Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório. - 1 - Requerente e pedido
Um grupo de deputados à Assembleia da República veio requerer, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 e na alínea f) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no n.º 1 dos artigos 51.º e 62.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011).O teor das normas questionadas é o seguinte:
«CAPÍTULO III
Disposições relativas a trabalhadores do sector públicoSECÇÃO I
Disposições remuneratórias
Artigo 19.º
Redução remuneratória
1 - A 1 de Janeiro de 2011 são reduzidas as remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o n.º 9, de valor superior a (euro) 1500, quer estejam em exercício de funções naquela data, quer iniciem tal exercício, a qualquer título, depoisdela, nos seguintes termos:
a) 3,5 % sobre o valor total das remunerações superiores a (euro) 1500 e inferiores a(euro) 2000;
b) 3,5 % sobre o valor de (euro) 2000 acrescido de 16 % sobre o valor da remuneração total que exceda os (euro) 2000, perfazendo uma taxa global que varia entre 3,5 % e 10 %, no caso das remunerações iguais ou superiores a (euro) 2000 até(euro) 4165;
c) 10 % sobre o valor total das remunerações superiores a (euro) 4165.2 - Excepto se a remuneração total ilíquida agregada mensal percebida pelo trabalhador for inferior ou igual a (euro) 4165, caso em que se aplica o disposto no número anterior, são reduzidas em 10 % as diversas remunerações, gratificações ou outras prestações pecuniárias nos seguintes casos:
a) Pessoas sem relação jurídica de emprego com qualquer das entidades referidas no n.º 9, nestas a exercer funções a qualquer outro título, excluindo -se as aquisições de
serviços previstas no artigo 22.º;
b) Pessoas referidas no n.º 9 a exercer funções em mais de uma das entidadesmencionadas naquele número.
3 - As pessoas referidas no número anterior prestam, em cada mês e relativamente ao mês anterior, as informações necessárias para que os órgãos e serviços processadores das remunerações, gratificações ou outras prestações pecuniárias possam apurar a taxade redução aplicável.
4 - Para efeitos do disposto no presente artigo:a) Consideram -se remunerações totais ilíquidas mensais as que resultam do valor agregado de todas as prestações pecuniárias, designadamente, remuneração base, subsídios, suplementos remuneratórios, incluindo emolumentos, gratificações, subvenções, senhas de presença, abonos, despesas de representação e trabalho suplementar, extraordinário ou em dias de descanso e feriados;
b) Não são considerados os montantes abonados a título de subsídio de refeição, ajuda de custo, subsídio de transporte ou o reembolso de despesas efectuado nos termos da lei e os montantes pecuniários que tenham natureza de prestação social;
c) Na determinação da taxa de redução, os subsídios de férias e de Natal são
considerados mensalidades autónomas;
d) Os descontos devidos são calculados sobre o valor pecuniário reduzido poraplicação do disposto nos n.os 1 e 2.
5 - Nos casos em que da aplicação do disposto no presente artigo resulte uma remuneração total ilíquida inferior a (euro) 1500, aplica -se apenas a redução necessária a assegurar a percepção daquele valor.6 - Nos casos em que apenas parte da remuneração a que se referem os n.os 1 e 2 é sujeita a desconto para a CGA, I. P., ou para a segurança social, esse desconto incide sobre o valor que resultaria da aplicação da taxa de redução prevista no n.º 1 às prestações pecuniárias objecto daquele desconto.
7 - Quando os suplementos remuneratórios ou outras prestações pecuniárias forem fixados em percentagem da remuneração base, a redução prevista nos n.os 1 e 2 incide sobre o valor dos mesmos, calculado por referência ao valor da remuneração base
antes da aplicação da redução.
8 - A redução remuneratória prevista no presente artigo tem por base a remuneração total ilíquida apurada após a aplicação das reduções previstas nos artigos 11.º e 12.º da Lei 12-A/2010, de 30 de Junho, e na Lei 47/2010, de 7 de Setembro, para os 9 - O disposto no presente artigo é aplicável aos titulares dos cargos e demais pessoalde seguida identificado:
a) O Presidente da República;
b) O Presidente da Assembleia da República;
c) O Primeiro -Ministro;
d) Os Deputados à Assembleia da República;
e) Os membros do Governo;
f) Os juízes do Tribunal Constitucional e juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República, bem como os magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e juízes da jurisdição administrativa e fiscal e dos julgados de paz;g) Os Representantes da República para as regiões autónomas;
h) Os deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas;
i) Os membros dos governos regionais;
j) Os governadores e vice -governadores civis;
l) Os eleitos locais;
m) Os titulares dos demais órgãos constitucionais não referidos nas alíneas anteriores, bem como os membros dos órgãos dirigentes de entidades administrativas independentes, nomeadamente as que funcionam junto da Assembleia da República;n) Os membros e os trabalhadores dos gabinetes, dos órgãos de gestão e de gabinetes de apoio, dos titulares dos cargos e órgãos das alíneas anteriores, do Presidente e Vice -Presidente do Conselho Superior da Magistratura, do Presidente e Vice -Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, do Presidente e juízes do Tribunal Constitucional, do Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, do Presidente do Tribunal de Contas, do Provedor de Justiça e do Procurador-Geral da República;
o) Os militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana, incluindo os juízes militares e os militares que integram a assessoria militar ao Ministério Público,
bem como outras forças militarizadas;
p) O pessoal dirigente dos serviços da Presidência da República e da Assembleia da República, e de outros serviços de apoio a órgãos constitucionais, dos demais serviços e organismos da administração central, regional e local do Estado, bem como o pessoal em exercício de funções equiparadas para efeitos remuneratórios;q) Os gestores públicos, ou equiparados, os membros dos órgãos executivos, deliberativos, consultivos, de fiscalização ou quaisquer outros órgãos estatutários dos institutos públicos de regime geral e especial, de pessoas colectivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo, das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, das fundações públicas e de quaisquer outras
entidades públicas;
r) Os trabalhadores que exercem funções públicas na Presidência da República, na Assembleia da República, em outros órgãos constitucionais, bem como os que exercem funções públicas, em qualquer modalidade de relação jurídica de emprego público, nos termos do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 2.º e nos n.os 1, 2 e 4 do artigo 3.º da Lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis n.os 64-A/2008, de 31 de Dezembro, e 3-B/2010, de 28 de Abril, incluindo os trabalhadores em mobilidadeespecial e em licença extraordinária;
s) Os trabalhadores dos institutos públicos de regime especial e de pessoas colectivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas deregulação, supervisão ou controlo;
t) Os trabalhadores das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, com as adaptações autorizadas e justificadas pela suanatureza empresarial;
u) Os trabalhadores e dirigentes das fundações públicas e dos estabelecimentos públicos não abrangidos pelas alíneas anteriores;v) O pessoal nas situações de reserva, pré -aposentação e disponibilidade, fora de efectividade de serviço, que beneficie de prestações pecuniárias indexadas aos
vencimentos do pessoal no activo.
10 - Aos subscritores da Caixa Geral de Aposentações que, até 31 de Dezembro de 2010, reúnam as condições para a aposentação ou reforma voluntária e em relação aos quais, de acordo com o regime de aposentação que lhes é aplicável, o cálculo da pensão seja efectuado com base na remuneração do cargo à data da aposentação, não lhes é aplicável, para efeito de cálculo da pensão, a redução prevista no presente artigo, considerando-se, para esse efeito, a remuneração do cargo vigente em 31 de Dezembro de 2010, independentemente do momento em que se apresentem a requerera aposentação.
11 - O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo serafastado ou modificado pelos mesmos.
Artigo 20.º
Alteração à Lei 21/85, de 30 de Julho É aditado ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei 21/85, de 30 de Julho, o artigo 32.º -A, com a seguinte redacção:
"Artigo 32.º-A
Redução remuneratória
1 - As componentes do sistema retributivo dos magistrados, previstas no artigo 22.º, são reduzidas nos termos da lei do Orçamento do Estado.2 - Os subsídios de fixação e de compensação previstos nos artigos 24.º e 29.º, respectivamente, equiparados para todos os efeitos legais a ajudas de custo, são
reduzidos em 20 %."
Artigo 21.º
Alteração à Lei 47/86, de 15 de Outubro É aditado ao Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 47/86, de 15 de Outubro, o artigo 108.º-A, com a seguinte redacção:
"Artigo 108.º-A
Redução remuneratória
1 - As componentes do sistema retributivo dos magistrados, previstas no artigo 95.º, são reduzidas nos termos da lei do Orçamento do Estado.2 - Os subsídios de fixação e de compensação previstos nos artigos 97.º e 102.º, respectivamente, equiparados para todos os efeitos legais a ajudas de custo, são
reduzidos em 20 %."».
2 - Fundamentos do pedido
Os requerentes fundamentaram o pedido nos seguintes termos:
«A) Introdução
1) Em 26 de Novembro de 2010, o plenário da Assembleia da República aprovou, em votação final global, a lei do Orçamento do Estado para 2011, diploma que depois viria a ser promulgado pelo Presidente da República e publicado no Diário da República, em 31 de Dezembro de 2010, como Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro.2) No artigo 19.º dessa lei do Orçamento do Estado para 2011, estabelece-se a redução definitiva e permanente das remunerações de diversas categorias de trabalhadores e dirigentes da Administração Pública e instituições equiparadas, extenso artigo que damos aqui por integralmente reproduzido.
3) O principal preceito que cumpre evidenciar desse artigo 19.º é o que consta do seu n.º 1, no qual se afirma que "1 - A 1 de Janeiro de 2011 são reduzidas as remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o n.º 9, de valor superior a 1500 euros, quer estejam em exercício de funções naquela data, quer iniciem tal exercício, a qualquer título, depois dela, nos seguintes termos: a) 3,5 % sobre o valor total das remunerações superiores a 1500 euros e inferiores a 2000 euros; b) 3,5 % sobre o valor de 2000 euros acrescido de 16 % sobre o valor da remuneração total que exceda os 2000 euros, perfazendo uma taxa global que varia entre 3,5 % e 10 %, no caso das remunerações iguais ou superiores a 2000 euros até 4165 euros; c) 10 % sobre o valor total das remunerações superiores a 4165 euros".
4) Nesse mesmo artigo 19.º da Lei 55-A/2010, ainda se esclarece, no seu n.º 8, que "A redução remuneratória prevista no presente artigo tem por base a remuneração total ilíquida apurada após a aplicação das reduções previstas nos artigos 11.º e 12.º da lei 55-A/2010 de 30 de Junho, e na Lei 47/2010 de 7 de Setembro, para o
universo neles referidos."
5) Cumpre ainda mencionar como sendo objecto do presente pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade os artigos 20.º e 21.º da Lei 55-A/2010, na medida em que igualmente estabelecem reduções definitivas, respectivamente, nas remunerações dos juízes e dos magistrados do Ministério Público, preceitos que também se dão aqui por integralmente reproduzidos.6) Ao contrário do que tem sido noticiado, essa é uma redução definitiva, e não apenas temporária, uma vez que a alteração legislativa que se introduziu não foi acompanhada
de qualquer cláusula de temporalidade.
7) Nem sequer serve de argumento para dizer o contrário o facto de a lei do Orçamento do Estado ser um diploma legislativo temporário em atenção à previsão que nele se faz das receitas e despesas a realizar no ano a que respeita, porquanto essa temporalidade é das verbas e não da parte normativa que as leis orçamentais têm vindoa acrescentar cada vez mais.
8) De resto, a leitura do último preceito da Lei 55-A/2010, o artigo 187.º, é muito elucidativa a este propósito uma vez que nele se estabelece o início da vigência de todo o diploma não simultaneamente estabelecendo qualquer fim para a sua vigência, daí se retirando o óbvio resultado de aquelas reduções valerem a título permanente.9) A gravidade desta medida, para além daquilo que tem de injusto e de imoral, é também de natureza jurídica, por violar a Constituição da República Portuguesa, em várias das suas disposições e princípios.
B) Violação do princípio do Estado de Direito 10) Em primeiro lugar, essa norma afigura-se inconstitucional por ofender o princípio constitucional do Estado de Direito, tal como ele é plasmado no artigo 2.º do texto da
Constituição.
11) Através desse princípio constitucional, podemos perceber que o Estado de Direito implica uma relação de confiança com os cidadãos, não podendo o poder público, sem justificação ou fundamentação material bastante, frustrar as legítimas expectativascriadas.
12) O princípio do Estado de Direito, nesta vertente do subprincípio da protecção da confiança, não impede a alteração das leis, mesmo que isso corresponda a alterações globais de projectos profissionais na Administração Pública.13) Mas decerto que esse princípio não aceita que tais alterações ponham em causa, para sempre, níveis remuneratórios que legitimamente os trabalhadores em funções públicas consideraram essenciais e irredutíveis no sentido de a partir deles terem
construído as suas opções profissionais.
14) E essa violação é tanto mais violenta quanto é certo ser ela uma infracção que se traduz numa redução salarial permanente, sem que aos trabalhadores sejam dadas perspectivas de reposição, no futuro, dos níveis que até agora têm tido e que não têmsido questionados.
15) Por outro lado, não se pode esquecer ainda o facto de essa violação se justificar no carácter arbitrário da redução porque, sendo permanente, ela assenta num pressuposto que é temporário, que é o pressuposto da crise económico-financeira que grassa nopaís.
16) Pelo que também por esta via não se vislumbra a justificação material para aquela redução, que nem sequer se mostra ser temporária, antes definitiva.17) Neste exacto sentido, aliás, já decidiram os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 303/90, de 21/11, e n.º 141/2002, de 9/4, relativos, respectivamente, a uma norma da lei do Orçamento do Estado de 1989 que determinou o abaixamento dos vencimentos de um certo conjunto de professores e a uma norma da lei do Orçamento do Estado de 1992 que, estabelecendo o limite máximo da remuneração do Primeiro-Ministro para os vencimentos de determinados funcionários públicos, implicou, nalguns casos, a redução de tais vencimentos.
C) Violação do princípio da igualdade
18) Em segundo lugar, essa norma incluída na lei do Orçamento do Estado para 2011 que reduziu os salários dos trabalhadores em funções públicas é também violadora do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.19) Por esse princípio se percebe que o legislador não pode determinar as suas normas de um modo caprichoso, antes se submete a sérios e rigorosos ditames de igualação e de discriminação positiva, conforme os casos.
20) Na norma objecto deste pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade ao Tribunal Constitucional, a discriminação negativa dos trabalhadores da Administração Pública é manifesta por terem sido prejudicados com esta redução definitiva de salários, sendo certo que há outras categorias de trabalhadores que são igualmente pagos com dinheiros públicos e que não foram atingidos por uma idêntica medida.
21) O legislador, na sua arbitrariedade claramente violadora deste critério de igualdade, chegou ao ponto de nalguns casos até ter construído uma ideia alternativa de adaptação dos salários quanto a outros trabalhadores, e não propriamente a sua redução, com o subterfúgio de tais trabalhadores terem um título jurídico salarial diverso dos
trabalhadores em funções públicas.
D) Violação do direito fundamental à não redução do salário 22) Em terceiro lugar, cumpre ainda referir a circunstância de os salários dos trabalhadores da Administração Pública, que têm um regime próprio, beneficiarem de um regra de irredutibilidade geral dos mesmos, à semelhança do que sucede com as remunerações dos trabalhadores que se submetem ao Direito do Trabalho.23) E é bom de ver que os escassos casos em que a redução do salário é aceite não correspondem à norma que agora veio a ser incluído na lei do Orçamento do Estado
para 2011.
24) Mas deve entender-se que estas normas dos regimes gerais dos trabalhadores em funções públicas ou do Código do Trabalho, integrando leis ordinárias, não são normas que possam ser simplesmente alteradas por uma outra lei ordinária, como a lei doOrçamento do Estado para 2011.
25) Essa é uma conclusão segura pelo facto de aquelas normas juslaborais, públicas ou privadas, reflectirem e concretizarem a realidade superior do direito ao trabalho e do direito ao salário justo dos trabalhadores, que são constitucionalmente acolhidos pelos princípios e pelas disposições que informam a Constituição Laboral.26) Recorde-se também que aquelas normas podem funcionar como direitos fundamentais legais, reconhecidos por legislação ordinária, mas que por via do art. 16, n.º 1, da Constituição, acabam por obter uma força constitucional paralela, a ponto de não poderem ser alteradas ou revogadas por uma lei ordinária posterior.
27) Quer isto dizer que o legislador laboral, público e privado, tem criado novos direitos fundamentais dos trabalhadores por via dessa legislação, sendo o direito à irredutibilidade dos salários, públicos ou privados, um desses direitos fundamentais
legais, mas com protecção constitucional.
E) Violação do direito fundamental de participar na elaboração da legislação laboral por parte das entidades representativas dos trabalhadores 28) Em quarto lugar, é finalmente de mencionar o facto de esta legislação laboral que reduziu os salários não ter sido devidamente precedida pelas obrigatórias consultas às entidades representativas dos trabalhadores, sendo certo que a lei orçamental tem omesmo regime, neste ponto, das outras leis.
29) É isso o que se dispõe nos artigos 54.º, n.º 5, al. d), e 56.º, n.º 2, al. a), da Constituição, e também no art. 134º do Regimento da Assembleia da República, pelo que se trata de legislação inconstitucional por preterição dessa audição, pacificamente considerada obrigatória pelo próprio Tribunal Constitucional.30) E não parece haver dúvidas sobre o carácter laboral desta medida, até se podendo dizer que nenhuma outra norma se conhece como sendo tão laboral como esta, pois reduz aquilo que de mais essencial e sagrado um trabalhador tem, que é o seu salário.
Termos em que se pede ao Tribunal Constitucional a declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de todas as normas dos arts. l9.º, 20.º e 21.º da lei do Orçamento do Estado para 2011, aprovado pela Lei n.º
55-A/2010, de 31 de Dezembro.»
3 - Resposta do órgão autor da norma
Notificado para se pronunciar sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República veio juntar aos autos cópia da documentação relativa aos trabalhos preparatórios da Lei 55-A/2010 e oferecer o merecimento dos autos.
4 - Memorando
Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em harmonia com o que então se estabeleceu.II - Fundamentação. - 5 - Vigência temporal das normas impugnadas O artigo 19.º, n.os 1 e 2, da Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011) opera uma redução das remunerações, entre 3,5 % e 10 %, consoante o seu montante, de um amplo universo de pessoas, identificadas no n.º 9 do mesmo preceito. São genericamente abrangidos todos quantos auferem retribuições mensais, pagas por dinheiros públicos, superiores a 1500 euros, designadamente os titulares de órgãos de soberania, dos demais órgãos constitucionais e de cargos públicos, os militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana, os gestores públicos e equiparados, e os trabalhadores na Administração central, regional e local do Estado, bem como em empresas, fundações e
estabelecimentos públicos.
O artigo 20.º do mesmo diploma, por sua vez, altera o Estatuto dos Magistrados Judiciais (aprovado pela Lei 21/85, de 30 de Julho), através do aditamento, a este corpo normativo, do artigo n.º 32.º-A. Este preceito, no seu n.º 1, determina a redução, "nos termos da lei do Orçamento de Estado", das componentes retributivas (vencimento mensal e diuturnidades) previstas no artigo 22.º do referido Estatuto; no n.º 2, reduz, em 20 %, o valor dos "subsídios de fixação e compensação" previstos nos artigos 24.º e 29.º do referido Estatuto, verbas atribuídas, respectivamente, a quem exerça funções nas regiões autónomas e a quem não seja disponibilizada, pelo Ministério da Justiça, casa de habitação nas localidades em que tal se mostrenecessário.
Idêntico regime consagra o novo artigo 108.º-A do Estatuto do Ministério Público (aprovado pela Lei 47/86, de 15 de Outubro), introduzido pelo artigo 21.º da lei do OE para 2011. Aí se prescreve que as componentes retributivas (remuneração base e suplementos) previstas no artigo 95.º desse Estatuto serão reduzidas "nos termos da lei do Orçamento de Estado", ou seja, entre 3,5 % e 10 %. Reduz-se ainda, em 20 %, o valor dos "subsídios de fixação e compensação" previstos nos artigos 97.º e 102.º doEstatuto do Ministério Público.
A primeira questão que se deverá levantar é a de saber se as reduções de remunerações e de subsídios atrás descritas operam a título definitivo ou apenas a título transitório. É uma questão a ser abordada e solucionada desde já, pois a resposta que se lhe dê constitui um muito relevante factor de valoração, actuante transversalmente em todos os campos problemáticos de aplicação dos parâmetros constitucionaisinvocados.
Os requerentes afirmam, a este respeito, que a medida é definitiva, pois as normas que a prevêem não têm qualquer cláusula de temporalidade e a anualidade do orçamento vale apenas no que respeita às verbas nele inscritas.E a verdade é que o artigo 19.º prescreve que o regime de redução se aplica a partir de 1 de Janeiro de 2011 ("A 1 de Janeiro de 2011 são reduzidas as remunerações..."), mas não determina a data da cessação da sua vigência. O mesmo faz, para todo o diploma, o artigo 187.º, que estabelece o mesmo início de vigência, mas é omisso
quanto ao seu fim.
Não se pode, contudo, inferir daí o carácter definitivo da vigência de tais normas. É necessário ter aqui em conta a natureza que revestem e os preceitos constitucionais relativos à vigência das leis do Orçamento.Apesar de as normas agora impugnadas se inserirem no Orçamento de Estado, podem levantar-se dúvidas quanto à sua natureza especificamente orçamental, dado que não consistem numa mera inscrição de verbas, em normas de aprovação dos mapas de receitas e despesas. Não obstante, não podem ser consideradas cavaliers budgétaires, pois apresentam uma imediata incidência financeira, já que visam directamente reduzir o valor das despesas inscritas no orçamento para o ano a que respeita. Não pode, assim, sustentar-se que elas regulam matéria alheia à função específica e mais estrita do orçamento, enquanto instrumento de programação anual económico-financeira da actividade do Estado. Pelo contrário. Dando suporte normativo a uma dada previsão de despesas, e sendo a sua aplicação indispensável à sua correcta execução, elas repercutem-se directamente no próprio quadro contabilístico do orçamento, integrando-se substancialmente neste diploma, como sua componente essencial. E nisso parece esgotar-se a sua eficácia, pois não se projectam, com independência, para fora da aprovação e execução do Orçamento do Estado.
É o suficiente para se poder afirmar que estamos perante medidas de carácter orçamental, com o regime correspondente. Consequentemente, por força de regra constitucional (artigo 106.º, n.º 1, da Constituição), elas não podem gozar de vigência que não seja a anual. Nem é necessário determinar expressamente o termo final da sua vigência, pois este está definido constitucional e legislativamente (artigo 4.º, n.º 1, da lei de enquadramento orçamental - Lei 91/2001, de 20 de Agosto, na redacção da Lei
n.º 48/2004, de 24 de Agosto).
Que as normas impugnadas não visam instituir, com carácter de permanência, um novo regime jurídico dos níveis remuneratórios aplicáveis aos sujeitos abrangidos, em substituição definitiva do anteriormente vigente, que, desta forma, resultaria eliminado da ordem jurídica, é interpretação que encontra também algum apoio textual num segmento do n.º 1 e na alínea d) do n.º 4 do artigo 19.º da lei do Orçamento doEstado.
Na primeira destas disposições, estabelece-se que a redução é aplicável, não só aos que se encontrem em exercício de funções em 1 de Janeiro de 2011, mas também aos que iniciem tal exercício, depois dessa data. Ora, em relação a estes, que, ab initio, têm o seu quantitativo remuneratório determinado (também) pelas normas impugnadas, nunca tendo auferido, no passado, um valor mais elevado, a previsão expressa de uma redução só se justifica no pressuposto de que os índices anteriores não desapareceram do universo jurídico. Só por confronto com esses índices se pode afirmar que osvalores de remuneração resultam reduzidos.
Raciocínio estruturalmente semelhante se pode desenvolver, a propósito do n.º 4, alínea d), do preceito em causa. Aí se dispõe que «os descontos devidos são calculados sobre o valor pecuniário reduzido por aplicação do disposto nos n.os 1 e 2». O enunciado deste regime (a preocupação em o enunciar) só se compreende se for admitido um outro quadro referencial como alternativa possível, para servir de base para as deduções. E esse quadro só pode ser o dos vencimentos sem as reduções, o que parece subentender que esta medida orçamental é transitória.No que especificamente respeita às reduções remuneratórias, propriamente ditas, dos magistrados judiciais e dos magistrados do Ministério Público (as reduções que incidem sobre as componentes do sistema retributivo que se lhes aplica), vale seguramente o mesmo. Elas são duplamente determinadas pela lei do Orçamento do Estado, que, para além de incluir tais magistrados no rol dos sujeitos abrangidos (alínea f) do n.º 9 do artigo 19.º), introduz aditamentos aos respectivos Estatutos (os novos artigos 32.º-A e 108.º-A), onde se prevê, nos n.os 1, reduções "nos termos da lei do Orçamento do Estado". Mas tal inserção nos Estatutos parece apenas pretender obviar a eventual inconstitucionalidade por ofensa da "reserva de estatuto", atendendo designadamente ao alcance que a este conceito deu o Acórdão 620/2007. Não retira a tais medidas
o seu carácter orçamental.
Esta conclusão sai reforçada se atentarmos em que as novas normas estatutárias não fixam, elas próprias, a redução a que ficam sujeitos os vencimentos dos magistrados.Reenviam expressamente para os termos da lei orçamental, o que só pode significar que, nesta matéria, os Estatutos não gozam de qualquer autonomia de regime, estando o seu conteúdo normativo e âmbito de eficácia indissoluvelmente presos aos da lei orçamental. O regime aplicável, não só quanto aos quantitativos a reduzir, mas também quanto a todos os outros aspectos coenvolvidos, replica automaticamente o que consta desta lei e ao que é inferível da sua natureza específica.
Já é muito duvidoso que o mesmo se possa dizer da redução em 20 % dos subsídios equiparados a ajudas de custo, por força dos n.os 2 dos artigos 32.º-A e 108.º-A dos Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, respectivamente, aditados pelos artigos 20.º, o primeiro, e 21.º, o segundo, da lei do OE de 2011. O montante muito superior da taxa de redução (o dobro da taxa máxima das restantes reduções), o facto de ela se não processar "nos termos da lei do Orçamento do Estado" (só por força dessa diferença quantitativa?), o estabelecimento de uma disciplina adicional (a equiparação dos subsídios a ajudas de custo), que não tem a ver directamente com a fixação de montantes das prestações, podem legitimamente levar a supor que a razão de ser e a natureza desta medida não são exactamente coincidentes com as das reduções remuneratórias. Nesta óptica, posto que não sejam alheias à intenção geral de redução dos gastos públicos, que "marca" o OE de 2011, as normas, agora introduzidas, referentes aos subsídios de fixação e compensação, visariam objectivos e promanariam de critérios que ultrapassam esse desiderato.
A ser assim, a correlação com a lei do orçamento é apenas genética. Uma vez editado, este regime desprende-se do seu local de nascimento, ganha vida própria, sobrevive por si, sem dependência funcional da lei que operou essa inserção. O que significará que basta a inércia do legislador para que os efeitos da redução agora operada, ainda que incidente apenas sobre os montantes em vigor à data da emissão da norma, perdurem indefinidamente, constituindo os montantes resultantes da redução a base de
futuras e eventuais actualizações.
Esta interpretação ganha crédito se conexionarmos a iniciativa de introdução desta redução específica com os trabalhos, que simultaneamente decorriam, de revisão de certos aspectos do Estatuto dos Magistrados Judiciais e do Estatuto do Ministério Público. A redução representará, nesta perspectiva, uma solução alternativa a outras propostas de alteração do regime dos subsídios de fixação e de compensação que chegaram a ser formuladas e publicitadas. E, efectivamente, a Lei 9/2011, de 12 de Abril de 2011, que contém a 14.ª revisão do Estatuto dos Magistrados Judiciais e a 10.ª revisão do Estatuto do Ministério Público, abandonou essas propostas, deixandoinalterado o regime daqueles subsídios.
Há fortes indícios, pois, de estarmos perante uma correcção não transitória do quantum de tais prestações. Como tal será tratada nas valorações subsequentes.Tudo o que atrás se disse, quanto às reduções das remunerações, releva de uma análise estritamente jurídica da situação normativa actual. Mas não pode ignorar-se que as reduções remuneratórias estabelecidas na lei do Orçamento do Estado de 2011 têm como objectivo final a diminuição do défice orçamental para um valor precisamente quantificado, respeitador do limite estabelecido pela União Europeia, no quadro das regras da união económica e monetária. Para o efeito, foi estabelecida uma calendarização por etapas anuais, sendo que a satisfação plena de tal objectivo só se atingirá, de acordo com o programado, em 2013. Programa que, note-se, não traça metas de consecução desejável mas de cumprimento incerto, responsabilizadoras apenas internamente, em termos político-eleitorais, antes estabelece compromissos firmes do Estado português perante instâncias internacionais, compromissos constantes, num primeiro momento, do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e, no presente, em moldes formalmente mais vinculativos, do "Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de política económica", acordado com a Comissão Europeia, e do Memorando de Políticas Económicas e Financeiras, assinado com o FMI.
Neste contexto, pode dizer-se que as medidas de diminuição da despesa pública inscritas no Orçamento de 2011 mais não representam do que uma parcela, uma fase, de um programa cuja realização integral se estende por um horizonte temporal mais alargado. Não tendo o legislador optado, porém, por estabelecer expressamente para as reduções remuneratórias uma vigência correspondente à do PEC (2010-2013), esse dado não invalida a conclusão de que elas vigorarão segundo a sua natureza de medidas de carácter orçamental, ou seja, anualmente, caducando no termo do ano em curso. Apenas leva a dar como praticamente certa, porque necessária para o cumprimento das vinculações assumidas, a repetição de medidas de idêntico sentido, para vigorar nos anos correspondentes aos da execução do programa que as justifica e
em que se integram, ou seja, até 2013.
De qualquer forma, a ser tida em conta, esta prognose apenas pode fundar a conclusão de que estas medidas terão uma duração plurianual, sem pôr em causa o seu carácter transitório, de acordo com a sua razão de ser e natureza, de resposta normativa a uma conjuntura excepcional, que se pretende corrigir, com urgência e em prazo o mais breve possível, para padrões de normalidade.A justificação apresentada para a medida no Relatório que acompanha o Orçamento de Estado é, aliás, clara em salientar que ela se insere num "contexto de excepcionalidade" não visando qualquer tipo de retrocesso social, mas sim o cumprimento das metas resultantes do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Aí se pode ler:
«Uma medida como a da redução remuneratória só é adoptada quando estão em causa condições excepcionais e extremamente adversas para a manutenção e sustentabilidade do Estado Social. Não se pretende instituir qualquer tipo de padrão ou retrocesso social, mas sim assegurar a assumpção das responsabilidades e dos compromissos do Estado português, quer internamente, continuando a prestar um serviço público de qualidade, quer internacionalmente, desde logo na esfera da União Europeia, no quadrodo Pacto de Estabilidade e Crescimento».
Estando estas medidas instrumentalmente vinculadas à consecução de fins de redução de despesa pública e de correcção de um excessivo desequilíbrio orçamental, de acordo com um programa temporalmente delimitado, é de atribuir-lhes idêntica natureza temporária, nada autorizando, no presente, a considerar que elas se destinam a vigorar para sempre. Independentemente dos juízos e dos cálculos previsionais, do ponto de vista económico-financeiro, quanto à evolução das contas públicas e à possibilidade de contenção do défice orçamental nos limites e na data fixados - matéria de que é inarredável um forte grau de subjectividade - o certo é que não se visiona, no momento actual, qualquer base normativa que objectivamente permita dar por assente que as reduções remuneratórias perdurarão indefinidamente.6 - Participação das organizações de trabalhadores na elaboração da lei Os artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição determinam que constitui um direito das comissões de trabalhadores e também das associações sindicais "participar na elaboração da legislação do trabalho".
Mencionam os requerentes "o facto de esta legislação laboral que reduziu os salários não ter sido devidamente precedida pelas obrigatórias consultas às entidades representativas dos trabalhadores [...]".
A noção de "legislação do trabalho" levanta dificuldades, "tanto quanto ao seu âmbito material, como quanto aos tipos de diplomas abrangidos" (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, p.
724).
O Tribunal Constitucional já decidiu que, para efeitos de participação na elaboração da legislação laboral, se deviam considerar, quer a legislação relativa a abono de alimentação (Acórdão 24/92), quer a legislação relativa a remuneração complementar ou acessória (Acórdão 124/93), com repercussão nas relações individuais de trabalho, quer ainda a legislação relativa a "vencimentos e demais prestações de carácter remunerado" respeitantes a relações jurídicas de emprego público (Acórdãos n.os 362/94, 745/98 e 360/2003, entre outros), merecendo tal jurisprudência a opinião favorável da doutrina (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1113 e seg.).E o facto de uma norma estar formalmente inserida no Orçamento de Estado não obsta, só por si, à aplicação deste regime. Já por uma vez, pelo menos, o Tribunal considerou que as organizações de trabalhadores deveriam ser ouvidas sobre normas constantes da lei do Orçamento de Estado (Acórdão 360/2003). Mas, no caso, entendeu o Tribunal tratar-se de normas que "não dizem directamente respeito a receitas ou a despesas, assumindo a natureza de cavaliers budgétaires", dado que estavam em causa medidas estruturantes do regime de aposentação.
Ora, não é essa, como vimos, a natureza das normas constantes dos artigos 19.º, 20.º, n.º 1, e 21.º, n.º 1, da lei do OE de 2011. Elas estão perfeitamente imbrincadas com a fixação das verbas do mapa orçamental referentes às despesas com o pessoal, tendo imediata incidência na execução orçamental e na sua viabilização. Nisso reside a sua exclusiva função. Não visam regular, com carácter de permanência, qualquer aspecto da estrutura vinculativa das relações laborais ou de emprego público, constituindo antes uma providência avulsa, de alcance temporal limitado, ditada por razões de urgente necessidade de diminuição do desequilíbrio orçamental.
Tendo isso em conta, foi considerado que tais normas comungam da natureza própria da lei do Orçamento. Em conformidade, é discutível que elas, ainda que consagrando reduções remuneratórias, possam ser qualificadas como "legislação do trabalho", para efeitos de participação das organizações de trabalhadores na sua elaboração.
Seja como for, não urge decidir aqui se era ou não imperativa essa participação, pois, qualquer que seja o entendimento a esse respeito, o certo é que a alegação de que não houve consulta é claramente infirmada pela "história" dos trabalhos preparatórios da lei.
Na verdade, constata-se que, tendo o Diário da República, 2.ª série-A, de 15 de Outubro de 2010, publicado a proposta de lei do Orçamento (Proposta n.º 42/XI), em 27 do mesmo mês viu a luz do dia uma separata do referido Diário (separata n.º 29/10), de onde consta um conjunto vasto de normas (e não apenas as impugnadas), integradas na Secção I e na Secção II do Capítulo III, composto por "disposições relativas aos trabalhadores do sector público".
A reprodução dessas disposições é antecedida de uma comunicação "às organizações sindicais e todas as estruturas representativas dos trabalhadores da Administração Pública", impressa com grande destaque e ocupando toda a uma página (p. 2) da
separata.
No primeiro parágrafo dessa comunicação/aviso lê-se o seguinte:«Nos termos e para os efeitos da Lei 23/98, de 26 de Maio, e do artigo 134.º do Regimento da Assembleia da República, com as devidas adaptações, avisam-se estas entidades de que se encontra para apreciação, de 27 de Outubro a 15 de Novembro de 2010, o Capítulo III (Disposições relativas aos trabalhadores do sector público) da proposta de lei 42/XI (2.ª) - Orçamento do Estado para 2011.» Indica o texto, de seguida, para onde deverão ser enviados "as sugestões e pareceres", por via postal ou correio electrónico, concluindo-se:
«Dentro do mesmo prazo, as organizações sindicais e todas as estruturas representativas dos trabalhadores da Administração Pública poderão solicitar audiências à Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças, devendo fazê-lo por escrito, com indicação do assunto e fundamento do pedido.» Em anexo (p. 20-22), publica-se na separata, sob o título "Apreciação pública", o modelo da comunicação electrónica a utilizar facultativamente, com espaço próprio para o "contributo" e para identificação do sujeito ou entidade que o envia, bem como o artigo 134.º do Regimento da Assembleia da República e a referida Lei 23/98.
Este procedimento deu cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 134.º do Regimento da Assembleia da República, nos termos do qual «para efeitos do disposto nos números anteriores [a promoção da apreciação da legislação do trabalho], os projectos e propostas de lei são publicados previamente em separata electrónica do
Diário.».
Idêntico regime consta do Código do Trabalho (agora, após a revisão operada pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, do artigo 472.º, n.º 1, alínea a). Integrando-se num conjunto de disposições que regulam a "participação na elaboração da legislação do trabalho", esta norma dispõe que, para esse efeito, os projectos e propostas, "tratando-se de legislação a aprovar pela Assembleia da República", são publicados em separata do Diário da Assembleia da República.Acresce que, já anteriormente, em 20 de Outubro de 2010, tinha sido publicada uma separata (separata n.º 5) do Boletim do Trabalho e Emprego, contendo um despacho conjunto do Ministro de Estado e das Finanças e da Ministra do Trabalho e da Solidariedade Social, determinando «a publicação em separata do Boletim do Trabalho e Emprego das normas constantes da proposta de lei do Orçamento do Estado para 2011 com incidência nos trabalhadores com relação pública de emprego regulada pelo Código do Trabalho». Mais se determinou que «o prazo de apreciação pública do projecto é de 20 dias, a contar da data de publicação, a título excepcional e por motivo
de urgência [...]».
Em cumprimento deste despacho, publicou a referida separata, sob uma epígrafe correspondente ao objecto naquele fixado, um conjunto de normas atinentes ao regime remuneratório e de ajudas de custo dos trabalhadores em causa, entre as quais a que veio a dar origem ao artigo 19.º da Lei 55-A, de 31 de Dezembro.Perante estes factos, a questão a que este Tribunal é chamado a responder não é a do cumprimento ou não das normas infraconstitucionais que, em concretização do imperativo constitucional, regulam, com algum detalhe, a participação na elaboração da legislação do trabalho das entidades representativas dos trabalhadores a tal legitimadas.
A questão em juízo é antes a de saber se os procedimentos acima descritos correspondem a um modo admissível, por constitucionalmente adequado, de promover a audição que os artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), impõem. Deste ponto de vista, o que interessa é apreciar e decidir se, através daquelas acções, foi ou não dada suficiente possibilidade de aquelas entidades se fazerem ouvir, intervindo no processo legislativo de maneira a que a manifestação das suas opiniões pudesse ser tida em conta. As eventuais irregularidades ou ilegalidades que porventura se detectem, quanto ao cumprimento das normas de direito ordinário aplicáveis, não passam disso mesmo, se simultaneamente não puserem em crise a satisfação bastante, atenta a sua razão de ser, do direito de participação constitucionalmente outorgado. Na mesma medida, e inversamente, são de incluir, entre os dados da valoração a efectuar, procedimentos não legislativamente impostos, mas a que seja de atribuir real eficácia
comunicativa.
É nesta perspectiva que importa relevar, como um contributo de publicitação a ter em conta, a separata do Boletim do Trabalho e Emprego. Ainda que não estivesse em causa legislação a aprovar pelo Governo da República, pelo que estava excluída a sua obrigatoriedade imposta pela alínea b) do n.º 1 do artigo 472.º do Código do Trabalho, e ainda que formalmente só fossem contemplados os trabalhadores com relação de emprego regulada pelo Código de Trabalho, o certo é que se trata de uma publicação oficial, de tratamento exclusivo de matéria laboral, por isso mesmo de fácil e expectável cognoscibilidade pelas estruturas representativas dos trabalhadores, a qual, com anterioridade em relação à separata do Diário da República, as alertou para a possibilidade de exercício do seu direito de participação.O alcance deste direito já foi lapidarmente descrito no Acórdão 22/86. Aí se
escreveu:
«A participação das associações sindicais na elaboração da legislação do trabalho há-de traduzir-se no conhecimento, por parte delas, do texto dos respectivos projectos de diploma legal, antes naturalmente deles serem definitivamente aprovados, desse modo se lhes dando a possibilidade de se pronunciarem sobre os mesmos, seja formulando críticas, dando sugestões, emitindo pareceres ou até fazendo propostas alternativas - o que tudo deve ser tido em conta na elaboração definitiva da normaçãoque se pretende produzir.
Não se trata, por conseguinte, de qualquer participação das referidas organizações sindicais no trabalho dos órgãos legislativos [...] Do que, pois, tão-só se trata - vistas as coisas do lado do órgão legislativo - é de um dever de consulta dos trabalhadores; e, no tocante às sugestões, críticas, pareceres ou propostas que eles até si fizeram chegar, da obrigação de as tomar em consideração,acolhendo aquelas que o justifiquem».
Está fundamentalmente em causa, pelo lado passivo, um dever de audição ou de consulta (como o prefere qualificar o n.º 2 do artigo 10.º da Lei 23/98), a cumprir em tempo oportuno, de modo a propiciar uma pronúncia susceptível de ser tomada emconsideração, pelo órgão legiferante.
Pressuposto básico do cumprimento desse dever é a suficiente publicidade ao texto do diploma a aprovar, por forma que permita presumir, fundadamente, que as entidades titulares do direito de participação dele tomam conhecimento.No Acórdão 360/2003, reiterando o critério perfilhado no Acórdão 64/91, foi entendido que «teria sido suficiente para alcançar o universo das entidades a que constitucionalmente é garantido o universo de participação a publicação oficial da proposta de lei, desde que efectuada de forma adequada ao efeito pretendido».
No caso julgado naquele Acórdão, foi decidido que esta última exigência não fora satisfeita, pelo facto de a publicação vir «desacompanhada do convite às associações sindicais para se pronunciarem sobre as normas destinadas a alterar o Estatuto da
Aposentação».
Ora, neste ponto, tido por decisivo, se diferencia a situação em juízo, pois, como vimos, a publicação, em duas separatas oficiais, da parte relevante do texto da proposta de lei de OE é antecedida do convite expresso às associações sindicais para sobre ela se pronunciarem. Assim é activada a consciencialização do direito de pronúncia que essas entidades detêm, conjuntamente com o conhecimento do objectosobre que ele concretamente recai.
Com situação exactamente idêntica se confrontou o Acórdão 368/2002, que decidiu por unanimidade, em plenário, tratar-se de um procedimento que garante suficientemente a participação das organizações representativas dos trabalhadores.É de manter esse entendimento. A declaração por anúncio público é um modo legítimo de comunicação, quando estamos perante um universo plúrimo de destinatários dificilmente determinável. E a eficácia funcional da comunicação está garantida, desde que os interessados cumpram um ónus de diligência perfeitamente comportável.
No caso presente, essa garantia foi substancialmente reforçada, ainda, pela publicação, em dois jornais diários de grande circulação, no dia 27 de Outubro de 2010, do anúncio da publicação da separata, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo
472.º do Código do Trabalho.
Exigir mais seria exigir comunicações personalizadas. Com custos sérios de praticabilidade, tal meio comporta sempre o risco, já concretizado no passado, de serem desconsiderados titulares do direito de participação.Como se diz no citado Acórdão 360/2003, a publicação oficial releva "como meio de alcançar adequadamente todas as entidades visadas" [itálico nosso].
Há que ajuizar, por último, se a comunicação foi feita com a antecedência bastante para dar possibilidade prática de efectivação ao direito de participação.
Relembrem-se, a propósito, as datas mais marcantes, para o efeito, do processo
legislativo.
A proposta de lei foi publicada no Diário da República, 2.ª série-A, em 15 de Outubro de 2010; foi submetida à apreciação das entidades representativas dos trabalhadores, através de publicação em separatas do Boletim do Trabalho e Emprego, em 20 de Outubro, e do Diário da Assembleia da República, em 27 do mesmo mês. No primeiro caso, foi fixado o prazo de pronúncia de 20 dias, a contar da publicação; no segundo, o prazo terminava em 15 de Novembro seguinte.A Assembleia da República discutiu e votou, na generalidade, a proposta de lei, em 3 de Novembro de 2010; em 26 do mesmo mês, processou-se a aprovação final global.
Dando por assente que o prazo de pronúncia foi suficientemente dilatado, ainda que no limite da suficiência, a questão que esta sequência temporal suscita tem a ver com o facto de esse prazo ainda estar a decorrer quando ocorreu a aprovação, na generalidade, da proposta, só findando quando decorriam os trabalhos de discussão,
na especialidade, na respectiva Comissão.
Temos por seguro que esta circunstância não obstaculizou a tomada em consideração das posições das organizações que se tenham manifestado. O que importa é que o prazo finde com anterioridade suficiente ao da aprovação final, por forma a que a pronúncia possa ainda repercutir-se, se assim for entendido, no texto definitivo.
Foi esse o caso.
Aliás, quanto ao lugar paralelo da audição dos órgãos de governo regional (artigo 229.º, n.º 2, da CRP), o Tribunal tem sistematicamente decidido que o que importa é que a pronúncia possa ser emitida e conhecida em tempo útil, em termos de a Assembleia da República a poder considerar antes da aprovação final - cf., entre outros, os Acórdãos n.os 670/99, 529/2001, e 581/2007.Há a acrescentar a tudo quanto fica dito que foram pedidos directamente pareceres sobre a proposta de lei, em 3 de Novembro de 2010, ao Conselho Superior da Magistratura, ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ao Conselho Superior do Ministério Público, à Associação Sindical dos Juízes Portugueses, e ao Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. As quatro primeiras entidades emitiram efectivamente opinião, a Associação Sindical dos Juízes
Portugueses em 9 de Novembro de 2011.
Em face do exposto, é de concluir que não houve qualquer vício formal de procedimento, por falta de participação das organizações representativas dos trabalhadores na elaboração da lei do Orçamento do Estado de 2011.
7 - Irredutibilidade dos salários
Invoca o requerente, em fundamentação do pedido, a violação do "direito fundamentalà não redução do salário".
Não consta da Constituição qualquer regra que estabeleça a se, de forma directa e autónoma, uma garantia de irredutibilidade dos salários. Essa regra inscreve-se no direito infraconstitucional, tanto no Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (artigo 89.º, alínea d), como no Código do Trabalho (artigo 129.º, n.º 1, alínead).
Vem arguido que tal garantia, ainda que integrando a legislação ordinária, goza de "força constitucional paralela", por via do artigo 16.º, n.º 1, da Constituição.Deve começar por se anotar que tal regra de direito ordinário apenas vale para a retribuição em sentido próprio. Na verdade, ela não abrange, por exemplo, as ajudas de custo, outros abonos, bem como o pagamento de despesas diversas do trabalhador (Maria do Rosário Ramalho, Direito do Trabalho, II, Situações laborais individuais, Coimbra, 2006, p. 564 e 551). Nessa medida, os subsídios de fixação e de compensação de que gozam os magistrados, expressamente equiparados a ajudas de custo, encontram-se, à partida, fora do âmbito da garantia.
Mas importa sobretudo sublinhar que a regra não é absoluta. De facto, a norma que proíbe ao empregador, na relação laboral comum, diminuir a retribuição (artigo 129.º, n.º 1, alínea d), do Código de Trabalho) ressalva os "casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação colectiva do trabalho". Quanto à relação de emprego público, admite-se que a lei (qualquer lei) possa prever reduções remuneratórias (cf. o citado artigo 89.º, alínea d). O que se proíbe, em termos absolutos, é apenas que a entidade empregadora, tanto pública como privada, diminua arbitrariamente o quantitativo da retribuição, sem adequado suporte normativo.
Deste modo, não colhe a argumentação de que existiria um direito à irredutibilidade do salário que, consagrado na legislação laboral, teria força de direito fundamental, por virtude da cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1, da Constituição. Se assim fosse, o legislador encontrar-se-ia vinculado por tal imperativo, o que, como vimos, não sucede.
Em segundo lugar, não se pode dizer, uma vez garantido um mínimo, que a irredutibilidade do salário seja uma exigência da dignidade da pessoa humana ou que se imponha como um bem primário ou essencial, sendo esses os critérios materiais para determinar quando estamos perante um direito subjectivo que se possa considerar "fundamental" apesar de não estar consagrado na Constituição e sim apenas na lei ordinária (Cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª ed., Coimbra, 2009, p. 79-80).
De resto, o legislador constituinte teve a preocupação de estabelecer uma densa rede protectiva da contrapartida remuneratória da prestação laboral, dando consagração formal, no texto da Constituição, às garantias que entendeu serem postuladas pelas exigências de tutela, a este nível, da condição dos trabalhadores. Assim é que, para além do reconhecimento do direito básico à retribuição, manda-se observar o princípio de que "para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna"
(alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º), fixa-se como incumbência do Estado "o estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional" (alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo), acrescentando-se, na revisão de 1997, a imposição constitucional de "garantias especiais dos salários" (n.º 3 do artigo 59.º). Não é de crer que o programa constitucional, tão exaustivamente delineado, nesta matéria, só fique integralmente preenchido com a atribuição da natureza de direito fundamental legal ao direito à irredutibilidade da retribuição, qualificação para a qual não se descortina fundamento
material bastante.
Direito fundamental, esse sim, é o "direito à retribuição", e direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, como é pacífico na doutrina e este Tribunal tem também afirmado (cf., por exemplo, o Acórdão 620/2007). Mas uma coisa é o direito à retribuição, outra, bem diferente, é o direito a um concreto montante dessa retribuição, irredutível por lei, sejam quais forem as circunstâncias e as variáveis económico-financeiras que concretamente o condicionam. Não pode, assim, entender-se que a intocabilidade salarial é uma dimensão garantística contida no âmbito de protecção do direito à retribuição do trabalho ou que uma redução do quantum remuneratório traduza uma afectação ou restrição desse direito.Inexistindo qualquer regra, com valor constitucional, de directa proibição da diminuição das remunerações e não sendo essa garantia inferível do direito fundamental à retribuição, é de concluir que só por parâmetros valorativos decorrentes de princípios constitucionais, em particular os da confiança e da igualdade, pode ser apreciada a conformidade constitucional das soluções normativas em causa.
Tem sido essa, aliás, a orientação constante deste Tribunal, sempre que chamado a julgar questões atinentes, directa ou indirectamente, a reduções remuneratórias. Foi assim no Acórdão 303/90, sobre vencimentos dos ex-regentes escolares, no Acórdão 786/96, sobre alterações ao Estatuto dos Militares das Forças Armadas, com repercussão no subsídio da condição militar, e no Acórdão 141/2002, referente à fixação de limites de vencimentos a funcionários em funções em órgãos de soberania, a membros dos gabinetes de órgãos de soberania, a funcionários dos grupos parlamentares e a funcionários das entidades e organismos que funcionam juntos dos órgãos de soberania, a qual importou uma efectiva e significativa redução dos vencimentos auferidos por esses sujeitos. Independentemente do sentido das pronúncias, foi exclusivamente à luz do conteúdo normativo desses princípios que elas
foram emitidas.
Não estando em causa a afectação do direito a um mínimo salarial, uma vez que a redução remuneratória apenas abrange retribuições superiores a 1500 euro, valor muito superior ao do salário mínimo nacional, a irredutibilidade apenas poderá resultar do respeito pelo princípio da protecção da confiança e porventura, ainda, do princípio daigualdade.
É a eventual violação dos princípios da confiança e da igualdade, também invocada pelos requerentes, que, de seguida, analisaremos.
8 - Princípio da protecção da confiança
Os requerentes alegam que terá havido uma violação do princípio da protecção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito, tal como surge plasmado no artigo 2.º da Constituição. Sustentam que a medida não tem justificação material suficiente e que a redução é arbitrária "porque, sendo permanente, ela assenta num pressuposto que é temporário, que é o pressuposto da crise económico-financeira que grassa nopaís".
Já vimos que a redução remuneratória tem natureza orçamental não sendo, por isso, definitiva. Ainda assim, poderá questionar-se se não violará o princípio da protecção daconfiança.
A protecção da confiança traduz a incidência subjectiva da tutela da segurança jurídica, representando ambas, em concepção consolidadamente aceita, uma exigência indeclinável (ainda que não expressamente formulada) de realização do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP).A aplicação do princípio da confiança deve partir de uma definição rigorosa dos requisitos cumulativos a que deve obedecer a situação de confiança, para ser digna de tutela. Dados por verificados esses requisitos, há que proceder a um balanceamento ou ponderação entre os interesses particulares desfavoravelmente afectados pela alteração do quadro normativo que os regula e o interesse público que justifica essa alteração.
Dessa valoração, em concreto, do peso relativo dos bens em confronto, assim como da contenção das soluções impugnadas dentro de limites de razoabilidade e de justa medida, irá resultar o juízo definitivo quanto à sua conformidade constitucional.
Esta correcta metódica aplicativa já foi apontada, nos seus traços nucleares, pelo Acórdão 287/90. Respondendo à questão de saber quando é que estamos perante a "inadmissibilidade, arbitrariedade ou onerosidade excessiva" de uma conformação que afecta "expectativas legitimamente fundadas" dos cidadãos, discorre aquele aresto:
«A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos seguintes
critérios:
Afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição,desde a 1.ª revisão).
Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa.Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.
Os dois critérios completam-se, como é, de resto sugerido pelo regime dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. Para julgar da existência de excesso na "onerosidade", isto é, na frustração forçada de expectativas, é necessário averiguar se o interesse geral que presidia à mudança do regime legal deve prevalecer sobre o interesse individual sacrificado, na hipótese reforçado pelo interesse na previsibilidade de vida jurídica, também necessariamente sacrificado pela mudança. Na falta de tal interesse do legislador ou da sua suficiente relevância segundo a Constituição, deve considerar-se arbitrário o sacrifício e excessiva a frustração de expectativas.» E concluía o citado acórdão, neste trecho:
«Nada dispensa a ponderação na hipótese do interesse público na alteração da lei em confronto com as expectativas sacrificadas».
A mesma ideia foi retomada no Acórdão 303/90, proferido precisamente a respeito da questão de saber se a diminuição no montante do vencimento de uma certa categoria de funcionários afectaria o princípio da protecção da confiança:
«A questão residirá, assim, em saber se aquela afectação se reveste de jeito inadmissível, arbitrário ou excessivamente oneroso, sendo que o primeiro daqueles modos - a inadmissibilidade -, se é implicante de uma mudança na ordem jurídica, com repercussão nas situações de facto já alcançadas, com a qual, razoável e normalmente, os cidadãos destinatários das normas preexistentes e das que operaram a modificação, não podiam e deviam contar, terá também de ser completado com a circunstância de a mutação normativa afectadora das expectativas não ter sido imposta por prossecução ou salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e que, na dicotomia com os afectados, se postem em grau tal que lhes confira prevalência, pois, se não se postarem, haverá, então, falta de proporcionalidade e, logo, uma forma de arbítrio (veja-se, sobre o ponto, o Acórdão 287/90 [...])».
Em formulações variadas, estes critérios estiveram reiteradamente presentes na jurisprudência posterior em que o princípio da confiança foi convocado como parâmetro de apreciação. A partir do Acórdão 128/2009 (e com acolhimento nos Acórdãos n.os 188/2009 e 3/2010), eles foram precisados e desenvolvidos, com recondução a quatro diferentes requisitos ou testes. Escreveu-se, nesse sentido:
«Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade;
depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões;
em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de
expectativa».
Como se vê, a protecção da confiança, enquanto corolário e exigência do princípio do Estado de direito democrático, princípio, este, de "contornos fluidos" e "conteúdo relativamente indeterminado", quando "não acha devido apoio noutros preceitos constitucionais" (como reconheceu o Acórdão 93/84), foi objecto de um intenso labor de densificação que lhe traçou um preciso âmbito de aplicação, bem como um modo procedimental de (necessária) confrontação com princípios constitucionais e interesses constitucionalmente credenciados, em oposição. São esses critérios que háque aplicar nos presentes autos.
Vêm invocados, como precedentes, os Acórdãos n.os 303/90 e 141/2002, referíveis a situações em que determinadas alterações legislativas, constantes de leis do orçamento (respectivamente, o Orçamento de Estado para 1989 e os Orçamentos de Estado para 1992 e 1993) tinham como implicação uma redução remuneratória de certas categorias de trabalhadores com relação de emprego público.E efectivamente, em ambos os casos, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas impugnadas, "por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo
2.º da Constituição".
Mas urge atentar nos fundamentos que sustentam as decisões.A razão invocada no Acórdão 303/90 foi a falta de justificação específica da medida que implicava uma redução salarial. Aí se diz:
«Não nos dá a Lei 114/88, nem os seus trabalhos preparatórios, qualquer indicação sobre a existência de motivos ligados à prossecução ou salvaguarda de interesses (designadamente económicos ou financeiros) tais que, de um ponto de vista proporcional, aconselhassem à suspensão do «vencimento adquirido» pelos agentes de ensino em causa e, por isso, afectasse esse direito, sob pena de se não alcançar aquelas
prossecução ou salvaguarda.
Torna-se, desta arte, indescortinável qual seja o interesse e a sua suficiente relevância que levaram à suspensão do regime da Lei 103/88.[...] Atingido um nível remuneratório que lhes conferia [aos titulares da remuneração], na ocasião da entrada em vigor desta última lei, um quantitativo então igual ao percebido pelos professores diplomados com os cursos das escolas do magistério primário, é perfeitamente compreensível que os destinatários daquele diploma ficassem possuídos da convicção de que esse «direito» subjectivado a tal quantitativo, já concretizado objectivamente, para o futuro, e sem que surgissem acentuadas alterações da conjuntura económico-financeira, era algo de reconhecido pela ordem jurídica e com o qual eles podiam e deviam contar, deste modo ficando convencidos que o dito
montante não seria diminuído.
Ao suspender o referido «direito», o n.º 11 do artigo 14.º da Lei 114/88 veio, de forma efectiva, frustrar a indicada convicção, sem que se antolhe a existência de situação de interesse geral ou conformação social de suficiente peso que pudessem tornar previsível ou verosímil tal suspensão.Por isso se depara uma inadmissível (porque irrazoável, extraordinariamente onerosa e excessiva) afectação levada a cabo pela norma sindicada».
Já o Acórdão 141/2002 inscreveu, na sua fundamentação, como motivos da declaração de inconstitucionalidade, a "redução substancial" da remuneração com "efeitos imediatos", conjugada com a inexistência ou falta de invocação de um específico "interesse público" que pudesse justificar a medida. Nas palavras do
acórdão:
«Nesta conformidade, tem de se concluir que, por força do estabelecido na própria disposição legal que a previa, se estava perante uma remuneração acessória com um regime especial que lhe conferia uma particular estabilidade e consistência, o que justificava a expectativa do seu integral recebimento por banda dos funcionários afectados. Ora, o que aconteceu foi que, por via da norma em causa, a remuneração global dos funcionários por ela abrangidos foi objecto de uma redução substancial e com efeitos imediatos, o que também se afigura particularmente relevante.
[...]
Por outro lado, não se descortinam - nem sequer foram invocados - quaisquer motivos que pudessem aqui «justificar» a adopção da medida com efeitos retrospectivos, nomeadamente particulares razões de interesse público ou uma qualquer alteração objectiva e concreta das condições de trabalho do pessoal afectado».Isto é, tendo sido dado por assente, em ambos os casos, que a confiança legítima saíra vulnerada com as soluções impugnadas, o Tribunal não descortinou qualquer interesse público cuja salvaguarda as pudesse justificar. Daí a decisão de inconstitucionalidade.
Merecerá idêntico juízo o caso agora em apreciação? Não custa admitir que uma redução remuneratória abrangendo universalmente o conjunto de pessoas pagas por dinheiros públicos não cai na zona de previsibilidade de comportamento dos detentores do poder decisório. O quase contínuo passado de aumentos anuais dos montantes dos vencimentos, na função pública, legitima uma expectativa consistente na manutenção, pelo menos, das remunerações percebidas e a tomada de opções e a formação de planos de vida assentes na continuidade dessa
situação.
As reduções agora introduzidas, na medida em que contrariam a normalidade anteriormente estabelecida pela actuação dos poderes públicos, nesta matéria, frustram expectativas fundadas. E trata-se de reduções significativas, capazes de gerarem ou acentuarem dificuldades de manutenção de práticas vivenciais e de satisfação de compromissos assumidos pelos cidadãos. Sem esquecer que, relativamente a algumas categorias de destinatários, elas se cumularam com outras medidas anteriores de redução remuneratória. Assim, a redução prevista no artigo 19.º, n.º 1, da lei do Orçamento do Estado "tem por base a remuneração total ilíquida apurada após a aplicação das reduções previstas nos artigos 11.º e 12.º da Lei 12-A/2010, de 30 de Junho, e na Lei 47/2010, de 7 de Setembro, para os universos neles referidos", sendo certo que tais diplomas já tinham operado reduções remuneratórias (artigo 19.º, n.º 8). De facto, os artigos 11.º e 12.º da Lei 12-A/2010 tinham reduzido, a título excepcional, em 5 %, os vencimentos mensais ilíquidos dos titulares de cargos políticos e dos gestores públicos e equiparados e, também, o artigo 2.º, n.º 1, da Lei 47/2010 tinha já reduzido, a título excepcional, em 5 %, o vencimento mensal ilíquido dos membros das Casas Civil e Militar da Presidência da República, dos gabinetes dos membros do Governo, dos gabinetes dos Governos Regionais, dos gabinetes de apoio pessoal dos presidentes e vereadores das câmaras municipais e dos governadores civis.Essa redução teve, além disso, efeitos imediatos, logo no dia de entrada em vigor da lei do Orçamento do Estado, ou seja, um dia após a sua publicação no Diário da
República.
Não se pode ignorar, todavia, que atravessamos reconhecidamente uma conjuntura de absoluta excepcionalidade, do ponto de vista da gestão financeira dos recursos públicos. O desequilíbrio orçamental gerou forte pressão sobre a dívida soberana portuguesa, com escalada progressiva dos juros, colocando o Estado português e a economia nacional em sérias dificuldades de financiamento. Os problemas suscitados por esta situação passaram a dominar o debate político, ganhando também foros de tema primário na esfera comunicacional. Outros países da União Europeia vivem problemas semelhantes, com interferências recíprocas, sendo divulgada abundanteinformação a esse respeito.
Neste contexto, e no quadro de uma estratégia global delineada a nível europeu, entrou na ordem do dia a necessidade de uma drástica redução das despesas públicas, incluindo as resultantes do pagamento de remunerações. Medidas desse teor foram efectivamente tomadas noutros países, com larga anterioridade em relação à publicação da proposta de lei do Orçamento do Estado para 2011, e com reduções remuneratórias mais acentuadas do que aquelas que este diploma veio a implementar.Pode pôr-se em dúvida, em face deste panorama, se, no momento em que as reduções entraram em vigor, persistiam ainda as boas razões que, numa situação de normalidade, levam a atribuir justificadamente consistência e legitimidade às expectativas de
intangibilidade de vencimentos.
Do que não pode razoavelmente duvidar-se é de que as medidas de redução remuneratória visam a salvaguarda de um interesse público que deve ser tido por prevalecente - e esta constitui a razão decisiva para rejeitar a alegação de que estamos perante uma desprotecção da confiança constitucionalmente desconforme.Na verdade, à situação de desequilíbrio orçamental e à apreciação que ela suscitou nas instâncias e nos mercados financeiros internacionais são imputados generalizadamente riscos sérios de abalo dos alicerces (senão, mesmo, colapso) do sistema económico-financeiro nacional, o que teria também, a concretizar-se, consequências ainda mais gravosas, para o nível de vida dos cidadãos. As reduções remuneratórias integram-se num conjunto de medidas que o poder político, actuando em entendimento com organismos internacionais de que Portugal faz parte, resolveu tomar, para reequilíbrio das contas públicas, tido por absolutamente necessário à prevenção e sanação de consequências desastrosas, na esfera económica e social. São medidas de política financeira basicamente conjuntural, de combate a uma situação de emergência, por que optou o órgão legislativo devidamente legitimado pelo princípio democrático de
representação popular.
Não se lhe pode contestar esse poder-dever. Como se escreveu no Acórdão n.º304/2001:
«Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam "tocadas" relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte».Diferentemente dos casos julgados pelos Acórdãos n.os 303/90 e 141/2002, o interesse público a salvaguardar, não só se encontra aqui perfeitamente identificado, como reveste importância fulcral e carácter de premência. É de lhe atribuir prevalência, ainda que não se ignore a intensidade do sacrifício causado às esferas particulares
atingidas pela redução de vencimentos.
Como último passo, neste quadrante valorativo, resta averiguar da observância das exigências de proporcionalidade (cf., quanto à necessária conjugação do princípio da protecção da confiança com o princípio da proibição do excesso, Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, p.268-269). Admitido que a expectativa de manutenção dos montantes remuneratórios e de ajudas de custo tenha que ceder, em face da tutela de um interesse público contrastante de maior peso, ainda assim há que controlar se as concretas medidas transitórias de redução remuneratória, previstas no artigo 19.º da lei do Orçamento do Estado, abrangendo todo o universo dos trabalhadores com uma relação de emprego público, e as medidas de redução de ajudas de custo que resultam dos artigos 20.º e 21.º da lei do Orçamento de Estado para 2011, abrangendo os magistrados judiciais e do Ministério Público, traduzem ou não uma afectação desproporcionada de uma posição de confiança, tendo em conta os três níveis em que o princípio da
proporcionalidade se projecta.
Que se trata de uma medida idónea para fazer face à situação de défice orçamental e crise financeira é algo que resulta evidente e se pode dar por adquirido. Quanto à necessidade, um juízo definitivo terá que ser remetido para a análise subsequente, à luz do princípio da igualdade, a que o princípio da proporcionalidade também está associado. Implicando a ponderação de eventuais medidas alternativas, designadamente as que produziriam efeitos de abrangência pessoal mais alargada, é nessa sede que a questão poderá ser mais cabalmente tratada e decidida. Por último, a serem indispensáveis, as reduções remuneratórias não se podem considerar excessivas, em face das dificuldades a que visam fazer face. Justificam esta valoração, sobretudo, o seu carácter transitório e o patente esforço em minorar a medida do sacrifício exigido aos particulares, fazendo-a corresponder ao quantitativo dos vencimentos afectados.Assim é que, para além da isenção de que gozam as remunerações inferiores a 1500 euros, as taxas aplicáveis são progressivas, nunca ultrapassando, em todo o caso, o limite de 10 % - inferior ao aplicado em países da União Europeia com problemas
financeiros idênticos aos nossos.
Quanto à redução dos subsídios de fixação e de compensação de que gozam os magistrados, trata-se de prestações complementares, com uma causa específica, que, à partida, por força dessa natureza, não suscitam expectativas legítimas de manutenção com consistência equivalente às que a retribuição, propriamente dita, dá azo, até porque, como vimos, não estão abrangidas pela garantia infraconstitucional deirredutibilidade.
Por outro lado, embora a taxa de redução seja bastante mais elevada do que a das reduções remuneratórias, como a sua base de incidência é de valor relativamente baixo, os montantes pecuniários que os afectados perdem não são excessivamente onerosos.Não é de crer que eles pesem de tal forma, nos patrimónios atingidos, que importem a frustração do "investimento na confiança" - requisito indispensável para a sua tutela.
Por último, há a notar que a expressa equiparação desses subsídios, para todos os efeitos legais, a ajudas de custo, é uma fixação legislativa de um regime favorável para os destinatários (tendo em conta, sobretudo, alternativas que chegaram a ser propostas), atenuando, de certa forma, o sacrifício por aqueles sofrido com a redução.
Por tudo, não é de entender que as reduções destes subsídios, ainda que se lhes atribua carácter não transitório, importem violação do princípio da confiança
constitucionalmente censurável.
9 - Princípio da igualdade
Os requerentes invocam a violação do princípio da igualdade dizendo que a medida apenas atinge os trabalhadores da Administração Pública, havendo "outras categorias de trabalhadores que são igualmente pagos com dinheiros públicos e que não foramatingidos por uma idêntica medida".
Dada a abrangência do universo dos trabalhadores incluídos na redução remuneratória, são certamente limitadas as situações de trabalhadores que sejam pagos por dinheiros públicos e não tenham sido abrangidos pela medida.Na verdade, esta medida abarca todo o perímetro da Administração Pública (entendida no seu conceito mais lato), incluindo nomeadamente, nos termos das alíneas p), s), t) e u) do n.º 9 do artigo 19.º, da lei do Orçamento do Estado, os gestores públicos, ou equiparados, os membros dos órgãos executivos, deliberativos, consultivos, de fiscalização ou quaisquer outros órgãos estatutários dos institutos públicos de regime geral e especial, de pessoas colectivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo, das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, das fundações públicas e de quaisquer outras entidades públicas; os trabalhadores dos institutos públicos de regime especial e de pessoas colectivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo; os trabalhadores das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, com as adaptações autorizadas e justificadas pela sua natureza empresarial; e, ainda, os trabalhadores e dirigentes das fundações públicas e dos estabelecimentos públicos não abrangidos pelas
alíneas anteriores.
Ficam exceptuadas da medida as pessoas que aufiram menos de 1500 euro. Mas, quanto a estas, não se pode considerar que haja uma violação do princípio da igualdade. Na verdade, o princípio da igualdade determina que se trate de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente na medida da diferença. Ora a situação das pessoas que auferem remunerações mais baixas é diferente da situação das pessoas que auferem remunerações mais altas. E é diferente muito em especial para efeitos de redução salarial. De facto, os efeitos negativos de uma redução salarial sentem-se de forma mais intensa naqueles que auferem remunerações mais baixas do que naqueles que percebem remunerações mais elevadas. Assim como o princípio da igualdade não impõe que todos recebam o mesmo salário, sendo possíveis diferenciações em razão da quantidade, natureza e qualidade do trabalho prestado, da mesma forma também o princípio não impõe que as reduções remuneratórias sejam quantitativamente idênticas para todas as pessoas devendo antes ser proporcionais, em termos de justiça distributiva, ao valor mais ou menos elevado das remuneraçõesauferidas.
Ficam também exceptuadas da medida as pessoas mencionadas na alínea a) do n.º 2 do artigo 19.º da lei do Orçamento do Estado, que aufiram uma retribuição inferior a 4165 euro. Mas estas não mantêm com o Estado ou outras entidades da Administração Pública uma relação jurídica de emprego com vínculo de subordinação. Trabalharão nomeadamente em comissões de serviço sem vínculo laboral ou em condições análogas. Ora este facto (a inexistência de uma relação jurídica de emprego público) poderá permitir justificar a diferenciação.Ainda que não proceda a alegação dos requerentes, subsiste, todavia, uma questão atinente ao princípio da igualdade, tendo a ver com o facto de os destinatários das medidas de redução serem apenas as pessoas que trabalham para o Estado e demais pessoas colectivas públicas, ou para quaisquer das restantes entidades referidas no n.º 9 do artigo 19.º da Lei 55-A/2011, de 31 de Dezembro. Ficam de fora os trabalhadores com remunerações por prestação de actividade laboral subordinada nos sectores privado e cooperativo, os trabalhadores por conta própria, bem como todos quantos auferem rendimentos de outra proveniência.
Pode questionar-se se, havendo necessidade de impor sacrifícios patrimoniais em tutela de um interesse público, que a todos diz respeito, não deveriam ser afectadas, por igual, as esferas da generalidade dos cidadãos, com idêntica capacidade contributiva.
Tal resultaria do princípio da igualdade perante os encargos públicos, que exige que os sacrifícios inerentes à satisfação de necessidades públicas sejam equitativamente distribuídos por todos os cidadãos; todos os cidadãos deverão contribuir de igual forma para os encargos públicos à medida da sua capacidade contributiva.
Invocar, a propósito de medidas de consolidação orçamental, o princípio da igualdade perante os encargos públicos, princípio estruturante da nossa constituição fiscal, é o mesmo que sustentar que, por exigência do princípio da igualdade, a correcção dos desequilíbrios orçamentais tem necessariamente que ser levada a cabo por via tributária, pelo aumento da carga fiscal, em detrimento de medidas de redução
remuneratória. Será assim?
É indiscutível que, com as medidas em apreciação, a repartição dos sacrifícios impostos pela situação excepcional de crise financeira não se faz de igual forma entre todos os cidadãos com igual capacidade contributiva, uma vez que elas não têm um alcance universal, recaindo apenas sobre as pessoas que têm uma relação de emprego público.Há um esforço adicional em benefício de todos, em prol da comunidade, que é pedido
exclusivamente aos servidores públicos.
Também não sofre controvérsia que não estava excluída a tomada de medidas de natureza tributária, conducentes à obtenção de uma receita fiscal de montante equivalente ao que se poupa com a redução remuneratória. E, nessa hipótese, todas as pessoas que auferem iguais rendimentos colectáveis ficariam sujeitas a um igual sacrifício do ponto de vista da sua contribuição para os encargos públicos.Mas esta dupla constatação de forma alguma equivale à fundamentação do cabimento do princípio da igualdade perante os encargos públicos, quando se trata de apreciar a constitucionalidade de medidas estaduais que visam a contenção do défice orçamental dentro de determinados limites. A fundamentação de que aquele princípio tem uma projecção constringente nesta matéria (não como princípio estruturante, mas como princípio impositivo do sistema fiscal), predeterminando o tipo de soluções disponíveis e retirando ao decisor político democraticamente legitimado qualquer margem de livre opção, é algo que fica por fazer. E esse ónus de fundamentação teria que ser satisfeito, pois a definição dos encargos públicos e dos seus limites - o que está aqui em causa - situa-se a montante da questão da sua repartição, sem com ela se confundir. O princípio constitucional da igualdade perante os encargos públicos não pode, pois, ser automaticamente transposto, sem mais, para este campo problemático.
É sabido que a actuação, em combate ao défice, pelo lado da receita (privilegiadamente fiscal), ou, antes, pelo lado da despesa (bem como a combinação adequada dos dois tipos de medidas e a selecção das que, de entre eles, merecem primazia) foi (e continua a ser) objecto de intenso debate político e económico. E a divergência de orientações e de propostas tem como pano de fundo a não coincidência dos efeitos produzidos por uma ou outra categoria de medidas. Ainda que um acréscimo de receitas fiscais possa conduzir, no estrito plano contabilístico-financeiro, a ganhos pecuniários equivalentes aos resultantes de um corte de despesas, do ponto de vista dos concomitantes efeitos colaterais e das repercussões globais no sistema económico-social, está longe de ser indiferente seguir uma ou outra via. Não há, nesta matéria, variáveis neutras e rigorosamente intermutáveis, pelo que as políticas a implementar pressupõem uma ponderação complexa, em que se busca um máximo de eficácia, quanto ao objectivo a atingir, e um mínimo de lesão, para outros interesses
relevantes.
Não cabe, evidentemente, ao Tribunal Constitucional intrometer-se nesse debate, apreciando a maior ou menor bondade, deste ponto de vista, das medidas implementadas. O que lhe compete é ajuizar se as soluções impugnadas são arbitrárias, por sobrecarregarem gratuita e injustificadamente uma certa categoria de cidadãos.Não pode afirmar-se que tal seja o caso. O não prescindir-se de uma redução de vencimentos, no quadro de distintas medidas articuladas de consolidação orçamental, que incluem também aumentos fiscais e outros cortes de despesas públicas, apoia-se numa racionalidade coerente com uma estratégia de actuação cuja definição cabe ainda dentro da margem de livre conformação política do legislador. Intentando-se, até por força de compromissos com instâncias europeias e internacionais, conseguir resultados a curto prazo, foi entendido que, pelo lado da despesa, só a diminuição de vencimentos garantia eficácia certa e imediata, sendo, nessa medida, indispensável. Não havendo razões de evidência em sentido contrário, e dentro de "limites do sacrifício", que a transitoriedade e os montantes das reduções ainda salvaguardam, é de aceitar que essa seja uma forma legítima e necessária, dentro do contexto vigente, de reduzir o peso da despesa do Estado, com a finalidade de reequilíbrio orçamental. Em vista deste fim, quem recebe por verbas públicas não está em posição de igualdade com os restantes cidadãos, pelo que o sacrifício adicional que é exigido a essa categoria de pessoas - vinculada que ela está, é oportuno lembrá-lo, à prossecução do interesse público - não consubstancia um tratamento injustificadamente desigual.
III - Decisão. - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do
Orçamento de Estado para 2011).
Lisboa, 21 de Setembro de 2011. - Joaquim de Sousa Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro - Ana Maria Guerra Martins - José Borges Soeiro - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Maria João Antunes - Gil Galvão - Carlos Pamplona de Oliveira (vencido conforme declaração junta) - J. Cunha Barbosa (vencido nos termos da declaração de voto que se junta) - João Cura Mariano (vencido, nos termos da declaração que junto). - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto
Vencido essencialmente pelas seguintes razões:As normas analisadas são, em meu entender, inconstitucionais por violação do principio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, em conjugação com o princípio da igualdade decorrente do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 13.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, que reafirma o
principio da igualdade numa vertente social.
O princípio Estado de direito democrático implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas. Merece, por isso, protecção constitucional a expectativa que os cidadãos legitimamente têm na manutenção de situações remuneratórias já alcançadas como consequência do direito em vigor, razão pela qual a normação que, de forma intolerável e arbitrária, prejudique aqueles mínimos de certeza e segurança que a comunidade e o direito tem de respeitar como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, deve ser entendida como não consentida pela Constituição.O legislador não está impedido de, na prossecução ou salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, que mereçam prevalência, alterar o conteúdo daquelas situações remuneratórias, desde que tal medida, para além de
necessária, não seja arbitrária.
Ora, a justificação concretamente invocada para fundamentar a aprovação das normas que determinam cortes e reduções nos salários dos funcionários revela que o interesse público que tais normas visam proteger diz respeito à comunidade no seu conjunto, à generalidade dos cidadãos, e não, unicamente, aos funcionários públicos, grupo que, no entanto, é exclusivamente afectado pela referida redução salarial. Inexiste, em consequência, uma específica justificação para afectar, de forma exclusiva, esses trabalhadores, tendo em conta que a finalidade que o legislador ambiciona obter pode igualmente ser alcançada estendendo à generalidade dos cidadãos os encargos necessários à resolução dos problemas financeiros nacionais por via de simples medidas de natureza tributária, de fácil concretização prática.Finalmente, uma vez que as normas em análise visam expressamente reduzir, e de imediato, o montante remuneratório dos funcionários, perdem relevância argumentos retirados do carácter pretensamente provisório da medida e da natureza orçamental do diploma que a veicula; qualquer que seja o resultado a que tal discussão possa conduzir, manter-se-á inalterada e operante a protecção constitucional gerada pelas já referidas expectativas. - Carlos Pamplona de Oliveira.
Declaração de voto
A tese que obteve vencimento, no que concerne às questões - vigência temporal das normas impugnadas, participação das organizações dos trabalhadores na elaboração da lei, irredutibilidade dos salários, princípio da protecção da confiança -, não me suscita uma posição de plena discordância, antes pelo contrário, ressalvando-se um ou outro aspecto quanto à fundamentação que a sustenta, designadamente quanto ao princípio da confiança e à sua projecção na análise e aplicação que veio de ser concretizada e noque respeita ao princípio da igualdade.
Efectivamente, a discordância verifica-se, essencialmente, quanto à apreciação da questão de (in)constitucionalidade à luz do princípio da igualdade, já que entendo que tal princípio levaria a uma solução diversa da que obteve vencimento, ou seja, determinaria que se concluísse pela inconstitucionalidade material das normassindicandas.
Impõe-se, desde já, referir que se não é insensível à situação de gravidade e excepcionalidade - forte desequilíbrio financeiro das contas públicas e elevada dívida soberana - que afecta o país e, consequentemente, que a mesma exija a adopção de medidas de carácter excepcional e de forma a garantir, num futuro próximo, o afastamento de uma tal situação e a permitir a sua sustentabilidade económica e Porém, como se haverá de convir, tal situação de excepcionalidade não poderá conduzir a uma situação de afastamento de todo e qualquer controlo judicial, sem embargo de se dever reconhecer o amplo poder de conformação de que naturalmente dispõe o legislador democrático; na realidade, como afirma Jorge Reis Novais (cf. 'Os princípios constitucionais estruturantes', pág. 111), «...Uma concepção constitucional de igualdade material conduz inevitavelmente a um padrão de controlo da sua observância em que o julgador é invariavelmente remetido para juízos de valoração que incidem sobre os fundamentos ou os critérios que pretendem justificar, em caso de desigualdade de tratamento, a distinção ou discriminação levada a cabo pelo legislador e, em caso de igualdade, a equiparação ou indiferenciação produzida. Ora, desse ponto de vista, tendo sobretudo em conta o amplo espaço de conformação que deve ser reconhecido ao legislador democrático, a resposta mais comum vai no sentido de uma autocontenção judicial que, todavia, conhece várias gradações. ...».As normas sindicandas - artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei 55-A/2010, de 31de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011) - introduzem reduções às remunerações mensais ilíquidas, a partir de determinados escalões remuneratórios, percebidas por um universo restrito de pessoas, como sejam, os enumerados no n.º 9 do artigo 19.º, todas elas marcadas transversalmente por um elemento comum - ligação profissional ou funcional à administração pública, ou dito de outra forma, exercício de funções em regime específico de função pública -, servindo, portanto, no sector
público.
Tal redução remuneratória tem como escopo principal a satisfação dos encargos públicos (no caso, através da sua diminuição), permitindo que se atinja um maior equilíbrio financeiro, entre a despesa e a receita, a expressar a nível do Orçamento do Estado, obstando, a final, a um aumento da dívida soberana e, bem assim, a permitir que seja alcançada uma maior sustentabilidade económico-financeira do país.Porém, tal objectivo, de manifesto alcance nacional, não pode deixar de integrar interesse público geral a prosseguir por todos os que se encontrem nas mesmas condições remuneratórias previstas nas normas em causa, que já não e tão só pelos que transportem a 'mácula' de exercício de funções em regime específico de função pública, sob pena de discriminação negativa, no mínimo, injusta, já que por razões, como se deixou dito, meramente sócio-profissionais, e em contravenção do disposto no artigo 13.º n.º 2 da CRP (cf., ainda, artigos 18.º, n.º 3 e 59.º, n.º 1, alínea a) da CRP).
Na realidade, sem embargo de se poder reconhecer que o interesse público geral, cuja definição compete ao legislador (à lei), justificará a medida adoptada, sempre restará por explicar a confinação dos seus encargos a um universo restrito ou especifico de pessoas, como seja, aos que exercem funções ou actividade em regime de função pública, sendo certo que estes poderão ver a sua situação ainda mais agravada (para além da redução da 'massa salarial') em função de aumentos de impostos ou taxas que impenderão, naturalmente, sobre um universo de pessoas que, originariamente e em função do interesse público em causa, deveria responder, atento o princípio da igualdade, pelos encargos dele resultantes, interesse esse que, obviamente, não é específico dos que exercem funções públicas.
Por mera curiosidade, deixa-se notado, sem qualquer propósito de defesa de estabelecimento de limite ao poder de conformação do legislador, para além, obviamente, dos resultantes da lei fundamental, o que a propósito da questão em análise deixou plasmado o Conselho Económico e Social, no seu parecer de 26 de Outubro de 2010, sobre a Proposta de Orçamento do Estado para 2011('in' Pareceres do CES, www.ces.pt): «... a redução de vencimentos dos funcionários públicos e dos trabalhadores do Sector Empresarial do Estado (SEE) é uma medida injusta, uma vez que faz repercutir sobre estes trabalhadores grande parte do ónus de redução do défice, a qual a todos beneficia. O CES entende que tal tipo de medidas só deve ser tomado quando estão esgotadas todas as alternativas, o que o CES considera não ser o caso uma vez que se coloca uma grande parte do ónus da consolidação orçamental
nesses funcionários. ...».
No que respeita aos artigos 20.º e 21.º da lei do Orçamento em causa, na medida em que aditam normas aos Estatutos, respectivamente, dos Magistrados Judiciais (artigo 32.º-A) e do Ministério Público (108.º-A), a injustificação da redução daí resultante, sem levar a um total afastamento das razões supra referidas, fundar-se-á mais na violação do princípio da confiança, tendo em conta a ideia de justiça e proporcionalidade, o que, desde logo, se afigura resultar da aplicação, sem qualquer razão expressa ou aparente adiantada pelo legislador, de uma redução em função de uma taxa superior (20 %), como seja, o dobro da máxima prevista no artigo 19.º, e, ainda, da forte suspeita da sua intemporalidade, colocando-se, deste modo, em crise os valores da segurança jurídica e da protecção da confiança, perante a legitima expectativa criada nos destinatários em face do quadro normativo vigente à data da introdução de tais normas, no mínimo, de que não ocorreria um tratamento maisgravoso.
Dir-se-á, por fim, que o efeito ablativo nas remunerações dos destinatários das normas, sem previsão de qualquer tipo de contrapartida, coloca em crise a confiança e a proporcionalidade, enquanto factores de valoração a atender na aplicação do princípio da igualdade, tanto mais que, tratando-se de medida adoptada unilateralmente e com repercussão tão só na esfera pessoal dos destinatários, não consente que estes possam compensar tal ablação por outra forma e de modo a obterem a quota-parte de que se viram despojados, tendo em vista a necessidade de satisfação de possíveis e naturais obrigações por si confiadamente assumidas em função do quantitativo remuneratório anterior, situação esta que se tornará, ainda, mais significativa perante a exclusividade de funções exigida pelo estatuto profissional de alguns dos destinatários, impeditiva do exercício de qualquer outro tipo de actividade (complementar) remunerada, através de um esforço pessoal e com apelo à redução das suas horas de descanso e de lazer.De tudo quanto se deixa exposto, concluiria pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Orçamento do
Estado para 2011). - J. Cunha Barbosa.
Declaração de voto
Divergi da posição maioritária de julgar conforme à Constituição as reduções remuneratórias impostas pelos artigos 19.º, 20.º e 21.º, da Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro, porque entendo que as mesmas violam o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, consagrada no artigo 2.º da Constituição.Na verdade, o longo e contínuo passado de aumentos sucessivos dos vencimentos dos trabalhadores da função pública, acompanhando o aumento do custo de vida, criaram-lhes uma expectativa consistente dos seus salários manterem essa relação de proporcionalidade, não se perspectivando a possibilidade dos mesmos poderem ser reduzidos, pelo que programaram e organizaram as suas vidas, tendo em conta esse
dado que consideravam seguro.
Por isso, as reduções agora efectuadas pelas normas sob fiscalização, na medida em que contrariam inesperadamente uma política solidificada ao longo dos anos, vieram frustrar aquela expectativa legitimamente fundada.Admite-se, no entanto, que o legislador possa defraudar a confiança que os cidadãos depositaram na estabilidade de um determinado regime jurídico quando haja um
interesse público que o justifique.
Essa justificação tem que ser encontrada num juízo de proporcionalidade, ou seja, o interesse público que o legislador tem em mente deve superar o peso das expectativas dos particulares e a alteração operada no quadro legislativo tem que se revelar adequada, necessária e proporcional ao sacrifício imposto aos cidadãos.A redução dos salários dos funcionários públicos integrou a política orçamental para 2011, que teve como objectivo fundamental a redução do défice de 7,3 % do PIB, então previsto para 2010, para 4,6 % em 2011, obedecendo a imposição comunitária.
Como é sabido Portugal atravessa a sua pior crise das últimas décadas nos domínios económico, financeiro e social, encontrando-se a economia portuguesa numa trajectória insustentável que, a não ser corrigida, pode levar o país, a breve prazo, a um desastre económico de grandes proporções e a um retrocesso de difícil recuperação.
A situação financeira degradou-se fortemente nos últimos anos, sendo essa degradação visível tanto no que respeita à situação financeira global da economia, como no que respeita ao caso particular das finanças públicas, sendo evidentes as dificuldades de financiamento externo que colocam em risco a capacidade do Estado português solver
os compromissos assumidos.
Perante este panorama, o Orçamento de Estado para 2011 foi encarado como um instrumento importante de correcção da trajectória deficitária das contas do Estado, medida essencial para transmitir uma imagem da capacidade do país solver os seus compromissos, para continuar a ter acesso a fontes de financiamento, a juros razoáveis, que lhe permitam iniciar uma recuperação económica decisiva.A superioridade do peso do interesse público que presidiu à medida aqui sob fiscalização não oferece quaisquer dúvidas perante os interesses particulares afectados, assim como a aptidão dessa medida para atingir os objectivos definidos.
O mesmo não sucede quanto à necessidade ou exigibilidade do meio escolhido em relação ao fim desejado. Na verdade, não basta demonstrar que a via escolhida é adequada à finalidade visada, é também necessário evidenciar-se que ela é a que menos encargos impõe aos cidadãos. Face à violação da confiança dos cidadãos e aos danos subsequentes, essa medida tem que se revelar "a mais suave", "a mais benigna", entre as medidas possíveis para alcançar a finalidade pretendida. Só assim se poderá concluir pela necessidade da sua aprovação.
Ora, se o fim perseguido é uma redução drástica do défice das contas públicas, o mesmo tanto poderá ser obtido por via do aumento da receita como pela via da
diminuição da despesa.
Sabe-se que não é indiferente o combate ao défice pelo lado da receita ou pelo lado da despesa, atenta a diferença dos efeitos colaterais na economia destas opções, não podendo este Tribunal cercear a liberdade do legislador escolher o caminho que considera mais eficaz para atingir o seu objectivo, como refere o presente acórdão.Contudo, quando o corte da despesa é efectuado através da redução dos vencimentos dos funcionários públicos, a essencialidade dos referidos efeitos colaterais coincide com as consequências duma tributação dos rendimentos - redução do poder de compra da população, com reflexos na procura interna.
Não está demonstrado que exista uma diferença significativa nos efeitos da opção da redução dos vencimentos dos funcionários públicos, relativamente a uma tributação acrescida dos rendimentos de todos os cidadãos, sendo certo que ambas alcançariam o objectivo de redução do défice público, com menores encargos para os funcionários públicos, uma vez que a distribuição do sacrifício recairia sobre um universo substancialmente mais alargado. Além de que, estando nós perante um objectivo de interesse comum a todos os cidadãos, era indiscutivelmente mais justo que a medida de redução dos rendimentos particulares não atingisse apenas os trabalhadores da função
pública.
Não se revelando, pois, que a medida escolhida pelo legislador para alcançar a redução do défice das contas públicas fosse a "mais benigna" entre as medidas possíveis, não se mostra preenchido o requisito da necessidade que poderia justificar a violação do princípio da confiança em nome da prossecução de um interesse público superior, pelo que me pronunciei pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 19.º, 20.º e 21.º, da Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro.Fixaria, contudo, por razões de evidente interesse público de excepcional relevo, a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, apenas a partir de 1 de Janeiro de 2012, permitindo assim ao legislador perspectivar medidas alternativas de redução do défice público que lhe permitisse atingir os objectivos definidos, utilizando-se a faculdade prevista no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição. - João Cura
Mariano.
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