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Acórdão 423/87, de 26 de Novembro

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Sumário

Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto Lei 323/83, de 5 de Julho, na parte em que exige daqueles que não desejam receber o ensino da religião e moral católicas uma declaração expressa em tal sentido.

Texto do documento

Acórdão 423/87

Processo 110/83

Acordam no Tribunal Constitucional:

I - A questão

1 - O Presidente da Assembleia da República, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição e 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio requerer a declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei 323/83, de 5 de Julho, alegando para tanto o seguinte conjunto de razões:

O Decreto-Lei 323/83 pretendeu proceder à regulamentação do preceito concordatário que respeita à leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas públicas dos vários graus;

Nesse diploma, deu-se prevalência ao ensino da religião e moral católicas, embora justificada com base na especial representatividade da população católica do País;

Sem embargo, o referenciado diploma parece ofender os artigos 13.º, n.º 2, 41.º, n.º 1, e 41.º, n.º 4, todos da Constituição;

Com efeito, o artigo 13.º, n.º 2, da Constituição estabelece, além do mais, que ninguém pode ser privilegiado em razão da religião;

Por seu turno, o artigo 41.º, n.º 1, firma o princípio da liberdade religiosa, enquanto o n.º 4 deste mesmo preceito determina que as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.

2 - Em cumprimento do disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, foi notificado o Governo como órgão autor da norma questionada, havendo produzido a competente resposta, da qual agora se destaca a conclusão, concebida nos seguintes termos:

O Decreto-Lei 323/83 não sofre de inconstitucionalidade orgânica, porquanto não faz inovação legislativa, limitando-se a reproduzir, no essencial, as normas do artigo XXI da Concordata, das bases II e VII da Lei 4/71, de 21 de Agosto, da base III da Lei 5/73, de 25 de Julho, e do artigo 1.º da Lei 65/79, de 4 de Outubro;

Também não sofre de inconstitucionalidade material, dado que não viola, nos termos expostos, os princípios da igualdade, da liberdade de consciência, de religião e culto, bem como da não confessionalidade do ensino e da laicidade do Estado.

3 - Os autos foram, entretanto, por duas vezes, objecto de nova distribuição, com a consequente e sucessiva mudança de relator.

Importa agora apreciar e decidir.

A sequência metodológica que se vai trilhar começará por uma mirada ao processo de formação legislativa do Decreto-Lei 323/83, com destaque para as vicissitudes que precederam a sua edição, nomeadamente no domínio da fiscalização preventiva da constitucionalidade.

II - A génese legislativa do Decreto-Lei 323/83

1 - No ano de 1982, o Conselho de Ministros aprovou um decreto registado sob o n.º 338-G/82, no livro de registos de diplomas da Presidência do Conselho de Ministros, que veio ulteriormente a ser objecto de fiscalização de constitucionalidade por parte do Conselho da Revolução, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 146.º e nos n.os 3 e 4 do artigo 277.º da versão originária da Constituição.

Pela Resolução 96/82, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 137, de 17 de Junho de 1982, o Conselho da Revolução, «precedendo parecer da Comissão Constitucional e no particular entendimento de que nos artigos 2.º e 3.º do diploma em apreciação se consagra basicamente a solução já constante na base VII, n.os 2 e 4, da Lei 4/71», não se pronunciou pela sua inconstitucionalidade.

No preâmbulo do decreto começava por se afirmar que «o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas dos vários graus é entre nós ministrado em obediência à directriz estabelecida no artigo XXI da Concordata assinada entre o Estado Português e a Santa Sé em 7 de Maio de 1940, e confirmada pelo artigo II do Protocolo Adicional, de 15 de Fevereiro de 1975, que o Decreto 187/75, de 4 de Abril, seguidamente aprovou para efeito da sua ratificação», assinalando-se, em seguida, que, «não se tendo até então procedido à regulamentação adequada do preceito concordatário no que respeita à leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas», se julgara chegado o momento oportuno de preencher essa lacuna, completando-se, em termos convenientes, a execução do princípio fixado.

Nessa conformidade, foi aprovado o referenciado decreto, composto pelo seguinte articulado:

Artigo 1.º O Estado, tendo em conta o dever de cooperação com os pais na educação dos filhos, bem como os seus deveres gerais em matéria de ensino, garante nas suas escolas o ensino das ciências humanas, morais e religiosas, essenciais à formação integral dos cidadãos.

Art. 2.º - 1 - De acordo com a especial representatividade da população católica no País, o Estado ministrará o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas elementares, médias e complementares aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não tiverem pedido isenção.

2 - Sendo maiores, compete aos próprios alunos fazer o pedido de isenção.

Art. 3.º - 1 - O pedido de isenção, seja dos pais ou encarregados de educação, seja dos alunos maiores, será formulado no boletim de matrícula ou no boletim de inscrição nas disciplinas que integram o núcleo do ano curricular em que seja ministrado o ensino da religião e moral católicas.

2 - O boletim de matrícula e o boletim de inscrição destinados a recolher o pedido de isenção obedecerão ao modelo aprovado por despacho do Ministério da Educação e das Universidades.

Art. 4.º - 1 - A disciplina de Religião e Moral Católicas faz parte do curriculum escolar normal em todas as escolas públicas elementares, médias ou complementares, dependentes ou não do Ministério da Educação e das Universidades.

2 - As aulas da disciplina de Religião e Moral estão sujeitas ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares, nomeadamente no que se refere às condições gerais de matrícula, regime de faltas, avaliação de conhecimentos, prestação de provas e apoio pedagógico devido a alunos e docentes.

Art. 5.º - 1 - A orientação doutrinária do ensino da religião e moral católicas é da exclusiva responsabilidade da Igreja católica.

2 - A elaboração e modificação dos programas da disciplina competem ao episcopado, que os enviará ao Ministério da Educação e das Universidades antes da sua entrada em vigor, para conhecimento oficial e publicação conjunta com os programas das restantes disciplinas.

Art. 6.º A aprovação dos manuais de ensino da disciplina, bem como de outros instrumentos auxiliares de trabalho, destinados a alunos ou professores, compete ao episcopado, que promoverá a sua edição ou divulgação, depois de dar conhecimento ao Ministério da Educação e das Universidades.

Art. 7.º - 1 - Os professores de Religião e Moral Católicas fazem parte do corpo docente dos estabelecimentos de ensino em que prestam serviço, gozando do estatuto legal correspondente à categoria a que pertencem.

2 - Os professores de Religião e Moral Católicas serão contratados mediante proposta da autoridade eclesiástica competente, com as habilitações legais requeridas.

Art. 8.º Nas actuais escolas de ensino médio que venham a ser convertidas em escolas de ensino superior destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico continuará a ser obrigatório o ensino da religião e moral católicas, nos termos constantes do presente diploma.

Art. 9.º As dúvidas suscitadas na execução deste decreto-lei serão resolvidas por despacho do Ministério da Educação e das Universidades, que previamente ouvirá o episcopado nas matérias pertinentes.

2 - Confrontada com o texto que vem de se transcrever, a Comissão Constitucional, na economia do artigo 284.º, alínea a), da versão originária da Constituição, sobre ele emitiu o parecer 17/82, concluindo no sentido de o Conselho da Revolução não dever pronunciar-se pela sua inconstitucionalidade, o que em realidade veio a suceder através da já citada Resolução 96/82 (cf.

Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 19.º, pp. 253 e segs.).

Pela sua importância e também por força das consequências dele advenientes, vão, de seguida, ser expostos os seus núcleos temáticos essenciais, acompanhados de diversos passos da fundamentação que os suportou.

Vejamos então.

O parecer começa por afirmar que o decreto em causa não enferma de inconstitucionalidade orgânica.

Porque nele se disciplina uma matéria (o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas) que directamente se conexiona com a liberdade de expressão, a liberdade religiosa e a liberdade de ensino, expressamente contempladas nos artigos 37.º, 41.º e 43.º, e também com o sistema de ensino, a que se referem em particular os artigos 74.º e 75.º, todos da versão originária da Constituição, poder-se-ia ser levado a concluir, numa primeira abordagem, que seria da Assembleia da República a competência exclusiva para, a tal propósito, legislar.

Todavia, sustenta-se no parecer, desde que o Governo, em tais domínios, não crie uma outra normatividade e se limite a repetir no essencial o que já consta de textos legais anteriores, emanados do órgão de soberania competente, deve entender-se não existir intromissão no sector de reserva legislativa do Parlamento.

É que esta reserva é de ordem substancial e não de ordem formal. O Governo, ainda em zona de reserva, é livre, desde que não toque no fundo, para dar novas vestes à legislação vigente e organicamente não viciada, coligindo-a, sistematizando-a ou simplesmente reproduzindo-a.

Por outro lado, prossegue o parecer que se vem acompanhando, embora só à Assembleia da República caiba cobrir legislativamente a área de direitos, liberdades e garantias, dispondo sobre as suas bases gerais e sobre os seus aspectos regulamentares essenciais, não lhe pertence já, e em monopólio, legislar sobre os mais ínfimos pormenores do tema que, por natureza, não constituirão nunca desvios ou inflexões às grandes linhas traçadas e à consequente regulamentação basilar.

Depois de um exame de todo o articulado comparativo com o ordenamento jurídico anteriormente vigente, o parecer encerra a questão da suposta inconstitucionalidade orgânica do modo que segue:

O excurso analítico desdobrado sobre os nove artigos do decreto mostra que ali, e antes de mais, se tratou do ensino nas escolas públicas da disciplina (de frequência facultativa) de Religião e Moral Católicas, no esquema de programas elaborados pelo episcopado, ao qual competiria ainda aprovar os manuais de estudo e propor a contratação dos respectivos professores, sendo esse tratamento conforme no essencial com o que já consta da legislação vigente.

Apenas aqui e ali se acrescentou tal matéria com uma ou outra minudência de segunda linha, e assim colocadas na zona da competência do Governo.

O Governo substancialmente não ultrapassou a órbita do seu campo de acção.

Não invadiu o terreno de reserva legislativa da Assembleia da República definido nas alíneas c) e n) do artigo 167.º da Constituição.

Passando, de seguida, à apreciação da suposta inconstitucionalidade material, o parecer acaba sucessivamente por concluir que o princípio da não confessionalidade do ensino não é derrotado pelo decreto em causa, que o seu artigo 2.º, n.º 1, não ofende o princípio da liberdade religiosa na sua componente optativa e que o princípio da liberdade religiosa na sua componente igualitária não resulta infringido.

Para tanto, e no essencial, escorado nas razões que, para cada uma dessas situações, de seguida se vão expor.

Assim, tocantemente à não confessionalidade do ensino:

O princípio da não confessionalidade do ensino, expresso no n.º 3 do artigo 43.º da Constituição - «O ensino público não será confessional» -, é simples manifestação, ao nível escolar, do princípio da separação. Tem, porém, de ser articulado em termos muito especiais com o direito à liberdade religiosa, posto em realce no n.º 1 do artigo 41.º - «A liberdade de consciência, religião e culto é inviolável». E é precisamente esta articulação bem entendida que proíbe que o Estado, escudado na sua neutralidade, se esqueça no domínio do ensino do posicionamento da Igreja católica dentro da sociedade portuguesa actual.

No que concerne ao princípio da liberdade religiosa na sua componente optativa:

Por força do artigo 16.º, n.º 2, da Lei Básica, aquele preceito (artigo 36.º, n.º 5 - «Os pais têm o direito e o dever de educação dos filhos») deverá ser interpretado e integrado de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que no artigo 26.º, n.º 3, estatui que «aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos».

Este direito dos pais na escolha da educação a ser proporcionada aos filhos menores abarcará naturalmente a área do ensino religioso.

Finalmente, e a propósito do princípio da liberdade religiosa na sua componente igualitária:

O parecer, depois de haver considerado, como não violadora do princípio da aconfessionalidade do ensino, a institucionalização pelo decreto da disciplina de Religião e Moral Católicas, de frequência facultativa, nas escolas públicas, interroga-se sobre se a criação de tal ensino não romperá com a liberdade religiosa, considerada esta na sua dimensão igualitária, ponderando, desde logo, haver, com efeito, quem sustente que assim se estará a estabelecer uma discriminação inadmissível em prejuízo das demais igrejas ou religiões.

Esta interrogativa é respondida com os seguintes desenvolvimentos:

Mas não parece válida esta argumentação. Esquece ela o particular posicionamento da Igreja católica na nossa sociedade. Não cabe aqui pôr em relevo a estrutura histórica da Igreja católica portuguesa. Interessa, sim, considerar o momento presente. Esse é que releva. E, na actualidade, a grande maioria dos portugueses, quanto mais não seja, sentem-se atraídos pelo fundo ético do cristianismo e desejam que esse fundo moral continue a ser ensinado aos filhos.

E mais adiante:

A procura social em favor do ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas é, de facto, preponderante. Satisfazendo-a, está o Estado apenas a tratar desigualmente o que é desigual.

E por fim:

A liberdade religiosa não veda, pois, a diferenciação estabelecida no decreto em favor dos alunos católicos frequentadores das escolas públicas. Tal diferenciação está em proporção com a sua representatividade.

Aliás, e em termos práticos, não se vê possibilidade de o Estado beneficiar de modo similar ou aproximado os fiéis de outras confissões religiosas, em número pouco significativo, e cuja expressão ao nível de cada escola será nula ou muito estreita. Seria absurdo que só por isso se não permitisse que o Estado respondesse à procura da maioria da população portuguesa, de raiz católica.

3 - Não obstante este parecer da Comissão Constitucional e a Resolução 96/82, do Conselho da Revolução, que não se pronunciou pela inconstitucionalidade do decreto registado na Presidência do Conselho de Ministros sob o n.º 338-G/82, o certo é que o mesmo acabou por não ser promulgado e publicado como decreto-lei.

Com efeito, em 6 de Maio de 1983, o Conselho de Ministros aprovou um outro decreto, cujo texto é quase inteiramente coincidente com aquele, e do qual veio a resultar o Decreto-Lei 323/83, de 5 de Julho.

Refere-se na resposta do Governo, produzida no presente processo, que o Presidente da República sugeriu diversas alterações ao primeiro decreto, «de harmonia com o entendimento que fez vencimento no parecer da Comissão Constitucional».

Qual a dimensão e conteúdo dos ajustamentos assim introduzidos no diploma legal que agora se sindica? Nos considerandos preambulares observam-se pequenas alterações de ordem meramente formal, que em nada afrontam ou desvirtuam a natureza essencial das motivações do texto anterior por inteiro assumidas e mantidas.

O mesmo não se poderá afirmar tocantemente ao articulado, onde os nove preceitos do decreto inicial deram lugar a apenas seis, pois que nele se surpreendem algumas modificações significativas que justificam o seu assinalamento.

Vejamos então o grau e amplitude desses ajustamentos.

No artigo 1.º, cujo teor quase se reproduz, suprimiu-se a expressão «essenciais à formação integral dos cidadãos» com que encerrava o projecto inicial.

No artigo 2.º, n.º 1, deixou de dizer-se que «[...] o Estado ministrará o ensino da religião e moral católicas [...] aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não tiverem pedido isenção» para se dispor com diverso alcance do modo seguinte: «[...] ministrar-se-á o ensino da religião e moral católicas [...] aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não declararem expressamente desejo em contrário.» No n.º 2, onde inicialmente se fazia apenas alusão à menoridade, passou a referir-se a menoridade de «16 anos».

No artigo 3.º, tal-qualmente sucedia no artigo 4.º do primitivo projecto, depois de se integrar a disciplina de Religião e Moral Católicas no currículo escolar normal das escolas públicas, sujeita-se a mesma ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares. Todavia, e contrariamente ao estatuído naquele artigo 4.º, onde se referia expressamente, a propósito do regime curricular, o regime de faltas e a avaliação de conhecimentos, suprimiu-se agora qualquer alusão ao regime de faltas e precisou-se que da avaliação de conhecimentos desta disciplina não pode, em caso algum, «resultar qualquer efeito negativo sobre a transição do ano».

No artigo 4.º, compreendem-se os artigos 5.º e 6.º do projecto inicial, mantendo-se, por inteiro, o conteúdo essencial destes últimos.

No artigo 5.º, dispõe-se sobre o estatuto dos professores de Religião e Moral, reproduzindo-se, quase integralmente, o artigo 7.º do primitivo projecto.

Aqui chegados, importa, antes de retomar a materialidade em apreço, situar o significado do Decreto-Lei 323/83, no quadro normativo que o precedeu, em especial no ordenamento jurídico tributário da Concordata de 1940.

III - Antecedentes históricos e normativos do Decreto-Lei 323/83

1 - É no artigo 25.º da Constituição de 1822 que se encontra a primeira fresta aberta na muralha legislativa e costumeira que durante séculos tentara preservar, com o escudo da intolerância a unidade religiosa, a pureza da fé, e, com elas, a unidade moral e política da Nação.

Depois de se afirmar que «a religião da Nação Portuguesa é a católica apostólica romana», essa disposição acrescentava, num segundo período, ser permitido aos estrangeiros o exercício particular dos seus respectivos cultos.

O facto de o preceito se referir somente aos estrangeiros e de, mesmo quanto a estes, a liberdade concedida se restringir ao culto particular, privado ou doméstico, deixa desde logo antever qual fosse a situação de nacionais e estrangeiros no período anterior ao liberalismo e qual continuaria a ser, no plano legal, o regime mantido com relação aos cidadãos portugueses (cf., sobre a evolução legislativa do princípio da liberdade religiosa, o parecer da Câmara Corporativa publicado no Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, vol. XLVII, pp. 334 e segs.).

A Carta Constitucional e a efémera Constituição de 1838 dispunham de modo similar ao texto de 1822, devendo, porém, salientar-se a norma do artigo 145.º, § 4.º, da Carta, segundo a qual «ninguém pode ser perseguido por motivos de Religião, uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a Moral Pública».

Fundadas nesta prescrição constitucional, especialmente na segunda metade do século XIX, puderam entrar e desenvolver-se em Portugal diversas igrejas protestantes e outras confissões religiosas, primeiramente entre os estrangeiros e depois já com portugueses, sendo mesmo nacionais algumas dessas confissões (cf. António Leite, «A religião no direito constitucional português», Estudos sobre a Constituição, vol. II, pp. 280 e segs.).

Após a proclamação da República foi publicado o decreto com força de lei de 20 de Abril de 1911 (Lei da Separação da Igreja e do Estado), em cujo artigo 2.º se preceituava que «a religião católica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado e todas as religiões são igualmente autorizadas, como legítimas agremiações particulares, desde que não ofendam a moral pública nem os princípios do direito político português».

Por seu turno, dispunha o artigo 3.º da Lei da Separação que ninguém poderia ser perseguido por motivos religiosos, nem perguntado pelas autoridades acerca da religião que professa.

«Pela primeira vez, não só o Estado e a Igreja aparecem dissociados, na medida em que é eliminada a religião oficial do Estado, como a confissão católica surge em pé de igualdade com as demais confissões, seja no que toca ao culto particular, seja no que respeita ao próprio culto público, agora franqueado dentro de certos termos uniformes a nacionais e estrangeiros.» (Cf. parecer da Câmara Corporativa, ob. cit., pp. 344 e segs.).

A Constituição de 1911 consagrou no título respeitante aos «direitos e garantias individuais» (artigos 3.º e 4.º), na continuidade da Lei da Separação, a não confessionalidade do Estado, a plena liberdade de consciência de todos os cidadãos e o carácter neutral de todo o ensino ministrado em estabelecimentos públicos ou particulares fiscalizados pelo Estado.

A Constituição de 1933, no seu artigo 8.º, n.º 3, entre os direitos e garantias individuais dos cidadãos portugueses, mencionava «a liberdade e inviolabilidade de crenças e práticas religiosas, não podendo ninguém por causa delas ser perseguido, privado de um direito, ou isento de qualquer obrigação ou dever cívico», acrescentando também que «ninguém será obrigado a responder acerca da religião que professa, a não ser em inquérito estatístico ordenado por lei».

No título respeitante às relações do Estado com a Igreja católica e demais cultos inscreviam-se os artigos 45.º e 46.º, nos quais, além do mais, se dispunha ser «livre o culto público ou particular de todas as religiões, podendo as mesmas organizar-se livremente, de harmonia com as normas da sua hierarquia e disciplina» e ainda que, «sem prejuízo do preceituado pelas concordatas na esfera do Padroado, o Estado mantém o regime de separação em relação à Igreja católica e a qualquer outra religião ou culto praticados dentro do território português».

No domínio da educação, ensino e cultura, o artigo 43.º, § 3.º, preceituava que «o ensino ministrado pelo Estado é independente de qualquer culto religioso, não o devendo, porém, hostilizar [...]».

Este conjunto de princípios, reveladores de um regime de separação entre o Estado e a Igreja, autorizou que no parecer da Câmara Corporativa já citado, a dado passo, se consignasse que «no estatuto político que em 11 de Abril de 1933 põe termo ao regime de ditadura militar e assenta em bases jurídicas os postulados fundamentais da nova situação, não se encontra ainda nenhum sinal expressivo, nem da importância fundamental que os princípios do cristianismo exerceram e continuam a revestir na formação dos Portugueses, nem do relevo especial que, por circunstâncias de vária ordem, assume a religião católica no contexto das relações do Estado com as diversas confissões religiosas» (cf.

parecer da Câmara Corporativa, ob. cit., p. 355).

Todavia, em 7 de Maio de 1940 foi assinada a Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, de cujas disposições mais significativas «é possível verificar que houve, por um lado, o visível propósito de não regressar ao sistema da religião oficial do Estado, mas não se hesitou, por outro, em reconhecer e garantir a posição especial que para a religião católica advém (sobretudo em matéria de casamento e no capítulo da educação) da importância capital que os princípios da doutrina e moral cristãs tiveram, desde os alvores da nacionalidade, na formação do carácter dos Portugueses, nos quadros da sua vida familiar e social, bem como na expansão territorial da comunidade nacional» (cf. parecer da Câmara Corporativa, ob. cit., p. 359).

Em consonância com este discurso, o artigo XXI da Concordata rezava do modo seguinte:

O ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País. Consequentemente ministrar-se-á o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas elementares, complementares e médias aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não tiverem feito pedido de isenção.

Nos asilos, orfanatos, estabelecimentos e institutos oficiais de educação de menores, e de correcção ou reforma, dependentes do Estado, será ministrado, por conta dele, o ensino da religião católica e assegurada a prática dos seus preceitos.

Para o ensino da religião católica, o texto deverá ser aprovado pela autoridade eclesiástica e os professores serão nomeados pelo Estado de acordo com ela;

em nenhum caso poderá ser ministrado o sobredito ensino por pessoas que a autoridade eclesiástica não tenha aprovado como idóneas.

Assinale-se não existir contradição entre esta norma concordatária e o transcrito artigo 43.º, § 3.º, da Constituição, que assegurava a neutralidade do ensino ministrado pelo Estado, pois que a Lei 1910, de 23 de Maio de 1935, lhe concedera entretanto nova redacção, abolindo aquela neutralidade e substituindo-a pela afirmação expressa de que entre os fins essenciais visados pelo ensino oficial se conta a formação de todas «as virtudes morais e cívicas, orientadas aquelas pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País».

Logo a seguir, o Decreto-Lei 36508, de 17 de Setembro de 1947 (Estatuto do Ensino Liceal), no seu artigo 343.º, n.º 2, em consonância com a norma concordatária, prescreve que serão dispensados, pelo Ministro da Educação, das sessões de religião e moral os alunos do ensino liceal cujos pais declarem pretender que eles não sejam educados segundo a religião católica.

Com a entrada em vigor da Lei 2048, de 11 de Junho de 1951, a Constituição passa a reproduzir alguns dos preceitos da Concordata, ao mesmo tempo que expressamente considera, no seu artigo 46.º, a religião católica apostólica romana como religião tradicional da Nação Portuguesa, sem embargo de se continuar a afirmar a separação como o regime das relações do Estado com as confissões religiosas.

A Portaria 21490, de 25 de Agosto de 1965, por seu turno, veio regular a matéria no âmbito do ensino primário.

Entretanto, em 1971, para além da revisão constitucional, que neste domínio não introduziu qualquer alteração substancial, foi publicada a Lei 4/71, de 21 de Agosto (sobre a liberdade religiosa), cujas bases II e VII, pelo seu significado e importância, aqui importa transcrever:

Base II

1 - O Estado não professa qualquer religião e as suas relações com as confissões religiosas assentam no regime de separação.

2 - As confissões religiosas têm direito a igual tratamento, ressalvando as diferenças impostas pela sua diversa representatividade.

Base VII

1 - O ensino ministrado pelo Estado será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País.

2 - O ensino da religião e moral nos estabelecimentos de ensino será ministrado aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não tiverem pedido isenção.

3 - Os alunos maiores de 18 anos poderão fazer eles próprios o pedido de isenção.

4 - Para o efeito, no acto de inscrição em qualquer estabelecimento em que se ministre o ensino de religião e moral aquele a quem competir declarará se o quer ou não.

5 - A inscrição em estabelecimentos de ensino mantidos por entidades religiosas implica a presunção da aceitação do ensino religioso e moral da respectiva confissão, salvo declaração pública em contrário dos seus dirigentes.

Posteriormente, a Lei 5/73, de 25 de Julho (bases do sistema educativo), reafirma o princípio de que o ensino deve ser orientado pelos princípios da moral e doutrina cristãs tradicionais no País, devendo obedecer ao estabelecido na Constituição e na lei de liberdade religiosa [cf. base III, n.º 2, alínea a), e n.º 3].

Já no domínio da Constituição de 1976, a Lei 65/79, de 4 de Outubro (liberdade de ensino), veio impor que o Estado, no exercício das suas funções educativas, respeite os direitos dos pais de assegurarem a educação e o ensino dos seus filhos em conformidade com as suas convicções (artigo 1.º), afirmando também a não confessionalidade do ensino público [artigo 2.º, alínea b)].

A Portaria 1077/80, de 18 de Dezembro, que revogou a Portaria 21490, de 25 de Agosto de 1965, e foi, por seu turno, revogada pela Portaria 333/86, de 2 de Julho, procedeu à regulamentação de alguns aspectos do ensino da religião e moral católicas no ensino primário, em moldes que, no essencial, o diploma hoje em vigor mantém intocáveis.

2 - Encerrado este breve excurso através de alguns textos que, a partir da monarquia constitucional, mais significativamente moldaram a disciplina jurídica da liberdade de religião, das relações desta com o Estado e do seu ensino nas escolas públicas, não pode deixar de se reter como ideia essencial, a assinalar enfaticamente, a particular e decisiva influência que, nos últimos decénios, sobre todas estas matérias exerceu e determinou a Concordata de 1940.

Importa assim, antes de se prosseguir na abordagem das questões directamente postas no pedido, estabelecer um enquadramento mínimo desta realidade jurídica, cultural e social, quando confrontada com a Constituição saída da Revolução de 25 de Abril.

3 - Como escreveu Jorge Miranda (cf. «Liberdade religiosa, igrejas e Estado em Portugal», Nação e Defesa, n.º 39, Julho/Setembro de 1986, ano XI), pode aqui repetir-se que a Constituição de 1976 veio:

[...] garantir a liberdade religiosa sem acepção de confissões e sem quaisquer limites específicos. É um estádio mais avançado do que os sucessivos regimes anteriores de união, de neutralidade laicista e de relação preferencial com a Igreja católica (de certo ângulo, poderia supor-se ser também uma síntese dessas orientações diversas), e a separação serve essencialmente de garantia da liberdade e da igualdade.

Para esta situação concorreram vários factores: a superação da questão religiosa da 1.ª República e também a superação (até pelo decurso do tempo) quer das correntes jacobinas quer das tendências ultramontanas; o Concílio Vaticano II; o crescente pluralismo político dos católicos portugueses; a crescente inserção das confissões não católicas na vida colectiva do País, a integração europeia de Portugal e a própria coerência do Estado de direito democrático, cerne da nova ordem constitucional.

E o mesmo autor, depois de assinalar que a história de Portugal mostra uma constante e íntima associação entre a formação e o desenvolvimento da Nação e do Estado e a fé católica, declarando-se ainda hoje cerca de 95% de cidadãos como católicos, sendo o número de crentes de outras confissões muitíssimo inferior, acentua o seguinte:

A Constituição de 1976 não contém, no entanto, nenhuma referência distintiva (diversamente das anteriores e de Constituições como, por exemplo, a italiana - artigo 7.º - e a espanhola - artigo 16.º, n.º 3). Logo, cabe perguntar se pode a lei ou um tratado internacional estabelecer distinções; se se justifica a dupla vigência da Concordata de 1940 (estatuto básico da Igreja católica em Portugal) e da Lei de 1971 (onde está o essencial da regulamentação das confissões não católicas); e se é constitucional qualquer diferença de tratamento.

Deve dizer-se que o problema, nestes termos radicais, não tem sido posto em Portugal nos dez anos da actual Constituição. Ninguém tem contestado a Concordata em bloco; o Protocolo Adicional de 1975 (sobre o divórcio civil de casados canonicamente), celebrado já após a Revolução de 1974, confirmou-a; e existe consenso quanto aos riscos que uma ruptura da Concordata poderia trazer (situações de vazio jurídico e prováveis novos confrontos entre a Igreja e o Estado).

A questão que pode suscitar-se é apenas esta: saber se há normas da Concordata e da legislação ordinária que desrespeitem os princípios constitucionais da liberdade e igualdade religiosas; e na hipótese de isso acontecer, conseguir obter a sua substituição ou a publicação de novas normas que estabeleçam a liberdade e a igualdade. [Cf. ob. cit., pp. 129 e 130.] Pese, embora, a terminante afirmação contida no artigo II do Protocolo Adicional à Concordata, assinado em Roma em 15 de Fevereiro de 1975 entre a Santa Sé e o Governo Português, e aprovado para ratificação pelo artigo único do Decreto-Lei 187/75, de 4 de Abril, segundo a qual, salvaguardado o artigo XXIV, que recebeu nova redacção, todos os demais preceitos concordatários se mantêm em vigor, pode fundadamente questionar-se sobre se a Concordata não contém, hoje em dia, diversas normas que, eventualmente, hajam de ter-se por desactualizadas, como manifestamente sucede com a primeira parte do seu artigo XXI, onde se prescreve que «o ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País».

Simplesmente, esta constatação não invalida o reconhecimento do facto jurídico cultural e social representado pela existência do sistema concordatário que, salvaguardadas algumas limitações, se mantém vigente no ordenamento jurídico português.

A esta luz se devem interpretar e compreender os debates parlamentares, aquando da discussão do artigo 43.º da Constituição (cf. Diário da Assembleia Constituinte, sessões n.os 62 e 63, respectivamente, de 14 de Outubro de 1975, pp. 1957 e segs., e 15 de Outubro de 1975, pp. 1985 e segs.), onde expressamente se fez a defesa da vigência do sistema concordatário, citando-se até em abono desse entendimento um texto da autoria do Dr. Salgado Zenha, que, na qualidade de Ministro da Justiça, representou o Governo Português na assinatura do Protocolo Adicional (o texto a que foi feita referência na Assembleia Constituinte foi publicado no Jornal Novo, de 9 de Setembro de 1975, e acha-se inserto na sua obra Por Uma Política de Concórdia e Grandeza Nacional, pp. 179 e segs. Ali se sustenta que a «Concordata encerra uma fórmula de equilíbrio histórico que deverá manter-se», recordando-se que a revisão efectuada em 1975 contou com o apoio de todos os partidos representados no Governo Provisório, os quais manifestaram a sua concordância não só com as inovações introduzidas no artigo XXIV, mas também com os restantes preceitos não modificados).

O facto concordatário é irrecusável, tem existência jurídica e os princípios essenciais que o inspiram acham-se consagrados no tecido social e cultural do povo português por uma vivência de séculos, podendo bem dizer-se que, ao menos alguns deles, são indissociáveis da sua história, das suas tradições, da sua memória colectiva.

Em termos estritamente jurídico-constitucionais, porém, cabe indagar se esse sistema, na parte que directamente se conexiona com a questão em apreço - o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas -, não viola normas ou princípios constitucionais.

É o que, encerrado o tema antecedentemente abordado, deveria passar a fazer-se.

Antes porém, em ordem a um mais rigoroso enquadramento da matéria em todas as suas implicações jurídico-constitucionais, no amplo sentido que esta locução comporta, vão tecer-se algumas considerações de ordem geral sobre o grande tema das relações do Estado com as confissões religiosas, bem como se intentará um rápido esboço do quadro das experiências vividas, neste domínio, por dois países, os Estados Unidos da América do Norte e a Itália, com história, costumes e tradição religiosa bem diversos, como diverso é também, aliás, o grau da sua afinidade com a situação verificada no nosso país.

Prossigamos então.

IV - As relações do Estado com as confissões religiosas

1 - O ensino da religião nas escolas públicas pode colocar problemas de conflitualidade com certos direitos e princípios fundamentais, desde logo com o direito à liberdade de religião, o princípio da igualdade de tratamento, sem se ter em conta a religião de cada um, e o princípio da não confessionalidade do ensino público.

Todavia, deve acentuar-se que o alcance material de cada um destes direitos e princípios e de outros que lhes são conexos está extremamente dependente e condicionado pelo tipo de relações existentes, em cada momento histórico, entre o Estado e as comunidades religiosas. Por outro lado, como de algum modo já se observou no caso português, estas relações não serão nunca inteiramente imunes à tradição cultural dos povos e à sua estrutura sociológica.

A grande contraposição clássica quanto àqueles modelos de relacionamento põe-se entre o Estado laico e o Estado confessional, constituindo a posição assumida pelo Estado, enquanto ente distinto das pessoas que compõem a comunidade nacional, relativamente à questão da existência de Deus, o critério de distinção mais adequado.

Se o Estado, agindo como se fosse ele próprio um cidadão, tomar partido sobre aquela questão, assumirá a natureza de Estado confessional; inversamente, se o Estado a si próprio se proibir de concorrer juntamente com os cidadãos na adesão ou rejeição de qualquer confissão religiosa, isto é, se quanto a esta matéria se declarar neutral, será então um Estado laico (cf. P. J. Viladrich, «Ateismo y libertad religiosa en la Constitucion española de 1978», Revista de Derecho Público, 1983, n.º 90, pp. 89 e segs.).

Esta aproximação aos modelos abstractos de Estado no plano do seu posicionamento face às religiões suscita, desde logo, algumas observações que, iluminando a compreensão da matéria, possibilitarão a abertura de outras vias de entendimento no seio daquelas sínteses categoriais.

Vejamos.

Primeira observação. - A dicotomia Estado laico/Estado confessional não coincide necessariamente (embora coincida tendencialmente) com a dicotomia separação/não separação entre Estado e igrejas.

Na verdade, existem Estados laicos que mantêm laços institucionais com uma ou várias igrejas. Por outro lado, um Estado confessional pode conhecer diversos graus de união com os organismos religiosos, acontecendo até, por vezes, existir uma união muito ténue e bem próxima de certas fórmulas de separação.

Segunda observação. - O Estado confessional define-se, como se viu, por tomar posição sobre a questão da fé e da existência de Deus. Todavia, essa postura não tem de ser necessariamente positiva, podendo revestir um sentido negativo.

Neste caso, o Estado assume-se como «ateu», integrando o grupo dos que não acreditam na existência de Deus.

Poder-se-á sustentar, e alguns o fazem, que neste caso o Estado assume a natureza de Estado laico. Mas parece dever admitir-se que esta posição traduz mais rigorosamente uma forma de confessionalismo de sinal contrário, mas ainda confessionalismo, uma vez que a adopção do ateísmo constitui uma postura não neutral sobre o fenómeno religioso.

Terceira observação. - O facto de um certo Estado ser confessional não implica necessariamente que ele coaja os cidadãos da respectiva comunidade a segui-lo em tal opção.

A aceitação de uma confissão como confissão oficial do Estado não impede irrefragavelmente que os seus cidadãos usufruam de ampla liberdade na escolha da sua própria posição religiosa.

2 - Das observações antecedentes logo se alcança existirem espécies diversificadas de Estados laicos e Estados confessionais. Com efeito, a análise das inúmeras e distintas fórmulas do direito comparado revela uma imensa multiplicidade de situações que, só muito imperfeitamente, se compadecerão com um qualquer esquema classificativo.

De todo o modo, acompanhando de perto Jacques Robert, La liberté religieuse et le regime des cultes, Paris, 1977, pp. 21 e segs., poder-se-ão distinguir os Estados laicos em Estados com separação e sem separação nítida, expressa ou formal (Itália), subdividindo-se aqueles em Estados com separação rígida (Estados Unidos da América) e com separação flexível (França).

Nos Estados confessionais podem encontrar-se três grupos principais: com união ou identificação total (Israel, URSS), com união parcial (Itália, no período imediatamente anterior aos Pactos de Latrão de 1984) e com união ténue (RFA).

O abstraccionismo antecedente será mais inteiramente preenchido com a análise, que se passará a fazer, dos sistemas de liberdade religiosa existentes nos Estados Unidos da América e na Itália, aquele, um Estado laico na plenitude do conceito, e este, um Estado com profunda e secular preponderância da Igreja católica.

Para além das relações Estado/confissões religiosas e da liberdade de religião, observar-se-á, com a atenção possível, o regime jurídico da instrução nas escolas públicas, por forma que se reúnam subsídios para uma inteira compreensão do sistema vigente no nosso país.

V - A liberdade religiosa nos EUA

1 - De harmonia com a emenda de 1791, a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, «o Congresso não poderá aprovar nenhuma lei conducente ao estabelecimento de uma religião de Estado, nem tão-pouco proibir o exercício de qualquer religião».

Estabelece esta emenda, que tem vindo a ser interpretada pelo Supremo Tribunal Federal (Supreme Court), órgão supremo de avaliação constitucional, no sentido de o fenómeno religioso dever ser inteiramente indiferente para o Estado, duas cláusulas distintas: a da liberdade religiosa e a do não estabelecimento de uma religião de Estado.

Interessa-nos, de momento, em especial, esta última, correntemente designada pelos autores norte-americanos e pela jurisprudência federal «cláusula do estabelecimento», embora sem esquecer que a liberdade religiosa pode, por vezes, requerer a limitação do seu alcance.

Com efeito, estas duas cláusulas podem entrechocar-se e a jurisprudência é chamada a arbitrar os conflitos então surgidos. Exemplifica-se: despender fundos federais para empregar capelães nas forças armadas poderia facilmente ser entendido, na linha de interpretação da Supreme Court, como violação da cláusula do estabelecimento. Contudo, um soldado isolado e estacionado num posto distante poderia seguramente queixar-se de que o Governo, não lhe fornecendo oportunidade para orientação espiritual, está a inviabilizar o livre exercício da sua religião (cf. Tribe, American Constitucional Law, 1978, p. 815).

A «cláusula do estabelecimento» tem vindo a ser interpretada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de impedir qualquer apoio ou conexão governamental com a religião. O princípio do não estabelecimento requer a separação completa do Estado e das igrejas e proíbe qualquer suporte financeiro público a instituições religiosas, ainda que feito numa base de igualdade. Fala-se, por isso, de separatismo («neutralismo», «não envolvimento», «não confusão») entre o Estado e as confissões religiosas.

Este separatismo ou neutralidade impõe que o Estado não se envolva em assuntos religiosos e em nenhuma circunstância a religião deve ser financeiramente suportada pelos fundos públicos, directa ou indirectamente.

Assim se assegurará que o avanço e difusão de uma igreja resulte apenas do esforço dos seus seguidores e não do apoio político do Estado (cf. C. Herman Pritchett, The American Constitution, Nova Iorque, 1977, pp. 400 e segs., e Tribe, ob. cit., p. 819).

2 - No plano da instrução, esta cláusula tem consequências bem precisas, como se extrai da célebre decisão da Supreme Court proferida no caso McCollum v.

Board of Education, em 1948. Estava aí em jogo um programa escolar de uma localidade do Illinois, de acordo com o qual as crianças de escolas públicas, com o consentimento dos pais, tinham aulas de instrução protestante, católica ou judaica durante o horário escolar e no edifício da escola. Os professores não eram pagos pelas escolas, mas estavam sob a supervisão de superintendentes escolares e a assistência era obrigatória para os alunos participantes no programa.

O Supremo Tribunal Federal entendeu existir violação do princípio do estabelecimento, já que edifícios escolares públicos, sustentados pelos impostos, estavam sendo utilizados para difundir doutrinas religiosas e que a estrutura escolar do Estado servia de apoio a classes religiosas (cf., sobre esta decisão, Tribe, ob. cit., p. 823).

Ao contrário, em outra também muito conhecida decisão proferida no caso Zorach v. Clauson, o Tribunal não aceitou uma queixa contra o programa estadual que autorizava as crianças a deixar a sua escola numa determinada hora, a fim de receberem instrução religiosa em outro sítio. Entendeu-se aqui que, ao invés do que sucedia no caso McCollum, a cláusula do livre exercício em confronto com a do estabelecimento impunha tal solução.

Procurando interpretar a decisão proferida no caso McCollum, entende Tribe (ob.

cit., p. 825) que a Supreme Court não rejeitou o programa de instrução religiosa nas escolas públicas tanto por força de razões financeiras ou de utilização dos equipamentos estaduais, mas sobretudo por uma questão simbólica: «Nada poderia ser mais demonstrativo da entrega da nossa sociedade a uma particular prática religiosa do que a demonstração de vontade em usar, como fórum para tal religião, as estruturas escolares através das quais os princípios básicos da instrução são transmitidos aos nossos jovens... Não é tanto a perspectiva financeira que revela a violação da neutralidade, mas a combinação do apoio material, organizacional e, acima de tudo, simbólico à instrução religiosa.» Não quer isto dizer que o Estado Norte-Americano seja de todo indiferente à religião na vida da comunidade; longe de ser hostil ou mesmo verdadeiramente indiferente, ele necessita e, algumas vezes, deve acomodar as suas instituições e programas aos interesses religiosos do povo. Mas esse acomodamento não pode afectar o direito fundamental pessoal de não fazer parte de uma comunidade em que os órgãos oficiais apoiem perspectivas religiosas que possam ser profundamente contrárias às suas crenças mais profundas (Tribe, ob. cit., p. 869).

VI - A liberdade religiosa na Itália

1 - Após um período de cerca de 100 anos, cujo início se pode situar no princípio do século XIX, em que se observa uma gradual separação entre o Estado e a Santa Sé, atingem-se os anos 20 e os Pactos de Latrão (11 de Fevereiro de 1929). Estes merecem especial atenção, não só pelo facto de até há pouco tempo terem regulado as relações entre o Estado e a Santa Sé, por força do artigo 7.º da Constituição de 1946, mas também por terem influenciado grandemente a Concordata portuguesa de 1940.

Em conformidade com o artigo 36.º da Concordata italiana, o princípio basilar em matéria de instrução religiosa é o de que a Itália «considera fundamento e corolário da instrução pública a doutrina cristã segundo a forma recebida da tradição católica» (cf. Anna Talamanca, «Istruzione religiosa», Enciclopedia del Diritto, vol.

XXIII, pp. 121 e segs.).

Daí que o Estado tenha consentido que o ensino religioso, até então apenas praticado nas escolas públicas elementares, fosse alargado ao ensino médio. Por outro lado, o Estado concedeu à Igreja católica importantes poderes no tocante ao conteúdo, métodos e agentes de ensino: os programas das disciplinas de religião pressupunham a sua concordância; a aprovação dos professores, sacerdotes ou religiosos, assim como a emissão de certificados de idoneidade para os professores laicos, também lhe pertenciam; igualmente lhe cabia a aprovação dos livros de estudo da religião.

O ensino da religião apresentava algumas especificidades em relação às outras disciplinas ministradas nas escolas públicas: o estatuto funcional dos agentes de ensino religioso não era inteiramente idêntico ao dos restantes professores, em especial em matéria de nomeação e exoneração; os alunos podiam ser dispensados da frequência das respectivas aulas; o método de avaliação não consistia na realização de exames, existindo apenas uma nota especial indicativa do interesse com que o aluno seguira o ensino (Anna Talamanca, ob. cit., p. 126).

A coexistência entre o artigo 36.º da Concordata e as normas da Constituição não era inteiramente pacífica, tornando-se patente a tendência para fazer uma interpretação evolutiva do texto concordatário de modo a evitar uma conflitualidade normativa.

2 - Em 18 de Fevereiro de 1984, pondo termo a um longo e laborioso processo, os Pactos de Latrão foram alterados, continuando, porém, por remissão constitucional, a regular as relações entre o Estado Italiano e a Igreja católica.

Um dos objectivos desta alteração visava substituir a lógica de privilégio que inspirava os Pactos de 1929 por uma outra, de igualdade jurídica ou de igual liberdade de todas as confissões religiosas (cf. Anna Talamanca, ob. cit., p. 488, onde se insere a nota informativa do Presidente do Governo Italiano, Bettino Craxi, ao Senado e à Câmara dos Deputados).

Mas pode dizer-se que, embora abolido o princípio consignado nos Pactos de 1929 da religião católica como religião do Estado Italiano, se manteve o reconhecimento da inevitabilidade de especiais relações e, em certos casos, de colaboração entre o Estado e a Igreja católica, como é bem evidente no domínio da instrução religiosa.

Com efeito, o artigo 9.º, n.º 2, do texto da alteração da Concordata afirma que o Estado assegura o ensino da religião católica nas escolas públicas em razão do valor da cultura religiosa no quadro das finalidades da escola.

O mesmo texto confirma o carácter confessional do ensino religioso que é ministrado no plano da doutrinação católica.

O protocolo adicional ao acordo de modificação da Concordata remete para um entendimento entre entidades escolares e eclesiásticas as questões relativas aos programas de ensino e sua organização, escolha dos livros e textos de estudo e nomeação dos professores e sua selecção (cf. Giuseppe dalla Torre, L'insegnamento della religione nel concordato revisionato, Milão, 1985, pp. 147 e segs.).

Garante-se, todavia, a liberdade religiosa de cada um, ao prescrever-se no já referido artigo 9.º, n.º 2, que no respeito da liberdade de consciência e da responsabilidade educativa dos pais é garantido a todos o direito de receber ou recusar o ensino religioso. Para tanto, no acto de inscrição escolar, os alunos ou os seus encarregados de educação devem declarar expressamente se querem ou não frequentar as aulas de religião.

3 - Concluída a abordagem genérica das relações entre o Estado e as confissões religiosas e observadas as experiências jurídico-constitucionais dos EUA e da Itália, é tempo de retomar as questões que directamente são postas no presente processo.

Em conformidade com o disposto no artigo 51.º, n.º 1, da Lei 28/82, o pedido de apreciação de constitucionalidade deve especificar, além das normas cuja apreciação se requer, as normas ou princípios constitucionais violados.

O Presidente da Assembleia da República peticionou a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de todas as normas do Decreto-Lei 323/83, por violação do disposto nos artigos 13.º, n.º 2, e 41.º, n.os 1 e 4, da Constituição.

Mas, porque este Tribunal não se encontra vinculado, na formação do seu juízo, pelas normas ou princípios constitucionais invocados pelo requerente, alargará, se assim for imposto pelas circunstâncias e pela natureza da matéria sob sindicância, a análise subsequente a outras eventuais causas de inconstitucionalidade.

E, numa ordem lógica de cognição, começar-se-á pela apreciação de uma eventual inconstitucionalidade orgânica para, de seguida, se passar ao exame das causas de ilegitimidade constitucional apontadas no pedido ou de outras, cujo conhecimento se mostre ajustado e conveniente.

Vejamos então.

VII - A inconstitucionalidade orgânica

1 - Os objectivos do diploma em apreço acham-se desde logo enunciados nos seus considerandos preambulares, onde, depois de se precisar que «o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas dos vários graus é entre nós ministrado em obediência à directriz estabelecida no artigo XXI da Concordata» e porque não se procedeu ainda «à regulamentação do preceito concordatário no que respeita à leccionação da disciplina da Religião e Moral Católicas, a não ser de forma dispersa e fragmentária», se conclui no sentido de se julgar oportuno o preenchimento dessa lacuna «para se sistematizar e completar a execução do princípio fixado».

O Decreto-Lei 323/83, como se extrai destas simples considerações preambulares, reporta-se ao ensino da religião e moral católicas nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas, abrangendo assim uma temática com incidência no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, onde se inscrevem a liberdade de religião e a liberdade de aprender e ensinar, e com incidência também no sistema de ensino.

Tendo em atenção que o diploma foi editado pelo Governo sem beneficiar de credencial parlamentar, pode questionar-se se não terá havido violação das normas constitucionais que definem a competência da Assembleia da República.

Simplesmente, como foi entendimento da Comissão Constitucional e continua sendo deste Tribunal, o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da competência parlamentar não determina, por si só e automaticamente, a verificação de inconstitucionalidade orgânica.

Com efeito, desde que tais normas não criem um ordenamento diverso do já existente, limitando-se a retomar e reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente, é de entender, em tais circunstâncias, não existir invasão daquela esfera de competência reservada.

Para além disso, importa sublinhar que no âmbito da reserva legislativa não devem incluir-se os temas que, por definição, não respeitam ao teor essencial das matérias ali integradas, isto é, aqueles aspectos que, pelo seu carácter adjectivo e neutral, em nada influenciam a sua dimensão e intensidade reguladora.

Posto isto, poder-se-á agora afirmar, como o fez o parecer da Comissão Constitucional relativamente ao decreto primitivo, que no Decreto-Lei 323/83 «apenas aqui e ali se acrescentou tal matéria com uma ou outra minudência de segunda linha, e assim colocadas na zona da competência legislativa do Governo?».

A resposta a esta interrogativa envolve a «acareação» do articulado do diploma posto em crise com o ordenamento jurídico anterior, numa palavra, com o preestabelecido na Concordata e depois objecto dos desenvolvimentos de que se deixou notícia.

2 - À luz deste visionamento das coisas se vai, em seguida, proceder ao exame comparativo de todo o articulado do Decreto-Lei 323/83, por agora tão-somente, repete-se, numa perspectiva de eventual inconstitucionalidade orgânica.

Artigo 1.º - Através deste preceito «o Estado [...] garante nas suas escolas o ensino das ciências morais e religiosas».

É manifesto que esta prescrição, como aliás logo resulta da nota preambular, onde se alude à directriz estabelecida no artigo XXI da Concordata, não contém qualquer carácter inovatório, limitando-se a afirmar o que já constava do texto concordatário assim como da base VII da Lei 4/71.

Nem importa aqui a consideração de a primeira parte do primeiro trecho daquele artigo XXI padecer eventualmente de inconstitucionalidade, insusceptível, aliás, de ser conhecida no presente processo. E não importa porque a segunda parte daquele normativo - onde se prescreve o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas - dispõe de autonomia e potencialidade aplicativa próprias, não podendo assim ser contaminada pelos vícios de que a injunção anterior padeça.

Artigo 2.º - Prevê que seja ministrado o ensino da religião e moral católicas aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não declararem expressamente desejo em contrário. Quando maiores de 16 anos, compete aos próprios alunos fazer essa declaração.

A segunda parte do primeiro trecho do artigo XXI da Concordata dispunha que tal ensino era ministrado aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, «não tiverem feito pedido de isenção». Por seu turno, a base VII da Lei 4/71, depois de no seu n.º 2 reiterar a exigência de um pedido de isenção, prescrevia no n.º 4 que, para o efeito daquele pedido, no acto de inscrição em qualquer estabelecimento em que se ministre o ensino da religião e moral, aquele a quem competir «declarará se o quer ou não».

Existe uma significativa diferença entre um pedido de isenção, que pressupõe a existência de uma obrigação, cujo dever de cumprimento pode ser dispensado na sequência do respectivo pedido, e a mera manifestação de vontade, traduzida através de uma declaração que envolve o exercício de um direito.

Simplesmente, o preceito agora em apreço, ao optar por uma exclusiva declaração de conteúdo negativo - a quem não declarar desejo em contrário será ministrado o ensino -, elegeu apenas um dos termos da dualidade referida no n.º 4 da base VII da Lei 4/71, e inviabilizou a hipótese de uma interpretação conforme à Constituição ensaiada no parecer 17/82.

O conteúdo inovatório e restritivo assim introduzido em matéria de direitos, liberdades e garantias, à revelia da Assembleia da República, não pode deixar de originar inconstitucionalidade orgânica por violação do disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.

Artigo 3.º - Não traduz qualquer inovação substancial relativamente ao que se dispunha no artigo XXI da Concordata e na base VII da Lei 4/71, onde, ao menos de modo implícito, se continha já idêntica prescrição.

Mesmo que se admita existir alguma especificidade inovatória, não se incluirá o seu conteúdo no âmbito da competência reservada da Assembleia da República.

Artigo 4.º - Representa uma repetição do último trecho do artigo XXI da Concordata, não revestindo qualquer significado algumas alterações puramente formais.

Artigo 5.º - Inscreve-se na linha definida no último trecho do artigo XXI da Concordata, sendo de todo irrelevante o facto de no texto concordatário se dizer que os «professores são nomeados pelo Estado de acordo com a autoridade eclesiástica» e no preceito agora em apreço se estatuir que os professores «serão contratados ou nomeados mediante proposta da autoridade eclesiástica».

Por outro lado, esta matéria, que mais adiante se desenvolverá em todas as suas implicações, não pode haver-se como integradora das «bases do regime e âmbito da função pública», não podendo, consequentemente, quanto a ela, falar-se em inconstitucionalidade orgânica.

Artigo 6.º - Nada de novo se contém neste normativo que não tivesse já previsão no primeiro trecho do artigo XXI da Concordata, pois que as «actuais escolas do magistério e as destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico» constituem as escolas públicas «complementares e médias» nos dizeres do texto concordatário.

Encerrada esta leitura comparativa, pode dizer-se que o articulado no Decreto-Lei 323/83, no tocante a matéria de direitos, liberdade e garantias, salvaguardada a norma do artigo 2.º, n.º 1, que se tem por organicamente inconstitucional, é repetitivo de diplomas legais anteriores, não introduzindo inovações ou modificações relevantes na ordem jurídica vigente. Com efeito, em boa verdade, o Governo não legislou ex novo, antes se limitando a reproduzir, se bem que revestidas aqui e ali de nova roupagem, normas já insertas no ordenamento jurídico, pelo que a «sistematização» intentada redundou afinal em que tudo continuasse na mesma, como se não tivesse existido edição de um acto normativo.

E porque não se considera a matéria contida na norma do artigo 5.º, mesmo a aceitar-se o seu carácter inovatório, o que não se concede, como integrativa das «bases do regime a âmbito da função pública», pode extrair-se a conclusão final de, no Decreto-Lei 323/83, apenas padecer de inconstitucionalidade orgânica, por via das razões já expostas, a disposição do n.º 1 do seu artigo 2.º 3 - Ultrapassada esta primeira questão, cabe agora passar à apreciação das causas de inconstitucionalidade postas na petição e de outras que seguramente se justificam e impõem.

Na avaliação dos problemas que se vão abordar e no exacto enquadramento das normas e princípios constitucionais aplicáveis, hão-de ser tidos em conta, como dados de referência e auxiliares de interpretação, os desenvolvimentos anteriores sobre a génese legislativa e os antecedentes históricos do Decreto-Lei 323/83, o espaço de relacionamento possível entre a Constituição e o sistema concordatário, bem como algumas ideias mestras colhidas na observação do direito comparado.

Prossigamos, pois.

VIII - A Constituição de 1976 e as relações do Estado com as confissões

religiosas e o ensino da religião nas escolas públicas.

1 - Subordinado à epígrafe «Liberdade de consciência, de religião e de culto», o artigo 41.º do texto constitucional dispõe do modo seguinte:

1 - A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.

2 - Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.

3 - Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.

4 - As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.

5 - É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticada no âmbito da respectiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades.

6 - É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei.

Este preceito, em especial nos seus n.os 1, 2 e 5, coincide com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a cuja luz, em conformidade com o disposto no seu artigo 16.º, devem ser interpretados e integrados os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais.

A liberdade de religião traduz-se na liberdade de adoptar ou não uma religião, de escolher uma determinada religião, de fazer proselitismo num sentido ou noutro, de não ser prejudicado por qualquer posição ou atitude religiosa ou anti-religiosa.

O preceito do n.º 4 dá expressão ao princípio da separação entre o Estado e as igrejas, princípio que as leis de revisão constitucional terão de respeitar, por força do disposto no artigo 290.º, alínea c), da Constituição.

No plano da matéria de ensino, que especialmente importa considerar, sob a epígrafe «Liberdade de aprender e ensinar», o artigo 43.º do texto constitucional preceitua assim:

1 - É garantida a liberdade de aprender e ensinar.

2 - O Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.

3 - O ensino público não será confessional.

4 - É garantido o direito de criação de escolas particulares e cooperativas.

Consagra-se no n.º 3 deste normativo o princípio da não confessionalidade do ensino público, enquanto no número antecedente se proíbe ao Estado o dirigismo da educação segundo quaisquer directrizes, nomeadamente de ordem religiosa.

2 - A Constituição afirma não só o princípio da separação entre o Estado e a Igreja, como também, e contrariamente ao texto constitucional de 1933, não concede qualquer referência particular à religião católica, então considerada, não obstante o regime de separação instituído, como «religião tradicional da Nação Portuguesa».

Para além de um esquema de separação aparentemente rígido, a Constituição consagra também a garantia da igualdade da capacidade jurídica, civil e política, independentemente das convicções ou prática religiosa (artigos 13.º, n.º 2, e 41.º, n.º 2).

Como corolários do regime de separação apresentam-se os princípios da não confessionalidade do Estado e da liberdade de organização e independência das igrejas e confissões religiosas. E em matéria de ensino, aquela que especialmente importa ter presente, afirma-se a não confessionalidade do ensino público.

Mas, apesar dos princípios assim consagrados no texto constitucional de 1976, não parece poder afirmar-se que se haja dado acolhida ao regime estatuído na Lei da Separação e na Constituição de 1911, instituindo-se um sistema radical de escola laica idêntico ao ali estabelecido e proibindo todo e qualquer ensino religioso nas escolas públicas.

Com efeito, como desde logo se colhe dos debates da Assembleia Constituinte a que anteriormente se fez menção, ali se entendeu que «a não confessionalidade do ensino oficial abrange os programas oficiais, mas não impede que as diferentes confissões ministrem ensino confessional nos estabelecimentos de ensino oficial aos alunos que, por decisão sua ou de seus pais, assim o pretenderem (cf. proposta de substituição do n.º 3 do futuro artigo 43.º apresentada pelo Grupo Parlamentar do então Partido Popular Democrático na sessão de 14 de Outubro de 1975).

Por outro lado, um entendimento dos princípios da separação do Estado e das igrejas e da não confessionalidade do ensino público que conduzisse, pura e simplesmente, ao banimento do ensino religioso nas escolas públicas (diz-se nas escolas públicas e não das escolas públicas, o que, como é manifesto, traduz realidade inteiramente distinta), tendo em atenção os especiais enquadramentos históricos e culturais da sociedade portuguesa, haveria de redundar em afrontamento ao princípio da liberdade religiosa na sua componente positiva.

Com efeito, a concepção da liberdade religiosa com um mero conteúdo formal, entendida como esfera de autonomia frente ao Estado e reduzida ao livre jogo da espontaneidade social, parece não satisfazer, por insuficiência, as consciências dos nossos dias.

Porque a dimensão real da liberdade, de todas as liberdades e por isso também da liberdade religiosa, depende fundamentalmente das situações sociais que permitem ou impedem o seu desfrute existencial como opções reais, a questão deve centrar-se na transformação do conceito de liberdade autonomia em liberdade situação, isto é, no significado positivo de liberdade enquanto poder concreto de realizar determinados fins que constituem o seu objecto, não só pela remoção dos entraves que impedem o seu exercício, como também pela prestação positiva das condições e meios indispensáveis à sua realização (cf. A.

Fernandez-Miranda Campoamor, «Estado laico y libertad religiosa», Revista de Estudios Políticos, n.º 6, p. 68).

Contudo, se a liberdade religiosa deve entender-se não como uma mera independência, mas como uma autêntica situação social, a separação e a não confessionalidade implicam a neutralidade religiosa do Estado, mas não já o seu desconhecimento do facto religioso enquanto facto social. O Estado não é um ente alheio aos valores e interesses da sociedade, antes constitui um instrumento ao seu serviço, assumindo a obrigação de garantir a formação e o desenvolvimento livre das consciências (católicas ou ateias), e assume esta obrigação em função da procura social.

A neutralidade estatal significa radical indiferença por toda a valoração religiosa do facto religioso (o Estado não valora ou desvalora, em atitude confessional, a consciência laica por oposição à consciência religiosa ou a consciência de certa religião relativamente a uma outra), mas não já enquanto facto constitutivo de uma certa procura social.

Mas a liberdade de religião, enquanto forma positiva de exercício, está intimamente conexionada com a liberdade religiosa negativa, em especial no plano das instituições estaduais e particularmente no domínio do ensino ministrado nas escolas públicas (recorde-se, a propósito, a primeira emenda da Constituição dos EUA e a jurisprudência da Supreme Court).

A não confessionalidade do ensino público apresenta-se como corolário dos princípios da separação e da não confessionalidade do Estado.

Todavia, a neutralidade do Estado não impede que este deixe de criar as condições adequadas à facilitação do exercício de liberdade religiosa à população estudantil que, inscrevendo-se num contexto tradutor de uma certa realidade, não pode ser ignorada como fenómeno social.

Não se trata de proteger ou privilegiar uma qualquer confissão religiosa, mas sim de garantir o efectivo exercício da liberdade religiosa, como consequência de uma situação e de uma exigência social.

Observados os princípios constitucionais que hão-de inspirar a resposta a conceder à problemática sujeita a juízo, vai passar-se à apreciação das diversas questões de constitucionalidade material que se podem suscitar no articulado do diploma posto em crise no pedido.

IX - O Decreto-Lei 323/83 e os princípios da separação do Estado e das

igrejas, da não confessionalidade do ensino público, da liberdade religiosa

e da igualdade.

1 - Seguramente que a Constituição veda toda e qualquer orientação religiosa do ensino público, assim como proíbe que as escolas públicas possam funcionar como agentes do ensino religioso.

Mas não proíbe nem impede que o Estado possa facultar às diversas igrejas, em condições de igualdade, a possibilidade de estes ministrarem ensino da religião nas escolas públicas (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., pp. 256 e 257).

Os princípios constitucionais serão afrontados quando o Estado, quebrando a neutralidade que deve guardar nesta matéria, autoriza que as suas escolas ministrem o ensino de uma qualquer religião, outro tanto não sucedendo já quando o mesmo Estado, enquanto dinamizador dos valores e interesses socialmente legítimos que deve garantir e desenvolver, permite que nas escolas públicas esse ensino seja ministrado pelas confissões religiosas.

Como já se viu, o artigo 2.º, n.º 1, do diploma em causa prescreve que o ensino da religião e moral católicas será ministrado nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não declararem expressamente desejo em contrário.

E aqui se coloca a primeira questão.

2 - O Estado, por força de um tratado internacional (segunda parte do primeiro trecho do artigo XXI da Concordata), obrigou-se a que, em certas escolas públicas, fosse ensinada uma determinada matéria de natureza e conteúdo confessional.

Não existe qualquer impedimento à concretização desse compromisso internacionalmente assumido, a menos que dele resulte ofensa constitucional.

Antes de mais, retomando a linha de pensamento anterior, cabe averiguar se tal ensino é ministrado pelo Estado ou pela Igreja católica.

A caracterização da sua natureza confessional ou estadual há-de resultar dos elementos essenciais que o informam, determinam e condicionam, sem prejuízo de poderem assumir alguma relevância, certos enquadramentos formais que sejam especialmente significativos.

Vão alinhar-se uns e outros, por forma a poder estabelecer-se um grau de prevalência e de identidade relativa.

Assim:

a) A orientação do ensino é da exclusiva responsabilidade da Igreja católica (artigo 4.º, n.º 1);

b) A esta compete a elaboração e revisão dos programas da disciplina [artigo 4.º, n.º 1, alínea a)];

c) Também à Igreja católica pertence a elaboração e sequente edição e divulgação dos manuais de ensino da disciplina, destinados a alunos ou professores [artigo 4.º, n.º 1, alínea b)];

d) Os professores são contratados ou nomeados mediante proposta da autoridade eclesiástica competente (artigo 5.º, n.º 1);

e) Os professores fazem parte do corpo docente dos estabelecimentos de ensino em que prestam serviço, gozando dos direitos e deveres inerentes à sua função docente (artigo 5.º, n.º 2);

f) A disciplina de Religião e Moral Católicas faz parte do currículo escolar normal (artigo 3.º, n.º 1);

g) Está sujeita ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares, não podendo, porém, no que respeita à avaliação de conhecimentos, em caso algum dessa avaliação resultar qualquer efeito negativo sobre a transição de ano (artigo 3.º, n.os 2 e 3);

h) O ensino da disciplina será ministrado aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, ou eles próprios, quando maiores de 16 anos, não declararem expressamente desejo em contrário (artigo 2.º n.os 1 e 2).

Entende-se que a acentuação predominante e verdadeiramente caracterizadora do ensino assim enquadrado aponta para a sua natureza confessional, isto é, trata-se de um ensino ministrado na escola por uma confissão religiosa, e não de um ensino na escola e da escola.

Com efeito, não parecem relevantes os argumentos que, em sentido contrário, se podem extrair do facto de aquela disciplina integrar o currículo escolar, a ausência de declaração negativa traduzir a sua aceitação tácita e os professores, apesar de propostos pela autoridade eclesiástica, serem contratados ou nomeados e pagos pelo Estado.

E não parecem relevantes pelas razões a seguir indicadas.

A integração no currículo escolar não consente outra ilação que não seja a de se pretender, com tal, dar seriedade e rigor à respectiva disciplina. Aliás, o n.º 3 do artigo 47.º da Lei 46/86, de 14 de Outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo), ao dispor que «os planos curriculares dos ensinos básico e secundário integram ainda o ensino da moral e da religião católica, a título facultativo, no respeito dos princípios constitucionais da separação das igrejas e do Estado e da não confessionalidade do ensino pública», é bem revelador de que a Assembleia da República não encontrou nesta integração curricular qualquer vício ou índice de inconstitucionalidade.

O mesmo se poderá dizer, neste domínio, quanto às consequências da inexistência de uma manifestação de vontade de rejeição. Não parece lícito afirmar-se, com efeito, que deste facto possa logo extrair-se a conclusão de o ensino ter natureza estadual. Esta há-de derivar de razões substanciais, e não apenas de puras consequências formais.

Finalmente, o facto de os professores serem contratados ou nomeados e pagos pelo Estado. É irrelevante, desde logo, que o pagamento seja suportado pelo Estado, correspondendo os quantitativos assim despendidos a subsídios concedidos a uma confissão religiosa, se bem que com diferente natureza. O acto de provimento em que se traduz o contrato ou a nomeação dos professores perde todo o significado quando se recorda a sua dependência da proposta da autoridade eclesiástica competente. O Estado paga ao professor e, por lhe pagar e para lhe pagar, necessita de criar um esquema de controle financeiro do respectivo pagamento, nisso residindo afinal a razão de ser do acto de provimento.

Mas o traço essencial desta situação, que não é própria de um exercício funcional no Estado, situa-se na disponibilidade que, relativamente ao professor e à manutenção ou perda do seu estatuto, é conferida à autoridade eclesiástica.

Aliás, revelar-se-ia de todo inconsistente a conclusão de fazer depender a natureza do ensino, de estadual ou confessional, da existência ou inexistência de um puro acto formal e burocrático como é, no rigor das coisas, um acto de provimento.

De facto, parece não ser possível defender-se que o mesmo ensino, com idêntico programa, conteúdo e duração, ministrado na mesma escola, aos mesmos alunos e pelo mesmo professor sempre proposto pela Igreja e suportado financeiramente pelo Estado, haja de ser qualificado como estadual ou confessional, consoante exista ou não exista um acto de provimento, isto é, um acto formal, gerador de puras consequências financeiras.

As poderosas razões de ordem substancial que se alinharam superam os obstáculos formais que podiam ser apresentados contra a conclusão já alcançada. Na verdade, o diploma em causa não institui um ensino religioso que possa haver-se como tarefa pública, como tarefa do Estado, como função da própria escola. Institui, sim, um ensino religioso, ministrado pela Igreja e da sua exclusiva responsabilidade.

Poder-se-á questionar se as soluções legislativas adoptadas se revelam de todo congruentes e harmónicas, mas sempre haverá de reconhecer-se que nenhuma das contestações opostas às normas do diploma em controvérsia seja susceptível de, no domínio agora em apreço, gerar qualquer inconstitucionalidade.

3 - Outro tanto, porém, não pode afirmar-se no tocante ao disposto no seu artigo 2.º, n.º 1, quando confrontado com o princípio da liberdade religiosa.

A propósito da pesquisa efectuada em matéria de inconstitucionalidade orgânica, houve ensejo de se acompanhar a génese histórica deste preceito situada no artigo XXI da Concordata e na base VII da Lei 4/71.

Na sua formulação actual impõe-se o ensino da religião e moral católicas aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, ou a eles próprios, se maiores de 16 anos, não declararem expressamente desejo em contrário.

Desta forma impõe-se uma declaração de sentido negativo para aquele ensino não se tornar obrigatório, interpretando-se depois o silêncio, traduzido em inexistência de qualquer manifestação de vontade, como aquiescência ao respectivo recebimento. Através deste dispositivo obriga-se, eventualmente com defesa e em protecção das respectivas convicções religiosas, a exteriorização de uma manifestação de vontade, que se desejaria silenciar e manter no domínio da estrita reserva pessoal.

Ora, toda a liberdade de não fazer - no caso em presença, a liberdade negativa de religião - é violada quando se exige e impõe um acto, um facere (a manifestação de uma declaração de vontade) como condição indispensável e necessária à sua usufruição. O exercício dos direitos (direito à religião) poderá eventualmente estar dependente da prática de qualquer acto (requerimento, declaração, etc.), mas não já o exercício das liberdades, de uma liberdade de não fazer, que consiste justamente em não agir, sendo assim, quanto a estas, de todo inaceitável qualquer exigência material que condicione a sua prática e exercício.

Na maioria das situações, os que produzem tal declaração agirão, por certo, contrafeitos, mas a tal moralmente coagidos pela ameaça da concretização de um evento - o ensino da religião e moral católicas - que envolveria ou poderia envolver violentação das suas convicções ou opções religiosas.

Tudo isto traduz colisão com o já afirmado princípio da liberdade religiosa, em cujas vertentes específicas se inscreve o direito de escolher livremente a confissão que se pretende professar ou em recusar qualquer confissão e o direito de guardar reserva pessoal sobre tal escolha, mantendo-a indevassável no foro íntimo.

E, assim sendo, torna-se irrecusável a consequente inconstitucionalidade, por violação do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 41.º da Constituição.

4 - Em passo antecedente, assinalou-se que a dimensão real da liberdade religiosa depende fundamentalmente das situações sociais que permitem ou impedem o seu desfrute existencial como opções reais, competindo ao Estado, enquanto instrumento ao serviço dos valores e interesses da sociedade, assumir a obrigação de garantir a formação e o desenvolvimento livre das consciências, nomeadamente no plano da sua vivência religiosa.

O Estado, usando a formulação utilizada no diploma em apreço, «tendo em conta o dever de cooperação com os pais na educação dos filhos, bem como os seus deveres gerais em matéria de ensino, garante nas suas escolas o ensino das ciências morais e religiosas» (cf. artigo 1.º). E este dever de cooperação, que se radica em norma constitucional cogente [artigo 67.º, n.º 2, alínea c)], revela-se tanto mais importante quando se tem presente que, entre nós, a procura do ensino se dirige quase exclusivamente para o ensino ministrado nas escolas públicas, além do mais pela razão de o ensino particular e cooperativo não beneficiar de um grau de subsidiação do Estado idêntico àquele que é concedido ao ensino público.

À luz deste entendimento, e como já antecedentemente se deixou exposto, não existe qualquer impedimento constitucional para o facto de as igrejas ministrarem ou poderem ministrar o ensino da religião nas escolas públicas, podendo até dizer-se que ao Estado, para além de um mero consentimento, incumbe o dever de proporcionar às diversas confissões o ensino das respectivas religiões, nas escolas públicas, aos alunos que expressamente manifestarem a vontade de o receber.

Todavia, o Estado não pode deixar neste domínio de conceder acatamento ao princípio da igualdade, não sendo assim constitucionalmente legítimas distinções injustificadas entre igrejas e entre crentes de diversas religiões (estes, aliás, enquanto individualmente considerados, sempre têm de se haver por indissoluvelmente associados às confissões que professam, por via do influxo institucional delas recebido).

Ora, à Igreja católica, por força de obrigações internacionais em que o Estado Português se constituiu, são assegurados, nomeadamente através das normas do Decreto-Lei 323/73, em matéria de ensino religioso nas escolas públicas, benefícios e vantagens não concedidos a qualquer outra confissão religiosa.

Não obstante a esmagadora maioria da população portuguesa que partilha convicções religiosas se inscrever no seio desta religião (cf. Luís França, Comportamento Religioso dos Portugueses, Lisboa, 1980, p. 9), o certo é que outras existem, algumas mesmo com muitos milhares de crentes, sendo, quanto a elas, neste domínio, a atitude do Estado inteiramente omissiva.

Mas esta circunstância, de que ressalta com nitidez o tratamento diversificado de que desfruta a Igreja católica, fruto da realidade histórica e sociológica em que esta se inscreve, não é susceptível de conduzir, atenta esta realidade, a uma declaração de inconstitucionalidade de qualquer das normas questionadas por violação do disposto no artigo 13.º da Constituição, na medida em que o Estado, ao assim legislar, apenas deu cumprimento a um dever que sobre ele impende.

Simplesmente, dir-se-á que o Estado não pode abster-se de, no tocante às demais confissões, lhes conceder um tratamento afim, tendo em conta, é certo, as circunstâncias próprias de cada uma delas (dimensão quantitativa, espaço geográfico ocupado, disseminação entre a população escolar, etc.), sob pena de não respeitar o princípio da igualdade e, por via omissiva, violar o texto constitucional.

A este propósito, Jorge Miranda (ob. cit., pp. 134 e 135) refere que diversos diplomas do nosso ordenamento jurídico (entre os quais se incluem os respeitantes ao ensino religioso nas escolas públicas), «se circunscrevem à religião católica e, assim, deixam as demais confissões em situações de facto que, por vezes, se tornam de desfavor. Nessa medida revelam-se criticáveis. A crítica a fazer não é, contudo, por preverem assistência e ensino religioso - porque o silêncio ou a neutralidade negativa perante a religião na prática redunda em posição contra a religião; a crítica é por não organizarem também, em colaboração com as confissões não católicas e na medida das suas possibilidades, assistência e ensino das respectivas religiões.

Aquelas leis não são, pois, inconstitucionais por acção.

São, ou podem ser, inconstitucionais por omissão - e, como tais, podem ser apreciadas pelo Tribunal Constitucional (art. 283.º da Constituição) para efeito de ele comunicar aos órgãos legislativos a necessidade constitucional de complementação e adequação» (itálicos nossos).

Todavia, e porque o conhecimento da insconstitucionalidade por omissão se encontra disciplinado em termos próprios e autónomos no texto constitucional, não pode esta matéria inscrever-se no âmbito de cognição do presente processo.

X - A decisão Nestes termos, decide-se:

a) Não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º do Decreto-Lei 323/83, de 5 de Julho;

b) Declarar a insconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 2.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, na parte em que exige daqueles que não desejam receber o ensino da religião e moral católicas uma declaração expressa em tal sentido, por violação do disposto nos artigos 168.º, n.º 1, alínea b), e 41.º, n.os 1 e 3, da Constituição;

c) Declarar a insconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos n.os 2 e 3 do mesmo artigo 2.º, enquanto representam mera consequência da parte da norma que, anteriormente, foi havida por inconstitucional.

Lisboa, 27 de Outubro de 1987. - Antero Alves Monteiro Dinis - Messias Bento [vencido quanto às alíneas b) e c), pelos fundamentos constantes da declaração de voto que junto] - Luís Nunes de Almeida [vencido quanto à conclusão da alínea a), pelos fundamentos constantes da declaração de voto junta] - José Martins da Fonseca (vencido nos termos da declaração junta) - José Manuel Cardoso da Costa [vencido quanto às alíneas b) e c) da decisão, pelas razões constantes, em particular, da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Messias Bento. Mantive assim, quanto ao conjunto de questões apreciadas no presente acórdão, e por não ver razão para alterá-la, a posição que já assumira ao subscrever o parecer 17/82 da Comissão Constitucional - parecer de cujo teor também se faz eco a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Raul Mateus] - Mário de Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - José Magalhães Godinho [vencido quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração de voto junta] - Vital Moreira [vencido quanto à decisão da alínea a) da conclusão, conforme declaração de voto junta] - Raul Mateus (vencido nos termos da declaração de voto junta) - Armando Manuel Marques Guedes [vencido, quanto às alíneas b) e c) das conclusões, nos termos da declaração de voto do Exmo. Sr. Conselheiro Messias Bento].

Declaração de voto

Votei vencido na parte em que se declara a inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83, de 5 de Julho, e, consequencialmente, dos n.os 2 e 3 do mesmo preceito legal.

As razões são as que seguem.

1 - O artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83, de 5 de Julho, preceitua que, nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas se ministrará o ensino da religião e moral católicas «aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não declararem expressamente desejo em contrário». E o n.º 2 acrescenta que, sendo os alunos maiores de 16 anos, a eles compete fazer tal declaração.

A necessidade de fazer declaração de «desejo em contrário» não se identifica com a exigência de um pedido de isenção. Do que tão-só se trata é de, no acto da matrícula, assinar um impresso que contém a declaração de que não se pretende o ensino da religião e moral católicas (cf. anexos I e II da Portaria 333/86, de 2 de Julho, que regulamenta o ensino da religião e moral católicas nas escolas do ensino primário).

Entre este regime e o da Lei 4/71, de 21 de Agosto, não existem diferenças significativas.

De facto, dispondo o n.º 4 da base VII da lei que, no acto da matrícula, se declarará se sim ou não se pretende o ensino da religião e moral, o que aí se exige é, em todos os casos, uma declaração expressa (positiva ou negativa) a respeito do desejo de um tal ensino; no artigo 2.º do Decreto-Lei 323/83 exige-se declaração expressa tão-somente quando se não deseja receber aquele ensino.

Por conseguinte, o que há de novo no mencionado artigo 2.º é a dispensa da declaração expressa de que se pretende o ensino da religião e moral católicas.

O legislador, tendo em conta «a especial representatividade da população católica no País» (cf. citado artigo 2.º, n.º 1), presumiu que os alunos, na sua maior parte, pretenderão ter aulas de tal disciplina e, por isso, dispensou uma declaração expressa ali onde a julgou dispensável, por, de antemão, se saber qual ia ser o seu conteúdo.

Assim, pois, o mencionado artigo 2.º, n.º 1 - para além de deixar intocada, no fundamental, a disciplina já constante do n.º 4 da base VII da Lei 4/71 -, quando inovou, fê-lo em aspectos que «não respeitam ao teor essencial» da matéria versada pelo diploma em que tal norma inscreve.

Deste modo, a inovação em causa não representa invasão da reserva de competência legislativa da Assembleia da República por parte do Governo.

O artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83 não viola, por isso, o artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.

2 - O mencionado artigo 2.º, n.º 1, também não viola o artigo 41.º, n.os 1 e 3, da Constituição.

Este preceito constitucional consagra a liberdade de consciência, de religião e de culto, dispondo, no n.º 1, que tal liberdade é inviolável e prescrevendo, no n.º 3, que «ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou práticas religiosas [...], nem ser prejudicado por se recusar a responder».

A liberdade religiosa reconduz-se, assim, fundamentalmente a uma imunidade de coacção, pois que ninguém - Estado incluído - pode impor a outrem o acto de fé.

A liberdade de religião - designadamente quanto a não se poder ser perguntado acerca das suas convicções religiosas - em nada é violada pelo facto de se exigir uma declaração expressa de que se não quer ter aulas de Religião e Moral Católicas. Do mesmo modo que o não seria se, em vez disso, àqueles que quisessem tais aulas se exigisse declaração expressa nesse sentido.

Competindo aos pais educar os filhos (cf. artigo 36.º, n.º 5, da Constituição) e podendo fazê-lo de acordo com as suas convicções religiosas (cf. artigo 2.º do Protocolo 1 Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem), e cumprindo ao Estado «cooperar com os pais na educação dos filhos» [cf. alínea c) do artigo 67.º da Constituição], o ensino, nas escolas públicas, terá - como se mostra no acórdão - de incluir aulas de Religião e Moral Católicas para os alunos que desejarem frequentá-las. É, por isso, necessário saber quantas turmas têm de formar-se em cada estabelecimento de ensino para a ministração dessas aulas - o que, naturalmente, requer que, no acto da matrícula, os alunos declarem, expressa ou tacitamente, se desejam ou não tal ensino.

Uma gestão racional dos estabelecimentos públicos de ensino não suportaria, de facto, uma solução que se traduzisse na existência de aulas de Religião e Moral Católicas para serem frequentadas por quem, em cada momento, se dispusesse a fazê-lo, pois que ou haveria de haver aulas - com tudo o que isso implica (professores, salas e tempos de aulas afectados a esse fim) - de mais ou de menos, com a consequência, neste último caso, de haver alunos que não veriam satisfeito o seu direito a receber educação religiosa nas escolas.

A liberdade religiosa pode exercer-se de vários modos. Pois, quando está em causa o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas, o modo menos adequado para exercer tal liberdade seria, certamente, como decorre do que acaba de dizer-se, o que se traduzisse em não se exigir qualquer declaração destinada a esclarecer quantos alunos querem um tal ensino.

Havendo necessidade de uma declaração, seja dos pais dos alunos que pretendem frequentar as aulas de Religião e Moral Católicas, seja daqueles que não querem frequentá-la, o legislador - pelas razões que ele próprio indicou - optou por exigir uma declaração expressa destes últimos, contentando-se, quanto aos primeiros, com uma declaração tácita. Nisso não se pode, porém, ver uma qualquer forma de pressão susceptível de coarctar a liberdade de decisão daqueles a quem se exige aquela declaração expressa, em termos de tornar a exigência constitucionalmente ilegítima.

De facto, a exigência de uma tal declaração - ou seja, da declaração de que se não pretende o ensino da religião e moral católicas - não torna particularmente oneroso o exercício da liberdade religiosa. O que se exige não é qualquer requerimento especial a pedir dispensa da frequência da respectiva disciplina;

exige-se tão-somente que, no acto da matrícula, se assine um impresso que contém a declaração de que se não quer o ensino em causa.

Isto - repete-se - não representa qualquer forma de coacção.

Não há, assim, como se disse, violação da liberdade religiosa. - Messias Bento.

Declaração de voto

1 - Votei vencido, salvo na parte em que se declarou a inconstitucionalidade do artigo 2.º do Decreto-Lei 323/83, por entender que as normas constantes do diploma em apreço, ao estabelecerem que o ensino da religião e moral católicas é ministrado pelas escolas públicas, integrando o respectivo currículo escolar normal, a expensas do Estado e através de agentes seus, violam o princípio da separação das igrejas do Estado, consignado no n.º 4 do artigo 41.º, o princípio da não confessionalidade do ensino público, vertido no n.º 3 do artigo 43.º, e o princípio da igualdade, reconhecido no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

2 - De acordo com a lei fundamental, «as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado», e é «garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão», sendo certo que «o ensino público não será confessional», não podendo igualmente o Estado «atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas».

Da conjugação destes preceitos resulta inequívoco que não é legítimo que o Estado assuma como coisa sua, adoptando-o oficialmente, o ensino de qualquer religião. Tal ensino é livre - garante-o a Constituição -, mas tão-só quando praticado no âmbito da respectiva confissão (artigo 41.º, n.º 5), não podendo a escola pública ministrá-lo ao mesmo título que as restantes disciplinas curriculares.

Ora, o sistema consagrado no decreto-lei em análise contradiz frontalmente estas mencionadas disposições constitucionais.

Com efeito, o que nele se estabelece não é a faculdade de as diversas confissões religiosas ministrarem o ensino da sua religião aos alunos das escolas públicas que assim o desejarem, utilizando os edifícios dessas escolas e, eventualmente, recebendo subsídio do Estado para o efeito, o que ainda seria compatível com o texto constitucional. É, antes, o ensino da religião e moral católicas - e só dessa - aos alunos que não declararem expressamente que o não desejam, sendo certo que tal disciplina «faz parte do currículo escolar normal nas escolas públicas», «está sujeita ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares» e é ministrada por professores «contratados ou nomeados» pelas autoridades públicas e que «fazem parte do corpo docente dos estabelecimentos de ensino em que prestam serviço», pelo que são verdadeiros e próprios agentes do Estado.

Os argumentos que se poderiam alinhar no sentido de sustentar que o ensino da religião e moral católicas previsto no diploma em apreço não é um ensino ministrado escola pública, mas um ensino ministrado na escola pela confissão religiosa, afiguram-se, salvo o devido respeito, totalmente improcedentes.

É bem verdade que «a orientação do ensino da religião e moral católicas é da exclusiva responsabilidade da Igreja Católica», à qual compete «a elaboração e revisão dos programas da disciplina», bem como «a elaboração e sequente edição e divulgação dos manuais de ensino», e que os professores são nomeados ou contratados «mediante proposta da autoridade eclesiástica competente».

Tal, porém, em nada altera o facto de a disciplina integrar o currículo escolar normal e de os respectivos professores serem agentes do Estado.

É que ninguém teria certamente dúvidas em considerar chocantemente inconstitucional um diploma em que, por absurdo, se viesse a estabelecer que a orientação do ensino das disciplinas, por exemplo, de Filosofia e de Biologia passava a ser da exclusiva responsabilidade de uma certa igreja, à qual caberia elaborar os correspondentes programas e propor a nomeação dos respectivos professores. Ora, a Constituição tanto proíbe a confessionalização do ensino público através da assunção do ensino religioso difuso - o que aconteceria neste último caso - como através do ensino religioso directo - como acontece no caso vertente.

Insiste-se, pois: nada pode escamotear a verdade insofismável de o ensino da disciplina em causa integrar o currículo escolar normal, pelo que o Estado o assume como res sua; e nada pode impedir que se apresente como evidente a situação de o Estado ter agentes seus cujo provimento é proposto pelas autoridades próprias de uma confissão religiosa.

Tudo isto, como se afirmou, em frontal e flagrante violação dos princípios da separação das igrejas do Estado e da não confessionalidade do ensino público.

3 - Acresce ainda, como decorre, aliás, do texto do acórdão, que o diploma em apreço estabelece uma situação de privilégio para uma confissão religiosa, dado que a faculdade de ministrar nas escolas públicas o ensino das respectivas religiões não é conferida às restantes confissões.

Por esse motivo, verifica-se uma manifesta violação do princípio da igualdade.

Na verdade, a existência da verificada desigualdade não se configura como uma inconstitucionalidade por omissão, porquanto nenhuma disposição constitucional constitui o Estado no dever jurídico de ministrar - ou, mesmo, permitir que se ministre a expensas suas - o ensino de qualquer religião nas escolas públicas.

Por outro lado, não é legítimo sustentar que não existe qualquer violação do princípio de igualdade, com fundamento no facto de a maioria da população portuguesa professar a religião católica. É que, desde logo, a regra da maioria é manifestamente inaplicável para o efeito de inutilizar a operatividade do princípio da igualdade, dado que as situações que com este princípio se pretende salvaguardar, em primeiro linha, são exactamente aquelas situações de desfavor que, em regra, afectam as minorias (cf. n.º 2 do artigo 13.º).

Assim, a simples afirmação de que a maioria da população professa a religião católica é totalmente irrelevante para o efeito que daí se pretende extrair. Aliás, tal situação nunca poderia impedir que se devesse proporcionar o ensino religioso a outras confissões, sempre que numa dada escola existisse um número mínimo de alunos interessados nesse ensino.

É que o princípio da igualdade - ao exigir o tratamento igual do que é igual e o tratamento desigual do que é desigual - justificaria, por exemplo, que onde houvesse 300 alunos a pretender o ensino de uma dada religião e 30 alunos a pretender o ensino de uma outra se constituíssem 10 turmas para o ensino da primeira e apenas 1 turma para o ensino da segunda. Mas proscreve, com certeza, o sistema instituído no diploma em apreço, segundo o qual só uma confissão religiosa é admitida a ministrar o ensino da sua religião na escola pública.

Existe, assim, também, violação do princípio da igualdade.

4 - Às considerações que atrás foram feitas não é possível ripostar com o facto de existir uma Concordata entre o Estado Português e a Santa Sé.

Não cabe, neste momento, averiguar se algumas disposições deste instrumento jurídico se não encontram hoje em contradição com a Constituição, como, aliás, se admite no texto do acórdão.

Todavia, cumpre assinalar que ao Tribunal Constitucional apenas compete, neste processo, averiguar da conformidade das normas constantes do diploma em análise com o preceituado na lei fundamental, sendo totalmente irrelevante a circunstância de elas se encontrarem em sintonia com o disposto na Concordata.

É que a Concordata não tem valor constitucional, nem existe na Constituição Portuguesa disposição semelhante à do artigo 7.º da Constituição Italiana, disposição essa que legitima que, na ordem interna daquele país, seja possível consagrar soluções idênticas ou aproximadas às do Decreto-Lei 323/83. Não se acompanha, portanto, o acórdão enquanto procura, no fundo, através de uma divagação histórica, demonstrar que existe na Constituição Portuguesa uma norma que dela não consta efectivamente, ou seja, uma norma de conteúdo idêntico à do artigo 7.º da Constituição Italiana.

5 - Concluindo, como atrás se concluiu, pela inconstitucionalidade material das normas impugnadas, dispensável se torna averiguar se elas se encontram feridas de inconstitucionalidade orgânica, sendo certo, porém, que a resposta seria em todo o caso positiva, pelo menos, no que se refere a algumas dessas normas. - Luís Nunes de Almeida.

Voto de vencido

Aceitando-se que existe uma obrigação constitucional imposta ao Estado de criar condições para que todas as religiões possam ministrar o respectivo ensino nas escolas, só existe inconstitucionalidade por omissão enquanto tal não se verificar em relação a todas elas.

Ora, no caso, só a favor da Igreja católica se criaram aquelas condições.

Desta forma, embora seja irrecusável que a maior parte dos portugueses professa a religião católica, passou a existir uma discriminação a favor da Igreja católica, ou seja, uma situação de desigualdade entre a Igreja católica e as demais.

Daí estarmos perante caso de inconstitucionalidade por violação do princípio de igualdade, sendo a inconstitucionalidade por acção.

Por estes fundamentos, entendi que deviam ser declaradas inconstitucionais as normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º do Decreto-Lei 323/83, por ofensa do princípio da igualdade.

Lisboa, 27 de Outubro de 1987. - José Martins da Fonseca.

Declaração de voto

O Decreto-Lei 323/83, de 5 de Julho, começando por dizer, no artigo 1.º, que, tendo em conta o dever de cooperação com os pais na educação dos filhos, bem como os seus deveres gerais em matéria de ensino, garante nas suas escolas o ensino das ciências morais e religiosas nos termos deste diploma, acaba por regular nos restantes artigos apenas o ensino da religião e moral católicas nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas.

Vejamos as suas principais disposições:

a) De acordo com a especial representação da população católica do País, ministrar-se-á o ensino da religião e moral católicas nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não declararem expressamente desejo em contrário; sendo maiores de 16 anos, compete aos próprios alunos fazer essa declaração (artigo 1.º).

b) «O ensino da religião e moral católicas será igualmente assegurado, com a índole apropriada, nos termos do presente diploma, nas actuais escolas do magistério e nas destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico, com o carácter de disciplina facultativa dirigida à natureza das respectivas funções» (artigo 6.º).

c) «A disciplina de Religião e Moral Católicas faz parte do currículo escolar normal», estando «sujeita ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares», com a única excepção de que da avaliação de conhecimentos não pode resultar «qualquer efeito negativo sobre a transição de ano» (artigo 3.º).

d) Os professores da disciplina de Religião e Moral Católicas, contratados ou nomeados mediante proposta da autoridade eclesiástica competente, «fazem parte do corpo docente dos estabelecimentos de ensino em que prestam serviço, gozando dos direitos e deveres inerentes à sua função docente» (artigo 6.º).

Reconhece o acórdão que, neste domínio, o Estado não pode deixar de respeitar o princípio da igualdade entre as diversas confissões religiosas. Simplesmente, não extraiu daí a conclusão que se impunha: precisamente a da inconstitucionalidade das normas em questão, por violação desse princípio, consagrado no artigo 13.º da Constituição.

Nem se diga que a inconstitucionalidade é por omissão (artigo 283.º da Constituição), isto é, por falta de legislação paralela quanto às outras confissões religiosas.

É que não nos encontramos aqui num domínio em que haja para o Estado um «dever especial de legislar» (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., 1985, n.os I e II das anotações ao citado artigo 283.º). Na verdade, dado o princípio da não confessionalidade do Estado, consagrado na primeira parte do n.º 4 do artigo 41.º da Constituição - «as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado» -, o Estado não está «especialmente obrigado» a legislar sobre o ensino, nas escolas públicas, de qualquer religião.

E daí outra inconstitucionalidade do diploma, em consequência da violação do citado artigo 41.º, n.º 4, primeira parte, por parte dos seus artigos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º A acrescer a estas, mais uma inconstitucionalidade do artigo 2.º - essa declarada pelo acórdão -, na parte em que esse preceito faz depender a não submissão ao ensino da religião e moral católicas de declaração em que se diga expressamente que não se deseja o ensino dessa disciplina. Aí há, com efeito, como o acórdão concluiu, violação do disposto nos n.os 1 e 3 daquele artigo 41.º (liberdade de religião), para além da também declarada inconstitucionalidade orgânica. - Mário de Brito.

Declaração de voto

Votei o acórdão mas só na parte em que julgou inconstitucional a norma do artigo 2.º, e seus números, do Decreto-Lei 323/83, não aprovando as demais conclusões e fundamentos do acórdão, pois votei igualmente pela inconstitucionalidade orgânica e material das demais normas do decreto-lei em apreço, pelas razões que passo a expor.

«Em consequência da explícita afirmação constitucional, sem qualificações, do princípio da separação entre o Estado e as igrejas, e por violarem directamente, tornaram-se inconstitucionais e deixaram portanto de vigorar (artigo 293.º) algumas normas da Concordata - se não mesmo o próprio sistema concordatário -, designadamente: [...] o artigo 21.º (quando dispõe que o ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, e quando obriga o Estado a ministrar, por sua conta, o ensino da religião católica e a assegurar a prática dos seus preceitos nos asilos, orfanatos e estabelecimentos e institutos oficiais de educação de menores e de correcção ou reforma) [...]» (Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., 1985, pp. 251-252.) Como é óbvio, a mesma consequência cai sobre as normas de toda a legislação anterior à Constituição de 1976 que, ao abrigo da Concordata e daquela legislação - v. g. as Leis n.os 4/71 e 5/73 -, tem regulado como encargo do Estado o ensino da religião católica nas escolas públicas, e, até, apesar de posterior à entrada em vigor da Constituição, o Decreto-Lei 323/83, em causa neste processo, uma vez que no seu preâmbulo se declara que, «não se tendo ainda procedido à regulamentação do preceito concordatário no que respeita à leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas, a não ser de forma dispersa e fragmentária, julga-se oportuno preencher a lacuna, para se sistematizar e completar a execução do princípio fixado». Quer dizer que o decreto-lei em apreço pretende regulamentar as disposições da Concordata que, por força do artigo 293.º da Constituição de 1976, se não mantêm em vigor, que caducaram, por contrárias à nova Constituição e aos seus princípios.

A meu ver, não pode colher o argumento de que o Tribunal se não pode pronunciar pela inconstitucionalidade da Concordata e de toda a legislação produzida à sua sombra, por tal não constar do pedido e, em sede de fiscalização abstracta, o tribunal só pode pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade de normas referidas no pedido, e neste caso o pedido não as contempla.

É que não se trata de declarar a sua inconstitucionalidade. Trata-se apenas de respeitar o comando imposto pela Constituição quando declara no seu artigo 293.º que o direito anterior só se mantém em vigor se não for contrário à Constituição e aos seus princípios.

Se, pois, o Tribunal, à força de não poder basear na Constituição a constitucionalidade das normas do decreto em causa, se apoia na Concordata ou no «sistema concordatário», o que a tanto monta, então será o Tribunal a quem está pela Constituição atribuída a competência para apreciar a inconstitucionalidade a fundamentar o seu juízo, saltando por cima de um comando constitucional como se não fosse um obstáculo, um direito anterior à Constituição e que esta não quis que fosse mantido em vigor em contrário à Constituição e aos seus princípios! Isto seria no mínimo impensável.

Quando o Tribunal Constitucional, no exercício das suas competências, depara, para avaliar da constitucionalidade de uma norma, com a necessidade de se apoiar em direito anterior, e que esse direito não é conforme à Constituição e aos seus princípios, não é necessário que a Constituição ou a Lei Orgânica do Tribunal o digam, para que ele possa, oficiosamente, declarar que tal direito não pode ser invocado porque se não mantém, e não se mantém porque foi a própria Constituição que assim o declarou, considerando-o caducado. Não há, pois, que fazer qualquer declaração de inconstitucionalidade desse direito anterior, apenas há que constatar que ele caducou e, como tal, que não pode, nem deve, o Tribunal Constitucional apelar para ele.

Como escreve Jorge Miranda (a p. 119 de A Constituição de 1976, Petrony, 1978), ao tratar das normas ordinárias anteriores à Constituição, as regras a invocar são:

Quando não contrárias à Constituição - subsistência;

Quando contrárias à Constituição - cessação da vigência por caducidade, como consequência de inconstitucionalidade superveniente [...] E mais adiante explicita:

Quanto às normas de direito ordinário anterior, essas também não podem ser aplicadas pelos tribunais [por maioria de razão pelo Tribunal Constitucional, dizemos nós] e, venham ou não a ser declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral, não produzem mais efeitos a partir de 25 de Abril de 1976, data da entrada em vigor da Constituição (salvo o respeito dos casos julgados nos termos do artigo 281.º, n.º 2).

E acrescenta ainda:

A inconstitucionalidade superveniente exprime uma valoração negativa da ordem jurídica, moldada por novos princípios ou normas constitucionais, relativamente à lei anterior. É essa valoração que determina a cessação da vigência da lei, e determina por caducidade e não por negação [itálico nosso], pois que, em face da sua incompatibilidade com a Constituição, doravante a lei deixa de ter uma condição intrínseca de subsistência, independentemente de qualquer acto de vontade especificamente dirigido à sua eliminação.

Ora, como é por de mais sabido, os casos de caducidade não carecem de, para ser apreciados, ser apontados em contestação, nem mesmo que se tenha alegado na petição que a acção é atempada, pois, de acordo com a alínea c) do artigo 474.º do Código de Processo Civil, eles são de conhecimento oficioso no Tribunal, pelo que a petição deve ser liminarmente indeferida quando se verificar a caducidade.

O que bem demonstra, se se trata de direito ordinário caducado por virtude de, entretanto, ter entrado em vigor a Constituição de 1976, não poder o Tribunal, e muito menos o Constitucional, que é o zelador da constitucionalidade, apoiar-se em direito caducado para o não declarar ferido de inconstitucionalidade, e logo inaplicável, como é o caso no pedido que se está apreciando.

Há quem sustente que a Concordata continua em vigor, porquanto o Decreto-Lei 187/75, de 25 de Março, publicado no Diário do Governo, de 4 de Abril, aprovou para ratificação o Protocolo Adicional à Concordata de 7 de Maio de 1940, e foi assinado no Vaticano em 15 de Fevereiro de 1975, declara, na sua cláusula II, que se mantêm em vigor as demais cláusulas, excepto a XXIV, que aquele Protocolo alterara, da Concordata.

Mas há que não esquecer dois pontos: primeiro, que, quando foi assinado o Protocolo Adicional, ainda nem sequer estava em discussão na Assembleia Constituinte - nem esta sequer estava eleita - o projecto de que resultou a Constituição, pois este foi aprovado em 2 de Abril de 1976 e a Constituição entra em vigor em 25 de Abril de 1976, pelo que a inconstitucionalidade é superveniente em relação à data quer da assinatura da Concordata quer da aprovação do decreto-lei que aprovou para ratificação o Protocolo Adicional; segundo, que, entretanto, essa declaração aposta no Protocolo Adicional não pode sobrepor-se à disposição constitucional do artigo 293.º e que, além disso, não estava na mente do Estado Português, ao deixar que fosse posta aquela declaração no Protocolo Adicional, que ela pudesse vir a significar que seria confessional o ensino público em Portugal, de forma obrigatória ou equivalente, e obstasse ao propósito, que já era conhecido, de romper com todas as disposições constitucionais da Concordata de 1933 que possibilitavam o ensino religioso nas escolas públicas por forma obrigatória ou equivalente. E nunca se poderia considerar que, pelo facto de no Protocolo se conter tal declaração, ficava sanada a inconstitucionalidade de que a Concordata estivesse eivada.

Até, depois de publicado o Decreto-Lei 187/75, na sessão da Assembleia Constituinte de 14 de Outubro do mesmo ano, ao usar da palavra sobre o problema então em debate do projecto dos artigos 28.º e 29.º da Constituição, referentes ao ensino, o deputado Sottomayor Cardia, defendendo que a melhor forma de assegurar o carácter laico do ensino público era a de declarar que «o ensino público não será confessional», citou um artigo publicado na imprensa semanas antes, da autoria de Salgado Zenha, e no qual ele declarava que «deverá ser autorizado nas escolas públicas o ensino das religiões, a cargo das respectivas igrejas, desde que este seja totalmente voluntário e independente de qualquer declaração escrita ou autorização no curriculum ou honorários escolares». E Salgado Zenha foi o signatário, em nome do Estado Português, do Protocolo Adicional à Concordata de 7 de Maio de 1940! Portanto, embora admitindo o ensino de religiões (e não só de uma religião), ainda Zenha entendia que ele só podia ser autorizado se totalmente voluntário, logo a ser assistido por quem o quisesse, sem necessidade de qualquer declaração e só por quem o quisesse, a cargo das igrejas, portanto sem nenhum encargo para o Estado, e independente de declaração escrita, portanto, sem que ninguém fosse obrigado a pedir isenção ou declarar não querer seguir tal ensino. Ora, o decreto em apreço não seguiu nenhuma dessas condições, antes é a negação das mesmas.

De resto, é óbvio que o modelo das relações entre igrejas e Estado não é hoje o mesmo que era em 1933, pois a filosofia de ambas as Constituições, de 1933 e 1976, é diametralmente oposta e não pode hoje sustentar-se a manutenção da vigência de normas da Concordata que desrespeitam a Constituição da República Portuguesa.

A Concordata é uma convenção internacional e, como tal, deve submeter-se à Constituição, e, se tal não acontecer e onde não acontecer, passa a ser inconstitucional.

A Constituição estabeleceu um regime de separação que pode bem classificar-se de quase rígido. Com efeito, o artigo 13.º, n.º 2, dispôs que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da religião; no artigo 41.º, n.º 2, declara que ninguém pode ser perseguido, privado de direito ou isento de deveres cívicos por causa das suas convicção ou prática religiosas e, quando fala de igrejas, não se faz qualquer referência especial a uma delas, englobando-as todas no mesmo tratamento, colocando-as todas em pé de igualdade. É óbvio - é corolário lógico - que, se, face ao artigo 13.º, n.º 2, ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito, isento de qualquer dever em razão da religião, por maioria de razão nenhuma religião, nem nenhum dos seus membros, pode ser privilegiada, beneficiada, prejudicada de qualquer direito, ou isenta de qualquer dever, sem que o mesmo se verifique com as demais religiões, pois tal só é admissível nos Estados que, constitucionalmente, adoptem uma religião oficial e não estatuam a separação das igrejas - todas elas - e outras comunidades religiosas - todas elas - do Estado. Essa não é a posição do Estado Português que resulta de todos os números do artigo 41.º e dos n.os 1, 2 e 3 do artigo 42.º da Constituição de 1976, e que insofismavelmente consagram a separação do Estado de qualquer religião, seja ela qual for e por maior que seja o número dos seus fiéis. Daqui resulta, sem dúvida, que a Constituição de 1976 rompeu com o sistema de privilégio que caracterizava as relações Estado/Igreja católica e que tinha por base a Concordata. Daqui advém que, quando se lhe outorgam privilégios que não estão outorgados às outras igrejas, devem ser declaradas inconstitucionais as normas que os concedem e não se alargarem, todos eles, em perfeita igualdade, às demais igrejas ou confissões religiosas. Ora, como na Constituição de 1976 se diz que o ensino não será confessional e que o Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer doutrinas religiosas (artigo 43.º, n.º 3) e que o ensino público não será confessional (n.º 4 desse artigo 43.º), não podem restar dúvidas de que se condena e proíbe não só que o ensino seja subordinado a uma única doutrina de implicações religiosas mas também que ele se oriente por qualquer princípio religioso. Para pôr o regime da Concordata conforme com a CRP não basta alargá-la de forma que todas as confissões religiosas passem a dispor dos privilégios de que já dispõe a Igreja católica. É imperioso, por isso mesmo, declarar expressamente a inaplicabilidade do artigo 21.º, que caducou face ao artigo 293.º da Constituição.

Quer dizer, as aulas de Religião e Moral, enquanto aulas de doutrinação de uma determinada confissão, sujeitas aos princípios dessa religião, ministrados pelos seus dignitários, e destinados a incutir nos estudantes das escolas públicas, patrocinadas pelos fundos públicos, o espírito daquela confissão, são hoje inconstitucionais, não por serem colocadas à disposição de determinada confissão, maioritária ou não, mas pelo simples facto de existirem, qualquer que seja a confissão que por elas se responsabilize.

Quando muito poderia admitir-se que o Estado concedesse autorização para utilização de instalações escolares para que, antes ou depois das aulas, as confissões religiosas, sem discriminação (particularmente as que não dispusessem de instalações próprias), pudessem transmitir a sua doutrina aos seus fiéis, a suas próprias expensas, e por iniciativa própria, e em regime de total voluntariado e total independência do ensino oficial.

O parecer da Comissão Constitucional n.º 17/82, que se não pronunciou, em sede de fiscalização preventiva, pela inconstitucionalidade do decreto que viria a ser o agora em causa, entendeu não haver qualquer violação do princípio da igualdade, já que a Igreja católica, tendo em conta a sua posição tradicional na sociedade portuguesa, deveria ser tratada de forma desigual.

O TC tem entendido que, face a um determinado tratamento desigual, para averiguar da existência de uma eventual designação do princípio da igualdade, deve utilizar a metodologia de procurar determinar quais os objectivos das normas impugnadas; devem ser razoáveis e consonantes com os fins cuja prossecução o texto constitucional comete ao Estado (Acórdão 176/83 do TC); por outro lado, não pode nunca deixar de ter-se em atenção que o facto de o Estado estar separado das igrejas - de todas elas - torna mais exigente o cumprimento do princípio da igualdade no tratamento que o Estado a todas tem de conceder, não podendo admitir excepções, nem mesmo fundadas na sua representatividade.

Invoca-se, também, para rejeitar a inconstitucionalidade das normas em causa do decreto-lei em apreço, que estas são meras repetições de normas já constantes de diplomas anteriores e da própria Concordata, nada trazendo de novo.

Mas há algo de precipitação nesta invocação, já que a análise comparativa demonstra que há inovações, e importantes, basilares nas normas contidas no diploma em apreço neste processo.

Porém, se porventura se tratasse de meras repetições, elas estavam constitucionalmente vedadas, uma vez que as normas de que se fazia repetição tinham deixado de estar em vigor, haviam caducado face ao comando do artigo 293.º da Constituição, pois não era possível repô-las em vigor.

Mas as coisas não se passam assim. E uma simples e rápida comparação mostra bem que não há repetição, nem mesmo similitude, entre as normas do artigo XXI da Concordata e da demais legislação que nela se baseou, anterior à Constituição de 1976, e este decreto-lei em apreço neste processo.

Assim:

a) Em vez de se impor o pedido de isenção para se poder ser dispensado de assistir às aulas de Religião e Moral, como se fazia na legislação antecedente, agora, para alcançar esse desiderato, haverá que apresentar uma declaração assinada pelos interessados, com manifesta declaração de vontade de não aceitação das referidas aulas;

b) Ao contrário do que sucedia antes, veio estabelecer-se que a disciplina de Religião e Moral Católicas faz parte do currículo escolar normal das escolas em que for ministrada, ficando sujeita ao regime aplicável às restantes disciplinas e, embora dessa avaliação não possa resultar qualquer efeito negativo sobre a transição do ano, aplica-se à disciplina de Religião e Moral o regime geral da avaliação de conhecimento; para a nomeação dos professores da disciplina de Religião e Moral não é já a necessidade de acordo da autoridade eclesiástica que se impõe, mas exige-se que essa nomeação seja proposta por aquela autoridade.

E a verdade é que todas estas inovações estão feridas de inconstitucionalidade orgânica, pois não foram criadas pelo órgão constitucionalmente competente.

Por seu turno, as normas que são mera repetição ou desenvolvimento de normas anteriores incorporadas na Concordata são materialmente inconstitucionais, isto porque violam o princípio da separação entre a Igreja e o Estado, desrespeitam os da não confessionalidade do ensino e da igualdade e restrigem, sem que a tal a Constituição o autorize, o direito de liberdade religiosa.

Para afastar a inconstitucionalidade orgânica faz-se apelo, além do mais, ao parecer 17/82 da Comissão Constitucional, que entendeu que o facto do diploma que apreciou vindo do Governo em nada comprometia a sua conformidade orgânica ou formal, baseando-se em que o diploma não inovava o que já aí se continha na Concordata e no facto de o artigo 167.º, alínea c), da Constituição apenas reservar para o Parlamento a delimitação das bases gerais e dos seus aspectos essenciais dos direitos, liberdades e garantias.

Ora, acontece que entre a versão do diploma que a Comissão Constitucional analisou e a versão actual há uma diferença abissal: naquela mantinha-se o estatuto da isenção para a dispensa às aulas de Religião e Moral, nesta fala-se numa simples declaração de vontade que produz efeitos por si só, o que é substancialmente diferente, já que o pedido de isenção é próprio de uma situação obrigatória, pois o que se pretende é a isenção do cumprimento de um dever, ao passo que a declaração de vontade pressupõe o exercício de um direito a não assistir às aulas, se tal é contrário às convicções do declarante.

É manifesta a implicação que esta substancial diferença tem a nível da competência do legislador, pois, se o Governo se limita a repetir ou regulamentar o que já resultam da Concordata, sem a alterar, havia e há uma inconstitucionalidade material por violação do direito de liberdade religiosa, que não se harmoniza com o dever de assistir às aulas, mas se, como agora acontece, se estabelece uma novidade, alterando o regime, não só pode haver uma inconstitucionalidade material, como haverá uma inconstitucionalidade orgânica, porquanto se restrinje, em termos inovatórios, um direito, liberdade e garantia.

Sendo que os direitos, liberdades e garantias só podem ser restringidos por lei formal da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado (artigo 18.º, n.os 1 e 2, da Constituição), é óbvio que, como no caso actual, exigir-se uma declaração positiva rejeitando as aulas de Religião e Moral constitui uma limitação do direito de cada um decidir livremente qual a religião que professa e manter essa decisão no seu foro íntimo, o que importa inconstitucionalidade orgânica.

O princípio da igualdade implica que os privilégios eventualmente concedidos pelo Estado a uma igreja, ou aos seus fiéis ou ministros - como acontece às isenções de impostos, etc., em relação à Igreja católica -, na medida em que não sejam inconstitucionais, devem ser reconhecidos a todas as igrejas.

Jurídico-constitucionalmente não pode haver discriminação entre igrejas, entre crentes de uma confissão e crentes de outra (cf. Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., pp. 251 e 252).

Além de que, introduzindo a disciplina de Religião e Moral Católicas no âmbito dos currículos escolares e sujeitando-a ao regime das demais disciplinas, o que é inovatório, o legislador invadiu o campo das bases do sistema de ensino, o que é de competência reservada à Assembleia da República pelo artigo 167.º, alínea c).

Igualmente, o decreto-lei, estabelecendo uma inovação no modo de recrutamento dos professores, em que a Concordata apenas requeria o acordo da autoridade eclesiástica, o que não impedia a aplicação do regime geral de recrutamento de funcionários do Estado, com relevância para a realização do concurso público, inovação essa que, inclusivamente, leva ao afastamento do concurso público, criando-se, assim, um regime diferente do geral, invadiu o campo da competência reservada da Assembleia da República [artigo 168.º, alínea n)] e está ferido do vício de inconstitucionalidade orgânica, pois legislou sobre bases do regime e âmbito da função pública.

Depois, conhecidos os objectivos, averiguar se a distinção entre várias situações e atribuição de um regime diferenciado a cada uma delas é adequada e proporcionada aos objectivos fixados.

Neste caso, temos que o objectivo é o de proporcionar aos aderentes à religião católica e só a esses, porque são a maioria, aulas de doutrinação durante o horário escolar, permitindo-lhes um mais completo exercício do seu culto.

Ora, com tal actuação o Estado predispõe-se a um objectivo inconstitucional (facultar ele próprio aulas de religião) e fá-lo beneficiando certas categorias de pessoas em relação ao seu estatuto religioso. Assim, uma certa quantidade de pessoas, e só por integrarem uma certa confissão, vão beneficiar de um serviço público (têm aulas da sua religião) de que as pessoas das outras confissões não usufruirão, apesar de o artigo 13.º da CRP proibir que alguém seja beneficiado em razão da religião.

Logo, mesmo que a Constituição não impedisse a orientação de toda e qualquer confissão religiosa, sempre o regime do Decreto-Lei 323/83 seria inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.

As normas que dispõem que nas escolas públicas haverá ensino de religião e moral católicas (artigo 2.º, n.º 1, primeira parte), que a disciplina de Religião e Moral Católicas faz parte do currículo normal daquelas escolas e esta sujeita genericamente a regime idêntico ao das outras disciplinas (artigo 3.º, n.os 1 e 2), que a orientação pedagógica dessa disciplina cabe à Igreja católica (artigo 4.º, n.º 1) e que a entidade eclesiástica intervém na contratação dos professores de forma decisiva (artigo 5.º, n.º 1), mesmo se, só por si, não bastassem para as ferir de inconstitucionalidade, sempre noutro aspecto violariam insanavelmente outros princípios constitucionais. É o que resulta do facto de só se poder evitar a sujeição ao ensino através de declaração expressa nesse sentido, ou pelo próprio ou do seu encarregado de educação (artigo 2.º, n.º 1, parte final, e n.os 2 e 3), já que assim se limita e condiciona o princípio da liberdade religiosa e do direito de não revelar a religião que se professa.

Esta pressupõe três direitos:

1) O de escolher livremente uma religião ou de a recusar;

2) O direito de manter essa escolha em segredo (artigo 41.º, n.º 3);

3) A protecção contra todas e quaisquer pressões para seguir determinada religião.

Determinando-se que a não frequência dessas aulas depende de uma revelação de vontade nesse sentido, está-se, implicitamente, a exigir que os pais revelem as suas opções em matéria religiosa, fazendo uma declaração obrigados nas suas convicções, fazendo-o, até, porventura, contra feitos, o que proporciona o desencadeamento de pressões de toda a ordem.

E não se pode esquecer que, ainda no domínio da Constituição de 1971, Sá Carneiro, num discurso proferido na Assembleia Nacional em 14 de Janeiro de 1971, e que pode ler-se no seu livro Uma Tentativa de Participação Política (Morais Editora, 1971), a propósito da Concordata, reproduzia a seguinte afirmação, que pronunciara numa comunicação feita no colóquio organizado pela Acção Católica do Porto sobre «divórcio no Código Civil», em 1966:

Vão, porém, decorridos mais de 26 anos sobre a data da Concordata e, sobretudo, teve lugar o Concílio, de modo que aquilo que em 1940 parece oportuno não foi julgado atentatório da igualdade dos cidadãos e da sua liberdade religiosa pode hoje ser encarado de maneira diversa.

E ainda adianta:

A Igreja procura renovar-se e purificar-se; disso são aspectos a libertação de um certo juridismo, a renúncia a privilégios temporais e a recusa de se servir de meios próprios do Estado, para utilizar os caminhos e meios próprios do Evangelho.

E mais adiante, ainda:

Presentemente, em razão da apontada evolução da Igreja, as concordatas irão rareando cada vez mais, subsistindo apenas naqueles casos em que, mercê da restrição do livre exercício dos direitos das pessoas e das comunidades, impostas por razões de direita ou de esquerda, esse acordos sejam essenciais para prescrever a liberdade que a Igreja reivindicar como princípio fundamental nas suas relações com os poderes públicos e toda a ordem civil, como sociedade que é, formada por humanos que têm o direito de viver na sociedade civil segundo o princípio da fé cristã, fé cujo carácter plenamente livre repetidamente se acentua.

Além disso ela traduz hoje, melhor do que em 1940, a consciência de si própria e das exactas relações com a comunidade política, de que é independente e autónoma e em relação à qual tem domínio próprio.

Mais adiante ainda, em resposta a perguntas que o seu discurso motivara, Sá Carneiro afirma:

Dentro de certos limites, embora, mediante as disposições da Concordata, a Igreja católica assegurou-se do exercício dos direitos de expressão, de reunião e de associação, em termos que não eram, como ainda não são, facultados à generalidade dos cidadãos nem às demais confissões, relativamente aos quais se encontra, portanto, numa situação privilegiada.

Enuncia depois alguns privilégios de que se assegurou, indicando igualmente que «o ensino da Religião e Moral Católicas é obrigatório nas escolas oficiais».

Por todo o exposto, votei a inconstitucionalidade das normas contidas no Decreto-Lei 323/83, de 5 de Julho, e na Portaria 333/86, de 2 de Julho, e a caducidade, por verificação da incompatibilidade das normas do artigo XXI da Concordata de 1940 e das Leis n.os 4/71 e 5/73 com a Constituição da República e os princípios nela consignados, por violarem os artigos 13.º, n.º 2, 18.º, n.º 2, 41.º, n.os 1, 3, 4 e 5, 43.º, n.os 2 e 3, 167.º, alínea e), 168.º, n.º 1, alíneas b) e n), e 293.º da Constituição Política da República (que impõe a caducidade do direito anterior à Constituição da República que seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consagrados, e assim impede a aplicação da Concordata e das leis anteriores à Constituição de 1976) sobre o ensino da religião católica nas escolas públicas. - José Magalhães Godinho.

Declaração de voto

1 - Votei apenas as alíneas b) e c) das conclusões. Tenho por simplesmente inquestionável que a exigência de uma declaração para não se ter aulas de uma religião agride grosseiramente a liberdade religiosa. Ninguém pode ser obrigado a fazer nada para fruir de uma liberdade negativa, ou seja, a liberdade de não fazer (no caso a liberdade de não ter ensino religioso). As liberdades negativas fruem-se pura e simplesmente não fazendo. É absurdo exigir uma declaração negativa às pessoas que não querem, por exemplo, casar-se, ou exprimir-se, ou escrever na imprensa, ou emigrar, ou reunir-se, etc. A Constituição garante sobretudo a liberdade de não ter ensino religioso, e não apenas o direito de o recusar.

A admitir-se a legitimidade da solução em causa, então teria de admitir-se com igual legitimidade constitucional que se fosse obrigado a fazer um requerimento ou uma declaração para não se ter partido, para não se inscrever em sindicatos, etc.

E seria então legítimo considerar automaticamente como membro do partido A ou do sindicato B todo aquele que não declarasse expressamente não querer.

Ora, tal como só se reúne, manifesta, casa, tem partido ou sindicato quem quer - e não todos os que não declarem não querer -, também só deve ter ensino religioso quem quer - e não todos os que não declarem que não querem.

Acresce que o ónus de declaração de recusa do ensino da religião católica pressupõe claramente uma obrigação geral de receber ensino religioso católico, o que afronta também directamente o princípio da não confessionalidade do ensino, o princípio da liberdade religiosa e o princípio da pluralidade e igualdade das igrejas. Pois é evidente que, se se parte do princípio de que todos hão-de frequentar as aulas de uma certa religião, independentemente de um acto positivo de inscrição ou de manifestação do desejo de as frequentar, então está claramente a pressupor-se, como princípio, que todos desejam ensino religioso, e ensino de uma única e particular religião.

Ora, são estes pressupostos que só podem aceitar-se no quadro de um ensino confessional e de monopólio religioso de uma igreja. Sucede, porém, que nem um nem outro são compatíveis com a Constituição.

2 - Votei contra a alínea a) das conclusões. Desde logo porque entendo que o regime estabelecido no diploma em causa afronta o princípio da separação das igrejas e do Estudo e o princípio da não confessionalidade do ensino público, expressamente consagrados na Constituição (artigos 41.º, n.º 4, e 43.º, n.º 3).

É certo que o acórdão ensaia uma reinterpretação do diploma de modo a tentar torná-lo conforme à Constituição, mas o resultado não é propriamente um sucesso. A meu ver, em vez de forçar uma «interpretação conforme à Constituição», mais adequado teria sido ler o diploma de acordo com o seu autêntico sentido histórico e verdadeiro propósito legislativo e declará-lo por isso inconstitucional.

A lógica do discurso do acórdão é, no essencial, a de que o diploma pode ser lido como se o regime que ele consagra não constituísse um regime de ensino público (estadual) da religião católica, mas sim e apenas um regime de ensino confessional na escola pública. O ensino da religião não estaria a cargo da escola, e sim a cargo da própria Igreja católica, limitando-se o Estado a proporcionar à Igreja a possibilidade de exercer tal tarefa dentro da escola. Com essa leitura, o diploma não violaria os acima referidos princípios constitucionais, já que o Estado não assumiria ele mesmo, como tarefa sua, o ensino da religião.

Por minha parte, entendo que o recurso à chamada «interpretação conforme à Constituição» só tem cabimento quando o texto (re)interpretado suportar tal entendimento, isto é, quando o novo entendimento não for incomportável pelas normas em causa.

Ora, a meu ver, existem algumas dificuldades sérias em tornar aceitável tal reinterpretação das normas em apreciação.

Em primeiro lugar, o diploma tem por propósito explícito (v. o seu preâmbulo) proceder a uma regulamentação integrada do ensino da religião católica nas escolas públicas, em execução do disposto na base XXI da Concordata de 1940.

Ora, o regime da Concordata é claramente um regime de ensino público da religião católica, como obrigação e tarefa do Estado. E tal regime enquadrava-se claramente na filosofia da Constituição de 1933, isto é, no quadro de um Estado paraconfessional, de imbricação entre o Estado e a Igreja católica, de explícito confessionalismo do ensino público, de privilégio institucional da Igreja católica e de restrição da liberdade religiosa das demais confissões.

Neste ponto - como em outros - a Concordata veio ao arrepio dos princípios da separação do Estado e das igrejas, da não confessionalidade do ensino, da igualdade das confissões e da liberdade religiosa, adquiridos com a revolução republicana e consagrados na Constituição de 1911. A Concordata é filha dilecta da reacção confessional contra o laicismo republicano. Mas para que a Concordata não infringisse a Constituição de 1933 - que na sua versão originária ainda prestava homenagem ao princípio da separação e ao princípio da não confessionalidade do ensino - foi preciso que a Constituição fosse alterada. Logo na revisão de 1935 se estabeleceu que o ensino público seria «orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs tradicionais do País» (artigo 45.º, § 3.º, da redacção então aprovada).

Posteriormente, em sucessivas revisões, a Constituição passou a mencionar a própria Concordata, a privilegiar exclusivamente a Igreja católica, até vir, por último, a invocar expressamente o nome de Deus. A Constituição de 1933 não só instituiu um Estado confessional como se assumiu ela mesma como constituição confessional.

É fácil ver, portanto, que o regime de ensino da religião católica nas escolas públicas constante da Concordata estava em perfeita sintonia com a constituição de 1933, logo que se rompeu o compromisso ideológico em que esta originariamente ainda assentava, a favor do triunfo da ideologia estado-novista nas suas vertentes mais caracteristicamente reaccionárias.

Mas, se estava em perfeita sintonia com a Constituição de 1933, passou a estar em total dessintonia com a constituição de 1976, a qual não só afastou todos os traços confessionais da predecessora como voltou a consagrar enfaticamente os princípios da separação, da não confessionalidade do ensino, da igualdade das igrejas, da plena liberdade religiosa. A Constituição não faz nenhuma remissão para a Concordata, não atribui qualquer privilégio à Igreja católica, proíbe toda a orientação religiosa do ensino.

Neste quadro, aquilo que era elemento essencial da Constituição religiosa e educativa de 1933 não podia continuar a ser compatível com a Constituição religiosa e educativa de 1976. A reafirmação dos princípios essenciais do laicismo educativo nas escolas públicas, por mais moderadamente que fosse entendido, não podia continuar a admitir um ensino religioso a cargo do Estado, como tarefa da própria escola, nem a obrigação geral de frequência das aulas de religião (exonerável apenas mediante requerimento de dispensa ou declaração de recusa expressa), nem o privilégio exclusivo de uma confissão, por mais «representativa» que ela se reclame ser.

A este propósito importa sublinhar que o próprio acórdão se encarrega de assinalar que o preceito da Concordata sobre o ensino religioso nas escolas oficiais era contrário à própria versão orginária da Constituição de 1933 e que só não existia contradição porque a revisão de 1935 «abolira a declaração de neutralidade religiosa do ensino ministrado pelo Estado, substituindo-a pela afirmação expressa de que entre os fins essenciais visados pelo ensino oficial se conta a formação de todas as virtudes morais e cívicas, orientadas aquelas pelos princípios da doutrina e da moral cristãs, tradicionais do País». Ora, se a Concordata, nesse passo, era incompatível com a versão originária da Constituição de 1933, seguramente que é ainda mais incompatível com os preceitos da constituição de 1976, nesse aspecto bastante mais afirmativa no que respeita aos princípios que consagram a separação, a não confessionalidade do ensino público, a igualdade das religiões e a liberdade religiosa dos cidadãos.

Por menos que ele diga, o princípio da separação significa que o Estado não pode assumir tarefas ou funções religiosas nem pode imiscuir-se na organização ou função das igrejas; e significa igualmente que as igrejas não podem deter funções próprias do Estado nem participar ou imiscuir-se na sua organização. Por sua vez, o princípio da não confessionalidade do ensino significa, pelo menos, que o ensino público não pode ser religiosamente orientado nem pode incluir o ensino de qualquer religião entre o programa de instrução que compete à escola enquanto tal.

O mais que o princípio da separação pode consentir nesta matéria - como se referiu, aliás, na discussão do assunto na Assembleia Constituinte e se defendia num artigo do então ministro Salgado Zenha na altura referido - é que o Estado pode autorizar que as diversas igrejas ministrem elas mesmas na escola pública o ensino da sua religião a quem o deseje, em termos totalmente voluntários e independentemente de qualquer declaração escrita ou anotação no «curriculum» (v. a declaração do deputado Sottomayor Cardia, no Diário da Assembleia Constituinte, no local citado no acórdão, cap. III, 3). São três as diferenças essenciais em relação ao regime da Concordata:

1.º O ensino de religião deixa de ser tarefa pública, encargo da escola ou do Estado, para ser tarefa e encargo das respectivas igrejas;

2.º A frequência do ensino religioso é facultativa, apenas para quem o deseje (e não para todos, salvo para os que declarem expressamente não o querer);

3.º O acesso das igrejas à escola pública não pode ser monopólio da Igreja católica, devendo estar aberto às diversas confissões.

Isto está, no essencial, dito no acórdão. Simplesmente, o acórdão conclui que é possível ler o diploma de modo a ver nele respeitado o 1.º ponto. Por minha parte, sustento que isso só foi possível, por um lado, à custa de uma notória distorção do sentido e propósitos do diploma e, por outro lado - o que é mais importante -, à custa da salvaguarda de algumas soluções que tenho por manifestamente inconstitucionais.

Com pequenas diferenças, o diploma reitera todos os traços essenciais do regime anteriormente estabelecido à sombra da Concordata e da Constituição de 1933: o princípio da generalidade do ensino da religião católica, destinado a todos, salvo os que expressamente se escusem (artigo 2.º); o princípio de que o ensino religioso é obrigação do Estado e da escola (artigos 1.º e 2.º); a atribuição à disciplina de Religião de um estatuto idêntico ao das demais disciplinas, salvo quanto ao facto de a avaliação de conhecimentos não poder influir no aproveitamento (artigo 3.º); a nomeação dos professores por parte do Estado (artigo 5.º); a ideia de que os futuros professores do ensino pré-escolar e básico devem ser formados sob o ponto de vista religioso (artigo 6.º) (o que se justificava, naturalmente, apenas quando todo o ensino era confessionalmente orientado).

É certo que existe uma importante diferença. Na Concordata o dever público do ensino religioso decorria expressamente de uma orientação religiosa do ensino.

Releia-se o artigo XXI da Concordata, na parte que aqui interessa:

O ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais no País. Consequentemente, ministrar-se-á o ensino da religião e da moral católicas nas escolas públicas, elementares, complementares e médias aos alunos cujos pais [...] não tiverem feito pedido de inscrição. [Itálico acrescentado.] No diploma em análise omitiu-se a referência à orientação religiosa do ensino, e o ensino da religião católica passa a decorrer de um pretenso dever do Estado de ministrar o ensino das «ciências morais e religiosas» (artigo 1.º do diploma). Só que isto não passa de um solerte exemplo de farisaísmo legislativo. É óbvio que o suposto dever de ensino das «ciências morais e religiosas» não conduz ao ensino de uma religião, nem muito menos ao ensino de uma única religião. As tais «ciências morais e religiosas» podem compreender o ensino da história, da teoria e da filosofia das religiões (de todas, naturalmente, as que têm importância cultural, entre nós e universalmente), mas nada tem a ver com o ensino normativo de uma religião, isto é, com a formação religiosa segundo certo credo. O Estudo não tem nenhum dever - nem sequer o direito - de ministrar formação religiosa, de fornecer serviços ou bens religiosos, de assumir como suas tarefas que são próprias das igrejas.

Não existe, portanto, nenhuma ligação entre o artigo 1.º e o artigo 2.º O ensino da religião católica nas escolas públicas não pode decorrer do suposto dever que o Estado assume de ministrar o ensino das «ciências morais e religiosas». O artigo 1.º é, portanto, apenas uma falsa invocação, que pretende desajeitadamente esconder o verdadeiro e único fundamento - agora constitucionalmente inconfessável - do ensino da religião nas escolas públicas, fundamento esse que, todavia, está expressamente mencionado no preâmbulo do diploma, ao mencionar a Concordata de 1940.

É certo igualmente que o artigo 2.º não diz expressamente - ao contrário do artigo 1.º - que é o Estado que ministra o ensino da religião católica. O sujeito fica aparentemente indeterminado - «ministrar-se-á o ensino» -, e isto pode ser tanto mais de notar quanto no decreto de 1982, extensamente referido no acórdão e que foi submetido à apreciação da Comissão Constitucional, não tendo chegado a ser promulgado como decreto-lei, se dizia expressamente que era o Estado o sujeito activo do ensino da religião católica (o que, mesmo assim, não impressionou a Comissão Constitucional, que conseguiu o prodígio de não ver aí nenhuma violação do princípio da separação! ...).

No acórdão dá-se implicitamente àquele pormenor uma importância decisiva, já que, se o actual artigo 2.º tivesse a redacção do correspondente preceito do decreto de 1982, então seria impossível sustentar - como se sustenta no acórdão - que não é o Estado que ministra o ensino, mas sim a própria Igreja.

A meu ver, porém, o facto de no artigo 2.º não se mencionar expressamente o Estado não pode fazer ignorar o contexto global do diploma, que só se torna inteligível e coerente na base da responsabilidade estadual do ensino religioso.

Tenho, pois, por inconvincente a «interpretação conforme à Constituição» que o acórdão ensaia para tentar salvar a legitimidade constitucional do diploma.

3 - Acresce, porém, que, mesmo que se apresentasse como possível - ou mesmo aconselhável -, tal reinterpretação do diploma, sempre seria de considerar como inconstitucionais aqueles aspectos do regime legal que são irredutíveis a qualquer interpretação constitucionalmente conforme.

Verifica-se, todavia, que só foi considerado inconstitucional o artigo 2.º, na parte em que exige declaração expressa a quem não queira frequentar as aulas. Por minha parte, entendo que outras normas do diploma são igualmente inconstitucionais por em relação a elas ser de todo impossível uma reinterpretação conforme à Constituição.

O caso do artigo 5.º sobre a nomeação dos professores é flagrante.

Aí se diz:

1 - Os professores de Religião e Moral Católicas serão contratados ou nomeados mediante proposta da autoridade eclesiástica [...] 2 - Os professores da disciplina de Religião e Moral Católicas fazem parte do corpo docente dos estabelecimentos de ensino em que prestem serviço [...] Na lógica do acórdão, a norma não é inconstitucional, porque não é obrigatório ler nela o que ela aparentemente diz, ou seja, que os professores são agentes do Estado, embora nomeados sob proposta da Igreja.

Mas não vejo como é que é possível ler a norma de outra maneira, designadamente a do acórdão, segundo a qual se trata de agentes da Igreja e que a nomeação pelo Estado é irrelevante e que só importa para efeitos de pagamento.

Como quer que seja, não vislumbro saída constitucionalmente legítima para tal norma: ou os professores de Religião e Moral Católicas são agentes do Estado, e então a norma é inconstitucional, não só por violar o princípio da separação, mas também por violar as regras constitucionais de acesso à função pública (liberdade, igualdade, concurso), na medida em que se reserva a nomeação às pessoas propostas pela Igreja católica; ou os professores são agentes da Igreja, e então a norma é inconstitucional, outra vez por violação do princípio da separação, agora por estabelecer uma ingerência do Estado numa função que é própria - e deve ser exclusiva da Igreja. Em qualquer caso há inconstitucionalidade: não pode haver agentes do Estado cuja nomeação fica dependente de proposta (exclusiva) de uma igreja; não pode haver agentes de uma igreja dependentes de nomeação do Estado. Não se pode ser ao mesmo tempo agente da Igreja e agente do Estado. Esta acumulação de dependências constitui uma violação qualificada do princípio da separação.

Também não compreendo como é que pode deixar de ser considerado inconstitucional o artigo 6.º do diploma, segundo o qual haverá igualmente ensino religioso nas escolas de preparação e formação de professores do ensino pré-escolar e básico. É certo que a questão nem sequer foi abordada no acórdão.

Mas não deixa de ser evidente que aquela norma só se justifica no pressuposto de que os futuros professores do ensino pré-escolar e básico devem ter formação religiosa, à luz do preconceito confessionalista de que tal ensino deve ser orientado pelos princípios da religião e da moral católicas e de que os professores do ensino pré-escolar e básico podem ser encarregados, eles mesmos, do ensino da disciplina de Religião e Moral (assim veio, de resto, a ser previsto na Portaria 333/86, de 2 de Julho, para o ensino primário, cuja inconstitucionalidade, nesse ponto, entre outros, é flagrante ...). Ora, como julgo ser evidente, o Estado não pode permitir-se assumir como tarefa sua a formação ou orientação religiosa dos alunos. Isso é tarefa da Igreja. O Estado pode não pôr obstáculos às igrejas no desempenho dessa tarefa. Mas não pode fazê-la sua.

4 - Também considero adquirido que se verifica uma violação do princípio da igualdade no facto de só a Igreja católica ter acesso à escola pública.

A Constituição de 1976 não reconhece nenhum privilégio - nem sequer faz qualquer menção especial - à Igreja católica, diferentemente do que, como já referi, sucedia com a Constituição de 1933. Por isso, valem aqui integralmente as regras decorrentes do princípio constitucional da igualdade, não podendo haver nem privilégios nem discriminações entre as várias confissões religiosas. Aquilo que o Estado concede a uma igreja deve concedê-lo, em pé de igualdade, às demais.

Se à Igreja católica é proporcionada a possibilidade de ensinar a sua religião nas escolas públicas aos alunos que o desejem, também às demais confissões deve ser reconhecida idêntica facilidade.

É bem certo que o princípio da igualdade não proíbe, antes exige, diferenças de tratamento para aquilo que é em si mesmo desigual. Mas isso só quer dizer que cada igreja terá direito a um número de aulas proporcionado ao número de pretendentes, o que naturalmente tem em conta a diferente «representatividade» das diversas religiões entre a população que tem convicções religiosas.

O que o princípio da igualdade não consente é o privilégio exclusivo em favor de uma igreja, com exclusão de todas as outras, quando nada materialmente exige tal monopólio. Uma coisa é a proporção em que todas hão-de ter acesso à escola pública, outra coisa é só uma ter e todos as outras não terem.

Como escreveu Jorge Miranda: «um tratamento privilegiado concederia a uma pessoa ou entidade direitos que outras não teriam», enquanto que «um tratamento especial ou especializado não afectará a qualidade dos direitos e deveres reconhecidos, apenas os dará numa medida, em condições de exercício ou segundo estruturas organizatórias diferentes, consoante as diferentes situações e entidades» [in «Liberdade religiosa, igrejas e Estado em Portugal», Nação e Defesa, n.º 39, 1986, p. 130 (itálicos acrescentados)].

Fácil é ver que aqui estamos, não perante um «tratamento especializado», mas sim perante um «tratamento privilegiado», por isso mesmo violador do princípio da igualdade.

Se a reclamada maior representatividade da Igreja católica constituísse fundamento para mais do que ter maior acesso do que as outras igrejas à escola pública - de modo a ser ela a única com acesso -, então cabe perguntar em que medida é que igual raciocínio não poderia justificar monopólios, por exemplo do partido político mais representativo, ou do clube de futebol mais representativo, etc.

O argumento da maior representatividade da Igreja católica só poderia justificar o seu monopólio se fosse materialmente impossível conceder a faculdade de ensino religioso nas escolas públicas a mais de uma igreja. Mas é óbvio que não existe tal impossibilidade. Nada impede que na mesma escola haja turmas de ensino da religião católica e turmas de ensino da religião evangélica ou muçulmana ou de qualquer outra. Ponto é que haja alunos candidatos ao ensino (ao menos em número mínimo, válido para todas as religiões) e que as respectivas igrejas se encarreguem das aulas.

Acima de tudo, o Estado não pode discriminar qualitativamente entre as várias igrejas. Todas as confissões cuja doutrina e prática não sejam constitucionalmente ilícitas têm igual dignidade constitucional. Não compete ao Estado favorecer uma igreja no confronto com outras. Nenhuma igreja pode aproveitar-se do poder ou favores do Estado para alargar a sua influência.

No texto já acima referido, Jorge Miranda afirma enfaticamente que o artigo 43.º da Constituição «impede o monismo religioso» e acrescenta que nada obsta à presença da religião nas escolas públicas, desde que «em termos livres, abertos e plurais» (ob. cit., p. 133). Ou seja: se a Igreja católica pode ensinar na escola pública, as demais igrejas devem ter igual direito.

São pontos tão apodícticos que não entendo como podem ser seriamente contestados. O monopólio da Igreja católica afronta o princípio constitucional da igualdade, inquinando por isso a legitimidade constitucional do diploma em causa.

5 - Neste contexto, não quero deixar de abordar a questão da suposta inconstitucionalidade por omissão.

O acórdão considera que o Estado tem constitucionalmente uma obrigação de proporcionar às diversas igrejas o ensino das respectivas religiões, pelo que o diploma em análise constitui um cumprimento parcial dessa obrigação em relação à Igreja católica. O facto de às demais confissões não ser reconhecido esse direito, consubstanciando uma violação do princípio da igualdade, não poria em causa a legitimidade do benefício de que goza a Igreja católica; o que se verifica é que o Estado incorreria numa omissão em relação às demais igrejas, não cumprindo em relação a elas com a acima referida obrigação.

Estou em radical oposição a este modo de ver as coisas. Não descortino de onde é que se retira do texto constitucional um mínimo de apoio para a tese de que o Estado tem a obrigação (e não apenas a faculdade) de proporcionar às igrejas a possibilidade de ensino das respectivas religiões nas escolas públicas. Em nenhuma norma se pode deduzir, expressa ou implicitamente, que ao Estado incumbe mais do que não impedir ou não dificultar a liberdade religiosa. A Constituição reconhece explicitamente a liberdade do ensino religioso apenas nas escolas confessionais (artigo 41.º, n.º 5), o que não favorece o argumento do acórdão (pelo contrário). Por outro lado, não coligi em nenhum lugar a ideia de que o princípio da separação possa ser compatível com obrigações positivas do Estado em matéria religiosa. Que o Estado tenha a faculdade de admitir o acesso das igrejas à escola pública - eis o máximo que o princípio da separação consente (e nem isso lhe é consentido, como se sabe, por uma concepção radical da separação, vigente, por exemplo, nos Estados Unidos); mas passar da faculdade à obrigação, eis um salto num fosso intransponível.

Também não existe nenhum direito ao ensino religioso nas escolas públicas. Num Estado não confessional os cidadãos não têm direito a prestações religiosas por parte do Estado, apenas têm direito a que o Estado não restrinja a liberdade religiosa nem impeça as pessoas de obter prestações religiosas das respectivas igrejas.

E, se é inaceitável a ideia de o Estado estar constituído na obrigação de proporcionar às igrejas o acesso à escola pública, tenho por inconcebível a ideia de o Estado ter ainda por cima a obrigação de financiar tal ensino religioso. Aqui, entendo mesmo que é mais que duvidoso que o Estado tenha sequer a faculdade de financiar, pois não vejo como é que um Estado não confessional pode financiar prestações religiosas à custa da generalidade dos cidadãos, incluindo dos crentes de confissões diversas da que se aproveita do financiamento.

Ora, se o Estado não tem nenhuma obrigação - mas apenas uma faculdade - de proporcionar o acesso das igrejas à escola pública, então, ao conceder à Igreja católica esse acesso, o Estado não cumpriu um dever, antes exerceu uma faculdade. Simplesmente, beneficiando apenas uma igreja, com exclusão de todas as outras, o Estado violou directamente o princípio constitucional da igualdade, pelo que tal regime é em si mesmo inconstitucional.

É certo que esse regime não seria, por esse motivo, inconstitucional se o Estado tivesse atribuído idênticas facilidades às demais igrejas. E também é certo que esse regime deixará de ser inconstitucional se e quando o Estado estender tal facilidade às restantes igrejas. Nesse sentido pode dizer-se que a inconstitucionalidade só existe enquanto se mantiver o monopólio da Igreja católica, pelo que, ao atribuir tais facilidades à Igreja católica, o Estado se constituiu no dever de, desejando manter esse benefício, o estender às demais igrejas. Mas tal «obrigação» de extensão decorre não directamente da lei fundamental, em sede de constituição religiosa - como acima mostrei -, mas sim, indirectamente, por efeito da aplicação do princípio constitucional da igualdade a um privilégio legal. A inconstitucionalidade está, pois, não no facto de as demais confissões não gozarem de tais facilidades, mas sim no facto de a Igreja católica gozar delas em exclusivo. A inconstitucionalidade está, portanto, directamente, no próprio diploma em apreço, que consagra o monopólio da Igreja católica, e não na falta de idênticas facilidades legais para as demais igrejas.

Eis porque, a meu ver, não tem sentido aqui falar em inconstitucionalidade por omissão, em sentido próprio (ao contrário do que deixa entender o acórdão na sua parte final). Não se contesta que a inconstitucionalidade existente desaparecerá se o Estado conceder regalias equiparadas às demais igrejas, mas isso apenas porque assim se respeitará o princípio da igualdade, e não porque - como pretende o acórdão - assim se daria satisfação a uma suposta obrigação constitucional do Estado.

Entendo, por tudo isto, que se deveria ter declarado a inconstitucionalidade do diploma por violação do princípio da igualdade, tal como vinha requerido.

6 - Resta-me abordar a questão da inconstitucionalidade orgânica.

O acórdão conclui pela inconstitucionalidade orgânica apenas do artigo 2.º, na parte igualmente considerada materialmente inconstitucional. Acompanhei o acórdão também nessa parte, pois sufrago a tese de que tal matéria é da competência exclusiva da Assembleia da República.

Mas, por idêntica razão, entendo que todas as demais normas padecem igualmente de inconstitucionalidade orgânica. É para mim óbvio que o Governo legislou em tema claramente inscrito na área dos direitos, liberdades e garantias, que constitucionalmente é da competência legislativa reservada da Assembleia, nos termos do artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.

Não consigo acompanhar o acórdão, nem na tese de que o Governo pode legislar em áreas reservadas desde que não produza inovações legislativas substanciais, nem na tese de que a reserva legislativa da Assembleia da República não é total, limitando-se aos aspectos «substantivos» do correspondente regime jurídico, podendo o Governo legislar em aspectos secundários ou de pormenor. Sucede que nenhuma destas ideias tem a mínima base constitucional e que, pelo contrário, ambas vão ao arrepio do valor constitucional essencial da reserva de competência legislativa da Assembleia da República como órgão de soberania dotado de primazia legislativa. Se a Constituição reserva a produção legislativa em certas áreas à Assembleia da República, isso quer dizer que só a Assembleia pode produzir leis nessas áreas e que o Governo só pode emitir decretos-leis devidamente autorizados (artigo 168.º, n.º 1) ou em desenvolvimento das leis de bases da Assembleia da República (cf. artigo 115.º, n.º 2). Não vejo onde é que se podem louvar as teses que, oriundas da Comissão Constitucional, continuam a fazer caminho no Tribunal Constitucional acerca da licitude da intervenção legislativa do Governo em áreas constitucionalmente reservadas à competência legislativa da Assembleia.

Acresce que, mesmo com os pressupostos de que, nessa parte, o acórdão arranca, sempre seria de concluir pela inconstitucionalidade orgânica de várias das normas do diploma em apreço.

Por um lado, é o próprio preâmbulo do diploma que se encarrega de afastar a tese do carácter supostamente não inovatório. Aí se diz expressamente, sobre o seu propósito:

Não se tendo ainda procedido à regulamentação do preceito concordatário no que respeita à leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas, a não ser de forma dispersa e fragmentária, julga-se ser oportuno preencher a lacuna, para se sistematizar e completar a execução do princípio fixado. [Itálicos acrescentados.] Não se vê como é que pode ser considerado como puramente repetidor um diploma que a si mesmo se impõe a tarefa de preencher uma lacuna (legislativa, naturalmente) ... Acresce que algumas das normas são inquestionavelmente inovadoras e versam aspectos não secundários do regime jurídico em causa.

Logo o artigo 1.º - que institui o dever do Estado de ministrar o ensino das «ciências morais e religiosas» - é claramente inovatório, pois não tem nenhum antecedente legislativo (nem na Concordata), e não se pode dizer que seja coisa despicienda. Do mesmo modo, o artigo 5.º - sobre a forma de nomeação dos professores - é também manifestamente inovatório (pois a intervenção da Igreja está na proposta deles e não no acordo com os que o Estado escolha, como dizia a Concordata), e também não se pode dizer que se trate de uma «questão de pormenor».

Enfim, ao menos estas normas - e outras de que aqui não se cuida - deveriam ser consideradas organicamente inconstitucionais, quanto mais não fosse por razões idênticas às que levaram à inconstitucionalidade orgânica do artigo 2.º (que, afinal, se limitou a substituir o anterior «pedido de isenção» por uma «declaração de escusa» da frequência das aulas...).

7 - Embora tendo ficado vencido em boa parte das conclusões e discordando de muitas considerações e concepções constantes do acórdão, não posso deixar de sublinhar o que ele, apesar de tudo, significa em termos de afirmação dos princípios constitucionais no difícil terreno das questões religiosas.

Quase doze anos depois da aprovação da actual lei fundamental, são finalmente postos em questão alguns aspectos mais sensíveis de um regime jurídico que, oriundo da Concordata de 1940, relevava de uma concepção confessionalista do Estado e de uma consideração manifestamente distorcida da liberdade religiosa, e que persistia em sobreviver incólume aos princípios constitucionais que violava.

Não quero, por isso, subestimar a importância de três pontos essenciais do acórdão, a saber:

Que o princípio da separação proíbe o Estado de desempenhar funções próprias das igrejas, designadamente de assumir quaisquer tarefas ou funções de formação religiosa, e que o ensino da religião nas escolas públicas só é lícito quando seja inteiramente função e responsabilidade das respectivas confissões;

Que não existe nenhum dever de frequência das aulas de religião de nenhuma confissão, sendo ilícita a exigência de uma declaração expressa de escusa para quem não queira o ensino de determinada religião;

Que não pode haver discriminações entre as várias igrejas na possibilidade de acesso à escola pública para ensinarem a respectiva religião a quem o deseje, não sendo lícitas senão as diferenças de tratamento que decorram da diversa «procura» do ensino de cada uma.

Entretanto, não posso deixar de manifestar a minha profunda convicção de que se ficou muito aquém do que se impõe nesta matéria, tendo-se salvado da declaração de inconstitucionalidade normas que a marecem, tendo-se desvalorizado conceitos carregados de sentido histórico (como o princípio da separação e da não confessionalidade), tendo-se feito «concessões» indevidas a um enfoque impropriamente atento a considerações de índole histórica e social que não são estritamente recomendáveis em sede de interpretação e valoração das normas e princípios constitucionais.

Por minha parte, entendo que os princípios da separação entre o Estado e as igrejas, da não confessionalidade do ensino público, da pluralidade e igualdade das igrejas e da liberdade religiosa individual formam um conjunto essencial do constitucionalismo democrático-republicano reafirmado na CRP de 1976, em oposição ao confessionalismo serôdio, à imbricação entre o Estado e a Igreja católica, às limitações à liberdade religiosa, traços típicos da Constituição de 1933.

Seguramente que a Constituição não veda em absoluto o acesso das igrejas à escola pública. Mas com certeza que a não impõe, nem admite que ela seja monopólio de uma igreja. E, acima de tudo, não consente que a escola assuma, ela mesma, tarefas ou funções religiosas, nem que se confundam as funções do Estado e as da Igreja. Num Estado não confessional, o ensino da religião é negócio de Deus e dos seus ministros; não é negócio de César, nem atribuição dos poderes públicos. - Vital Moreira.

Declaração de voto

1 - Acompanhei o acórdão enquanto decidiu não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º do Decreto-Lei 323/83, de 5 de Julho, e acompanhei-o ainda na fundamentação de tal decisão.

No que toca a esta mesma fundamentação, aproveita-se, todavia, a ocasião para deixar claro duas coisas:

a) De nenhum modo se segue a opinião de Jorge Miranda, citada no aresto e referente ao problema da inconstitucionalidade por omissão, designadamente no passo em que aquele constitucionalista afirma que certas leis que se circunscrevem à religião católica «são, ou podem ser, inconstitucionais por omissão - e, como tais, podem ser apreciadas pelo Tribunal Constitucional (artigo 283.º da Constituição) para efeito de ele comunicar aos órgãos legislativos a necessidade constitucional de complementação e adequação».

De um lado, porque se refere a leis inconstitucionais por omissão, figura inexistente nos quadros da CRP (o que há, ou pode haver, adentro do ordenamento jurídico - artigo 283.º da CRP - são situações de inconstitucionalidade por omissão), e, de outro lado, porque, segundo a sua particular perspectiva (perspectiva no interior da qual desenvolve a sua linha de raciocínio), parece fazer derivar o dever especial de legislar - cujo incumprimento por parte do legislador implicará uma situação de inconstitucionalidade por omissão - não pura e simplesmente da própria CRP (artigo 283.º), mas antes da CRP em simbiose com leis ordinárias.

b) E no que respeita à eventual violação do princípio da igualdade por parte das diversas normas do Decreto-Lei 323/83, reafirma-se inteiramente a posição suo tempore assumida no parecer 17/82 da Comissão Constitucional, que se debruçou sobre a (in)constitucionalidade do decreto registado na Presidência do Conselho de Ministros sob o n.º 338-G/82 - MEU, que dispunha precisamente para o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas.

Recordam-se desse parecer, e a propósito, os seguintes passos:

[...] na actualidade, a grande maioria dos portugueses, quanto mais não seja, se sentem atraídos pelo fundo ético do cristianismo e desejam que esse fundo moral continue a ser ensinado aos filhos.

«Neutralidade estatal», escreve Alfonso Fernandez-Miranda Campoamor, «significa radical indiferença por toda a valoração religiosa do facto religioso, indiferença que no plano da actuação política se moldará não por crenças religiosas ou mais objectivas, mas pela efectiva procura social.

Deste modo, a actividade estatal não privilegia nem marginaliza; simplesmente, e na mais escrupulosa indiferença ideológica, dá resposta à procura social [...]».

A procura social em favor do ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas é, de facto, preponderante. Satisfazendo-a está o Estado apenas a tratar desigualmente o que é desigual. Assim, e a este propósito, escreveu Ruffini:

«Falar, porém, de igualdade, ou mesmo de equivalência é simplesmente ridículo em relação àqueles países do continente europeu - a Itália, por exemplo - em que as várias confissões não católicas não chegam a recrutar senão uns escassos milhares de adeptos, desagregados e dispersos, em face dos compactos milhões de fiéis da Igreja católica. Em tais circunstâncias, a ideia de pôr em prática uma perfeita paridade ou igualdade de tratamento jurídico significaria necessariamente que o Estado devia, em homenagem a puras abstracções ou teorias, ignorar a realidade concreta dos factos.

Há uma paridade em sentido falso, que é a da igualdade absoluta, abstracta, matemática, e uma paridade no sentido justo, que é a da igualdade relativa, concreta, jurídica: pois, como justamente escreve Kahl, o verdadeiro princípio da paridade não é a cada um o mesmo, mas a cada um o que lhe pertence.» Não se vê, pois, que nesta óptica, óptica de ordem substancial, se pudesse, de alguma maneira, considerar violado o princípio da igualdade. E nem a particular circunstância de se tratar de um caso de tratamento singular (só a religião católica é protegida por via deste regime) se mostra susceptível de levar a conclusão contrária.

Esta última afirmação pode ser ilustrada até com determinada decisão do Tribunal Constitucional italiano (sentença n.º 79/1958), onde, a propósito da disposição do Código Penal que pune criminalmente certas ofensas à religião católica (artigo 724.º), se entendeu não se verificar aí qualquer violação ao princípio da igualdade, porquanto a circunstância de essa mesma religião ser professada no Estado Italiano pela quase totalidade dos seus cidadãos tornava-a merecedora de uma particular tutela penal, pela maior amplitude e intensidade das reacções sociais naturalmente decorrentes de ofensas desse tipo.

De igual modo, e como acima se salientou, o facto de a regulamentação contida no Decreto-Lei 323/83 beneficiar apenas a religião católica, isto é, o facto de se tratar de um regime caracteristicamente singular em favor dessa religião, não envolve contravenção ao disposto no artigo 13.º da CRP: existem razões materiais bastantes (neste ponto, a realidade social italiana é bastante semelhante à realidade social portuguesa) para justificar plenamente este tratamento de exclusividade.

2 - Já divergi, no entanto, do acórdão enquanto decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral:

Da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83, na parte em que exige daqueles que não desejam receber o ensino da religião e moral católicas uma declaração expressa em tal sentido, por violação do disposto nos artigos 168.º, n.º 1, alínea b), e 41.º, n.os 1 e 3, da CRP;

E das normas dos n.os 2 e 3 do mesmo artigo 2.º, enquanto representam mera consequência da parte da norma que, anteriormente, foi havida como inconstitucional.

Sucessivamente, e quanto a cada uma dessas causas de inconstitucionalização parcial das normas do artigo 2.º, n.os 1, 2 e 3, do Decreto-Lei 323/83, se explicitarão as razões de discordância.

Antes disto, porém, impõe-se um esclarecimento prévio.

Embora a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83 seja segmentada (e não muito feliz, pois que, em vez de se escrever «na parte em que exige daqueles que não desejam receber o ensino da religião e moral católicas uma declaração expressa em tal sentido», por certo se quereria ter escrito antes «na parte em que, para efeitos de os alunos não receberem o ensino da religião e moral católicas, exige dos pais, ou de quem suas vezes fizer, uma declaração expressa em tal sentido»), a verdade é que, ao nível da fundamentação, e apesar de essa declaração de inconstitucionalidade ser parcial, se não traça, a propósito, qualquer linha de clivagem entre os dois segmentos da norma: o segmento inconstitucionalizado e o segmento não inconstitucionalizado.

Assim, quando aí se procede ao confronto da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83 com a CRP, o confronto que se faz é sempre de ordem global e sempre se conclui, nesse plano da fundamentação, pela inconstitucionalidade total da norma. Por isso, não parece inoportuno sublinhar que, neste ponto, há alguma contradição entre a fundamentação e a decisão.

Mais que isto interessa, porém, pôr em destaque que, sendo, neste passo, a fundamentação do acórdão de sentido omnicompreensivo (isto é, dirigida à inconstitucionalização, sem ressalvas, de toda a norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83), logicamente a contra-argumentação que de seguida se desenvolverá terá de ser de igual sinal.

Dada esta explicação preliminar, passam-se, pois, como fora anunciado, a expor encadeadamente os motivos da minha discordância no referente a esta parte da decisão.

a) Quanto à ofensa do artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da CRP por parte da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83.

Dispõe o artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da CRP que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, sobre matéria de direitos, liberdades e garantias.

Em primeiro lugar, nota-se que no acórdão, de fl. 45 a fl. 46, onde a questão é tratada, se não identifica sequer o direito, liberdade ou garantia em causa. De facto, nesse lugar do aresto, depois de se especificarem as alterações que o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83 introduziu no regime anterior, escreve-se unicamente, e em jeito de conclusão, o seguinte:

O conteúdo inovatório e restritivo assim introduzido em matéria de direitos, liberdades e garantias, à revelia da Assembleia da República, não pode deixar de originar inconstitucionalidade orgânica por violação do disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.

Este estilo, algo críptico, sugere duas interrogações: qual o direito, liberdade ou garantia que se teve em vista? Que tipo de restrição se operou nesse domínio? A estas interrogações não se dá resposta. De uma penada, sem se especificar esse direito, liberdade ou garantia, nem se concretizar a restrição que sofreu, o que seria essencial, resolve-se a questão dizendo-se apenas, e em termos globais, que houve inovação restringente em matéria de direitos, liberdades e garantias, à revelia da Assembleia da República.

A meu ver, no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83 só poderá estar em causa um direito fundamental, o do artigo 36.º, n.º 5, da CRP, preceito segundo o qual os pais têm o direito e o dever de educação dos filhos, o que significa - interpretado e integrado este normativo (por força da determinação constante do artigo 16.º, n.º 2, da CRP) em função do disposto no artigo 26.º, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem - que «aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos».

Este direito dos pais na escolha da educação a ser proporcionada aos filhos menores abarca necessariamente a área do ensino religioso. Neste mesmo sentido, escreveu Jean-Denis Bredin, Recueil Dalloz, 1960, p. 73, o seguinte:

A educação religiosa é um aspecto da educação geral, e o direito de escolher a religião de um menor, e de fixar a sua prática, situa-se, pois, no quadro de prerrogativas próprias do poder paternal.

Tendo agora em conta a situação em análise, observa-se, antes de mais, que a este direito fundamental já o regime precedente (artigo XXI da Concordata e base VII da Lei 4/71, de 21 de Agosto) reconhecera a possibilidade do seu exercício, ao nível das escolas públicas, onde então se veio a ministrar o ensino da religião e moral católicas. Este aspecto do regime, aspecto de ordem substancial, é que seria, sim, da competência exclusiva da Assembleia da República, nos precisos termos do artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da CRP: em causa estava então a concretização de certo conteúdo de um direito fundamental.

Ao contrário, a componente regulamentar do exercício, de tal direito, que tem unicamente a ver com o modo como os pais, ou quem suas vezes fizer, hão-de manifestar, relativamente aos filhos menores, a vontade de lhes ser proporcionado ou não o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas, configura um aspecto secundário de tal regime, um aspecto simplesmente processual e ínfimo, logo não compreendido no sector de reserva parlamentar definido no artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da CRP. Na verdade, com tal regulamentação nada se tirou ou acrescentou ao conteúdo do direito fundamental em exame, apenas se explicitando como ele deveria ser exercido em determinada situação.

O Governo estava, assim, constitucionalmente legitimado para inovar em relação ao regime precedente nos termos em que o fez nesse artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83, pois que tal matéria, de acordo com tomada de posição anterior, escapava ao quadro de reserva parlamentar.

Por conseguinte, na minha visualização das coisas, não ocorreu aqui a apontada inconstitucionalidade orgânica.

b) Quanto à ofensa do artigo 41.º, n.os 1 e 3, da CRP por parte da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83.

Determina o artigo 41.º, n.os 1 e 3, da CRP que a liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável e que ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou práticas religiosas, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.

Ora, é precisamente este preceito que o acórdão considera agora ter sido também infringido pelo artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83. E nesse sentido argumenta:

[...] impõe-se o ensino da religião e moral católicas aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, [...] não declararem expressamente desejo em contrário.

Desta forma impõe-se uma declaração de sentido negativo para aquele ensino não se tornar obrigatório [...] Através deste dispositivo obriga-se [...] a exteriorização de uma manifestação de vontade, que se desejaria silenciar e manter no domínio da estrita reserva pessoal.

Ora, toda a liberdade de não fazer - no caso em presença, a liberdade negativa de religião - é violada quando se exige e impõe um acto, um facere (a manifestação de uma declaração de vontade) como condição indispensável e necessária à sua usufruição.

[...] Tudo isto traduz colisão com o já afirmado princípio da liberdade religiosa, em cujas vertentes específicas se inscreve o direito de escolher livremente a confissão que se pretende professar ou em recusar qualquer confissão e o direito de guardar reserva pessoal sobre tal escolha, mantendo-a indevassável no foro íntimo.

Desta feita, ao interpretar-se o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83, especifica-se com precisão a liberdade que se entende estar aí em jogo. Como flui da posição já antes assumida, neste campo, noutro passo da declaração de voto, não se pode deixar de discordar, e em termos frontais, da leitura que, a esse propósito, se fez do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83, leitura que simplesmente não escutou a voz interna do preceito. Melhor dizendo, em vez de uma leitura da norma, como que dela se fez uma subleitura e se chegou, por isso, a uma conclusão hermenêutica - a meu ver - de todo em todo inaceitável.

Na verdade, ao estatuir-se no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83 que será ministrado «o ensino da religião e moral católicas nas escolas primárias, preparatórias e secundárias públicas aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não declararem expressamente desejo em contrário», dispôs-se apenas sobre o modo como, no caso particular das escolas públicas, o direito fundamental dos pais à escolha da educação religiosa para os filhos deverá ser exercitado.

A interpretação em contrário, a que no acórdão se chegou, parte afinal de um falso pressuposto: o de que os progenitores, ao assumirem as atitudes de declaração tácita e de declaração expressa, referidas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83, estão necessariamente a confessar publicamente que professam (primeiro caso) ou que não professam (segundo caso) a religião católica. Ora, o certo é que essa relação de absoluta necessidade não existe: pelas mais diversas razões, pode ser-se católico e não se querer que os filhos frequentem aulas de religião e moral católicas; e, ao invés, não ser católico e desejar-se tal frequência disciplinar para os filhos.

Desta forma, tem-se por evidente que no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83 está em questão unicamente o direito fundamental dos pais previsto no artigo 36.º, n.º 5, da CRP, e numa sua particular dimensão, na dimensão de escolha de educação religiosa para os descendentes imediatos, e que tal direito não é aí, de qualquer jeito, restringido ou comprimido.

E não se reconhecendo à norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83 a potência significativa que no acórdão se lhe atribuiu, não se reconheceu igualmente que ela pudesse ter qualquer eco negativo no plano do artigo 41.º, n.os 1 e 3, da CRP.

c) Quanto à inconstitucionalidade consequencial de certos segmentos das normas do artigo 2.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 323/83.

Se não se houve por inconstitucional - por uma ou outra razão - a norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 323/83, logicamente se não poderiam ter por consequencialmente inconstitucionais, ainda que só em parte, as normas dos n.os 2 e 3 do artigo 2.º do Decreto-Lei 323/83.

De qualquer sorte, não se quer deixar de notar que no corpo do acórdão nem sequer se explicou qual a relação existente entre a norma do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 323/83 e as normas dos n.os 2 e 3 desse mesmo artigo 2.º, que, por si só, postularia tal inconstitucionalização derivada ou subsequente. Assim sendo, e nesse ponto, a declaração de inconstitucionalidade carece, obviamente, de fundamentação. - Raul Mateus.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/1987/11/26/plain-42644.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/42644.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1935-05-23 - Lei 1910 - Presidência do Conselho

    Altera a Constituïção Política da República, respeitante ao ensino ministrado pelo Estado.

  • Tem documento Em vigor 1951-06-11 - Lei 2048 - Presidência da República

    Introduz alterações na Constituição Política da República Portuguesa.

  • Tem documento Em vigor 1965-08-25 - Portaria 21490 - Ministério da Educação Nacional - Direcção-Geral do Ensino Primário

    Regula a incumbência do ensino da moral e religião a fazer nos estabelecimentos de ensino primário oficial segundo os planos e textos aprovados.

  • Tem documento Em vigor 1971-08-21 - Lei 4/71 - Presidência da República

    Promulga as bases relativas à liberdade religiosa.

  • Tem documento Em vigor 1973-07-25 - Lei 5/73 - Presidência da República

    Aprova as bases a que deve obedecer a reforma do sistema educativo.

  • Tem documento Em vigor 1975-04-04 - Decreto 187/75 - Ministério dos Negócios Estrangeiros - Direcção-Geral dos Negócios Políticos

    Aprova, para ratificação, o Protocolo Adicional à Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa.

  • Tem documento Em vigor 1979-10-04 - Lei 65/79 - Assembleia da República

    Liberdade do ensino.

  • Tem documento Em vigor 1980-12-18 - Portaria 1077/80 - Ministério da Educação e Ciência

    Regulamenta alguns aspectos do ensino de Religião e Moral Católicas no ensino primário e sistematiza num único diploma as normas vigentes sobre o mesmo ensino.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1983-07-05 - Decreto-Lei 323/83 - Ministério da Educação

    Fixa uma adequada regulamentação da leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas.

  • Tem documento Em vigor 1986-07-02 - Portaria 333/86 - Ministério da Educação e Cultura

    Regulamenta a leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas no ensino primário. Revoga a Portaria n.º 1077/80, de 18 de Dezembro.

  • Tem documento Em vigor 1986-10-14 - Lei 46/86 - Assembleia da República

    Aprova a lei de bases do sistema educativo.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1988-05-31 - Portaria 344-A/88 - Ministério da Educação

    DEFINE REGRAS A OBSERVAR, BEM COMO OS MODELOS DOS IMPRESSOS DE MATRÍCULA PARA A INSCRIÇÃO ESPECÍFICA NA DISCIPLINA DE RELIGIÃO E MORAL CATOLICA, NOS DIVERSOS ANOS DOS PRIMEIRO, SEGUNDO E TERCEIRO CICLOS DO ENSINO BASICO E DO ENSINO SECUNDÁRIO.

  • Tem documento Em vigor 2002-12-18 - Acórdão 474/2002 - Tribunal Constitucional

    Dá por verificado o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível o direito previsto na alínea e) do n.º 1 do seu artigo 59.º relativamente a trabalhadores da Administração Pública ( direito à assistência material quando em situação involuntária de desemprego (Procº. 489/94).

  • Tem documento Em vigor 2014-09-15 - Acórdão do Tribunal Constitucional 578/2014 - Tribunal Constitucional

    Decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma contida na parte final do artigo 9.º, n.º 1, do Decreto que pretende adaptar à Região Autónoma da Madeira o regime jurídico constante do Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho, na parte em que dele decorre que os encarregados de educação que não queiram que os seus educandos frequentem atividades de educação moral e religiosa tenham de manifestar essa vontade negativa, por violação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea b), 227.º, n.º 1, alínea a), 41.º, n (...)

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