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Acórdão 510/2016, de 24 de Outubro

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma do artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na interpretação de que concede a um ente administrativo, em sede do procedimento de contraordenação, e acrescendo à aplicação da coima, a competência para emitir uma ordem de pagamento dos quantitativos em dívida ao trabalhador

Texto do documento

Acórdão 510/2016

Processo 243/16

2.ª Secção Relator:

Conselheiro Pedro Machete Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - A Britalar - Sociedade de Construções, S. A., recorrida nos presentes autos em que é recorrente o Ministério Público, foi condenada em 21 de maio de 2014 pela Autoridade para as Condições do Trabalho (“ACT”) por ter diminuído a retribuição dos seus trabalhadores (uma contraordenação prevista e punida pelos artigos 129.º, n.º 1, alínea d), e 554.º, n.º 4, alínea e), ambos do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro), na coima de 12 444,00 € e, ainda, no pagamento de 177 284,47 € devidos aos trabalhadores e de 69 220,62 € devidos à Segurança Social. Inconformada, a arguida impugnou judicialmente aquela decisão.

Em 22 de janeiro de 2016, a Instância Central - 1.ª Secção. Trabalho - Braga - Juiz 2, julgou parcialmente procedente a impugnação, mantendo apenas a condenação da arguida a pagar o valor da coima em que fora condenada, considerando que:

«

[A]pós deliberação da respetiva assembleia geral de acionistas, [a arguida] reduziu os salários de todos os seus colaboradores cujo salário bruto mensal excedesse os 700,00 €, o que fez por escalões de vencimento, de forma progressiva, e de forma unilateral, uma vez que não obteve o acordo dos trabalhadores para tal redução salarial.

Esta situação factual, que não foi contestada pela arguida, viola, sem dúvidas, a proibição constante do artigo 129.º, n.º 1, alínea d), do Código do Trabalho, que estabelece um princípio de irredutibilidade da retribuição, no sentido de não poder ser diminuído o vencimento do trabalhador, nem com o seu acordo, salvo raras exceções previstas na lei.

No caso em apreço, verifica-se que a redução salarial incidiu mesmo sobre a retribuição base, sendo certo que não resulta dos autos qualquer circunstância que legitimasse, do ponto de vista legal ou contratual, tal redução. Com efeito, não se tratava, pelo menos na altura, de empresa em situação económica difícil, que pudesse recorrer ao DL n.º 353-H/77, de 29 de agosto, nem foi invocado qualquer instrumento de regulamentação coletiva de trabalho donde adviesse tal redução salarial.

Assim, ao agir da forma como ficou provado, a arguida violou as imposições legais em questão, sendo que poderia e deveria ter agido de forma diferente.

»

(fls. 194, v.º-195)

Já no que se refere à legitimidade da ACT para condenar a arguida a pagar aos trabalhadores as diferenças salariais e os descontos para a Segurança Social, entendeu o mesmo tribunal dever recusar aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, ao disposto no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho pelas seguintes razões:

«

[O] segmento da decisão da ACT que “determina o pagamento das importâncias em dívida aos trabalhadores no montante de € 177.284,47 e à Segurança Social no montante de € 69.220,62” funda-se no n.º 2 do artigo 564.º do Código do Trabalho. Tal norma, que repete a constante do n.º 5 do artigo 687.º do Código do Trabalho na versão de 2003, preceitua que:

“A decisão que aplique a coima deve conter, sendo caso disso, a ordem de pagamento de quantitativos em dívida ao trabalhador, a efetuar dentro do prazo estabelecido para o pagamento da coima.”

Apesar da boa intenção do legislador de pôr rapidamente à disposição dos trabalhadores os quantitativos a que legitimamente têm direito, é difícil compatibilizar tal preceito com a natureza sancionatória do direito das contraordenações.

Sobre esta questão, seguimos a posição de SOARES RIBEIRO, que passamos a citar:

“O problema da constitucionalidade da atribuição de competência à Administração para a instrução dos processos por contraordenação e para aplicação das respetivas sanções foi objeto de viva polémica na altura da sua implantação em finais da década de setenta e princípio da década de oitenta.

Recorda-se a posição crítica do Prof. Cavaleiro de Ferreira, primeiro no seu direito Penal Português e depois nas Lições de Direito Penal onde, invocando o art. 205.º da CRP (versão de 1982) e reservando para os Tribunais “a aplicação da lei em todas as relações jurídicas concretas, quer entre os indivíduos, quer entre estes e o Estado” concluía que “será inconstitucional o julgamento pela Administração das contraordenações e a equiparação a uma sentença duma decisão administrativa...”.

Contra esta posição se pronunciou o Prof. Figueiredo Dias para quem “sendo a coima uma sanção dirigida a advertir o cumprimento de deveres e obrigações que relevem apenas da preservação de uma certa “ordenação social” torna-se imediatamente compreensível que o seu processamento e a sua aplicação devam caber, como estipula o art. 33.º “às autoridades administrativas”... Com isto - e o ponto é muito importante na perspetiva jurídicoconstitucional - não se penetra ainda verdadeiramente na “administração da justiça” ou na “função materialmente judicial” que a Constituição atribui em exclusivo aos tribunais”.

Ora, com a atribuição às autoridades administrativas da função, não já de aplicar sanções, mas verdadeiramente de condenar no pagamento dos quantitativos em dívida aos trabalhadores, parece manifesto que a Administração (no caso a IGT) está já a jurisdizer, a “dizer” o direito, a administrar ajustiça, a invadir o campo próprio da atuação dos tribunais e a penetrar na esfera materialmente judicial que a Constituição reserva aos Tribunais enquanto órgãos de soberania (artigo 202.º da CRP). Parece, por isso, haver também violação do princípio da separação e independência dos órgãos de soberania, mais concretamente o seu corolário da adequação entre órgãos e funções na medida em que um órgão, o Governo, a quem incumbe o poder executivo, concretamente a Administração do Trabalho, invade uma parcela de um outro órgão, os Tribunais, a quem cumpre o judicial, com desrespeito do art. 111.º da norma normarum.

Na realidade, como ensina J. J. Canotilho, da teoria do núcleo essencial das funções pode retirar-se a conclusão de que “a nenhum órgão podem ser atribuídas funções das quais resulte o esvaziamento das funções materiais especialmente atribuídas a outro”, princípio que “tem sido invocado na delimitação da função judicial, considerando a doutrina ser este um dos domínios em que se deve aplicar rigorosamente uma teoria material defunções”.

Neste contexto, parece caber sem grande margem de dúvida a constatação de que a atribuição à Administração da obrigatoriedade de a decisão de aplicação da coima conter a “condenação” do pagamento das quantias em dívida - embora a lei, certamente por pudor, fale simplesmente em conter a ordem de pagamento - o que, além do mais, exige necessariamente a decisão administrativa sobre existência do respetivo direito na esfera jurídica do trabalhador e a prévia liquidação dessas quantias, ofende o referido princípio. Na realidade, se a Administração retira aos tribunais de trabalho a função de decidir sobre os direitos dos trabalhadores com incidência retributiva, mesmo que apenas e só em sequência duma ação inspetiva, aquele órgão de soberania vê-se esvaziado das funções próprias do cumprimento da sua missão.

Outra coisa não resulta, ainda, do mesmo princípio da independência na sua vertente de exclusividade da função de julgar, conforme resulta da lição do Prof. Gomes Canotilho:

“a independência judicial postula o reconhecimento de uma reserva de jurisdição entendida como reserva de um conteúdo material típico da função jurisdicional. Esta reserva de jurisdição atua simultaneamente como limite de atos legislativos e de decisão administrativa, tornandoos inconstitucionais quando tenham conteúdo materialmente jurisdicional”.

À mesma conclusão se chegaria, ainda, se se invocasse que neste âmbito, diferentemente do que se passa com a aplicação de coimas em que a constitucionalidade se basta com a atribuição aos tribunais do “monopólio da última palavra”, a estes órgãos de soberania é constitucionalmente devido o “monopólio da primeira palavra” ou a reserva absoluta de jurisdição.” [cf. Autor cit., “Violação dos Instrumentos de Regulamentação Coletiva (Breves Apontamentos sobre a Interpretação e Constitucionalidade do artigo 687.º do Código do Trabalho) in Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 69, setembro-dezembro de 2004, Coimbra Editora, pp. 138 e ss.] Em suma, concordando inteiramente com a posição supra, entende este Tribunal que não tem de aplicar a norma do n.º 2 do artigo 564.º do Código do Trabalho (na redação dada pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro), por a mesma violar o princípio da separação e independência dos órgãos de soberania, designadamente dos Tribunais do Trabalho, e consequentemente dos artigos 111.º e 202.º da CRP.

»

(fls. 196-197, v.º)

2 - É desta sentença que vem interposto pelo Ministério Público o presente recurso de constitucionalidade, com base no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, seguidamente abreviada como “LTC”), para apreciação da norma do artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, interpretado no sentido de permitir à Administração retirar aos tribunais a função de decidir sobre os direitos dos trabalhadores com incidência retributiva, esvaziando, desse modo, as funções próprias daquele órgão de soberania.

3 - Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal Constitucional, foi ordenada a produção de alegações.

No final da sua alegação, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:

«

1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da LOFPTC, “do despacho [sentença] proferido pela Instância Central - 1.ª Secção. Trabalho - Braga - J2 que recusou a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 564.º do Código do Trabalho (redação int. pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro), com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação do princípio da separação de poderes e independência dos órgãos de soberania, designadamente dos Tribunais do Trabalho, e consequentemente dos artigos 111.º e 202.º da CRP, quando tal normativo (artigo 564.º/2, ibidem), vem permitir que a Administração retire “…aos tribunais a função de decidir sobre os direitos dos trabalhadores com incidência retributiva, mesmo que apenas e só em sequência duma ação inspetiva, aquele órgão de soberania vê-se esvaziado das funções próprias do cumprimento da sua missão”.

2.ª) Objeto do presente recurso é a norma jurídica enunciada no artigo 564.º, n.º 2, do CT, na redação dada pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, na medida em que concede a um ente administrativo, a ACT, em sede do processo de contraordenação, em cúmulo com a aplicação da coima, a competência para emitir uma “ordem de pagamento dos quantitativos em dívida ao trabalhador”.

3.ª) A aplicação de coimas e de sanções acessórias por entes administrativos, em sede do processo de contraordenação, desde que esteja ressalvada a reserva da via judicial em via de recurso, nomeadamente quanto à decisão de aplicação das coimas, é constitucionalmente conforme, como de há muito está reiteradamente estabelecido na jurisprudência constitucional.

4.ª) A “ordem de pagamento” em causa consubstancia uma sanção, não “punitiva” mas antes “reconstitutiva”, mas sempre uma sanção, aliás em conformidade com o sentido geral da “segunda geração” do regime legislativo das medidas de defesa da legalidade democrática, em que com as sanções “punitivas” são cumuladas as sanções “reconstitutivas”, em sede do “cumprimento do dever omi-tido”, pelo que é plausível admitir que a sentença recorrida, em sede de igualdade de razões, tomaria como constitucionalmente conforme a competência atribuída pela norma jurídica constante do artigo 564.º, n.º 2, do CT.

5.ª) Por outra parte, em certo sentido o argumento da sentença recorrida prova de mais, pois por igualdade de razão igualmente se afrontaria a Constituição com a concessão a entes da administração pública de poderes sancionatórios, que a sentença recorrida, acertadamente, toma por adquiridos e constitucionalmente legitimados, por isso que tais poderes sancionatórios, segundo a definição constitucional da função jurisdicional, integram a “repressão da legalidade democrática”, a par da competência para “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”, e como tal, segundo a lógica e teleologia da tese agora refutada, a atribuição de tal competência representaria igualmente uma usurpação da dita função.

6.ª) É certo que esta medida sancionatória (reconstitutiva) da “or-dem de pagamento” é de um tipo peculiar, pois através dela, em certo sentido, poderá uma entidade pública modificar subjetivamente um conflito de interesses entre privados, na medida em que a mesma assim poderá ficar confrontada com a entidade patronal, em vez (ou, em certos casos, cumuladamente em sede de vários tipos de processos, administrativos e judiciais) dos trabalhadores titulares dos créditos controvertidos.

7.ª) Todavia, a natureza socialmente preeminente do interesse em causa, a tutela da integridade da retribuição pelo trabalho prestado, cuja defesa se torna periclitante para o trabalhador quando o contrato de trabalho está em vigor e em execução, justificará esta medida de ativismo administrativo.

8.ª). O ponto decisivo está em examinar o modo como o legislador harmonizou todos os interesses relevantes em causa, dos sujeitos da relação de trabalho e da separação, interdependência e reserva de funções administrativas e jurisdicionais, nomeadamente se com a solução legal perfilhada ficou salvaguardado o “núcleo essencial” da reserva da função jurisdicional, tal como garantida no artigo 202.º, n.os 1 e 2, da Constituição.

9.ª) E assim será, porque a decisão sancionatória administrativa, nomeadamente a “ordem de pagamento” é passível, em sede do “recurso de impugnação”, sem entrave sério para os interessados, de reapreciação por um tribunal, investido de poderes de “plena jurisdi-ção”, para nesse contexto exercer, soberana e definitivamente, com força e autoridade de caso julgado, o seu poder jurisdicional (art. 549.º do CT e arts. 59.º e seguintes, nomeadamente do seu art. 75.º, n.º 2, als. a) e b), do Decreto Lei 433/82, de 27 de outubro, na redação vigente).

10.ª) Sendo certo, por fim, que o tribunal materialmente competente é, justamente, um tribunal do trabalho, embora a forma processual do exercício da sua concreta função jurisdicional neste caso seja o dito “recurso de impugnação”.

»

A recorrida concluiu a sua contraalegação nos seguintes termos:

«

1 - A coima tem como objetivo primordial fomentar e conduzir ao cumprimento de deveres ou obrigações relevantes para a ordenação social.

2 - Deste modo, a ordem de pagamento das quantias em dívida aos trabalhadores não se configura como coima, mas sim como uma verdadeira condenação ao pagamento, em muito semelhante à ação executiva para o pagamento de quantia certa, prevista no Código de Processo Civil.

3 - Condenação essa que a ACT não tem atribuições para a proferir. 4 - Caso se admitisse, por hipótese meramente académica, que a ACT pudesse condenar no pagamento de quantias aos trabalhadores (e à Segurança Social), então, ao proferir essa decisão sem apurar se o alegado e subjacente direito do trabalhador existe no plano fáctico e jurídico - nomeadamente se se verificam eventuais exceções que obstem ou possam obstar à sua existência-, a decisão seria aplicada sem estarem garantidos os meios de defesa mínimos.

5 - Podendo, no limite, se não impugnada judicialmente, constituir um título executivo.

6 - Não se poderá olvidar que a função jurisdicional, em particular na sua vertente de

«

dirimir os conflitos de interesses públicos e privados

»

, encontra-se adstrita aos Tribunais e não a entidades administrativas.

7 - Ora, a decisão de pagamento de quantias aos trabalhadores tem na sua génese um possível conflito de interesses privados, i.e., a relação contratual laboral e possíveis créditos laborais devidos

8 - O princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania pressupõe um núcleo essencial em que as suas funções não podem ser atribuídas a outros, sendo que qualquer ato que o desrespeite será inconstitucional.

9 - A função jurisdicional atribuída aos Tribunais permitelhes administrar a justiça, tendo como corolário a reserva de jurisdição e a reserva de Juiz.

10 - A reserva de jurisdição funciona como limite à atuação dos órgãos e entidades, sendo que serão inconstitucionais quando tiverem um teor materialmente jurisdicional.

11 - Não se pode sanar uma inconstitucionalidade material com o argumento, usado pelo Recorrente, de que a decisão de condenação no pagamento é suscetível de recurso de impugnação judicial, já que, designadamente, tal consubstanciar-se-ia na tolerância de decisões materialmente jurisdicionais proferidas por entes que não os Tribunais.

»

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação A) Delimitação do objeto do recurso

4 - O objeto do recurso de constitucionalidade é definido, em primeiro lugar, pelos termos do respetivo requerimento de interposição. Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir aí a norma ou interpretação normativa cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção de uma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.

In casu a norma jurídica cuja aplicação foi recusada, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do princípio da separação e independência dos órgãos de soberania, está expressa no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro. É o seguinte o teor do artigo 564.º em causa, sob a epígrafe

«

Cumprimento de dever omitido

»:
«

1 - Sempre que a contraordenação laboral consista na omissão de um dever, o pagamento da coima não dispensa o infrator do seu cumprimento se este ainda for possível.

2 - A decisão que aplique a coima deve conter, sendo caso disso, a ordem de pagamento de quantitativos em dívida ao trabalhador, a efetuar dentro do prazo estabelecido para o pagamento da coima. 3 - Em caso de não pagamento, a decisão referida no número anterior serve de base à execução efetuada nos termos do artigo 89.º do regime geral das contraordenações, na redação dada pelo Decreto Lei 244/95, de 14 de setembro, aplicando-se as normas do processo comum de execução para pagamento de quantia certa.

»

Considera o Ministério Público, na sua alegação, que a norma controvertida se encontra

«

enunciada no n.º 2 do preceito, na medida em que concede a um ente administrativo, a ACT, em sede do processo de contraordenação, em cúmulo com a aplicação da coima, a competência para emitir uma “ordem de pagamento de quantitativos em dívida ao trabalhador”

»

(fls. 215). Mais entende o Ministério Público que

«

a sentença recorrida, todavia, acabou por circunscrever o âmbito daquela frase jurídica ao seu expresso sentido literal, ou seja, à questão dos quantitativos em dívida ao trabalhador, postergando assim a questão das dívidas à Segurança Social

»

, procedendo, em conformidade, à análise desse

«

concreto sentido decisório (quantitativos em dívida ao trabalhador)

»

(ibidem). Certo é que, na conclusão 2.ª da sua alegação, o mesmo recorrente precisa o objeto do presente recurso com referência ao enunciado do artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho:

«

Objeto do presente recurso é a norma jurídica enunciada no artigo 564.º, n.º 2, do CT, na redação dada pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, na medida em que concede a um ente administrativo, a ACT, em sede do processo de contraordenação, em cúmulo com a aplicação da coima, a competência para emitir uma “ordem de pagamento dos quantitativos em dívida ao trabalhador”.

»

Sobre esta questão, refere a recorrida não compreender a limitação da norma controvertida alegadamente realizada pelo tribunal a quo (

«

a sentença recorrida não se pronuncia sobre o pagamento das quantias à Segurança Social

»

(fls. 229)),

«

uma vez que, ainda que se equacionasse [...] que a ACT pudesse, efetivamente, condenar no pagamento das quantias aos trabalhadores - o que se recusa veementemente [...] -, sempre se teria de concluir que, dizendo as referidas quantias respeito a reduções salariais, a Recorrida, neste caso, teria que igualmente realizar os inerentes descontos para a Segurança Social. Trata-se não só de uma consequência lógica como legal, decorrente de normas imperativas

»

(ibidem). Daí manter na conclusão 4. da sua contraalegação a referência expressa à Segurança Social.

Importa distinguir o plano normativo - aquele em que se move a fiscalização concreta da constitucionalidade e que respeita à previsão de emitir, juntamente com a decisão de aplicação da coima, uma ordem de pagamento de quantitativos em dívida ao trabalhador - do da concretização normativa - o plano em que se move a decisão sobre a procedência da impugnação judicial a proferir pelo tribunal a quo e em que se situa a concreta ordem de pagamento emitida. Tal distinção é, de resto, expressamente estabelecida na sentença recorrida (que consubstancia o objeto formal do presente recurso):

«

o segmento da decisão da ACT que “determina o pagamento das importâncias em dívida aos trabalhadores no montante de € 177.284,47 e à Segurança Social no montante de € 69.220,62” funda-se no n.º 2 do artigo 564.º do Código do Trabalho. Tal norma, que repete a constante do n.º 5 do artigo 687.º do Código do Trabalho na versão de 2003, preceitua que:

[...]

»

(fls. 196; itálicos aditados).

Por isso mesmo, a norma desaplicada pelo tribunal recorrido e a decisão parcialmente anulada não se confundem. Objeto material do presente recurso de constitucionalidade é apenas a primeira, conforme resulta do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea a), da Constituição:

subscrevendo determinado entendimento doutrinário que refere,

«

entende este Tribunal [ - ou seja, o tribunal recorrido -] que não tem de aplicar a norma do n.º 2 do artigo 564.º do Código do Trabalho [...], por a mesma violar o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, designadamente dos Tribunais do Trabalho, e consequentemente, [o]s artigos 111.º e 202.º da CRP

»

(fls. 197, v.º; itálico aditado).

5 - Por outro lado, resulta da fundamentação da decisão de recusar aplicação ao disposto no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho que o único aspeto considerado respeitou à articulação, tal como prevista no enunciado legal, entre a “decisão que aplique a coima” e a “ordem de pagamento de quantitativos em dívida ao trabalhador”. Com efeito, por confronto com o princípio da separação e interdependência dos poderes - o parâmetro constitucional cotejado pela decisão recorrida -, o que releva é a ordem de pagamento das quantias em dívida aos trabalhadores ser emitida pela Administração, e não pelos tribunais, em especial os tribunais do trabalho. Para a decisão da questão de inconstitucionalidade, não relevou saber se especificamente a ACT tinha ou não competência para emitir tal ordem. Foi a ACT que a emitiu e essa autoria só é importante devido à natureza jusadministrativa daquela Autoridade (cf. o artigo 1.º do Decreto Regulamentar 47/2012, de 31 de julho). De resto, isso mesmo ressalta do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade apresentado no tribunal recorrido:

questiona-se a inconstitucionalidade da norma do artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho, interpretado no sentido de permitir à Administração retirar aos tribunais a função de decidir sobre os direitos dos trabalhadores com incidência retributiva, esvaziando, desse modo, as funções próprias daquele órgão de soberania (cf. supra o n.º 2 e a conclusão 2.ª da alegação do Ministério Público).

A referência expressa na parte pertinente da fundamentação da decisão recorrida - e, em bom rigor, também nas conclusões 2.ª e 3. da alegação do Ministério Público e da contraalegação da recorrida, respetivamente - à ACT e à sua

«

legitimidade [...] para condenar a arguida ao pagamento aos trabalhadores das diferenças salariais e dos descontos para a Segurança Social

» justifica-se apenas e só por a mesma Autoridade ser um ente administrativo:

a mesma questão de inconstitucionalidade objeto do presente recurso suscitar-se-ia em relação a qualquer outro ente administrativo, que não a ACT. Com efeito, saber se, relativamente à ordem de pagamento prevista no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho, a respetiva emissão cabe ao ente administrativo ACT ou, por questões relacionadas com as atribuições e competências dos diferentes entes administrativos, a um outro ente administrativo, é questão que, primeiro, não encontra solução naquele preceito e, segundo, releva exclusivamente do direito infraconstitucional. Em sede de fiscalização concreta da inconstitucionalidade somente daquele preceito constitui um pressuposto necessário da apreciação que o ente administrativo autor da ordem de pagamento conta entre as suas atribuições a realização do interesse público tutelado por tal norma e que é dotado de competência funcional para emitir a ordem em causa.

6 - Pelo exposto, justifica-se reformular o objeto material do presente recurso nos seguintes termos:

está em causa a inconstitucionalidade da norma do artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, na interpretação de que concede a um ente administrativo, em sede do procedimento de contraordenação, e acrescendo à aplicação da coima, a competência para emitir uma ordem de pagamento dos quantitativos em dívida ao trabalhador.

B) Mérito do recurso

7 - A compreensão constitucional do princípio da separação de poderes, apesar de convocar critérios orgânicos e funcionais, não se reconduz a uma simples distribuição de funções por diferentes órgãos. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado, inexiste, no texto constitucional,

«

qualquer estrita correspondência entre separação de órgãos e separação de funções, de modo a que a separação de órgãos tenha o sentido de implicar uma rígida divisão de funções do Estado entre eles, exprimindo até a referência à interdependência dos órgãos do Estado constante do artigo 111.º, n.º 1, da Constituição, uma lógica de colaboração e articulação funcional

»

(cf. o Acórdão 395/2012, disponível, assim como os demais adiante citados, em http:

//www.tribunalconstitucional. pt/tc/acordaos/). Mas, por outro lado,

«

isso não impede que se reconheça quer a existência de domínios claramente identificados e delimitados de competência exclusiva da Administração, quer a reserva de um núcleo essencial de atuação de cada um dos poderes do Estado, apurado a partir da adequação da sua estrutura ao tipo ou à natureza da competência em causa, enquanto justificação da sua previsão e expressão da sua igual legitimidade político-constitucional

»

(v. ibidem). É neste contexto que se justifica falar de uma teoria do núcleo essencial das funções, como aquela a que se refere a sentença recorrida, e que ganha sentido útil o princípio da separação de poderes entendido como princípio normativo autónomo dotado de um irredutível núcleo essencial. Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, tal sentido consubstancia-se em fundamentar a

«

declaração da inconstitucionalidade de qualquer ato que ponha em causa o sistema de competências, legitimação, responsabilidade e controlo consagrado no texto constitucional (Acs. TC n.os 195/94, 677/95, 1/97, 24/98 e 152/02)

»

(v. Autores cits., Constituição da Repú-blica Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. V ao art. 111.º, p. 46).

Os mesmos Autores não deixam, todavia, de advertir para a necessidade de uma caracterização tipológica - e não definitória - das diferentes funções do Estado:

«

O conceito de “núcleo essencial de funções” não dispensa, porém, que, em termos metódicos, se estabeleça uma interpretação sistemática de poderes, competências e funções a partir dos vários preceitos jurídicopositivos da Constituição. Determinar como as funções e competências são distribuídas pelos vários órgãos resulta, em primeiro lugar, da ordem global de competências tal como ela vem positivada na lei constitucional. Em segundo lugar, esta ordem de poderes, competências e funções transporta dimensões materiais que permitirão recortar as características específicas das competências e funções constitucionalmente reservadas a certos órgãos de soberania e que não podem ser “desviadas” para outros. Como os diferentes órgãos podem desempenhar competências e funções que não se reconduzem àquelas que, de forma principal, a Constituição lhes reserva, é admissível a restrição da caracterização material apenas às formas, conteúdos e resultados tipicamente atribuídos a cada órgão de soberania.

»

(v. idem, ibidem, pp. 46-47) Daí que se

«

os atos próprios de cada função devem provir, em princípio, dos órgãos correspondentes a essa função

»

, são descortináveis, no direito positivo,

«

algumas interpenetrações e inevitáveis zonas cinzentas

»

(assim, v. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 4.ª ed., Coimbra editora, Coimbra, 2010, p. 35).

No tocante à função jurisdicional, a Constituição comete o seu exercício aos órgãos de soberania tribunais (artigos 110.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1). Sendo certo que o tribunal não se identifica com o juiz, há no entanto decisões e atos que só este último pode praticar (cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., anot. I ao art. 202.º, p. 506). É nisto que se traduz a reserva de juiz relativamente ao exercício da função jurisdicional (reserva de jurisdição):

«

Tribunal [tem neste artigo 202.º] um sentido jurídico-funcional - daí a epígrafe “função jurisdicional” - conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material (“jurisdictio” como atividade do juiz materialmente ca-racterizada). A atribuição da função jurisdicional aos tribunais, nos termos do n.º 1, radica no facto de as decisões dos tribunais serem imputadas, para efeitos externos, a um tribunal [...] e não a um juiz. Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (202.º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes podem ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade).

»

(v. Autores cits., ibidem, anot. VI ao art. 202.º, p. 509).

Por outro lado, o n.º 2 do artigo 202.º identifica o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção:

defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públi-cos e privados (sobre o sentido e alcance possível daquelas três áreas, cf. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. IV ao artigo 202.º, pp. 18-19; e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., anot. VII ao art. 202.º, p. 509). Como se salientou por exemplo no Acórdão 230/2013,

«

o entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito (sobre os diferentes níveis ou graus de reserva, cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 7.ª edição, págs. 668-670;

Vieira de Andrade, “A Reserva do Juiz e a Intervenção Ministerial em Matéria de Fixação das Indemnizações por Nacionalizações”, in Scientia Ivridica, Tomo XLVII, n.os 274/276, julho/dezembro, 1998, pág. 224).

»

Nesse mesmo Acórdão 230/2013, o Tribunal deu conta dos diferentes entendimentos de que é suscetível o alcance da reserva jurisdicional:

«

Fora dos casos individualizados na Constituição em que há lugar a uma reserva absoluta de jurisdição, o que sucederá não apenas em matéria penal mas sempre que estejam em causa direitos de particular importância jurídicoconstitucional a cuja lesão deve corresponder uma efetiva proteção jurídica, poderá admitir-se que o direito de acesso aos tribunais seja assegurado apenas em via de recurso, permitindo-se que num momento inicial o litígio possa ser resolvido por intervenção de outros poderes, caso em que se poderá falar numa reserva relativa de jurisdição ou reserva de tribunal

»

(itálico adicionado; v. também as sínteses de JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição, cit., anot. VII ao artigo 202.º, pp. 25-31; e

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., anot. VIII ao art. 202.º, pp. 509-510).

8 - Certo é que, desde há muito, o Tribunal Constitucional vem compreendendo a função jurisdicional por referência à atividade de resolução de litígios, de acordo com o direito vigente, tendo em vista especificamente a consecução da paz jurídica, ou seja, com o único ou específico objetivo de realização do interesse público da composição de conflitos (v., entre muitos, os Acórdãos n.os 104/85, 182/90, 443/91, 452/95, 630/95 ou 760/95) Na síntese formulada no Acórdão 80/2003:

«

A problemática da definição da função jurisdicional e do seu confronto com as restantes funções do Estado - mas mormente da função administrativa - tem sido, por referência a tais preceitos, objeto de uma larga discussão, quer na doutrina, quer na jurisprudência.

Na doutrina, A. Rodrigues Queiró procurou distinguilas a partir de um critério teleológico. Segundo escreveu,

«

essencial, para que se fale de um ato jurisdicional, parecenos ser, para já, que um agente estadual tenha que resolver de acordo com o direito “uma questão jurídica”, entendendo-se por tal um conflito de pretensões entre duas ou mais pessoas, ou uma controvérsia sobre a verificação em concreto de uma ofensa ou violação da ordem jurídica”.

E noutro passo precisava:

«

Ao cabo e ao resto, o quid specificum do ato jurisdicional reside em que ele não pressupõe, mas é necessariamente praticado para resolver uma questão de direito. Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de uma decisão de facto traduzida numa

«

questão de direito

»

(na violação do direito objetivo ou na ofensa de um direito subjetivo), se atua por força da lei, para se conseguir a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica decorrente da resolução dessa

«

questão de direito

»

, então não estaremos perante um ato jurisdicional:

estaremos, sim, perante um ato administrativo (cf. Lições de Direito Administrativo, vol. I, 1976, pp. 43, 44 e 51, e

«

A Função Administrativa

»

, Separata da Revista de Direito e de Estudos Sociais, XXIV (n.os 1, 2 e 3), Coimbra, 1977, pp. 30-31). O critério teleológico é igualmente o seguido por R. Ehrhardt Soares quando afirma que, na atividade administrativa, a resolução do conflito de interesses (da

«

questão de direito

»

) é orientada por uma perspetiva de interesse público - justamente, do interesse público específico que a norma expressa.

Também este Tribunal Constitucional tem uma abundante jurisprudência sobre o conceito da função jurisdicional e da função administrativa (cf., entre muitos, e só no tomo 31.º dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, os Acórdãos n.os 225/95, 226/95, 269/95, 375/95). Assim, no Acórdão 452/95 (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º vol, pp. 181), que teve de se pronunciar sobre um dos casos de zona de fronteira, acentuou-se:

“A função jurisdicional consubstancia-se, assim, numa “composição de conflitos de interesses”, levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do direito e da justiça (cf. o Acórdão deste Tribunal n.º 182/90 [...]). Aquela função estadual diz respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de ter não apenas a última palavra, mas logo a primeira palavra (cf. Acórdãos deste Tribunal n.os 98/88 e 211/90 [...]). A função administrativa é, ao invés, uma atividade que, partindo de uma situação de facto traduzida numa “questão de direito”, visa a prossecução do interesse público que a lei põe a cargo da administração e não a paz jurídica que decorre da resolução dessa questão. Daí que, na atividade administrativa, a primeira palavra deva caber à administração, cabendo aos tribunais a última e definitiva palavra, de acordo com a garantia constitucional do recurso contencioso, condensada no artigo 268.º, n.º 4, da Lei Fundamental”.

Mas outras formulações poderão ser colhidas na jurisprudência deste Tribunal. Assim, no Acórdão 104/85, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 2 de agosto, de 1985, afirmou-se:

“A separação real entre a função jurisdicional e a função administrativa passa pelo campo dos interesses em jogo:

enquanto a jurisdição resolve litígios em que os interesses em confronto são apenas os das partes, a Administração, embora na presença de interesses alheios, realiza o interesse público. Na primeira hipótese a decisão situa-se num plano distinto do dos interesses em conflito. Na segunda hipótese verifica-se uma osmose entre o caso resolvido e o interesse público”.

»

A importância decisiva da presença de um interesse público (adminis-trativo) é, deste modo, fundamental para legitimar constitucionalmente o exercício de poderes parajurisdicionais por entidades administrativas, sem prejuízo, naturalmente da possibilidade de posterior reexame judicial:

fora do domínio da reserva absoluta de jurisdição constitucionalmente determinada, não está, em princípio, vedada a atribuição normativa à Administração do poder de praticar atos materialmente equiparáveis aos da função jurisdicional, desde que a respetiva finalidade exclusiva, principal ou específica se reconduza à satisfação de necessidades pú-blicas diferentes da simples pacificação de um conflito de interesses existente entre a Administração e o destinatário do ato ou entre terceiros destinatários do ato:

«

Utilizando este critério [ - o mencionado critério teleológico -], será possível distinguir a função administrativa da função jurisdicional naqueles casos problemáticos em que à Administração também cabe realizar uma composição de conflitos:

estaremos perante um ato jurisdicional quando a sua prática se destine precisamente (espe-cificamente, exclusivamente ou a título principal) à “realização do interesse público da composição de conflitos”, à “realização do direito e da justiça” ou à “resolução de uma questão de direito”

; estaremos perante um ato administrativo se, mesmo que a decisão envolva uma composição de interesses, ela for apenas o meio para prossecução de outro (ou outros) interesses públicos, isto é, se a finalidade exclusiva, principal ou específica da medida for a satisfação de necessidades públicas que não a de “dizer o direito” no caso concreto”.

»

(v. VIEIRA DE ANDRADE, “A Reserva do Juiz” cit., p. 219).

Tal vale para atuações no domínio da ordenação e sanção, da regulação ou, mesmo daquela que será porventura a atuação mais próxima da que é típica da função jurisdicional, a resolução de conflitos. A propósito desta última, observa PEDRO GONÇALVES que a sua legitimidade não depende do critério mais ou menos amplo que se adote relativamente ao alcance da reserva de juiz, visto que,

«

apesar das diferenças, as duas teses [ - regra da reserva absoluta de jurisdição versus princípio da reserva relativa -] aceitam que as competências (administrativas ou jurisdicionais) de conflitos confiadas a órgãos da Administração Pública não perturbam a reserva de juiz, conquanto esteja presente um específico interesse público de natureza administrativa que justifique a intervenção da Administração. Quando assim acontece, os órgãos administrativos resolvem o conflito através dos designados atos administrativos de resolução de conflitos [...] (v. Autor cit., Entidades Privadas com Poderes Públicos, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 546 e ss., nota 377).

9 - A essencialidade da prossecução de um interesse público relativamente à caracterização da atuação da Administração como materialmente administrativa - e não como materialmente jurisdicional - é bem patente num caso, que, prima facie, poderia ser tido como paralelo ao presente:

trata-se da situação decidida pelo Acórdão 235/98, que julgou inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 94.º do Decreto Lei 264/86, de 3 de setembro, por violação da reserva da função jurisdicional (determinação administrativa de pagamento pelas agências de viagens e turismo de quantias aos seus clientes, a título de reembolsos ou indemnizações). Nesse caso, considerou o Tribunal que o ato administrativo que determinava a realização de tais pagamentos implicava

«

o exercício de uma atividade materialmente jurisdicional, que passa pela aplicação das regras do Código Civil e da legislação especial que regula os contratos celebrados entre essas agências e os respetivos clientes

»

. Interrogando-se sobre a existência de analogia com a situação apreciada nos Acórdãos n.os 158/95, 190/95, 193/95 e 579/95 - que concluíram pela caracterização da remoção forçada de canídeos pelas autoridades administrativas como atividade administrativa, porquanto não estava em causa a resolução de conflitos de vizinhança mas antes a atuação de normas de direito público que, tal como o sossego e tranquilidade de vida são exigidos pela própria Constituição em sede de direitos económicos, sociais e culturais -, entendeu o Tribunal que uma resposta afirmativa pressupunha que se pudesse considerar lícita

«

a subtração de certas situações à pura ponderação de interesses sob a égide do direito privado

»

, submetendoas a um regime de direito público suscetível de legitimar a prática de verdadeiros atos administrativos pelos órgãos e entidades a quem estivesse confiada a defesa do interesse público, já que

«

também os direitos subjetivos e os interesses legítimos dos particulares constituem limite e critério de ação administrativa

»

. Porém, no caso concreto, considerou o Tribunal não ser a norma do citado artigo 94.º, n.º 1, compatível com a Constituição, à luz de uma ideia de tutela administrativa dos interesses dos consumidores, pela seguinte e decisiva razão:

«

[A] lei de defesa dos consumidores (a Lei 24/96, de 31 de julho) não [prevê] nem [atribui] a quaisquer entidades públicas a concreta incumbência de velar, no plano do direito administrativo, pela realização e efetivação dos direitos dos consumidores à “proteção dos interesses económicos” (artigo 9.º) e à “reparação dos danos”

:

como resulta do preceituado no artigo 14.º da referida Lei, a incumbência cometida aos órgãos e departamentos da Administração Pública para proteção dos direitos económicos dos consumidores traduz-se apenas na criação e apoio a “centros de arbitragem” - e não na “deslocação”

de tal matéria para o campo do direito público, de modo a legitimar a prática de atos administrativos em tal sede.

»

Recorde-se que o preceito em causa objeto deste juízo positivo de inconstitucionalidade - o artigo 94.º, n.º 1, do Decreto Lei 264/86, de 3 de setembro - previa a cobrança administrativa das

«

importân-cias indevidamente recebidas

» pelas empresas,
«

independentemente da aplicação das sanções previstas

» na lei.

Não é isso, todavia, o que se passa no caso sub iudicio. Diferentemente, o legislador do Código do Trabalho, nomeadamente através da punição como contraordenação da omissão de certos deveres e da subsequente imposição do cumprimento do dever omitido, prevê uma atuação positiva da Administração no sentido de garantir a realização e efetivação dos direitos dos trabalhadores, maxime o seu direito à retribuição, e de assegurar uma equilibrada concorrência entre as empresas - dois interesses públicos constitucionalmente relevantes (cf., respetivamente, os artigos 59.º, n.º 1, alínea a), e 81.º, alínea f), ambos da Constituição). 10 - Com efeito, não se pode perder de vista a necessária conexão entre a contraordenação punida pela coima aplicada e a dívida ao trabalhador objeto da ordem de pagamento prevista no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho. Tal conexão é, desde logo, evidenciada pela ligação entre os n.os 1 e 2 do mencionado artigo:

consistindo a contraordenação laboral na omissão de um dever, o pagamento da coima não dispensa o infrator do seu cumprimento, se este ainda for possível, pelo que, caso o dever em causa respeite ao pagamento de quantias devidas ao trabalhador (

«

sendo caso disso

»

), deve a decisão que aplique a coima conter a ordem de pagamento dos quantitativos em dívida ao mesmo trabalhador. Ou seja, a ordem de pagamento em causa não pode ter por objeto uns “quaisquer créditos laborais”, mas somente aqueles que são, eles próprios, tutelados por via contraordenacional, isto é, aqueles cujo não cumprimento consubstancia, cumulativamente, o preenchimento do tipo objetivo de uma contraordenação laboral. O mesmo é dizer que a ordem de pagamento dos quantitativos em dívida ao trabalhador prevista no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho tem por objeto exclusivo um pagamento que corresponde ao dever cuja omissão é sancionada pela coima aplicada. Aliás, a medida do incumprimento do dever omitido determina a medida do pagamento imposto pela Administração. Em rigor, portanto, a imposição administrativa do pagamento não se limita a dirimir um litígio contratual nem a garantir o cumprimento de uma simples obrigação inter partes; para além disso, e, sobretudo, o mesmo ato impositivo traduz-se numa injunção para fazer o que indevidamente foi omitido e que, como tal, consubstancia o ilícito de mera ordenação social punido com a coima aplicada.

Como em muitos outros casos similares em que se prevê uma injunção de cumprimento do dever omitido - v., por exemplo, o artigo 403.º, n.os 2 e 3, do Código dos Valores Mobiliários, o artigo 48.º, n.º 2, da Lei 25/2008, de 5 de junho (combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo) ou o artigo 8.º, n.os 2 e 3, da Lei 99/2009, de 4 de setembro (regime quadro das contraordenações do setor das comunicações)-,

«

trata-se de garantir eficácia ao sistema sancionatório para “evitar que o arguido optasse pelo pagamento da coima desonerando-se do cumprimento do dever” [omitido] (COSTA PINTO, 2000 a, 24 e 25)

»

(assim, v. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, art. 1.º, n.m.18, p. 32), reforçando, desse modo, as finalidades preventivas negativas ou de dissuasão, quer em relação à generalidade das pessoas, quer relativamente ao próprio infrator.

Por outro lado, e como o Tribunal decidiu no seu Acórdão 29/2007, a propósito do artigo 9.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (que estatui:

«

[o] cumprimento da sanção aplicada não exonera do pagamento da prestação tributária devida e acréscimos legais

»

) - mas com normas paralelas, ainda que não dirigidas exclusivamente a obrigações pecuniárias, no âmbito da LeiQuadro das Contraordenações Ambientais (artigo 24.º) ou do Regime Jurídico da Concorrência (artigo 68.º, n.º 2) -, o cumprimento do dever omitido, por um lado, e as sanções (principais e acessórias) aplicadas em razão do incumprimento, por outro, constituem realidades distintas, não existindo

«

qualquer obrigação constitucional de dispensar o agente do pagamento da dívida tributária em relação com a qual se verificou a infração, apenas pelo facto de ele ter sido condenado pela prática desta

»

.

11 - Só com o Regime Geral das Contraordenações Laborais aprovado pela Lei 116/99, de 4 de agosto, é que as contraordenações consubstanciadas na violação da legislação do trabalho passaram a corresponder conceptualmente - tal como sucede hoje, de acordo com o previsto no artigo 548.º do Código do Trabalho - à violação de normas que consagrem direitos dos trabalhadores. A inovação - que simultaneamente especifica esta espécie de contraordenações por referência ao conceito do artigo 1.º do regime geral consignado no Decreto Lei 433/82, de 27 de outubro - foi tanto mais relevante, quanto correspondeu a uma evolução clara do legislador de 1999, por comparação com o de 1985 - nomeadamente o do Decreto Lei 491/85, de 26 de novembro -, no sentido de reforçar o papel da Administração quer na tutela da posição do trabalhador, quer no que se refere à garantia da concorrência.

Relativamente ao primeiro interesse, enquanto o legislador das contraordenações laborais de 1985 consagrava como contraordenações apenas as condutas que estabeleciam

«

meros deveres para com a Administra-ção

»

, não contemplando, por isso,

«

as disposições que consagram direitos fundamentais como o direito ao trabalho, ao salário ou à liberdade sindical

»

(cf. o preâmbulo do referido Decreto Lei 491/85), a partir de 1999,

«

a violação, ou perigo sério de violação, de direitos fundamentais dos trabalhadores, tais como a igualdade e a não discriminação no trabalho e no emprego, a segurança no emprego, a liberdade sindical, o direito ao salário mínimo nacional

»

, entre outros, foi erigido como

«

critério de qualificação das contraordenações muito graves

»

(cf. a intervenção do Ministro do Trabalho e da Solidariedade, Ferro Rodrigues, durante o debate na generalidade das propostas de lei que estiveram na origem da legislação de 1999 in Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 75, de 23 de abril de 1999, p. 2723, e, no mesmo sentido, a intervenção do Deputado do PSD, Francisco José Rodrigues, ibidem, p. 2736; v., de resto, a polémica suscitada por tal opção, em detrimento da tutela penal:

ibidem, p. 2727, a intervenção do Deputado do PCP, Alexandrino Saldanha). Numa síntese:

«

[S]e estes diplomas forem aprovados, este é um grande salto em frente, em matéria de regulação das relações de trabalho em Portugal, para caminharmos para uma sociedade em que haja, ao mesmo tempo, não só competitividade mas também uma muito maior coesão social e um muito maior respeito pela dignidade de quem trabalha

»

(cf. a mencionada intervenção do Ministro do Trabalho e da Solidariedade in Diário da Assembleia da República, cit., p. 2726)

Concretizando quanto à garantia da concorrência e do bom funcionamento do mercado, são elucidativas as palavras do então Ministro do Trabalho e da Solidariedade, Ferro Rodrigues, responsável pela apresentação das propostas da nova legislação laboral:

«

Não há melhoria da competitividade das empresas, desenvolvimento económico e crescimento sustentado do emprego, enquanto existir margem para uma concorrência desigual e desleal entre as empresas que cumprem e as empresas que apostam no incumprimento da legislação laboral em vigor, na convicção da inexistência ou irrelevância da sanção. [...] Não vale a pena afirmar categoricamente, na letra da lei, um quadro de direitos fundamentais irrenunciáveis e indiscutíveis, como o direito ao trabalho e ao emprego, ou o direito à saúde, segurança e higiene no trabalho, quando depois se permite que o cálculo económico estrito faça pender a balança para o lado da prevaricação. [...] Estamos longe de acreditar na razão da força mas tem de se reconhecer, com naturalidade, que a afirmação e assimilação dos valores essenciais da convivência social se faz, também, pela reposição do valor protegido pelas normas violadas, através da aplicação de sanções adequadas e proporcionais.

»

(v. Diário da Assembleia da Repú-blica, cit., p. 2722; no mesmo sentido, outras intervenções, ibidem, pp. 2730 - Deputado do PS, Artur Penedos; e 2735 - Deputado do CDSPP, Moura e Silva).

Foi também em 1999, nomeadamente com a Lei 118/99, de 11 de agosto (desenvolve e concretiza o regime geral das contraordenações laborais, através da tipificação e classificação das contraordenações correspondentes à violação dos diplomas reguladores do regime geral dos contratos de trabalho), que o legislador introduziu sistematicamente a determinação de a decisão de aplicação de coima conter a

«

ordem de pagamento do quantitativo da remuneração em dívida

»

, a efetuar no prazo estabelecido para o pagamento da coima (cf. os respetivos artigos 14.º - modificação do Decreto Lei 421/83, de 2 de dezembro, referente a trabalho suplementar não remunerado -;

15.º - modificação do Decreto Lei 69-A/87, de 9 de fevereiro, referente à remuneração mínima mensal garantida [sem prejuízo de o artigo 10.º, n.º 3, deste diploma, na sua redação originária, já prever solução idêntica] -;

17.º - modificação da Lei 17/86, de 14 de junho, referente a salários em atraso -; e 30.º - modificação do Decreto Lei 519-C/79, de 29 de dezembro, referente a pagamentos inferiores aos devidos por força de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho).

O Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de agosto, no seu artigo 669.º, n.º 3 (e no artigo 687.º, n.º 5, quanto aos instrumento de regulamentação coletiva de trabalho), consagrou solução idêntica para as mesmas situações e tornou-a extensiva a outras contraordenações relacionadas com a omissão parcial do pagamento da retribuição devida (v.g. subsídio de Natal, pagamento de férias e subsídio de férias, retribuição do trabalho noturno, realização de descontos sobre a retribuição não permitidos). E o artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho de 2009, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, e presentemente em vigor, veio estatuir que

«

a decisão que aplique coima deve conter, sendo caso disso, a ordem de pagamento de quantitativos em dívida ao trabalhador, a efetuar dentro do prazo estabelecido para o pagamento da coima

»

.

É evidente a intenção prática desta solução legal:

repor tão depressa quanto possível a legalidade e, desse modo, acelerar não só à satisfação dos créditos do trabalhador prejudicado, como a eliminação do benefício económico indevido da empresa empregadora.

A própria sentença recorrida reconhece isso mesmo, ao analisar o critério normativo a que, a final, irá recusar aplicação:

«

Apesar da boa intenção do legislador de pôr rapidamente à disposição dos trabalhadores os quantitativos a que legitimamente têm direito, é difícil compatibilizar tal preceito [-o artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho-] com a natureza sancionatória do direito das contraor-denações

»

(fls. 196; itálico aditado; no mesmo sentido fundamental, v. SOARES RIBEIRO, Contraordenações Laborais - Regime Jurídico, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, nota 2 ao art. 564.º, p. 364).

Sucede, isso sim, que, para o tribunal recorrido, a aludida ilegitimidade da omissão de pagamentos devidos não é condição suficiente para, à luz do princípio da separação de poderes, atribuir à Administração, em paralelo com o poder de aplicar coimas, o poder de ordenar tais pagamentos. Isto porque, seguindo a posição doutrinária do Autor referido na sentença, uma coisa é a sanção que serve como advertência ou reprimenda pela inobservância de “deveres impostos em ordem à preservação de uma certa ‘ordenação social’”, e que, desse modo, prossegue finalidades preventivas negativas ou de dissuasão, em relação à generalidade das pessoas e ao próprio infrator; outra, diferente (e já não sancionatória), é a declaração do direito (contratual) de uma pessoa determinada e a exigência da sua satisfação, que corresponde já à composição de um litígio entre devedor e credor.

12 - Contudo, uma tal abordagem desconsidera o sentido inerente ao tratamento contraordenacional da violação dos créditos pecuniários laborais do trabalhador - sendo certo que esse tratamento, em si mesmo, não está em causa.

Na verdade, e em geral, a qualificação como contraordenação da omissão de cumprimento de um dever, ainda que emergente de um contrato ou de um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, não pode deixar de publicizar esse mesmo dever, no sentido de atribuir interesse público ao seu cumprimento. Entendida a coima e o correspondente ilícito como matéria especialmente administrativa - e, por isso mesmo, sendo constitucionalmente legítimo a atribuição à Administração da “primeira palavra”, sem prejuízo da admissibilidade de um posterior reexame judicial (nesse sentido, v., por exemplo, os Acórdãos n.os 158/92 e 278/2011) -, já que está em causa dissuadir a violação de normas integradas no bloco de legalidade, não se vislumbra porque é que, no caso de a contraordenação se traduzir na omissão de um dever, a imposição positiva do respetivo cumprimento não deva ser entendida como correspondendo também à realização de um interesse público, designadamente a remoção da situação de ilegalidade que se pretendeu prevenir mediante a cominação da coima.

No caso especial dos direitos dos trabalhadores, a situação ainda é mais clara, em larga medida devido à forte limitação legal e constitucionalmente imposta à autonomia privada no domínio do direito do trabalho. Nesse sentido, afirmou este Tribunal no seu Acórdão 94/2015:

«

[N]o âmbito do direito do trabalho o princípio da autonomia privada não tem a mesma amplitude que no direito civil. A este respeito, António Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 16.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 22-23), sustentando uma posição que é comum na doutrina, refere o seguinte:

“O Direito do Trabalho apresenta-se, assim, ao mesmo tempo, sob o signo da proteção do trabalhador e como um conjunto de limitações à autonomia privada individual. O contrato de trabalho é integrado por uma constelação de normas que vão desde as condições pré-contratuais, passam pelos direitos e deveres recíprocos das partes, atendem com particular intensidade aos termos em que o vínculo pode cessar, e vão até aspetos póscontratuais (como a preferência na readmissão e a abstenção de concorrência).

É, pois, traço de caráter do Direito do Trabalho a desvalorização da estipulação individual das condições de trabalho - a chamada “individualização” do conteúdo da relação de trabalho. Se a liberdade formal do candidato ao emprego é pressuposto do contrato, como meio de acesso ao trabalho livre - com exclusão do trabalho forçado, servil ou compelido -, a verdade é que a liberdade de estipulação está, pelo lado do trabalhador, originariamente condicionada. As condições do contrato, na medida em que se encontram na disponibilidade dos contraentes, são, em regra, ditadas pelo empregador, a quem cabe, também, a iniciativa do processo negocial e, depois, já na fase de execução do contrato, a determinação concreta da posição funcional do trabalhador. A atuação do Direito do Trabalho visa enquadrar, através de um sistema de limitações imperativas, o protagonismo do empregador na definição dos termos em que a relação de trabalho se vai desenvolver.”

Em sentido semelhante, sustentando que a autonomia dogmática do direito do trabalho se alicerça em

«

princípios ou valorações materiais subjacentes ao sistema normativo laboral

» que se diferenciam dos princípios subjacentes ao direito civil, Maria do Rosário Palma Ramalho refere que é
«

inevitável o reconhecimento da autonomia dogmática do direito do trabalho, porque subjacentes aos diversos institutos e regimes laborais [...] se encontram valorações materiais específicas, e porque a própria construção da área jurídica em termos sistemáticos é informada por uma lógica que a afasta do direito civil:

por um lado, [...] os principais institutos laborais (o contrato de trabalho, a convenção coletiva e a greve) mostram-se irredutíveis aos quadros dogmáticos do direito comum, porque o seu regime jurídico contraria alguns dos princípios civis fundamentais e se orienta por valores concorrentes ou alternativos aos do direito civil, como o da proteção do trabalhador ou o da salvaguarda dos interesses de gestão do empregador, o da igualdade de tratamento entre trabalhadores ou o da autonomia coletiva; por outro lado, a organização do sistema normativo laboral com base numa lógica coletiva e de autossuficiência (provada pela indissociabilidade dos fenómenos laborais individuais e coletivos e pela capacidade de desenvolver recursos específicos de tratamento dos problemas de interpretação e aplicação das normas laborais e da tutela dos interesses e institutos laborais, que asseguram a coerência interna e a sobrevivência do próprio sistema) mostra-se também inspirada por valores específicos, atinentes à proteção dos interesses dos trabalhadores e/ou dos empregadores, à autonomia coletiva ou à paz social

»

(cf. Maria do Rosário Palma Ramalho, Da Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 961-962; cf. ainda, Tratado de Direito do Trabalho, Parte I - Dogmática Geral, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 493 e ss.).

»

Acresce a importância autónoma da retribuição, justificativa de medidas de proteção especiais e com uma incidência imediata no plano da concorrência entre as empresas (artigos 59.º, n.os 1, alínea a), e 3, e 81.º, alínea f), ambos da Constituição). Conforme reconhecido no Acórdão 257/2008:

«

[A] retribuição da prestação laboral, quer na sua causa, que na sua destinação típica, está intimamente ligada à pessoa do trabalhador. Ela é a contrapartida da disponibilização da sua energia laborativa, posta ao serviço da entidade patronal. Ela é também, por outro lado, o único ou principal meio de subsistência do trabalhador, que se encontra numa situação de dependência da retribuição auferida na execução do contrato para satisfazer as suas necessidades vivenciais.

É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam, para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais ativas.

É, na verdade, esta perspetiva valorativa que levou à consagração do direito à retribuição do trabalho entre os direitos dos trabalhadores enumerados no n.º 1, alínea a), do artigo 59.º da CRP, por forma a “garantir uma existência condigna” - direito este já expressamente considerado pelo Tribunal Constitucional como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão 379/91). Por outro lado, no n.º 3 do mesmo preceito estabelece-se que “os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei”.

Esta previsão constitucional de garantias especiais para créditos salariais seguramente que, não só justifica, como impõe, regimes consagradores da sua discriminação positiva, em relação aos demais créditos sobre os empregadores (cf., neste sentido, Gomes Canoti-lho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 777).

»

E, por isso, é pacífico na doutrina, e este Tribunal tem também afirmado, que o direito à retribuição é um direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (v., entre muitos, os Acórdãos n.os 620/2007 e 396/2011), que, de resto, o Estado tem o dever de proteger (cf. artigo 59.º, n.º 2, da Constituição).

Já a defesa da concorrência constitui um dos instrumentos essenciais da política económica, sendolhe comummente reconhecidas virtualidades nos planos da garantia dos direitos dos consumidores (nomeadamente, o direito a uma escolha diversificada de bens e serviços, nas melhores condições de qualidade e de preço) e da eficiência do mercado (estímulo às empresas no sentido de maximizarem a respetiva competitividade e de se adaptarem constantemente ao progresso técnico e científico). Ora, a omissão de pagamento dos quantitativos legalmente devidos por uma empresa aos seus trabalhadores, ao diminuir os custos fixos com pessoal, beneficia-a ilegitimamente perante as demais empresas suas concorrentes.

Qualquer uma destas duas perspetivas é, por si só, justificativa da re-levância juspublicística da ordem de pagamento prevista no artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho, porquanto a respetiva emissão visa assegurar não apenas a defesa da legalidade democrática por via da prevenção negativa, como a proteção de direitos fundamentais dos cidadãos e o funcionamento eficiente dos mercados por via da garantia de uma equilibrada concorrência entre as empresas (v. artigos 59.º, n.º 1, alínea a), e 81.º, alínea f), ambos da Constituição).

Decerto que a solução de conjugar a emissão da ordem de pagamento em simultâneo com a aplicação da coima não constitui um modo de proteção constitucionalmente devido dos interesses e valores com relevância constitucional tutelados pela imposição do dever cujo incumprimento corresponde à contraordenação a punir. No entanto, pelas razões expostas, tal proteção, além de constitucionalmente justificada, também não é constitucionalmente proibida, correspondendo antes a uma solução possível concretizadora de deveres de proteção, que o legislador democrático definiu no exercício da sua liberdade de conformação.

13 - Refira-se, por fim, que o âmbito geral de aplicação da norma sindicada - os casos em que a conduta sancionada consista na omissão do pagamento de um crédito laboral devido ao trabalhador - em nada contende com a respetiva não inconstitucionalidade, nem, de resto, foi essa a perspetiva assumida pelo tribunal a quo. Com efeito, é a própria lei que distingue entre a coima (e as sanções acessórias) e os quantitativos em dívida. Estes não correspondem a uma sanção e, por isso, a determinação da sua devolução não tem de estar prevista em cada um dos tipos objetivos de contraordenações que se traduzam na omissão de pagamentos devidos; os mesmos “quantitativos” correspondem, isso sim, ao objeto do dever omitido, o qual é pressuposto da sanção.

Vem isto a propósito da argumentação do Ministério Público relativa à ideia de a ordem de pagamento corresponder a uma sanção reconstitutiva cumulada com a sanção punitiva em que a coima aplicada se traduz (cf. a conclusão 4.ª da sua alegação). Deste sentido parece aproximar-se também SOARES RIBEIRO - o Autor seguido pela sentença recorrida - quando põe em evidência a reprodução no artigo 273.º, n.º 4 (retribuição mínima mensal garantida), da fórmula constante do artigo 564.º, n.º 2, ambos do Código do Trabalho de 2009. Entende aquele Autor que somente no referido artigo 273.º

«

o tipo legal contém o comando de a decisão da autoridade administrativa determinar a ordem do seu pagamento

»; já o artigo 564.º, n.º 2,
«

não [contendo] um comando de aplicação a toda e qualquer situação de quantitativos em dívida ao trabalhador, [representa] tão só um programa que necessita de ser concretizado no tipo legal específico

»

(v. Autor cit., Contraordenações Laborais, cit. notas 2 e 3 ao art. 564.º, pp. 363-364; itálico aditado). É com base nesta distinção que o mesmo Autor, depois, se propõe avaliar, em relação a cada tipo, a justificação da proporcionalidade da solução legal (aceitando, em relação ao caso do artigo 273.º, que

«

os valores

» em jogo, nomeadamente a garantia do mínimo necessário para a subsistência do trabalhador, justifiquem, por razões de celeridade,
«

que haja uma invasão da esfera materialmente judicial

»

, ainda assim respeitadora da adequação e da proporcionalidade - v. ibidem, nota 2 ao artigo 273.º, p. 246, e nota 3 ao artigo 564.º, p. 364).

Mas, como referido, não foi essa a interpretação feita pelo tribunal a quo do artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho, sendo certo que o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, tem os seus poderes de cognição limitados pela norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação (cf. o artigo 79.º-C da LTC).

III - Decisão Nestes termos, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 564.º, n.º 2, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, na interpretação de que concede a um ente administrativo, em sede do procedimento de contraordenação, e acrescendo à aplicação da coima, a competência para emitir uma ordem de pagamento dos quantitativos em dívida ao trabalhador; e, em consequência, b) Conceder provimento ao recurso e ordenar a reformulação da decisão recorrida de harmonia com o precedente juízo negativo de inconstitucionalidade.

Sem custas.

Lisboa, 21 de setembro de 2016. - Pedro Machete - Lino Rodrigues Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro - Fernando Vaz Ventura - Costa Andrade.

209942746

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2769274.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1979-12-28 - Decreto-Lei 519-C/79 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios das Finanças e da Agricultura e Pescas

    Aprova a Lei Orgânica do Parque Nacional da Peneda-Gerês.

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1983-12-02 - Decreto-Lei 421/83 - Ministério do Trabalho e Segurança Social

    Revê o regime jurídico da duração do trabalho na sua disciplina específica do trabalho extraordinário.

  • Tem documento Em vigor 1985-11-26 - Decreto-Lei 491/85 - Ministério da Justiça

    Estabelece disposições relativas às contra-ordenações no âmbito do direito laboral e da disciplina jurídica sobre higiene, segurança, medicina do trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais.

  • Tem documento Em vigor 1986-06-14 - Lei 17/86 - Assembleia da República

    Salários em atraso.

  • Tem documento Em vigor 1986-09-03 - Decreto-Lei 264/86 - Presidência do Conselho de Ministros - Secretaria de Estado do Turismo

    Estabelece normas sobre a actividade das agências de viagens e turismo.

  • Tem documento Em vigor 1987-02-09 - Decreto-Lei 69-A/87 - Ministério do Trabalho e Segurança Social

    Actualiza o salário mínimo nacional para o ano de 1987.

  • Tem documento Em vigor 1995-09-14 - Decreto-Lei 244/95 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Justiça

    ALTERA O DECRETO LEI NUMERO 433/82, DE 27 DE OUTUBRO (INSTITUI O ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL E RESPECTIVO PROCESSO), COM A REDACÇÃO QUE LHE FOI DADA PELO DECRETO LEI NUMERO 356/89, DE 17 DE OUTUBRO. AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO PRESENTE DIPLOMA INCIDEM NOMEADAMENTE SOBRE OS SEGUINTES ASPECTOS: CONTRA-ORDENAÇÕES, COIMAS EM GERAL E SANÇÕES ACESSORIAS, PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO POR CONTRA-ORDENAÇÃO E PRESCRIÇÃO DAS COIMAS, PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO (COMPETENCIA TERRITORIAL DAS AUTORIDADES ADMINISTR (...)

  • Tem documento Em vigor 1996-07-31 - Lei 24/96 - Assembleia da República

    Lei de Defesa do Consumidor.

  • Tem documento Em vigor 1999-08-04 - Lei 116/99 - Assembleia da República

    Aprova o regime geral das contra-ordenações laborais, em anexo à presente lei.

  • Tem documento Em vigor 1999-08-11 - Lei 118/99 - Assembleia da República

    Desenvolve e concretiza o regime geral das contra-ordenações laborais, através da tipificação e classificação das contra-ordenações correspondentes à violação dos diplomas reguladores do regime geral dos contratos de trabalho.

  • Tem documento Em vigor 2003-08-27 - Lei 99/2003 - Assembleia da República

    Aprova o Código do Trabalho, publicado em anexo. Transpõe para a ordem jurídica interna o disposto nas seguintes directivas: Directiva nº 75/71/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 10 de Fevereiro; Directiva nº 76/207/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 9 de Fevereiro, alterada pela Directiva nº 2002/73/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro; Directiva nº 91/533/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 14 de Outubro; Directiva nº 92/85/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 19 de Outubro; Directiva nº 93/1 (...)

  • Tem documento Em vigor 2008-06-05 - Lei 25/2008 - Assembleia da República

    Estabelece medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo e altera (segunda alteração) a Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto, relativa ao combate ao terrorismo.

  • Tem documento Em vigor 2009-02-12 - Lei 7/2009 - Assembleia da República

    Aprova a revisão do Código do Trabalho. Prevê um regime específico de caducidade de convenção colectiva da qual conste cláusula que faça depender a cessação da sua vigência de substituição por outro instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.

  • Tem documento Em vigor 2009-09-04 - Lei 99/2009 - Assembleia da República

    Aprova o regime quadro das contra-ordenações do sector das comunicações.

  • Tem documento Em vigor 2012-07-31 - Decreto Regulamentar 47/2012 - Ministério da Economia e do Emprego

    Aprova a orgânica da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), no âmbito do Ministério da Economia e do Emprego, estabelecendo as suas atribuições, órgãos e competências. Dispõe sobre a gestão financeira da ACT e aprova o seu mapa de pessoal dirigente, que publica em anexo.

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