente porque esses interesses do grupo são também considerados interesses públicos ou porque, a par desses interesses, elas estão incumbidas de prosseguir uma finalidade caracteristicamente pública. O problema está justamente no modo como se articulam o interesse coletivo do grupo e o interesse público que justifica a publicização» (ibidem, p. 389).
Também Jorge Miranda salienta a colaboração ou articulação entre os particulares e a Administração, que é o cerne da figura da associação pública, afirmando que «as associações ou corporações públicas distinguem-se de outras formas de colaboração ou participação não tanto pelo seu carácter duradouro quanto pelo seu carácter institucionalizado e pela unificação, de interesses e vontades que envolvem: a Administração dá o poder e a forma jurídica, os administrados a participação e a conjugação de esforços» - cf. «A ordem dos farmacêuticos como associação pública (I)», in Estado & Direito, n.º 11, 1.º semestre de 1993, p. 21.
Em todo o caso, as associações públicas não constituem uma categoria unitária ou homogénea, variando, nomeadamente, em função do tipo e natureza jurídica dos associados, do contexto económico-social a que respeitam e das finalidades prosseguidas. Assim, adentro dessa mesma categoria das associações públicas, existem associações de entidades públicas, associações públicas de entidades privadas (como a Casa do Douro, aqui em apreço) e associações públicas de carácter misto - cf. Freitas do Amaral, ob. cit., pp. 371-379.
E quanto ao seu contexto económico-social ou às finalidades prosseguidas, as associações públicas podem apresentar também grande diversidade, delas se destacando, como subcategoria, as associações públicas profissionais em sentido estrito, quer pela sua relevância social, quer pela doutrina e pela jurisprudência que sobre elas versa, quer ainda por serem a única espécie de associações públicas que dispõe, entre nós, de um regime jurídico comum - a Lei 2/2013, de 10 de janeiro. Quanto às demais associações públicas, tal como a Casa do Douro, encontram o seu regime jurídico em normação própria e específica de cada uma delas.
Importa também adiantar, desde já, que as corporações ou associações profissionais se caracterizam por um certo «dualismo de funções» ou «bidimensionalidade pública e privada», pois «[...] desempenham simultaneamente funções públicas (as que justificam a corporação enquanto tal) e funções privadas (o que faz delas associações de defesa profissional)» - cf. Vital Moreira, Administração Autónoma..., cit., p. 415. Mas este dualismo não é de geometria livremente variável, pois, como previne o mesmo Autor, a natureza pública das corporações profissionais «[...] implica que elas só possam ter tais funções na medida necessária para desempenhar as suas tarefas públicas e apenas naquilo que não conflitue com tais tarefas» (ibidem, p. 419).
Este dualismo funcional há de refletir-se, naturalmente, no regime jurídico ao abrigo do qual são exercidas as funções da associação pública, colocando-se a questão de saber a quais dessas funções corresponde um regime jurídico-administrativo. Embora a resposta não possa ser uniforme para todas as associações públicas, pode ainda acompanhar-se Vital Moreira quando afirma que «[...] estão sujeitos ao direito público pelo menos os aspetos que integram a vida institucional da corporação, bem como os atos que traduzam o exercício de funções públicas», ou seja, «[...] aquelas tarefas em que a corporação aparece como poder público perante os seus membros» - Administração Autónoma..., cit., p. 490.
Em suma, embora podendo conciliar, nalguma medida, funções públicas e privadas, as associações públicas constituem pessoas coletivas de direito público de natureza ou substrato associativo e, tal como reconhece hoje a generalidade da doutrina administrativista, integram-se na Administração pública autónoma, não se destinando primariamente à prossecução, ainda que indireta, de interesses estaduais, mas de interesses próprios do grupo de sujeitos que lhes subjaz - cf., inter alia, Vital Moreira, Administração Autónoma..., cit., pp. 489-490, Freitas do Amaral, ob. cit., pp. 402 e ss., João Caupers/Vera Eiró, Introdução ao Direito Administrativo, 12.ª ed., Lisboa, 2016, p. 137, e Pedro Gonçalves, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, 2019, pp. 891 e ss. Esta última dimensão não dispensa, todavia, e conforme já referido, uma articulação harmoniosa entre tais interesses e o interesse público geral, como elemento justificativo da atribuição de personalidade jurídica pública.
10 - No que respeita ao regime jus-constitucional das associações públicas, como é sabido, as mesmas encontram guarida na Lei Fundamental apenas desde a revisão de 1982. Os n.os 2 e 4 do artigo 199.º da Lei Constitucional 1/82, de 30 de setembro, modificaram o originário artigo 267.º da Constituição (Estrutura da Administração), respetivamente, alterando a redação do seu n.º 1 que passou a prever também as associações públicas enquanto instrumento de estruturação da Administração Pública e aditando um novo n.º 3, dedicado às associações públicas (tendo o n.º 1 do mesmo artigo da Lei Constitucional 1/82 renumerado o preceito como artigo 268.º).
Dispõe (após a renumeração decorrente da revisão constitucional de 1997) o n.º 4 do artigo 267.º da Constituição - cujo texto se manteve inalterado desde a sua introdução pela revisão de 1982 - que «as associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos».
O aditamento desta disposição ao artigo 267.º da Constituição visou evitar dúvidas que se haviam suscitado quanto à admissibilidade constitucional das associações públicas, em face da ausência de referência expressa no texto originário da Constituição à figura, por um lado, e da consagração da liberdade de associação, incluindo a sua vertente negativa da liberdade de não pertença a uma associação (cf. artigo 46.º, n.º 3, da Constituição), por outro.
É certo que a Comissão Constitucional, especialmente através do seu Parecer 2/78, de 5 de janeiro - relatado por Jorge Miranda -, que teve por objeto a conformação orgânica da Ordem dos Médicos, cedo afirmara, dentro de certos limites, a admissibilidade constitucional das associações públicas e sua distinção relativamente às associações de Direito privado a que se refere diretamente o artigo 46.º da Constituição. Assim, pode ler-se nesse Parecer que a prossecução de fins de interesse social pela Ordem dos Médicos determinava «[...] especialidades e desvios aos princípios gerais das associações e a impelem para o Direito administrativo».
Alicerçando a admissibilidade constitucional das associações públicas no princípio da descentralização da atividade administrativa, plasmado no artigo 6.º da Constituição e entendido como comportando tanto uma vertente de base territorial, como não territorial, incluindo-se, nesta última, institutos públicos e associações públicas, o referido Parecer destaca o perfil institucional e uma certa hibridez característica das associações públicas, a que já se aludiu acima: «O substrato da Ordem não deixa de ser associativo, mas a sua estrutura jurídica oferece uma dupla face. A Ordem não tem apenas em vista a defesa dos direitos e interesses dos médicos, tem também em vista a garantia de interesses dos utentes dos serviços médicos e da comunidade em geral; e procura conjugar uns e outros sob a tutela do Estado que aprova o Estatuto e a cujos tribunais administrativos, e não já judiciais, compete decidir sobre a legalidade de atos dos seus órgãos».
Embora afirmando categoricamente a compatibilidade com a Constituição da figura das associações públicas, o referido Parecer 2/78 da Comissão Constitucional não deixou, desde logo, de enunciar apertados limites constitucionais relativamente à conformação de cada associação pública (no caso daquele Parecer, a Ordem dos Médicos), nomeadamente: (i) «garantia da liberdade de associação (artigo 46.º), pela não assunção ou não assunção exclusiva de finalidades ou funções para além das que são específicas da Ordem», (ii) «não assunção, nomeadamente, de finalidades ou funções reservadas às associações sindicais», (iii) «garantia dos direitos dos interessados que possam ser atingidos por decisões dos órgãos da Ordem», e (iv) «democracia interna».
Independentemente do mérito daquele Parecer, a questão permaneceu controvertida na doutrina, erguendo-se algumas vozes contra a compatibilidade das associações públicas com a Lei Fundamental, tendo em conta a ausência de habilitação expressa e o conflito com a liberdade de associação - assim, por exemplo, António da Silva Leal, «Os grupos sociais e as organizações na Constituição de 1976 - a rotura com o corporativismo», in Estudos sobre a Constituição, 3.º vol., Lisboa, 1979, pp. 195 e ss., maxime pp. 337-341. Esta controvérsia foi definitivamente ultrapassada, como se referiu, pela revisão constitucional de 1982, que aditou o citado n.º 4 ao artigo 267.º da Constituição e cujo alinhamento com o Parecer 2/78 da Comissão Constitucional é bastante evidente.
Tendo fundamentalmente em vista o paradigma das associações públicas de particulares, pois só quanto a estas fazem sentido as referências à «participação dos interessados» e a «proibição de funções sindicais», o n.º 4 do artigo 267.º da Constituição sujeitou a criação e conformação das associações públicas a quatro princípios: (i) princípio da excecionalidade, (ii) princípio da especificidade, (iii) princípio da não concorrência com os sindicatos e (iv) princípio da democracia interna - cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. ii, 4.ª ed., Coimbra, 2010, p. 812. Para a decisão a proferir nos presentes autos relevam, fundamentalmente, os dois primeiros princípios enunciados por estes Autores.
Assim, o princípio da excecionalidade, ainda segundo Gomes Canotilho/Vital Moreira, consagra a ideia de que «[...] não é livre a criação de associações públicas, devendo ela ser necessária para satisfazer uma finalidade pública caracterizada», tratando-se «de uma simples concretização do princípio da necessidade, próprio do regime de restrição dos direitos, liberdades e garantias (cf. artigo 18.º, n.º 2), visto que as associações públicas implicam sempre restrições ou desvios a um ou mais aspetos da liberdade de associação (artigo 46.º)» (ibidem). Já o princípio da especificidade «[...] consiste em que as associações públicas só podem ser constituídas para a realização de fins específicos, determinados pela necessidade pública que motiva a sua criação, caracteristicamente associada a uma determinada categoria de pessoas (ou de associações), não podendo portanto ter fins genéricos ou insuficientemente definidos» (ibidem).
Quanto a este princípio da especificidade, todavia, não custa reconhecer que a formulação da norma em causa é «algo elíptica», como assinalam Luís Fábrica/Joana Féria Colaço - cf. anotação sub artigo 267.º, in Constituição Portuguesa Anotada (org. Jorge Miranda/Rui Medeiros), vol. iii, 2.ª ed., Lisboa, 2020, p. 527). Assim, numa abordagem mais analítica, estes Autores decompõem este princípio nas seguintes vertentes: (i) «[...] uma associação pública não pode visar a generalidade, ou um conjunto muito amplo, dos interesses de um conjunto delimitado de sujeitos, seu potencial substrato [...]»; (ii) «[...] o conjunto desses sujeitos há de individualizar-se pela partilha de um interesse comum, ou de um número restrito de interesses comuns conexos entre si [...]»; (iii) «[...] esse interesse, ou conjunto de interesses, deve assumir natureza pública, segundo um juízo político-legislativo [...]»; (iv) «[...] tal interesse ou interesses não devem estar a ser adequadamente prosseguidos por um ente administrativo»; (v) «[...] a prossecução desse interesse ou interesses pelos próprios titulares, organizados em associação, não deve contrariar princípios ou valores constitucionais» - ibidem, p. 528. E, segundo enfatizam ainda os mesmos Autores, todos estes requisitos devem ser «[...] interpretados e aplicados em termos restritivos [...], de modo que a que a criação de associações públicas apenas ocorra em casos muito limitados, quando a autoadministração seja inequivocamente a forma organizatória adequada para a realização de uma tarefa pública» - ibidem, p. 528.
Na ótica constitucional da estrutura da Administração a associação pública, com o regime supra explicitado, configura, reitere-se, uma forma de participação dos cidadãos na gestão da Administração Pública (artigo 267.º, n.º 1, da Constituição) e um instrumento de descentralização administrativa (artigo 267.º, n.º 2, da Constituição e, também, o seu artigo 6.º, n.º 1). Na perspetiva da organização da Administração, a descentralização administrativa - e a correspondente existência da administração autónoma (relativamente ao Estado) - pode assumir, como se referiu, a forma de descentralização territorial (administração autónoma territorial, que as autarquias locais corporizam) ou descentralização funcional ou corporativa - sobre a qual o Governo, no exercício da sua competência administrativa, pode exercer poderes de tutela [artigo 199.º, alínea d), in fine, da Constituição]. Ora, é precisamente nesta última vertente da descentralização administrativa que se pode enquadrar a constituição de associações públicas pelo poder público - matéria que integra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [alínea s) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP].
A constituição de associações públicas, enquanto instrumento, a par de outros, de uma opção de descentralização administrativa pressupõe a existência de uma «coletividade delimitada de pessoas» e de um «círculo de interesses de todas as pessoas da coletividade considerada ('interesses comuns')» (assim, Pedro Costa Gonçalves, Manual ..., pp. 518 e 519), implicando, para além da atribuição de identidade jurídica a essa coletividade, a atribuição de uma «função ou tarefa pública, de um interesse qualificado como público», de gestão ou administração de «assuntos públicos relativos aos interesses próprios e específicos da coletividade de interessados» (idem, p. 519), mediante autoadministração, através de órgãos representativos e cuja organização interna deve observar os limites previstos no n.º 4 do artigo 267.º da CRP (organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos).
Tal constituição de associações públicas, enquanto instrumento de estruturação da Administração Pública e modo (possível) de descentralização administrativa funcional com previsão constitucional - concretizando o princípio da participação dos interessados na gestão efetiva da Administração e dos interesses públicos que lhe subjazem -, corresponderá a uma faculdade ou opção político-legislativa do legislador democrático que, em cada momento, a poderá exercer, no respeito pelos limites constitucionalmente impostos. Ao exercer tal opção, comete a prossecução de certos fins ou tarefas de interesse público reportados aos interesses específicos de certa coletividade delimitada de pessoas a essa mesma coletividade que, com autonomia, passa a deter a sua titularidade e o poder de os administrar, assim configurando «uma medida de desestadualização» ou «de reconhecimento estadual do carácter público de uma tarefa» (Pedro Costa Gonçalves, Entidades Privadas com Poderes Públicos, Coimbra, Almedina, 2005, p. 671).
Assim será no caso dos autos, no que respeita à coletividade de pessoas delimitada em razão do exercício de uma atividade económica - de viticultores da Região do Douro, associados da Casa do Douro, com o perfil orgânico já explicitado.
Por fim, é de referir que um aspeto particularmente relevante, que o artigo 267.º, n.º 4, da Constituição não tratou ex professo e que é suscitado nos presentes autos, prende-se com a questão de saber se a liberdade de associação, em especial na sua vertente negativa - liberdade de não filiação ou de desfiliação, tão enfaticamente afirmada no n.º 3 do artigo 46.º da Constituição -, desempenha algum papel na conformação constitucional das associações públicas ou se o n.º 4 do artigo 267.º habilita a uma simples obliteração dessa liberdade.
A resposta que vem sendo dado na doutrina mais especializada é bastante clara e pode resumir-se na ideia de que, salvo na medida daquilo que seja indispensável, a liberdade de associação deve ser preservada nas associações públicas de particulares, mesmo que em muitos casos concretos seja inevitável uma forte compressão dessa liberdade, incluindo a imposição de uma filiação obrigatória. Esta solução não pode ser considerada surpreendente, nomeadamente em face do regime basilar que regula a restrição de direitos, liberdades e garantias e, desde logo, do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
Neste mesmo sentido, e em diversas sedes, se tem erguido, consistentemente, a voz de Vital Moreira. Assim, afirma lapidarmente este Autor que «[...] se é verdade que na generalidade dos casos a prossecução dos interesses públicos privativos das associações públicas impõe a unicidade e filiação obrigatória, tal não decorre da natureza da associação pública. Em certo sentido, a natureza pública da associação pública não é mais do que uma autorização constitucional de restrições à liberdade de associação, sem com isso prescindir da necessária justificação à luz do princípio da proporcionalidade» - Administração Autónoma ..., cit., p. 432. Mais recentemente, e versando diretamente sobre a liberdade de associação na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, mas em termos transponíveis para a Constituição portuguesa, escreve ainda Vital Moreira: «[...] aparentemente à margem da liberdade de associação, as associações públicas suscitam dois problemas que têm a ver com ela: (i) o problema de saber se o Estado goza de um poder discricionário de criar associações públicas, de inscrição e quotização obrigatória, prescindindo da liberdade individual de associação; (ii) o problema de saber se a criação de associações públicas cancela a liberdade de criação e de ação de associações privadas paralelas pelos membros daquelas. Ambos devem ter uma resposta negativa» - cf. «Liberdade de associação», in Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais (org. Paulo Pinto de Albuquerque), vol. ii, Lisboa, 2019, p. 1854.
Conexo com a questão da filiação obrigatória apresenta-se ainda o tema da quotização obrigatória, mas, como refere também Vital Moreira, «havendo filiação obrigatória, a quotização, quando existe, faz parte natural da própria relação de filiação. Não tem sentido autonomizar aí uma figura de quotização obrigatória» - cf. Administração Autónoma ..., cit., pp. 464-465.
11 - Os presentes autos têm por objeto, globalmente entendido, a compatibilidade com a Constituição da qualificação da Casa do Douro como associação pública, considerando o conjunto das normas aqui em crise. Importa começar por assinalar que o Tribunal Constitucional nunca se pronunciou especificamente sobre essa matéria.
Com efeito, embora versando uma questão conexa com a Casa do Douro, o Acórdão 322/2016 não contém qualquer pronúncia sobre a qualificação orgânica que constitucionalmente deveria competir-lhe, tanto mais que esse Acórdão foi proferido, precisamente, num contexto normativo de despublicização da Casa do Douro, operada pelo Decreto-Lei 152/2014, de 15 de outubro. Por outro lado, embora pronunciando-se ex professo no sentido da qualificação da Casa do Douro como associação pública à luz da Constituição e da natureza pública dos interesses por esta prosseguidos, tendo em conta a importância histórica, económica e social da região vitivinícola em causa, o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 13/91 foi emitido em contexto normativo diverso, pelo que também não oferece pistas de solução relevantes para a decisão agora a proferir.
A decisão dos presentes autos há de repousar, portanto, simplesmente, na boa interpretação do referido artigo 267.º, n.º 4, da Constituição - no seu contexto jus-constitucional de forma ou instrumento possível de descentralização administrativa corporativa ou funcional - e da escorreita compreensão do perfil orgânico da Casa do Douro, tal como se acha plasmado nas normas legais em crise, levando também em conta os ensinamentos da doutrina especializada acima expostos e a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre as associações públicas em geral.
Assim, aprofundando a caracterização jurídica da Casa do Douro, e como aliás se depreende da própria evolução legislativa acima descrita, importa começar por recordar que, «[...] quanto à sua natureza jurídico-institucional as associações económico-profissionais podem revestir essencialmente duas modalidades: (a) associações de direito privado, normalmente facultativas e voluntárias, e desprovidas de poderes públicos; (b) associações de direito público, normalmente obrigatórias e coativas, e munidas de poderes públicos» - cf. Vital Moreira, Auto-Regulação Profissional e Administração Pública, Coimbra, 1997, p. 62.
Nesta segunda modalidade, estamos perante pessoas coletivas de tipo associativo, mas que constituem instrumento de uma auto-regulação pública. Nesta hipótese, «a auto-regulação é legalmente estabelecida: os organismos auto-regulatórios dispõem de poderes típicos das autoridades públicas. As normas de regulação profissional são para todos os efeitos normas jurídicas dotadas de coercibilidade» - ibidem, p. 88.
A questão que aqui precipuamente se suscita é a tensão ou articulação entre o interesse grupal e o interesse público estatutária e efetivamente prosseguido por determinada associação pública.
Como acima se adiantou, e explica Vital Moreira, qualquer associação pública, ainda que em diferente medida ou proporção, denota sempre a «[...] coexistência de um interesse coletivo e um interesse estadual, pelo menos parcialmente coincidentes ou compenetrados, apresentando as associações públicas um certo dualismo funcional [...]» - cf. Administração Autónoma..., cit., p. 390.
Freitas do Amaral também assinala que, «[...] nas associações públicas o que está em causa é a prossecução de interesses públicos que, primeiramente, são também interesses próprios dos associados, no sentido de que são mais sentidos diretamente por estes, ainda que sejam coincidentes com interesses do Estado ou das pessoas coletivas públicas que estão na sua origem» (ob. cit., p. 403).
Como também já se referiu acima e salienta ainda Freitas do Amaral, «[...] a autorização constitucional para a criação de associações públicas está longe de constituir um 'cheque em branco' passado ao legislador, sendo necessário que este justifique bem essa mesma criação com a existência de necessidades específicas com projeção na própria Constituição», de tal forma que «[...] é com alguma perplexidade que se assiste a uma tendência para a multiplicação das associações profissionais, sem que se descortinem valores constitucionais que claramente justifiquem a sua criação, sobretudo considerando a difícil relação destes entes públicos com os direitos fundamentais» - ob. cit., pp. 388/389.
Em sentido próximo, embora aparentemente menos exigente, também Vital Moreira assinala que «[...] a corporação pública profissional de carácter obrigatório carece de um importante interesse público para se ver justificada. Esta justificação pode ser de duas ordens: primeiro, a eminente necessidade pública de regular essa profissão e isso só pode ser adequadamente feito em auto-administração corporativa com filiação coativa; segundo, o facto de a profissão em causa carecer de um tratamento privilegiado, dado ser do interesse público a defesa coletiva dos seus interesses profissionais e económico-sociais privativos. A primeira justificação é, em princípio, a única admissível, visto não se ver em que é que a segunda pode ser pertinente no caso das profissões e atividades normalmente corporacionadas (as profissões liberais, e as 'profissões' industriais e comerciais). Mas a segunda já pode ser pensável para profissões por natureza débeis em recursos organizativos e de relevância pública. É neste quadro que na literatura se encontra por vezes a justificação das associações públicas profissionais na agricultura» - cf. Administração Autónoma..., cit., p. 444.
Neste mesmo sentido, dispõe hoje também o artigo 3.º da Lei 2/2013, de 10 de janeiro - diretamente aplicável apenas às associações públicas profissionais em sentido estrito, mas que exprime uma exigência constitucional relativa a todas as associações públicas consagrada no artigo 267.º, n.º 4, da Constituição -, que a criação de tais entidades pressupõe a necessidade de «tutela de um interesse público de especial relevo que o Estado não possa assegurar diretamente» e só é admissível quando se mostre «adequada, necessária e proporcional para tutelar os bens jurídicos a proteger».
Aliás, o apertado crivo imposto pela Constituição na criação de associações públicas acha-se, de há muito, refletido na jurisprudência do Tribunal Constitucional, fundamentalmente a respeito também das associações públicas profissionais em sentido estrito.
Se é verdade que sobre a Casa do Douro apenas terá sido emitido, por este Tribunal, o já referido Acórdão 322/2016, onde não foi versada a questão aqui controvertida, arestos anteriores, relativos a diversas organizações profissionais, aludem e concretizam os parâmetros constitucionais que balizam a criação de associações públicas, consagrados no artigo 267.º, n.º 4, da Constituição.
Assim, logo no Acórdão 46/84, relativo à Ordem dos Advogados, o Tribunal Constitucional sintetizou assim o regime jus-constitucional das associações públicas: «A criação destas nunca depende da iniciativa privada, sendo - antes e sempre - um ato de autoridade; os particulares podem não ter qualquer liberdade de adesão; os fins da associação são sempre a satisfação de certos interesses gerais, não podendo nunca exercer funções próprias das associações sindicais; e, por último, têm sempre à sua disposição prerrogativas de direito público».
Sobre a hipótese então considerada, das ordens profissionais, lê-se ainda nesse aresto que «[...] o legislador encarrega de organizar determinadas profissões e assegurar a respetiva disciplina. Dispõem elas, por isso mesmo, de poderes para controlar o acesso à profissão, de atribuições regulamentares para fixar o respetivo código deontológico e de competência disciplinar».
Esclarecendo ainda a questão da filiação obrigatória, o Tribunal Constitucional afirmou nesse mesmo acórdão que «[...] a particularidade ou delicadeza das funções a desempenhar, importando a necessidade de respeitar um certo código deontológico, pode conduzir o Estado a criar pessoas coletivas de direito público - entes para-estaduais, na terminologia de Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, I, 1966, pp. 76/77) -, a quem comete o múnus de organizar e disciplinar a profissão, delegando nelas (melhor ainda: devolvendo-lhes) uma parcela de ius imperium. E, então, impõe a inscrição obrigatória nessas associações (corporações) [...]», sem que isso viole a liberdade (negativa) de associação indissociável das associações privadas.
Já no Acórdão 272/86, o Tribunal Constitucional reiterou que «a consagração constitucional da liberdade de associação, imediatamente referida às associações privadas, não impede, porém, que o Estado, através de ato de autoridade, estabeleça, para determinadas categorias de cidadãos, quadros associativos dotados de estatuto e poderes de natureza pública e à margem do regime constitucional do direito de associação. É o que sucede com a figura das associações públicas, as quais, segundo o artigo 267.º, n.º 4, da CRP, 'só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos'».
Nesse mesmo aresto, lê-se ainda que «o Estado, ao instituir estas pessoas jurídicas de estrutura associativa para a consecução e tutela de determinados fins públicos, submetendo, do mesmo passo, determinadas classes de cidadãos à sua disciplina e poderes, estabelece limites, constitucionalmente autorizados, à liberdade de associação». Neste acórdão, o Tribunal Constitucional reiterou ainda a atribuição de poderes públicos como marca distintiva das associações públicas e a sua inserção na Administração autónoma: «A estas associações, às quais, e para prossecução dos fins que lhes estão confiados, são atribuídos particulares poderes públicos, porque o seu plano de atuação é bem outro (o plano da ação administrativa autónoma ou mediata)».
Finalmente, importa também fazer menção ao Acórdão 497/89, que versou diretamente sobre a questão da obrigatoriedade de inscrição na Ordem dos Advogados. Em linha com a jurisprudência anterior, pode aí ler-se que «[...] a Ordem dos Advogados é precisamente uma associação desse tipo: uma associação pública, instituída pela lei, e constituída pelos profissionais da correspondente atividade, à qual compete, fundamentalmente, representar estes últimos e regulamentar e disciplinar o exercício da advocacia, no respeito pelos respetivos princípios deontológicos».
Nesse aresto, o Tribunal Constitucional reiterou que, sendo a Ordem dos Advogados uma associação pública, «[...] compreendido fica o carácter obrigatório da inscrição na mesma, para todos os juristas que pretendem exercer a advocacia, e como condição desse exercício; e, com isso, afastadas ficam, desde logo, as objeções que a tal obrigatoriedade de inscrição o recorrente levanta a partir da ideia de que a natureza pública duma associação a não implica [...]». O Tribunal Constitucional esclareceu ainda que «não importa agora saber se a inscrição obrigatória é uma característica necessária e essencial das associações públicas - tal que não possa nunca falar-se desta categoria de pessoas coletivas onde aquela falte. Basta sublinhar que se trata de uma característica típica e suficiente para denotar como pública uma determinada associação, e para, do mesmo passo, afastá-la do âmbito de incidência do princípio constitucional da liberdade associativa [...]», de tal forma que «[...] o único problema que importa tratar e esclarecer - atenta a doutrina geral atrás exposta sobre a admissibilidade em geral de associações públicas, ou associações de inscrição obrigatória - é o de saber se quanto à Ordem dos Advogados se verifica aquele requisito de 'proporcionalidade' (ou de 'necessidade' e 'proporcionalidade', stricto sensu) que vimos ser condição dessa admissibilidade em geral [...]».
Em suma, pode afirmar-se que a jurisprudência constitucional, embora centrada, fundamentalmente, na categoria das organizações profissionais, confirma os seguintes traços do regime jus-constitucional das associações públicas, em linha com o que expusemos mais acima: (i) o carácter restritivo da sua admissibilidade e a necessária identificação de um interesse público que justifique a respetiva criação (por iniciativa pública), sujeita ainda a um critério de proporcionalidade; (ii) a consequente inserção das associações públicas na Administração pública autónoma; (iii) a normal ou típica compressão da liberdade negativa de associação operada pelas associações públicas; e (iv) a também normal ou típica atribuição às associações públicas de poderes públicos de autoridade.
12 - Retornando ao caso dos autos e às normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada e nas quais se estriba a republicização da Casa do Douro, operada pela Lei 73/2019, em primeiro lugar e sem que tal se revele decisivo, não pode deixar de levar-se em conta a trajetória de diminuição ou enfraquecimento das respetivas tarefas e poderes públicos, comparativamente com os regimes jurídicos que anteriormente regularam a sua atividade enquanto associação pública, conforme se expôs acima.
Compulsando novamente as normas legais ora em crise, o que se constata é que constituem associados singulares da Casa do Douro «todos os viticultores legalmente reconhecidos pelo Estado através do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, I. P.» (cf. artigo 4.º, n.º 1, dos respetivos Estatutos) e que a Casa do Douro prossegue um conjunto de atribuições muito diversas, constantes do artigo 3.º desses Estatutos.
A questão fundamental para a decisão a proferir nos presentes autos é a de saber qual a natureza dessas atribuições e se o seu cometimento à Casa do Douro se funda numa especificidade ou necessidade de prossecução por uma entidade autónoma de base associativa com personalidade jurídica-pública, distinta do Estado ou de um instituto público integrado na respetiva administração indireta, que constitua fundamento bastante para a criação de uma associação pública, nos termos do artigo 267.º, n.º 4, da Constituição.
Não impondo - nem impedindo - a Constituição a existência da Casa do Douro como associação pública de interessados (ou de entes privados - assim Diogo Freitas do Amaral, Curso ..., Vol. I, p. 374), enquanto pessoa coletiva pública, a sua instituição (in casu, a sua «reinstalação», pela Lei 73/2019, como associação pública) através do exercício dessa opção pelo poder legislativo não dispensará a existência de um interesse qualificado como interesse público, de um «poder público de gestão de tarefas públicas (...) relacionadas com os seus interesses próprios» (Pedro Costa Gonçalves, Manual..., p. 522), cuja prossecução é, por essa via, cometido, a tal coletividade - assim conferindo o Estado à coletividade de interessados o benefício do «privilégio de (por si mesma ou através de órgãos eleitos) gerir uma atividade de interesse público geral em cuja regulação tem um interesse direto» (idem, p. 892). E, existindo uma tarefa pública cuja titularidade e administração é cometida pelo poder público aos interessados, apenas no quadro da natureza pública da associação será constitucionalmente admissível a imposição da filiação obrigatória dos interessados da coletividade - constitucionalmente vedada, pelo artigo 46.º da CRP, quanto a associações de natureza jurídica privada -, enquanto condição de participação democrática de todos esses interessados na auto-administração dessa tarefa pública que pelo Estado lhes é cometida (por transferência ou reconhecimento).
Ora, atento o teor do elenco de atribuições cometidas à Casa do Douro pela Lei 73/2019 (e Estatutos por esta aprovados), parece resultar do mesmo que inexistem finalidades de interesse público cometidas, com autonomia, à casa do Douro reinstitucionalizada - a constituição para «a satisfação de necessidades específicas» (prevista no artigo 267.º, n.º 4, da CRP) passíveis de justificar a sua constituição por lei sob a forma de associação pública de interessados, enquanto instrumento de descentralização administrativa. Ao contrário, afigura-se que tais atribuições, pela sua natureza, são suscetíveis de serem prosseguidas por uma associação que revista a natureza jurídica de privada (artigo 46.º da Constituição).
Recordemos, então, o leque de atribuições contempladas no artigo 3.º dos respetivos estatutos:
«a) Representar os viticultores junto de entidades públicas e privadas, com especial incidência perante o Ministério da Agricultura e os seus serviços, associações interprofissionais, profissionais, económicas e sindicais, assegurando a representação coordenada dos representantes da produção nos organismos interprofissionais;
b) Indicar os representantes da produção nos organismos e entidades públicas e privadas em que lhe seja reconhecido o direito de participação, designadamente no Conselho Interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, I. P.;
c) Defender as denominações de origem e indicações geográficas da região, designadamente participando as infrações às autoridades competentes;
d) Promover a agregação dos viticultores junto de instrumentos de garantia e de seguros que visem aumentar o valor e a qualidade dos vinhos produzidos na Região Demarcada do Douro;
e) Participar na criação e gestão de instituições de carácter mutualista;
f) Apoiar e incentivar a produção vitícola e vitivinícola, em ligação com os serviços competentes e prestar assistência técnica aos viticultores designadamente nos âmbitos da proteção integrada ou biológica, fitossanitário ou ambiental;
g) Promover serviços técnicos aos seus associados, designadamente ao nível da contabilidade e da procura de crédito disponíveis a nível nacional ou internacional;
h) Desenvolver, por si ou por interposta pessoa, planos e ações de formação profissional;
i) Desenvolver atividade comercial no domínio dos fatores de produção ligados à agricultura;
j) Prestar ao organismo interprofissional toda a colaboração no tratamento de assuntos que constituam objeto de interesse para os seus associados, como sejam, receber o manifesto da produção e as declarações de existência e outras que decorram de protocolos de colaboração aceites pelas partes;
k) Promover e colaborar na investigação e experimentação tendentes ao aperfeiçoamento da vinicultura e da viticultura durienses;
l) Participar nas políticas de procura de novos mercados e de promoção dos produtos da região tanto a nível nacional como internacional;
m) Promover a auscultação regular dos agentes económicos, entidades, instituições e autarquias, sobre os problemas da vinicultura e viticultura da região e sobre as linhas estratégicas a adotar;
n) Manter um stock histórico mínimo de vinhos a determinar por portaria do membro do Governo com a tutela da agricultura;
o) Exercer quaisquer outras funções públicas que, de harmonia com a lei e a sua natureza, lhe caibam».
Neste elenco, é possível distinguir quatro grupos de atribuições, segundo a sua natureza ou finalidade e a sua proximidade ao desempenho de tarefas públicas, quando não ao exercício de poderes de autoridade, que se perfila como pressuposto da qualificação de determinada entidade como associação pública.
Assim, em primeiro lugar, afigura-se bastante evidente que uma parte muito significativa, ou mesmo a maior parte, destas atribuições tem por escopo uma mera atividade de prestação de auxílio ou colaboração, direta ou indireta, aos próprios viticultores associados, em termos que qualquer associação de direito privado poderia desempenhar. É o que sucede, nomeadamente, com as atribuições contempladas nas alíneas d) a h) e k) a m) acima transcritas.
Em segundo lugar, constata-se que a Casa do Douro fica habilitada, ela própria, a prosseguir atividades comerciais - cf. alínea i).
Em terceiro lugar, algumas atribuições da Casa do Douro aparentam alguma proximidade da esfera de atividade pública, mas tal não se revela suficiente para servir de suporte a uma verdadeira personalidade jurídica associativa pública, assente numa efetiva transferência (ou reconhecimento) de tarefas públicas.
Assim, na alínea a), as funções de representação dos viticultores junto de entidades públicas e privadas não incluem, significativamente, a representação em juízo, quando esteja em causa a violação dos interesses daqueles.
Quanto às funções, igualmente de representação, previstas na alínea b), são apresentadas como corolário do princípio da participação, o que também não basta para delas extrair conclusões suscetíveis de validar a qualificação da Casa do Douro como associação pública.
Já a alínea j) se limita a estabelecer meras funções de colaboração ou intermediação com os associados, comuns à generalidade das associações de natureza privada.
Restam as três alíneas sobrantes que aparentam maior pendor juspublicístico. Mas não passa de uma aparência.
A alínea c), refere-se à defesa das denominações de origem e indicações geográficas da região, mas limita o instrumento de tal defesa a uma faculdade de denúncia («participação») de infrações às autoridades competentes. Assim, sobre a Casa do Douro recairá, quando muito, o mero dever de diligenciar pela verificação e participação de irregularidades, sem quaisquer poderes de autoridade, nomeadamente investigatórios - algo que, naturalmente, qualquer particular ou associação de direito privado poderia fazer.
No que respeita à alínea o), ela constitui mera remissão dinâmica - por natureza, um saco vazio onde pode caber muito, pouco ou nada - para tarefas públicas que, em cada momento, lhe possam ser atribuídas por outros diplomas legais, de carácter geral ou especial. A relevância desta alínea para os efeitos da aferição das atividades públicas prosseguidas pela Casa do Douro, potencialmente justificativa do estatuto de associação pública, não pode deixar de ser relativizada, quer pela inexistência de um regime geral das associações públicas - donde pudesse extrair-se, por si só, a efetiva prossecução de atividades públicas por entidades qualificadas como associações públicas -, quer pela circunstância de eventuais funções públicas atribuídas por outros diplomas legais não se revestirem da essencialidade ou inerência que deveria contribuir para a caracterização orgânica de uma entidade pública: estão em causa, afinal, eventuais tarefas públicas prosseguidas acidentalmente (e não essencial ou primariamente), ainda para mais num quadro jurídico-administrativo em que é hoje bem conhecido o fenómeno da delegação de tarefas públicas também em entidades privadas - cf., por todos, Pedro Costa Gonçalves, Entidades Privadas com Poderes Públicos, Coimbra, 2008, passim).
Fica, pois, como atribuição de feição claramente pública apenas a incumbência de manutenção de um stock histórico mínimo de vinhos - cf. alínea n). Tal stock é constituído por «até 5 % do volume dos vinhos de cada colheita dados como penhor como contra garantia do aval do Estado» à Casa do Douro (Resolução do Conselho de Ministros n.º 148/2002, Diário da República, 1.ª série-B, n.º 301, de 30 de dezembro de 2002).
Esta obrigação, embora contextualizada numa relação contratual - o stock é um penhor a favor do Estado, que opera como contra garantia do aval dado por este (note-se que a contra garantia é um instrumento contratual característico do contrato de seguro, destinado a assegurar o direito de regresso da seguradora contra o tomador do seguro, em caso de sinistro) - apresenta um recorte juspúblico, dado que a contra garantia contende forçosamente com os direitos de propriedade dos associados da Casa do Douro sobre parte dos vinhos provenientes de cada colheita.
Percorrido, assim, o elenco das atuais atribuições da Casa do Douro, e mesmo quando, não se desconhecendo a crescente tendência para o desempenho de atividades ou funções administrativas sem o recurso a verdadeiros poderes de autoridade e para a afirmação de uma atividade administrativa tendencialmente paritária - cf., por todos, Pedro Machete, Estado de Direito Democrático e Administração Paritária, Coimbra, 2007, passim -, se prescinda da atribuição desses poderes para a qualificação de uma entidade como associação pública, muito dificilmente se pode vislumbrar in casu o preenchimento das exigências jus-constitucionais para a constituição de associações públicas, acima descritas.
Com efeito, na tomada de posição sobre a matéria aqui controvertida, cabe recordar a natureza excecional das associações públicas, à luz da habilitação para a respetiva criação constante do artigo 267.º, n.º 4, da Constituição. Do mesmo passo, cabe salientar que não constitui argumento dogmaticamente relevante a tradição histórica e o peso cultural ou sociológico do estatuto de associação pública de determinada região ou setor de atividade.
Como se viu acima, e sob pena de completa descaracterização da figura e de falência da força normativa da Constituição, esse estatuto não pode ser um prémio ou marca distintiva de determinado grupo de sujeitos privados, mas tem de constituir, inequivocamente, um instrumento jurídico-institucional objetivamente reclamado para a eficaz prossecução de determinados interesses do grupo de sujeitos em causa, sempre em termos convergentes com o interesse público geral.
Em termos mais analíticos, há de exigir-se que a prossecução de determinados interesses pela associação concretamente considerada se revista de interesse público geral e que tal prossecução, em termos eficientes, careça de personalidade jurídica pública, designadamente por coenvolver, tipicamente, o exercício de poderes de autoridade ou, pelo menos, de funções administrativas, entendendo-se como tal, mesmo numa aceção muito lata, funções de interesse geral ou que não possam ser normalmente desempenhadas de forma cabal por uma associação de direito privado.
Na verdade, a qualidade de associação pública não pode constituir um estatuto de privilégio, da mesma forma que não pode apresentar-se como uma incumbência ou ónus que injustificadamente impenda sobre determinado grupo de sujeitos com vista à prossecução de finalidades públicas: sempre haverá de exigir-se uma estreita relação material ou funcional entre tais finalidades e o grupo de sujeitos arvorado em associação pública.
Acresce, como também acima vimos ser salientado pela doutrina especializada, que se a prossecução de atividades privadas ou do interesse particular dos associados não se encontra absolutamente vedada, ela terá de apresentar-se, no quadro de uma associação pública, como meramente acessória ou até instrumental da finalidade pública prosseguida.
E não parece que, à luz da Constituição portuguesa, possa aceitar-se outro entendimento, mesmo quando o grupo de sujeitos privados que compõem uma dada associação denote insuficiência de recursos económicos ou organizativos - o que no atual estado económico-social pode até nem ser verdade para a vitivinicultura -, pois tal brigaria com o espaço de intervenção que, a título excecional e muito restrito, a Constituição reservou às associações públicas.
Querendo e podendo, nos termos da Constituição e do quadro normativo europeu, promover o desenvolvimento económico e a organização da atividade produtiva, o Estado terá, em tal contexto, de canalizar recursos e socorrer-se de outras vias de apoio a determinado setor de atividade que não a figura da associação pública. O que, de resto, e conforme já se referiu acima, é atualmente feito, neste setor de atividade, através do IVPD, I. P.
Pelo exposto, é de concluir que as normas legais sindicadas não se mostram compatíveis com o artigo 267.º, n.º 4, da Constituição.
13 - Concluindo-se, perante o elenco de atribuições cometidas à Casa do Douro, contemplado no artigo 3.º dos respetivos Estatutos (aprovados pelo artigo 7.º da Lei 73/2019), pela inexistência de uma tarefa pública a prosseguir, com autonomia, pela coletividade de interesses em causa, através da participação democrática de todos os seus membros - passível de justificar a opção pela constituição («reinstitucionalização») da Casa do Douro como associação pública e «de inscrição obrigatória» pela Lei 73/2019, de 2 de setembro, enquanto instrumento de descentralização administrativa -, subsiste a questão de saber se as normas sindicadas, em especial o artigo 1.º, n.º 1, da Lei, passariam, em qualquer caso, o crivo da conformidade constitucional por referência aos artigos 46.º, n.º 3, e 18.º, n.º 3, da Constituição, também invocados pelos requerentes no pedido formulado a este Tribunal. A resposta é negativa.
A previsão legal da reinstitucionalização da Casa do Douro como associação pública de inscrição obrigatória, no artigo 1.º da Lei 73/2019 - sem a existência de uma tarefa pública ou fim de interesse público, como se concluiu -, não deixa de convocar, acrescidamente, o parâmetro da liberdade de associação, na sua vertente negativa, consagrada no n.º 3 do artigo 46.º da CRP, aí estando em causa «o direito do cidadão de não entrar numa associação, bem como o direito de sair dela», «a liberdade de se não associar ou de deixar de pertencer a associação de que seja membro, não podendo as autoridades públicas impor um acto de associação ou de adesão a uma associação ou a permanência numa associação (...)» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, 4.ª ed., Coimbra, 2007, p. 644 e p. 647) ou, noutra formulação, «o direito de não ser coagido a inscrever-se (ou a permanecer) em qualquer associação» [Constituição Portuguesa Anotada (org. Jorge Miranda/Rui Medeiros), vol. i, 2.ª ed., Lisboa, UCP, 2017, p. 693]. O respeito, desde logo pelo Estado, da liberdade negativa de associação traduz-se, designadamente, na não sujeição «à filiação automática, por força de certa qualidade, numa associação, ou na não sujeição de um dever de inscrição», mas também «na não criação de qualquer desvantagens por não se pertencer a esta ou àquela associação (...)» [Constituição Portuguesa Anotada (org. Jorge Miranda/Rui Medeiros), vol. i, 2.ª ed., Lisboa, UCP, 2017, p. 693].
Ora, a referida previsão legal da inscrição obrigatória, no artigo 1.º da Lei 73/2019 - que também com expressão no artigo 4.º dos Estatutos da Casa do Douro que, nos seus n.os 1 e 4, prevê (impondo), que têm a qualidade de associado, singular e coletivo, respetivamente, todos os viticultores legalmente reconhecidos pelo Estado através do IVDP, I. P., e todas as adegas cooperativas e cooperativas vitivinícolas, bem como todas as associações agrícolas existentes na região (cuja representatividade no setor vitícola esteja assegurada nos termos do artigo 14.º dos Estatutos) - não deixa de configurar uma compressão da liberdade (negativa) de associação (reportada à concreta atividade económica dos viticultores da Região Demarcada do Douro) que, integrando o elenco de direitos, liberdades e garantias, convoca igualmente, quanto aos seus efeitos restritivos, a aplicação do princípio da proporcionalidade e dos testes (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) que lhe estão subjacentes, tal como previsto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
Quanto ao primeiro teste - adequação -, a medida de «reinstitucionalização» da Casa do Douro como associação pública de inscrição obrigatória pode, em abstrato, considerar-se ainda como adequada ao fim legalmente estabelecido de representação e prossecução dos interesses de todos os viticultores da RDD (artigo 1.º, n.º 2, dos Estatutos da Casa do Douro, aprovados pelo artigo 7.º da Lei 73/2019).
Todavia, na ótica de controlo de evidência, a medida de «reinstitucionalização» da Casa do Douro como associação pública de inscrição obrigatória não logra superar o teste da necessidade, sendo possível configurar medidas menos restritivas e com grau de eficácia equivalente - como desde logo previsto pelo legislador no já referido Decreto-Lei 152/2014 que determinou a extinção da Casa do Douro como associação de direito público e, além do mais, criou as condições para a sua transição para uma associação de direito privado, no contexto de progressivo esvaziamento dos seus poderes públicos e da sua atividade (auto)reguladora. Não decorrendo do artigo 3.º dos Estatutos da Casa do Douro aprovados pelo artigo 7.º da Lei 73/2019, como se concluiu, qualquer tarefa de interesse público cometida à coletividade de interessados, a via da associação privada, de inscrição facultativa, não se revelará insuficiente para a prossecução de tais atribuições com eficácia equivalente.
Acrescidamente, a medida de reinstitucionalização da Casa do Douro como associação pública de inscrição obrigatória não lograria, em qualquer caso, superar o teste da proporcionalidade em sentido estrito, desde logo por, como se concluiu, inexistir interesse público específico e prevalecente na base dessa «reinstitucionalização» passível de, em ponderação, justificar a restrição (de intensidade máxima) da dimensão negativa da liberdade de associação dos viticultores da Região Demarcada do Douro.
Tanto basta para se concluir que as normas sindicadas violam também os artigos 46.º, n.º 3, e 18.º, n.º 2, da Constituição.
B) Segunda questão de constitucionalidade: o princípio da igualdade
14 - Os Requerentes do pedido de declaração de inconstitucionalidade em apreço invocam, ainda, a violação do princípio da igualdade. Segundo alegam, as normas legais sindicadas, que reinstituem a Casa do Douro enquanto associação pública de filiação obrigatória, carecem de justificação e revelam-se discriminatórias, uma vez que idêntica exigência não se encontra legalmente prevista para os viticultores das demais regiões demarcadas.
Na verdade, como escreveu Vital Moreira, embora em face de anterior quadro normativo, «da antiga organização corporativa da economia do Estado Novo, poucos organismos permaneceram com o estatuto de direito público. Foi o caso da Casa do Douro, que permaneceu como corporação pública, sendo hoje um dos organismos que integram o sistema de auto-administração profissional do vinho do Porto e dos demais vinhos do Douro. As demais regiões vitivinícolas dispõem igualmente de um sistema de auto-administração, através de comissões vitivinícolas regionais, que porém têm um estatuto jurídico-privado, embora com funções públicas» - cf. Auto-Regulação Profissional..., cit., p. 256.
Ou seja, como também já se mencionou acima, a prossecução de tarefas públicas pode ser cometida a entidades privadas - mediante a necessária habilitação legal -, tornando ainda mais difícil estabelecer ou identificar com clareza o critério que habilita à criação de associações públicas, nos termos da Constituição. Aliás, parece até ser essa a tendência dominante no setor agrícola em Portugal, onde Vital Moreira assinalou ainda que «existem algumas importantes expressões de auto-regulação oficialmente reconhecida (ou imposta)», tratando-se «sempre de poderes públicos conferidos a entidades coletivas privadas oficialmente reconhecidas e sujeitas a tutela pública» - ibidem, pp. 369-370.
A organização institucional do setor vitivinícola e o reconhecimento, proteção e controlo das denominações de origem (DO) e indicações geográficas (IG) dos vinhos, vinagres, bebidas espirituosas de origem vínica e produtos vitivinícolas aromatizados, bem como o regime de reconhecimento das organizações interprofissionais (OI) do setor vitivinícola e dos respetivos instrumentos de autorregulação, constam hoje do Decreto-Lei 61/2020, de 18 de agosto.
Nos termos do n.º 1 do respetivo artigo 2.º, este decreto-lei aplica-se a todas as DO e IG do setor vitivinícola existentes no território nacional. E o n.º 2 desse preceito legal esclarece que esse mesmo decreto-lei, com ressalva das competências do Instituto da Vinha e do Vinho, I. P. (IVV, I. P.), enquanto instância de contacto junto da União Europeia, se aplica à Região Demarcada do Douro e às Regiões Autónomas, com respeito pelas normas especiais previstas na legislação, estatutos e regulamentos e decorrentes das competências da entidade gestora e do organismo certificador das respetivas DO e IG.
Já o artigo 8.º determina, no seu n.º 1, que a «gestão de uma DO ou IG é atribuída a uma única entidade, a qual pode assegurar a gestão de diversas DO e IG». E o n.º 2 do mesmo preceito legal estatui que «sem prejuízo do regime jurídico próprio das entidades gestoras que constituam pessoas coletivas de direito público, as entidades gestoras das DO e IG podem revestir a natureza de associações do setor agroalimentar, sem fins lucrativos, com personalidade jurídica, e constituídas nos termos do Código Civil», devendo ainda satisfazer os requisitos previstos nessa mesma disposição.
Assim, aquele artigo 8.º expressamente ressalva a existência de entidades gestoras que revistam a natureza de pessoas coletivas de direito público, embora o artigo 9.º, ao regular as atribuições, competências e obrigações das entidades gestoras (EG), pareça ter em vista unicamente entidades de natureza jurídico-privada, que corresponderão, assim, à situação-tipo.
Por sua vez, o n.º 2 do artigo 15.º deste decreto-lei determina que «as EG, mediante deliberação favorável aprovada por maioria qualificada dos votos representados no conselho geral, podem requerer o reconhecimento como organização interprofissional», as quais dispõem, nos termos do artigo 16.º, de instrumentos de autoregulação, de que se destaca «a aprovação de regras de comercialização para regular a oferta, no respeito pelo direito da União Europeia», ainda que sujeita a aprovação pelo Instituto da Vinha e do Vinho, I. P.
De salientar ainda que, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, «o controlo oficial associado à certificação de uma DO ou IG é atribuído a uma única entidade, a qual pode assegurar o controlo de diversas DO e IG», competindo também à EG optar por uma das modalidades de organização da certificação previstas no n.º 3 desse artigo.
Na sequência desta incursão no regime jurídico da organização institucional do setor vitivinícola e do reconhecimento, proteção e controlo das denominações de origem (DO) e indicações geográficas (IG) dos vinhos, constante do Decreto-Lei 61/2020, verifica-se, antes de mais, que o modelo instituído assenta, pelo menos predominantemente, numa auto-regulação profissional por entidades privadas sem fins lucrativos às quais é atribuída, nos termos da lei, a prossecução de tarefas públicas ou mesmo de poderes públicos.
Não obstante, o próprio regime contempla, como vimos, a possibilidade de aquelas funções competirem a uma entidade pública, que hipoteticamente poderia ser a Casa do Douro enquanto associação pública. No entanto, como já resulta do acima exposto, é o IVDP, I. P. (um instituto público integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio, nos termos do Decreto-Lei 97/2012, de 23 de abril), que tem por missão promover o controlo da qualidade e quantidade dos vinhos do Porto, regulamentando o processo produtivo, bem como a proteção e defesa das denominações de origem Douro e Porto e indicação geográfica Duriense - cf. artigos 1.º e 3.º do referido decreto-lei. Isto mesmo se confirma ainda em face do «Estatuto das denominações de origem e indicação geográfica da Região Demarcada do Douro», aprovado pelo Decreto-Lei 173/2009, de 3 de agosto, e alterado, por último, pelo recente Decreto-Lei 97/2020, de 16 de novembro, ao abrigo do qual as competências de controlo, fiscalização e proteção dessas denominações de origem, e os demais poderes regulatórios conexos, cabem ao IVDP, I. P.
A principal consequência a extrair daqui é a confirmação da desnecessidade da reinstitucionalização da Casa do Douro, corroborando o juízo de inconstitucionalidade que se deixou vertido no ponto anterior. Em bom rigor, não há aqui espaço para uma ponderação dogmaticamente autónoma de uma violação do princípio da igualdade entronado no artigo 13.º da Constituição, porque a situação é dilemática: (i) ou determinada associação pública satisfaz o crivo do artigo 267.º, n.º 4, da Constituição e encontra-se, por isso, ipso facto justificada alguma diferença de tratamento coenvolvida, por ser necessária à luz de um interesse público constitucionalmente tutelado; (ii) ou, não satisfazendo esse crivo, a incompatibilidade com o regime jus-constitucional das associações públicas deixa logicamente prejudicada e torna ociosa qualquer indagação em torno da violação do princípio da igualdade.
Assim sendo, e atendendo à posição acima adotada, seriam desprovidos de sentido tanto o excurso relativo à tutela do princípio da igualdade na Constituição - resumível, aliás, na ideia reiteradamente afirmada pelo Tribunal Constitucional de que a Constituição veda as discriminações sem justificação alicercável em valores jurídicos constitucionalmente acolhidos -, como o aprofundamento da análise em torno desta hipotética causa de inconstitucionalidade.
15 - Por fim, estando em causa normas que têm por objeto a existência e a conformação orgânica de uma entidade atuante no tráfego jurídico, e tendo em conta o efeito repristinatório a que alude o n.º 1 do artigo 282.º da Constituição, afigura-se justificável que, por razões de segurança jurídica, sejam ressalvados os efeitos produzidos até à data da publicação da declaração de inconstitucionalidade, usando a faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 282.º da Constituição.
III - Decisão
16 - Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do n.º 4 do artigo 267.º e do n.º 3 do artigo 46.º da Constituição, das normas dos artigos 1.º e 7.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro, e dos artigos 1.º, 3.º e 4.º dos Estatutos da Casa do Douro, aprovados pela mesma lei e dela constantes em anexo;
b) Consequentemente, declarar também inconstitucionais as demais normas da Lei 73/2019 e dos Estatutos da Casa do Douro, aprovados pela mesma lei e dela constantes em anexo, globalmente insuscetíveis de subsistir na ordem jurídica em face da declaração de inconstitucionalidade a que alude a alínea anterior;
c) Fixar, ao abrigo do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, os efeitos da inconstitucionalidade declarada, com força obrigatória geral, nas alíneas anteriores, de modo a que se produzam apenas a partir da publicação oficial do presente Acórdão.
A Relatora atesta o voto de conformidade do Conselheiro Vice-Presidente Pedro Machete que não assina por não se encontrar presente mas que deixou declaração de voto que se junta, bem como o voto de conformidade do Conselheiro José António Teles Pereira.
A Relatora atesta que o Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro vota vencido nos termos da declaração que junta. Maria José Rangel de Mesquita
Lisboa, 13 de julho de 2021. - Maria José Rangel de Mesquita - Fernando Vaz Ventura (com declaração) - Maria de Fátima Mata-Mouros - José João Abrantes (votei o acórdão, no sentido da inconstitucionalidade, acompanhando no essencial a declaração de voto do Conselheiro Fernando Vaz Ventura) - Joana Fernandes Costa - Assunção Raimundo (votei vencida conforme voto que junto) - Gonçalo Almeida Ribeiro (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto do Conselheiro Lino Ribeiro) - Mariana Canotilho (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - João Pedro Caupers.
Declaração de voto
Voto o juízo de inconstitucionalidade, acompanhando a fundamentação no sentido de que a Casa do Douro, na atual configuração das suas atribuições e poderes estatutários, não vence as exigências constitucionais que recaem sobre as associações públicas.
Naturalmente, outra seria a conclusão caso a instituição tivesse recuperado algumas das prerrogativas de direito público que já lhe foram cometidas, em função do reconhecimento, plenamente devido, do interesse comunitário na proteção da vitivinicultura na região duriense e da necessidade de reforço da posição dos produtores mais débeis em recursos organizativos e financeiros. São essas, igualmente, as razões que justificam em geral as associações públicas na agricultura, como referido no ponto 11 da fundamentação da decisão, citando Vital Moreira.
Nessa medida, não acompanho a visão muito restritiva do papel que a Constituição reserva às associações públicas, nem as dúvidas sobre as necessidades estruturais do tecido económico-social da vitivinicultura na região duriense, veiculadas especialmente na parte final do ponto 12 da fundamentação da decisão. Não creio que existam obstáculos constitucionais a que, como sucedeu anteriormente ao Decreto-Lei 152/2014, a que a Casa do Douro volte a exercer alguns poderes públicos de regulação, justificativos da sua existência como associação pública. Fernando Ventura
Declaração de voto
Votei vencida, em síntese, pelas razões seguintes.
1 - Na distinção entre associações públicas e pessoas coletivas com substrato associativo dotados de personalidade jurídica são apontados vários critérios para a sua caracterização: i) critério do fim; ii) critério da criação; iii) critério da integração; iv) critério da titularidade de poderes de autoridade, entre outros; e v) critérios ecléticos.
1.1 - Pelo critério do fim, são de direito público as que prosseguem um fim de interesse público e são de direito privado as pessoas que prosseguem um fim de interesse particular. Questão diversa é a da obrigatoriedade de prossecução do fim. Enquanto os entes públicos seriam obrigados a prosseguir esses fins públicos, os entes privados ainda que prosseguissem fins públicos fá-lo-iam voluntariamente. Porém, a falibilidade de tal critério resulta do facto de que nenhuma pessoa coletiva pública pode prosseguir, apenas, fins públicos. Como refere Garrido Falla, in «Tratado de Derecho Administrativo», Tecnos, Madrid, vol. i, p. 324 «Não é que o critério do fim seja falso, apenas sucede é que é insuficiente».
1.2 - Segundo o critério da criação, serão pessoas coletivas públicas as criadas pelo Estado ou outras pessoas coletivas públicas; as restantes seriam pessoas coletivas privadas. Atende-se, pois, à origem da pessoa coletiva. Este critério é atualmente refutado quer na doutrina civilista quer na doutrina administrativa, por ser facilmente confrontado com pessoas coletivas que lhe escapam, já que nas ordens jurídicas atuais há pessoas coletivas públicas não criadas por outras pessoas coletivas públicas e há pessoas coletivas privadas criadas por entes públicos. Como reafirma Renato Alessi, in «Instituciones de Derecho Administrativo», Bosch, Barcelona, 1970, vol. i, p. 45, esta teoria é facilmente vulnerável quando faz entroncar a qualidade de pessoa pública na origem direta de um ato de poder. Este critério funcionará, assim, mais na perspetiva de qualificação de pessoas como públicas, não tanto como criação material de um ente público, mas mais como dependência para a sua criação duma «autoridade pública», o que permite, por exemplo, que pessoas que surjam no âmbito do direito privado possam posteriormente ser consideradas públicas. Não sendo necessário extinguir a pessoa coletiva em questão e, posteriormente, recriá-la, passa é a ser reconhecida como pública, ou convertida, se se preferir. (Esta diferença de procedimento implica, por exemplo, que os titulares de órgãos das pessoas coletivas convertidas não terão forçosamente que perder essa qualidade).
1.3 - Já no critério de integração, seriam pessoas coletivas públicas as que se integram na organização do Estado ou, eventualmente, na organização de outros entes públicos, como regiões autónomas, autarquias locais ou o Território de Macau. Está sobretudo em causa a existência ou não de tutela por parte de um ente público «superior», normalmente o Estado. Essa tutela seria não a de mera legalidade, mas uma tutela de mérito. Há exemplos claros de entes privados (como empresas intervencionadas e o caso paradigmático das instituições de solidariedade social), sujeitas a tutela de mérito, mas é expressamente ressalvada a sua natureza de pessoa coletiva privada. Contudo, uma crítica se lhe aponta: não é por determinado ente estar integrado numa «organização administrativa» que terá natureza pública. Por ter natureza pública é que poderá estar integrado na Administração Pública, pelo menos no sentido orgânico ou subjetivo que é atribuído a Administração Pública.
1.4 - Finalmente, pelo critério da titularidade de poderes de autoridade, as pessoas coletivas públicas serão as que detêm poderes de autoridade: o «jus imperii».
É defendido, entre nós, por Manuel de Andrade e Mota Pinto.
Também este critério não isento de críticas, a ele são oponíveis, desde logo, que há pessoas coletivas públicas que não exercem poderes de autoridade nas suas relações com os particulares, e não exercem, de facto, ou não podem exercer, a potestade «imperium». Mas a crítica mais profunda apontada é a constatação da existência de entes privados titulares de alguns poderes de autoridade, como algumas instituições particulares de interesse público (na aceção que lhes dá Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Almedina, Coimbra, 1988. vol. i, p. 325).
2 - Ora o acórdão, apontando a jurisprudência constitucional, centrada, fundamentalmente, na categoria das organizações profissionais, não prescindiu dos primeiro e ultimo critérios enunciados (1.1 e 1.4) e, referindo-se ao artigo 3.º da Lei 2/2013, de 10 de janeiro - diretamente aplicável apenas às associações públicas profissionais em sentido estrito - , vem afirmar que o mesmo exprime uma exigência constitucional relativa a todas as associações públicas consagrada no artigo 267.º, n.º 4, da Constituição, que a criação de tais entidades pressupõe a necessidade de «tutela de um interesse público de especial relevo que o Estado não possa assegurar diretamente» e só é admissível quando se mostre «adequada, necessária e proporcional para tutelar os bens jurídicos a proteger». (sublinhado nosso)
É nosso entendimento que nenhuma das apontadas teorias (critérios), por si, vale, ou é bastante, para distinção das pessoas coletivas em públicas e privadas. Esta situação resulta da crescente aproximação dos direito público e privado e da aproximação da atividade administrativa pública à atividade típica dos entes particulares, sua estruturação e suas técnicas jurídicas, razão por que há autores que consideram estarmos já confrontados com a existência de pessoas coletivas de direito misto, uma categoria intermédia. A tendência atual da doutrina é, nesta matéria, caracterizada pelo recurso a critérios ecléticos dos quais podemos apontar os exemplos de Freitas do Amaral, Renato Alesi e Castro Mendes, apontando para a necessidade de se recorrer a um critério eclético para a sua classificação como publica.
Assim serão, pessoas coletivas públicas aquelas que preencham, simultaneamente, várias características ou índices: a) a pessoa coletiva que prossegue necessariamente interesses públicos; b) a pessoa coletiva criada por ato do poder público ou, não o sendo, é reconhecida posteriormente como sujeito de direito público; c) a pessoa coletiva que tem sempre capacidade de direito público, que se rege, em princípio, por estatuto de direito público, exercendo, normalmente, poderes de autoridade em nome próprio e sujeito a restrições públicas, como princípio da legalidade e outros princípios reguladores da atividade pública geral.
As pessoas coletivas que reúnem cumulativamente estas três características são pessoas coletivas públicas. As pessoas coletivas públicas prosseguem, e sempre necessariamente, interesses públicos, ainda que o não façam de forma exclusiva, são criadas «ab origine» pelo Estado ou outras entidades públicas, ou, quando criadas, por particulares recebem em momento posterior o reconhecimento de pessoas de direito público e têm capacidade de direito público, além de sujeitas ao princípio da legalidade, no sentido de não poder agir contra o que dispõe a lei (o que a não distinguiria dos entes privados), e ainda no sentido de «reserva da lei» ou da conformidade (só pode praticar aqueles atos que a lei expressamente admite que pratique), entendido como exigência de que a prática de ato pela Administração corresponda a prévia estatuição de uma norma jurídica. - cf. Freitas do Amaral, Princípio da Legalidade, Pólis - 3, pp. 976 e segs.; Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1987, pp. 17 e segs. e 755.
3 - Nesta conformidade, somos do entendimento que nada obstaria a que a Casa do Douro assumisse a qualidade de associação pública. Desde logo porque o artigo 1.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro, por ato publico e por órgão dotado de competência para o efeito, (i) a qualifica como «associação pública», estabelecendo, nos artigos 2.º e 3.º, a forma de regularização legal daquele título e que o seu regulamento eleitoral será feito por Portaria governamental com tutela da agricultura; (ii) depois rege-se por um estatuto de direito público (artigo 1.º), anexo à referida lei, com poderes de autoridade em nome próprio e sujeito a restrições públicas, como princípio da legalidade e outros princípios reguladores da atividade pública geral (artigos 1.º, 2.º, 22.º, 25.º e 27.º, n.º 5, dos Estatutos); (iii) finalmente prossegue necessariamente interesses públicos, como claramente decorre do artigo 3.º dos seus Estatutos.
4 - Saber se a natureza dessas atribuições, referidas naquele artigo 3.º dos Estatutos, acometidas à Casa do Douro, se funda numa especificidade ou necessidade de prossecução por uma entidade autónoma de base associativa nos termos do artigo 267.º, n.º 4, da Constituição, entendemos que sim.
Acompanhando o acórdão na evolução histórica e normativa da Casa do Douro, detemo-nos no período temporal da alteração levada a cabo desde o Decreto-Lei 152/2014, de 15 de outubro, que revogou o Decreto-Lei 486/82, de 28 de dezembro, e extinguiu a Casa do Douro como associação pública, alterando também os seus estatutos.
O artigo 2.º daquele Decreto-lei estipulava que «1 - A partir de 1 de janeiro de 2015 a representação dos viticultores nos órgãos interprofissionais da Região Demarcada do Douro (RDD) era assegurada através de uma ou mais associações de direito privado representativas dos viticultores, constituídas nos termos da lei geral. 2 - A associação de direito privado, de inscrição voluntária dos seus membros, que suceder à Casa do Douro deveria ter por objeto a representação dos viticultores da RDD e a prestação de serviços aos viticultores; ter capacidade estatutária para atuar na totalidade da área da RDD; representar uma percentagem mínima de viticultores da RDD e do volume de produção ou da área de vinha da RDD a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da agricultura.»
Esta Portaria veio a ser publicada em 19 de dezembro de 2014 - Portaria 268/2014 - e veio definir o procedimento de seleção da associação de direito privado que sucederia à associação pública da Casa do Douro, com inscrição voluntária dos seus membros.
O Decreto-Lei 152/2014 previa também - artigo 3.º - que «À associação de direito privado representativa dos viticultores da RDD que sucedesse à Casa do Douro era assegurada uma representatividade mínima no conselho interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, I. P. (IVDP, I. P.), no que respeita aos representantes da produção, durante dois mandatos, sendo 60 % no primeiro e 20 % no segundo», sendo certo que este conselho interpessoal, nos termos dos artigos 9.º e 10.º do Decreto-Lei 97/2012, de 23 de abril, era, e é, o órgão de gestão das denominações de origem (DO) e indicação geográficas (IG) da RDD, em que se encontram representados os agentes económicos envolvidos na produção e no comércio dos vinhos do Porto e do Douro; a quem cabe autorizar e estabelecer as «quotas» de Produção (autorizada) de cada Lavrador e de cada Empresa Durienses, ou seja conceder o chamado «Benefício».
Saliente-se que a RDD tem uma área total na ordem dos 45 mil hectares de Vinha e, dessa área, apenas uns 25 mil hectares têm Vinhas, com direito a «Benefício», agrupadas por seis categorias, por «letras» sequenciais - A, B, C, D, E, F («medidas» de baixo para cima do terreno, a partir do nível das águas do Douro) -, sendo a Vinha classificada em letra «A» (mais ao nível das águas do Douro), a Vinha melhor para o «Generoso», logo a «letra» que tem mais quota, específica, de «Benefício».
Ora os maiores produtores de «Generoso» - que hoje são quase todos eles grandes comerciantes/exportadores de Porto e de Vinhos «DOC», Douro - tendem para que as respetivas «marcas» das suas (grandes) empresas e o dito «mercado» (que eles determinam...) devam «reinar» cada vez mais.
Da parte dessas grandes empresas comerciais/exportadoras - que eram e ainda são conhecidas como as «Casas Exportadoras de Gaia», embora algumas delas já estejam a «migrar» para dentro da RDD - tendem a controlar todo o processo do Vinho do Porto, nomeadamente a desvalorizar o «Benefício», sabendo-se que o eventual fim do «Benefício» seria o fim, incontornável, da grande maioria dos mais de 25 mil pequenos e médios Viticultores Durienses, sendo esse, sem dúvida, um dos aspetos de maior complexidade da RDD.
Num momento em que a coordenação do sector é completamente assumida pelo conselho interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, I. P. (IVDP), com uma composição, necessariamente paritária, que assegura a representação da produção e do comércio dos vinhos (artigo 9.º do Decreto-Lei 97/2012, de 23 de abril), os representantes da Casa do Douro naquele Conselho Interprofissional só podiam ser produtores (artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei 152/2014, de 15 de outubro), o que revelava, de imediato, um profundo desequilíbrio de forças na composição daquele órgão.
Ora, mantendo-se este status quo de atribuições do IVDP (artigo 3.º do Decreto-Lei 97/2012), convenhamos que a reinstitucionalização da Casa do Douro como associação pública não parece ser totalmente despicienda e desnecessária. A produção e os milhares de vitivinicultores [da região do Douro] que não se reveem na representação instituída pelo IVDP precisam de uma associação de direito público que, com igual peso institucional, os represente e participe na regulação do mercado; precisam de uma associação que defenda os pequenos e médios produtores (a maioria titulares de pequenas parcelas), de forma a proporcionar um maior equilíbrio entre produtores e comércio - como prevê o artigo 3.º, alínea a), do atual Estatuto. Acrescentando-se a isso o facto de uma vez nacionalizada, a Casa do Douro, representar toda a produção de uma região.
5 - Conclui o acórdão que os ora Estatutos da Casa do Douro, anexos à Lei 73/2019, a maior parte das suas atribuições tem por escopo uma mera atividade de prestação de auxílio ou colaboração, direta ou indireta, aos próprios viticultores associados, em termos tais que qualquer associação de direito privado poderia desempenhar. E que não pode deixar de ser decisivo a trajetória de diminuição ou enfraquecimento das respetivas tarefas e poderes públicos, comparativamente com os regimes jurídicos que anteriormente regularam a sua atividade enquanto associação pública.
De facto, o móbil do Decreto-Lei 152/2014 foi efetivamente o enfraquecimento e esvaziamento da Casa do Douro das respetivas tarefas e poderes públicos; e também não contraiamos a interpretação literal de que algumas alíneas do artigo 3.º dos atuais Estatutos da Casa do Douro revelam um escopo de prestação de auxílio ou colaboração. Mas as normas das alíneas b), l), n) e o) daquele mesmo artigo encerram em si a «repescagem» e a salvaguarda de interesses que entes administrativos existentes, nomeadamente o IVDP, não relevam e até descuidam. Entendemos, assim, que os princípios da especificidade e da excecionalidade (necessidade) em que se funda o artigo 267.º, n.º 4, da Constituição, estão presentes na atual reinstitucionalização da Casa do Douro enquanto associação pública. De acrescentar que, pela aludida alínea o), fica aberto o caminho para, de forma mais igualitária e garantística, a Casa do Douro poder vir a exercer outras funções públicas de harmonia com a lei e a sua natureza, de forma a incorporar a totalidade dos viticultores da região, na convergência de um interesse de grupo/região com o interesse público, este respaldado numa política mais equitativa de regulação do mercado e das medidas que podem ser tomadas na regulação da produção da RDD.
Concluímos, assim, pela não violação do parâmetro do n.º 4 do artigo 267.º da Constituição. Assunção Raimundo
Declaração de voto
Vencida, em especial no que respeita aos argumentos de índole jurídico-constitucional, pelas razões constantes da declaração de voto do Conselheiro Lino Ribeiro.
A minha maior discordância decorre, porém, da premissa factual que sustenta a argumentação do presente Acórdão, nos termos da qual não existe uma «tarefa pública a prosseguir, com autonomia, pela coletividade de interesses em causa, através da participação democrática de todos os seus membros», pelo que não se justificaria a constituição da Casa do Douro como associação pública. Naturalmente, não ignoro nem a evolução da Casa do Douro e o relativo esvaziamento dos seus poderes e competências, fruto de sucessivas reformas legislativas, nem a existência do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto e o respetivo quadro competencial. Todavia, não tenho por indiferente, do ponto de vista político e jurídico-constitucional, a natureza pública ou privada da entidade que exerce várias das funções que àquela incumbem, nem avalio a intermutabilidade entre ambas as possibilidades - que é determinante para o juízo sobre a necessidade de constituição de uma associação pública - apenas em termos de desempenho de poderes de autoridade ou de eficiência no desempenho das competências que lhe são cometidas. Nestes termos, creio que funções como a manutenção dos representantes da produção nos organismos e entidades públicas e privadas em que lhe seja reconhecido o direito de participação, designadamente no Conselho Interprofissional do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, I. P.; a defesa das denominações de origem e indicações geográficas da região; e a manutenção de um stock histórico mínimo de vinhos têm, no específico contexto em que nos situamos, uma dimensão relevante de interesse público, que justifica a possibilidade de livre opção do legislador, dentro da sua margem de conformação, pela figura da associação pública para a Casa do Douro. Todo o raciocínio do Acórdão parece assentar numa ideia de capacidade dos privados para o desempenho de funções deste tipo. Não me parece que seja esse o cerne do problema. As competências de que falámos são, no plano prático, desempenháveis por privados; a questão é que a forma como uma entidade pública ou uma entidade privada realizarão os objetivos de interesse público em causa é distinta, a ponderação e composição de interesses que estará na base da sua prossecução também, e alguns dos resultados poderão, igualmente, ser diferentes. Confrontado com estas diferenças, ao fazer um balanço do período em que a Casa do Douro teve natureza privada, o legislador democrático entendeu ser desejável, por razões políticas, fazê-la regressar à esfera pública. Entendo que, face a este entendimento, que implica a convicção sobre uma necessidade que justifica a constituição de uma associação pública, a Constituição confere ao legislador um significativo espaço de atuação, pelo que as normas questionadas não deveriam ser declaradas inconstitucionais. Mariana Canotilho
Declaração de voto
A criação de associações públicas representa uma opção descentralizadora no quadro da organização administrativa do Estado mediante a qual interesses públicos determinados, coenvolvidos numa certa atividade económica ou profissional, são prosseguidos a título principal e com autonomia por quem a exerce, e não por via da administração direta ou indireta do Estado. Por ser assim, a filiação obrigatória na associação pública corresponde à integração num modo de autoadministração: os membros de tal associação participam da Administração Pública (em sentido material) referente à atividade por si exercida, em vez de se limitarem a ser, quanto à mesma atividade, particulares interessados.
Deste modo, no que respeita à liberdade de associação, a filiação obrigatória própria das associações públicas, além de um plus, por comparação com a situação dos demais administrados - que não têm a possibilidade de administrar no exercício de funções e poderes públicos os seus próprios interesses implicados com um dado interesse público -, é sobretudo um aliud. Consequentemente, não me parece justificar-se a avaliação da legitimidade constitucional de uma entidade criada como associação pública, e que não cumpre os requisitos estabelecidos no artigo 267.º, n.º 4, da Constituição - é o que sucede com a Casa do Douro, nos termos da Lei 73/2019 -, como se fora uma associação privada, para efeitos de concluir pela concomitante violação da liberdade negativa de associação consagrada no artigo 46.º, n.º 3, da mesma Lei Fundamental.
Pelo exposto, em meu entender, o juízo positivo de inconstitucionalidade formulado no presente Acórdão - e com o qual concordo - funda-se apenas na violação do disposto no artigo 267.º, n.º 4, da Constituição. Pedro Machete
Declaração de voto
O juízo de inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º e 7.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro - no segmento em que reinstitucionalizam a Casa do Douro enquanto associação pública - funda-se em dois argumentos: (i) as atribuições cometidas à Casa do Douro não consubstanciam fins públicos cuja realização justifique a criação de uma entidade autónoma de base associativa e dotada de personalidade jurídico-pública; (ii) as competências dos órgãos da associação pública não envolvam poderes públicos de autoridade.
É certo que a opção pela forma de associação pública - tomada em momentos distintos da vida institucional da Casa do Douro - tem como limite os princípios constitucionais previstos no n.º 4 do artigo 267.º da CRP: «as associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas». Portanto, na perspetiva das normas constitucionais organizatórias, a criação estadual de uma entidade pública de base associativa não é um ato livre, devendo estar vinculado aos princípios de excecionalidade e da especificidade. O juízo de inconstitucionalidade assenta na inobservância destes princípios, entendendo-se que as atribuições enunciadas no artigo 3.º dos Estatutos da Casa, aprovados pela Lei 73/2019, de 2 de setembro, não justificam que a sua prossecução seja cometida a uma entidade de natureza pública.
No meu ponto de vista, considero que a Lei 73/2019, de 2 de setembro, e os Estatutos da Casa do Douro por ela aprovados evidenciam a necessidade de um suporte institucional público capaz de realizar os fins específicos que são cometidos à Casa do Douro.
Nesta matéria, deve começar por se dizer que, para além dos referidos limites constitucionais, o legislador encontra-se ao abrigo do princípio da liberdade de escolha de formas de organização da Administração Pública, podendo optar livremente por modelos de estruturação orgânica regulados por normas de direito público ou por normas de direito privado. A Constituição aceita e garante um sistema administrativo organicamente plural - administração estadual, direta ou indireta, autónoma, delegada ou independente [artigos 199.º, alínea d), 227.º, 235.º e 267.º, n.os 3, 4 e 6] - mas não desenvolve um modelo concreto de Administração Pública, deixando ao legislador uma ampla margem de liberdade na escolha das formas de organização jurídico-públicas.
É por isso que, no plano do direito administrativo, se entende que a qualificação legal de um organismo como «ente público» é o elemento decisivo para a inserção na Administração Pública. Não se revelando a qualificação legal totalmente infundada ou arbitrária, deve prevalecer a vontade do legislador de submeter a pessoa coletiva ao regime específico das entidades públicas. Como refere Vital Moreira «Quando a lei qualifica uma pessoa coletiva como pública não está a usurpar o papel da doutrina, operando uma qualificação 'científica'; está sim a aplicar em globo a essa entidade o regime próprio das entidades públicas» (cf. Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra Editora, p. 273); de igual modo, Pedro Gonçalves entende que «a indicação legal (da natureza jurídica de uma entidade) impõe-se ao intérprete, mesmo quando o regime jurídico desenhado não seja, num ponto ou noutro ponto, inteiramente coerente com ela (salvo, nesta hipótese, se se tratar de um manifesto lapso ou de uma opção puramente arbitrária» (cf. Entidades Privadas com Poderes Públicos, Almedina, p. 258).
E também se entende que, na ausência de uma indicação legal, expressa ou implícita, a qualificação como entidade pública não depende necessariamente da titularidade de poderes públicos de autoridade. A criação por iniciativa pública, na forma de lei ou de ato público baseado em lei, e a sujeição a um regime de ingerência e controlo público são requisitos suficientes para subsistir como entidade pública. Dada a heterogeneidade de associações públicas existentes (vg. profissionais, económicas, sociais, culturais, desportivas, do poder local), nem todas precisam de poderes públicos de autoridade para prosseguirem interesses públicos. Como refere Pedro Gonçalves, «Mesmo sem poderes públicos de autoridade e a menos que a lei disponha de modo diferente, a pessoa pública tem capacidade de direito público, ficando por isso habilitada a usar as formas de conduta típicas do agir administrativo» (ob cit, p. 264).
Como referimos, no plano jurídico-constitucional não existe qualquer obstáculo que impeça o legislador de integrar a Casa do Douro no conceito amplo de Administração, seja num modelo de estruturação orgânico regulado por normas de direito privado, seja num modelo de estruturação regulado por normas de direito público. A Constituição não fornece uma orientação clara e precisa sobre o modelo constitucional de administração para a prossecução da função administrativa, pelo que caberá ao legislador procurar escolher, entre as formas de organização jurídico-públicas e jurídico-privadas, aquela que entende ser mais adequada a realizar ou colaborar na execução de tarefas públicas.
Ora, por razões várias, não creio que as atribuições e competências que foram atribuídas à Casa do Douro constituam impedimento à qualificação jurídica como «associação pública», enquanto instrumento de fazer participar os viticultores da região demarcada do Douro na administração de interesses que diretamente lhe dizem respeito.
Em primeiro lugar, a Casa do Doutro tem uma história e evolução normativa que revela «preferência» por um formato de direito público: (i) pessoa coletiva pública, com autonomia administrativa e financeira, ou seja, um instituto público integrado na administração estadual indireta (artigo 1.º do Decreto-Lei 486/82, de 28 de dezembro); (ii) associação pública, integrada na administração autónoma (artigo 1.º do Decreto-Lei 76/95, de 19 de abril, e artigo 1.º do Decreto-Lei 277/2003, de 6 de novembro); (iii) associação de direito privado, mas equiparada a pessoa coletiva de utilidade pública (artigos 2.º, 5.º e 7, n.º 2, do Decreto-Lei 152/2014, de 15 de outubro); (iv) e finalmente, pelas normas questionadas, associação pública (artigos 1.º e 7.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro).
A opção legislativa de deslocar a Casa do Douro da administração direta (instituto público) para a administração autónoma (associação pública), ocorrida em 1995, encontra justificação nos princípios constitucionais respeitantes à organização administrativa. Não obstante o legislador se encontrar dotado de uma ampla margem de liberdade na escolha da forma organizativa mais adequada ao cumprimento ou realização da atividade administrativa, encontra-se condicionado, em maior ou menor medida, pelos princípios constitucionais que regem a organização da Administração Pública, na sua maioria, previstos no artigo 267.º da CRP.
Ora, o Decreto-Lei 76/95, de 19 de abril, transformou a Casa do Douro em associação pública porque a maior parte das funções estaduais que até então exercia foram transferidas para um novo instituto público criado pelo Decreto-Lei 74/95, de 19 de abril, a denominada Comissão Interprofissional da Região Demarcada do Douro (CIRDD), que, sendo uma pessoa coletiva de direito público dotada de autonomia administrativa e financeira, tinha natureza de instituto público integrado na administração estadual indireta. Neste contexto, reconhecendo a existência de interesses públicos próprios dos viticultores da região demarcada do Douro, que podiam ser destacados e geridos autonomamente em relação às tarefas públicas gerais confiadas à administração do Estado, optou por reconfigurar a Casa do Douro com atributos para assumir como sua a titularidade daqueles interesses, de modo a que os viticultores pudessem participar democraticamente na respetiva gestão.
Pode mesmo dizer-se que, à luz da Constituição, uma entidade pública de base associativa é a forma que mais se adequa à prossecução de interesses próprios de «todos» os viticultores da região demarcada do Douro. A entrega aos viticultores de poderes para que administrem interesses próprios, mas não exclusivos, constitui um mecanismo adequado à participação na gestão dos assuntos que respeitam à região demarcada e em que são diretamente interessados. A opção por uma entidade integrada na administração autónoma institucional dá assim expressão à vertente participativa do princípio democrático consagrado no n.º 1 do artigo 267.º da CRP. As associações públicas estão associadas neste preceito constitucional à participação dos interessados na Administração, uma dimensão do princípio democrático que tem especiais reflexos na organização administrativa, dado que incentiva a participação dos cidadãos interessados na gestão de tarefas públicas.
Assim, a forma de associação pública parece ser a que melhor garante o envolvimento dos viticultores na gestão ou execução de tarefas que o Estado reconhece como públicas. Com efeito, a administração de tarefas públicas pelos próprios interessados só representará uma forma democrática de participação se estiver garantida a participação de todos os interessados, o que apenas se consegue com a filiação obrigatória. Essa garantia não existe numa associação de direito privado, em que está garantida a liberdade dos cidadãos perante as associações privadas (artigo 46.º, n.º 3, da CRP). Daí que, como refere Pedro Gonçalves, «pelo facto de a lei não poder impor aos cidadãos a filiação em associações de direito privado, estas não podem considera-se suporte institucional da ideia de participação democrática inerentes ao conceito de administração autónoma» (ob. cit. p. 676).
Em segundo lugar, a «reinstitucionalização» da Casa do Douro como associação pública - em vez de associação de direito privado equiparada a pessoa coletiva de utilidade pública - constitui um elemento essencial e determinante no reconhecimento estadual do carácter público das atribuições que lhe são cometidas. A lei não deixa de o referir quando incumbe à Casa do Douro prosseguir «outras funções públicas que, de harmonia com a lei e a sua natureza lhe caibam» [alínea o) do artigo 3.º dos Estatutos]. Nesta disposição, o legislador reconhece como tarefas públicas todas as que constam das várias alíneas do artigo 3.º, permitindo que os viticultores da região demarcada do Douro as assumam como suas. Não se trata de um «saco vazio» - como apelida o acórdão, - mas do reconhecimento estadual de que os fins e interesses que a lei incumbe à associação de prosseguir são interesses públicos próprios dos viticultores, que devem ser representados e defendidos através de uma pessoa coletiva de direito público que garanta a participação de todos.
De resto, o reconhecimento de que a Casa do Douro desenvolve atividade de interesse público que interessa à comunidade nacional e primacialmente à região demarcada do Douro já existia quando considerada como associação de direito privado. Os artigos 5.º e 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei 152/2014, de 15 de outubro, integraram a associação privada na categoria de pessoas coletivas de utilidade pública e condicionaram o registo da propriedade do imóvel que constituía a sede da Casa do Douro «à prossecução do fim de utilidade pública de defesa dos interesses dos viticultores da RDD». Portanto, a associação de direito privado que sucedeu à Casa do Douro enquanto associação pública continuou a ser olhada pela lei como uma entidade que tinha a obrigação de cooperar com a Administração Pública no desenvolvimento de «fins de interesse geral», com os deveres estabelecidos no Decreto-Lei 460/77, de 7 de novembro (na redação dada pela Decreto-Lei 391/2007, de 13 de dezembro).
Em terceiro lugar, constata-se que, diferentemente do que ocorre noutras regiões demarcadas, a intervenção estadual na região demarcada do Douro sempre foi muito intensa, quer na organização do setor produtivo, quer nos circuitos comerciais: há normas sobre métodos de produção vitícola e vinícola (solos, adubação, plantio, castas, técnicas e métodos de cultivo, proibição de aditivos, quantidades de aguardente, número de anos de envelhecimento, normas de fabrico), sobre limitações dos níveis de produção (determinação anual do benefício, atribuição de uma quota de produção, sistema de escoamento, controlo do plantio), sobre a delimitação da origem da produção (demarcação das parcelas, distribuição do benefício, classificação das vinhas), regas de controlo do armazenamento (a lei do terço, criando limites à exportação), regras de controlo da qualidade (análise e prova dos vinhos, designação da origem, apresentação do produto engarrafado,) e normas de natureza tributárias e financeira (taxas, subsídios de produção, escoamento e armazenamento), etc.
Os viticultores da região demarcada do Douro são os principais destinatários e interessados no cumprimento e execução dessas regras. A existência de uma região demarcada, à qual se associa uma denominação de origem e uma indicação geográfica, é do interesse geral da comunidade, mas especialmente dos produtores residentes nessa área. O n.º 4 do artigo 299.º do Código de Propriedade Industrial (Decreto-Lei 110/2018, de 10 de dezembro), considera que as denominações de origem e indicações geográficas pertencem ao património comum dos produtores estabelecidos na área abrangida pela região demarcada, insuscetíveis de serem apropriadas individualmente ou por grupos. Por isso, tratando-se de um património comum «com interesse público» (artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei 61/2020, de 18 de agosto), não se compreende que a defesa das denominações de origem e indicações geográficas pelos próprios viticultores, prevista na alínea c) do artigo 3.º dos Estatutos da Casa do Douro, não represente a participação na execução de uma importante tarefa pública que têm a ver especificamente com os seus interesses.
Desde logo, porque a atribuição prevista nesta alínea coloca a Casa do Douro no âmbito do Decreto-Lei 173/2009, de 3 de agosto, que regula o Estatuto das denominações de origem e indicações geográficas na região demarcada do Douro. Como se pode ver nas disposições desse diploma, esta finalidade específica abrange um campo muito vasto de ações de interesse público incidentes sobre a demarcação da região, solos, castas, porta-enxertos, classificação de vinhas, reestruturação de vinhas, práticas culturais, inscrição de entidades, rendimentos por hectare, aguardentes de vinho e beneficiação, comunicado de vinha, etc. As atuações e proibições previstas nessas normas, que a Casa do Douro também está incumbida de defender, são de relevante interesse público, mas interessam especialmente aos produtores.
No conjunto dos poderes de defesa das denominações de origem e indicações geográficas, assume especial importância a participação da Casa do Douro na elaboração do «comunicado de vinha». O comunicado de vinha é emitido anualmente pelo IVDP, I. P., ao abrigo do artigo 14.º do Decreto-Lei 173/2009, de 3 de agosto, estabelecendo (i) o quantitativo de mosto apto a produzir vinho com a denominação de origem «Porto», que é fixado em função da evolução das vendas, da perspetiva da sua evolução e das existências no comércio e na produção, (ii) as normas sobre a utilização de aguardente de vinho (incluindo a fixação da quantidade de aguardente a utilizar nos vinhos de vindima), (iii) as normas que devem obedecer as compras a efetuar na vindima e fora desta para efeitos de obtenção da capacidade de vendas na DO «Porto», (iv) e outras normas, como a fixação dos coeficientes para as diferentes classes de vinha que estejam legalmente aptas à produção de «mosto generoso autorizado». Ora, para além de outros poderes públicos, a alínea d) do artigo 29.º dos Estatutos atribui ao Conselho de Direção da Casa do Douro competência para «discutir normas a integrar no comunicado de vinha sobre os quantitativos de autorização de produção do mosto e os seus critérios de distribuição, os ajustamentos anuais ao rendimento por hectare determinando a quantidade de mosto a produzir, as normas e prazos para o efeito de obtenção de capacidade de vendas e o quantitativo, bem como o regime de utilização das aguardentes na autorização de produção de mostos aptos à atribuição de denominação de origem Porto». Sabendo-se que o «comunicado de vinha» é um instrumento essencial no ordenamento da viticultura duriense, e que dele depende em muito o rendimento dos produtores, a forma de associação de direito privado, que deixa de fora os não filiados, não se apresenta idónea à participação de todos os viticultores nessa discussão.
Em quarto lugar, o artigo 1.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro, determinou que o imóvel que constitui a sede da Casa do Douro é «propriedade conjunta de todos os viticultores», dispondo o n.º 4 do artigo 33.º dos Estatutos que o mesmo deve ser registado em nome da Casa do Douro e que não pode ser objeto de negócios jurídicos transmissíveis ou constitutivos de direitos reais, nem objeto de arresto, penhora ou hipotecas judiciais. Ora, este regime de comunhão de mão comum ou património coletivo, em que há um direito de propriedade com tantos titulares quantos os viticultores da região demarcada do Douro, sem que algum deles possa pedir a divisão, só é possível se a entidade proprietária congregar todos os viticultores. Uma associação de direito privado, em que há impossibilidade constitucional de imposição legal de filiação, não poderia garantir a titularidade do património a todos os viticultores, pois os não filiados ficariam necessariamente excluídos. Daí a necessidade de criar uma entidade de direito público que possa realizar o interesse público da intransmissibilidade da sede da Casa do Douro, dos demais imóveis e do stok histórico de vinhos.
Por fim, não obstante a Casa de Douro poder atuar nas relações com terceiros com instrumentos de direito privado, nem por isso se pode deixar de considerar que tem propósito de satisfazer necessidades de interesse geral. Muitas das normas que regulam a atividade da Casa do Douro só encontram justificação quando considerada num formato de entidade pública: (i) as instituições do Estado, em especial, o Instituto do Vinho e da Vinha, I. P., e o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, I. P., têm o dever de colaborar com a Casa do Douro (artigo 5.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro); (ii) a Casa do Douro tem a obrigação de manter o stok histórico mínimo de vinhos a determinar por portaria do membro do Governo com tutela da agricultura [alínea n) do artigo 3.º do Estatuto]; (iii) tem o dever de efetuar um sistema informático para registo dos associados coletivos, devendo elaborar um regulamento administrativo para o efeito, sujeito a parecer do IVDP, I. P., e à aprovação da Comissão Nacional de Proteção de Dados (artigo 6.º, n.º 3); (iv) a liquidação de quotas dos associados advém diretamente dos licenciamentos e das taxas pagas pelos viticultores ao IVDP, I. P., nos termos definidos por portaria do membro do Governo com a tutela da agricultura, e a transferência para a Casa do Douro decorre dos termos definidos em protocolo com o IVDP, I. P. (artigo 9.º, n.º 2); (v) foi estabelecido um regime de incompatibilidades, conflitos de interesses e limitação de mandatos dos membros dos órgãos da Casa do Douro (artigos 11.º, 12.º e 13.º); (vi) tem o direito de emitir parecer sobre políticas de promoção e marketing realizadas pelas entidades públicas ou associativas onde se integre e de se pronunciar sobre as consultas públicas a realizar pelos IVV, I. P., e IVDP, I. P. [alíneas a) e b) do artigo 29.º]; (vii) o fiscal único é designado por despacho conjunto do Governo com a tutela das finanças e da agricultura (artigo 30.º); (viii) o passivo da Casa do Douro não pode exceder a média dos seus proveitos não extraordinários verificados nos três anos anteriores, sob pena de demissão da direção e responsabilidade pessoal e solidárias dos seus membros (n.os 6 e 7 do artigo 33.º); (ix) dispõe de um regime fiscal especial, com isenção de custas nos processos judiciais, imposto de selo e emolumentos em contratos e atos notariais, de registo predial e comercial (artigo 6.º da Lei 73/2019, de 2 de setembro).
Através destas normas, o Estado reconhece a existência de interesses públicos que não são de toda a coletividade, mas apenas dos viticultores da região demarcada do Douro, procurado que a sua realização seja entregue a um órgão representativos dos mesmos. Fá-lo em nome da vertente participativa do princípio democrático, sem esquecer a vertente representativa expressa na imperatividade de algumas daquelas normas. Não se trata de colocar os viticultores da região demarcada do Douro numa situação de «privilégio» em detrimento do interesse nacional, mas do reconhecimento estadual de que os principais interessados na produção do vinho do Porto devem participar nas tarefas públicas que lhe dizem principalmente respeito.
Conclui-se, pois, que não existe qualquer desconformidade com o n.º 4 do artigo 267.º da CRP. Lino José Rodrigues
114566355