Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrentes Jorge Manuel Gonçalves Vicente e Outros e recorridos, Cerâmicas Estaco - Estatuária Artística Coimbra (Massa Falida), Banco Comercial Português, S. A. (Finangeste, S. A., na qualidade de cessionária), Barclays Bank PLC e Outros foi interposto recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70.º da lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal, de 01.03.2007, para apreciação:
- Ao abrigo da alínea a), da recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, da norma do artigo 12.º da Lei 17/86, de 14 de Junho (e não Decreto-Lei 17/86, como, por lapso, se refere nos autos), na interpretação segundo a qual "o privilégio imobiliário geral que nele era concedido preferiria à hipoteca";
- Ao abrigo da alínea b), da inconstitucionalidade das normas do artigo 12.º da Lei 17/86, do artigo 4.º da Lei 96/2001, de 20 de Agosto, e do artigo 751.º do Código Civil (na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março) na interpretação segundo a qual "os privilégios imobiliários gerais conferidos por aquelas normas aos créditos dos trabalhadores emergentes do contrato individual de trabalho não prevalecem, nos termos do disposto no artigo 751.º do Código Civil, sobre a hipoteca".
2 - Resulta dos autos que, na sequência de declaração de falência de Cerâmicas Estaco - Estatuária Artística de Coimbra, S. A.R.L., o 2.º Juízo Cível dos Juízos Cíveis de Coimbra procedeu à graduação de créditos, em relação aos imóveis integrados na massa falida, graduando em primeiro lugar os créditos emergentes de contrato individual de trabalho, com base em privilégio imobiliário geral, e só depois os créditos hipotecários.
Interposto recurso desta decisão, o Tribunal da Relação de Coimbra alterou a decisão recorrida e passou a graduar primeiro os créditos dos recorrentes garantidos por hipoteca e só depois os créditos dos trabalhadores e do Fundo de Garantia Salarial.
Do acórdão do Tribunal da Relação foi interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 01.03.2007, confirmou o acórdão recorrido.
3 - Neste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrido, lê-se o seguinte, na parte que agora releva:
«Em causa está saber se deve ser dada preferência, na graduação dos créditos reconhecidos, em relação aos imóveis integrados na massa falida, aos dos trabalhadores recorrentes, com base em privilégio imobiliário geral, ou aos dos Bancos recorridos, com base em hipoteca.
Os créditos dos trabalhadores e o crédito do Fundo de Garantia Salarial foram graduados, na sentença da 1.ª instância, primeiro do que os créditos daqueles Bancos, não obstante estes estarem garantidos por hipoteca constituída e registada sobre alguns imóveis.
O acórdão recorrido, pelo contrário, graduou em primeiro lugar, em relação a tais imóveis, os créditos desses Bancos.
A hipoteca, nos termos do artigoº 686º, nº1, do Cód. Civil, confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
Por sua vez, o privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (artigoº 733º do mesmo Código). Trata-se de uma garantia que visa assegurar dívidas que, pela sua natureza, se encontram especialmente relacionadas com determinados bens do devedor, justificando-se por isso que sejam pagas de preferência a quaisquer outras, até ao valor dos mesmos bens.
Os privilégios creditórios podem ser, como se vê do disposto no artigo 735º, n.º 1, do Cód. Civil, de duas espécies: mobiliários ou imobiliários. Os mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou acto equivalente, ou especiais, quando compreendem só o valor de determinados bens móveis (n.º 2 do citado artigoº 735º). Já os privilégios imobiliários, segundo o n.º 3 do mesmo artigo, eram sempre especiais.
Apesar do disposto neste n.º 3, alguns diplomas avulsos posteriores à publicação do Cód. Civil vieram criar privilégios que designaram por imobiliários gerais.
É o caso do Decreto-Lei 512/76, de 3/7, que é de considerar revogado pelo Decreto-Lei 103/80, de 9/5, mas cujo artigoº 2º (substituído pelo artigoº 11º deste) dispunha que os créditos pelas contribuições do regime geral de Previdência e respectivos juros de mora gozavam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigoº 748º do Cód. Civil.
É também o caso da lei 17/86, de 14/6, que no seu artigoº 12º dispõe que os créditos emergentes de contrato individual de trabalho, regulados por essa Lei, gozam de privilégio imobiliário geral (n.º 1, al. b), graduando-se antes dos créditos referidos no artigoº 748º do Cód. Civil e ainda antes dos créditos por contribuições devidas à Segurança Social (n.º 3, al. b).
Também a lei 96/2001, de 20/8, estabeleceu no seu artigoº 4º que os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela lei 17/86 gozam de privilégio imobiliário geral (n.º 1, al. b), graduando-se antes dos créditos referidos naquele artigoº 748º e ainda dos créditos da Segurança Social (n.º 4, al. b).
Ora, quanto à eficácia dos privilégios creditórios em relação a terceiros, ou seja, ao conflito entre direitos dos credores e direitos de terceiro estabelecidos sobre os bens que constituem objecto do privilégio, há que distinguir entre privilégios mobiliários e imobiliários.
[...]
Entende-se, assim, que o referido artigoº 751º do Cód. Civil, mesmo antes da redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 38/03, de 8/3, continha e contém um princípio geral insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral, por este não incidir sobre bens certos e determinados e pelo facto de os privilégios imobiliários gerais não serem conhecidos aquando do início da vigência do actual Código Civil, o que implicava que, dizendo o n.º 3 do artigoº 735º que os privilégios imobiliários eram sempre especiais, só a privilégios imobiliários especiais o dito artigoº 751º se podia referir, só estes, portanto, preferindo, quer à consignação de rendimentos, quer à hipoteca, quer ao direito de retenção.
Não se compreenderia sequer que o legislador, perante a delicadeza da questão e as dúvidas suscitadas, se pretendesse integrar os privilégios imobiliários gerais no regime do artigoº 751º, não procedesse de forma expressa à alteração radical de regime que tal determinaria no que respeita àquele n.º 3 do artigoº 735º e, designadamente, ao n.º 1 do artigoº 686º do mesmo Código, que determina que a preferência resultante da hipoteca apenas cede perante privilégio especial (fora casos de prioridade de registo), deixando subsistir enormes dúvidas susceptíveis de provocar grave insegurança no comércio jurídico e concorrendo para defraudar legítimas expectativas dos credores hipotecários ou titulares de direito de retenção, por ele próprio criadas. Logo, se não produziu tal alteração, só pode ser porque não quis integrar os privilégios imobiliários gerais no regime do citado artigoº 751º.
Acresce que, entretanto, embora com fundamentação distinta, o Tribunal Constitucional, por razões idênticas às invocadas no seu Acórdão 362/02, de 17/9/02, publicado no D.R., 1.ª série-A, de 16/10/02, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigoº 2º da Constituição da República, da norma constante, na versão primitiva, do artigoº 104º do Cód. do I.R.S., e hoje do seu artigoº 111º. na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do artigoº 751º do Cód. Civil, emitiu o seu Acórdão 363/02, com a mesma data e publicado no mesmo D.R., declarando a inconstitucionalidade, também com força obrigatória geral, das normas constantes do artigoº 11º do mencionado Dec-Lei 103/80, de 9/5, - que é aquele onde presentemente se reconhece aos créditos pelas contribuições à Segurança Social e respectivos juros de mora privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo -, e, para evitar a sua eventual repristinação, do citado artigoº 2º do Dec. lei 512/76, de 3/7, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Cód. Civil.
É certo que é aos créditos da Fazenda Pública e aos da Segurança Social que estes acórdãos expressamente se referem, negando prevalência ao privilégio imobiliário geral de que gozam sobre a hipoteca, mas, por identidade de razões, na medida em que se trata de casos paralelos de confronto entre aquele privilégio e a hipoteca, em que o mencionado princípio da confiança impõe solução idêntica, entende-se que a sua doutrina é extensiva aos créditos laborais, implicando a inconstitucionalidade também do artigoº 12º do citado decreto-lei 17/86 na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral que nele era concedido preferiria à hipoteca.
Invocam os ora recorrentes que a interpretação contrária é que é inconstitucional por violação do disposto nos artigoºs 59º, n.ºs 1, al. a), e 3, e 53º, da Constituição da República Portuguesa.
Não se verifica, porém, uma tal inconstitucionalidade.
É que os direitos constitucionalmente consagrados, - inclusive os da segurança no emprego e da retribuição do trabalho, reconhecidos naqueles dispositivos -, têm de ser objecto de regulamentação pelo legislador ordinário, a que o julgador não se pode substituir, e que antes da aprovação do actual Código do Trabalho entendeu por bem, com o objectivo de conceder protecção àqueles direitos, conferir aos créditos laborais, no tocante aos imóveis da entidade patronal, apenas a protecção resultante de privilégios imobiliários gerais, a qual não consiste senão na atribuição da preferência acima indicada.
E tanto é de entender que o legislador não quis integrar os privilégios imobiliários gerais no regime daquele artigo 751º, que, entretanto, o já citado Dec.-Lei 38/03 lhe veio dar nova redacção, passando ele a referir apenas, de forma expressa, os privilégios imobiliários especiais: ou seja, apenas estes, e não os gerais, é que preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca, e ao direito de retenção.
É certo que o n.º 3 do dito artigoº 735º passou então a dispor que "os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais", o que implica que reconhece a existência de privilégios imobiliários gerais, não previstos no Cód. Civil. Mas certo é também que, apesar disso, o legislador limitou a eficácia do disposto na nova redacção do dito artigoº 751º aos privilégios imobiliários especiais, do que se conclui pretender a aplicação do respectivo regime apenas a esses privilégios, portanto com exclusão dos privilégios imobiliários gerais apesar de não previstos nesse Código.
Tal diploma veio, pois, decidir a questão já então controvertida de saber quais dos créditos assim garantidos ou protegidos deviam ser pagos em primeiro lugar, questão essa forçosamente conhecida do legislador e que este quis resolver excluindo de forma explícita do artigoº 751º os privilégios imobiliários gerais. Assim, constitui esta nova formulação desse dispositivo uma norma de natureza interpretativa, que, nos termos do artº 13º, n.º 1, do Cód. Civil, se integra no mesmo dispositivo e, consequentemente, nos diplomas legais que atribuíram aos créditos laborais e da Segurança Social privilégio imobiliário geral, pelo que a sua aplicação aos créditos anteriores não constitui aplicação retroactiva.
Só com a aprovação do Código do Trabalho pela lei 99/2003, de 27/8, entrado em vigor, nos termos do artigoº 3º, n.º 1, da mesma Lei, em 1 de Dezembro de 2003, é que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, passaram a gozar de privilégio imobiliário especial, sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, segundo se dispõe no seu artigoº 377.º, n.º 1. Ou seja, só então o legislador se decidiu a conceder aos créditos laborais tal privilégio, reconhecendo implicitamente que o privilégio imobiliário geral antes concedido não dispunha de tal eficácia.
Desse dispositivo, porém, não podem beneficiar os recorrentes.
Isto porque, entrado o Código do Trabalho em vigor apenas em 1 de Dezembro de 2003, a falência da entidade empregadora dos ora recorrentes fôra já decretada por sentença de 25/7/02, logo produzindo os seus efeitos, como resulta do disposto nos artigoºs 147.º e segs. do C.P.E.R.E.F., então em vigor, pelo que os créditos laborais em causa não ficaram a beneficiar desse privilégio, então inexistente, dele também não podendo ficar posteriormente a beneficiar por aquele Código só dispor para o futuro, e portanto para os créditos laborais formados só posteriormente à sua entrada em vigor, face ao disposto nos artigoºs 12º do Cód. Civil e 8º, n.º 1, parte final, daquela lei 99/2003. Ao que acresce que, não podendo aquele artigoº 377º ser considerado como uma norma de natureza interpretativa por ser inovador ao criar um privilégio imobiliário especial antes inexistente, - o que, à luz do artigoº 13.º, n.º 1, do Cód. Civil, impede a sua integração no artigoº 12º da citada lei 1 7/86, que o artigoº 21º, n.º 2, al. e), da mesma lei 99/2003, até visa revogar, se ignora qual o imóvel em que cada um dos ora recorrentes exercia a sua actividade.
Conclui-se, pois, que os créditos laborais dos ora recorrentes apenas beneficiam de privilégios imobiliários gerais, que se traduzem em meras preferências de pagamento, só susceptíveis de prevalecer em relação a titulares de créditos comuns, pois, não incidindo esses privilégios sobre bens determinados - pelo que não estão envolvidos de sequela -, o regime aplicável tem de ser o dos privilégios mobiliários gerais a que se reporta o artigoº 749º do Cód. Civil, cedendo os direitos de crédito por eles protegidos perante os direitos de crédito garantidos por consignação de rendimentos, hipoteca, ou direito de retenção.
Daí que os créditos dos ora recorridos, encontrando-se garantidos por hipoteca, hão-de gozar de prioridade, na sua graduação, sobre os créditos laborais, que beneficiam de privilégio imobiliário apenas geral nos termos acima indicados.
Entende-se, por isso, não assistir razão aos recorrentes, devendo, em consequência do exposto, na graduação dos créditos em concurso, e relativamente aos imóveis apreendidos sob as verbas n.ºs 1, 2 e 3 do auto de arrolamento, ser graduados primeiro os créditos dos Bancos ora recorridos garantidos por hipoteca (o do Banco B.P.I., em primeiro lugar, só em relação ao imóvel da verba n.º 1) e só depois os créditos dos trabalhadores e do Fundo de Garantia Salarial, mantendo-se, em tudo o mais, a graduação efectuada na sentença recorrida, como decidido no acórdão em crise.».
4 - Por despacho de fls. 805/806, foi suscitada, pelo anterior Relator, a questão prévia da inutilidade da apreciação do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, face à apreciação do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea a) dos mesmos número e artigo, e foram os recorrentes notificados para produzirem alegações no recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Os recorrentes sustentaram a improcedência da questão prévia suscitada e requereram a sua notificação para alegar ao abrigo do recurso interposto pela alínea b), invocando o seguinte:
«[...] importa ter presente que "o juízo a formular pelo Tribunal Constitucional sobre a norma desaplicada, seja, pelo contrário, de não inconstitucionalidade" (2º parágrafo, página 2 do douto despacho de 7 de Maio de 2007) apenas tornaria inútil a apreciação do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) se - como é afirmado no douto despacho -, dessa forma, fosse "revogado o único fundamento da não aplicação da norma, no contexto da decisão recorrida, pelo que o tribunal recorrido, aplicando a norma em questão, concederá provimento à pretensão dos recorrentes."
Só que, tal como resulta do requerimento de interposição de recurso, o argumento da inconstitucionalidade não parece ser "único fundamento da não aplicação da norma no contexto da decisão recorrida".
Até porque pode o tribunal a quo, embora procedendo o recurso interposto ao abrigo da aliena a), limitar-se a alterar os fundamentos da sua decisão deixando a decisão inalterada...
E, por isso, se entende deverem os ora recorrentes ser notificados, também, para produzirem alegações no recurso interposto ao abrigo da alínea b), ainda que o conhecimento destas fique subsidiariamente dependente da não confirmação do juízo de inconstitucionalidade subjacente ao recurso interposto ao abrigo da alínea a).»
5 - No recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º, os recorrentes concluíram da seguinte forma as suas alegações:
«1. O direito à retribuição do trabalho - onde se incluem os "créditos indemnizatórios emergentes do despedimento" - está intimamente relacionado com o direito a uma vida digna e como tal - mais que uma natureza patrimonial - tem uma natureza alimentar (essencial à vida e subsistência pessoal do trabalhador).
2 - É um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, que visa "garantir uma existência condigna", conforme preceitua o artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, e que o Tribunal Constitucional já expressamente considerou como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
3 - É a própria dignidade da vida humana (base sobre a qual se funda a nossa República, vide artigo 1º da CRP) que está em causa, pois também esta pressupõe a autonomia vital de que emanam os direitos constitucionais à retribuição do trabalho de forma a garantir uma existência digna (artigo 59º nº 1, a)) e o direito à segurança no emprego (artigo 53º).
4 - O privilégio imobiliário geral reconhecido aos créditos laborais pela norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 12º da lei 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil, visa atribuir uma protecção necessária aos créditos laborais com fundamento nesta sua intrínseca natureza alimentar.
5 - "Nesta conformidade, deve entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional." (cf. Ac. TC nº 498/2003)
6 - Pelo que a norma constante do artigo 12º, n.º 1 da lei 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil não é inconstitucional. (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional de 498/2003 de 22 de Outubro de 2003 e no 672/04 de 23 de Novembro de 2004).»
6 - O recorrido Banco Comercial Português, S. A. (Finangeste, S. A., na qualidade de cessionária) apresentou contra-alegações, nas quais, para além de suscitar a questão prévia da não verificação dos pressupostos do recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, concluiu o seguinte:
«1) O Acórdão proferido pelo STJ optou por aplicar o regime previsto no artº 749º do Código Civil, em vez do regime previsto no artº 751º do CC. Esta opção decorreu de uma operação de interpretação jurídica em que não teve lugar qualquer juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artº 751º CC. Não estão pois verificados os pressupostos deste tipo de recurso pelo que não deverá ser conhecido o objecto do recurso.
2) O Código Civil apenas prevê a constituição de privilégios imobiliários especiais, conforme se refere expressamente no nº 3 do artigoº 735º desse Código.
3) Assim, o privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos dos trabalhadores, criado posteriormente pela lei 17/86, de 14/06 (artigoº 12º) e pela lei 96/2001, de 20/08 (artigoº 4º), constitui uma derrogação ao princípio geral consagrado no nº 3 do artigoº 735.º do Código Civil de que os privilégios imobiliários são sempre especiais.
4) Como a citada lei 17/86, de 14/06, não regula o concurso do privilégio imobiliário geral que criou com outras garantias reais, no nosso caso, a hipoteca, nem esclarece a sua relação com os direitos de terceiros, nem o Código Civil prevê a regra relativa à graduação em caso de concurso entre privilégios imobiliários gerais e garantias reais, há que enquadrar essa figura do privilégio imobiliário geral face ao Código Civil.
5) Há que encarar os privilégios imobiliários gerais como meros direitos de prioridade que prevalecem apenas sobre os créditos comuns e não como verdadeiras garantias reais das obrigações.
6) No sentido acima exposto e também pelo facto de esses privilégios serem gerais, dever-lhes-á ser aplicado o regime previsto no artigoº 749º do Código Civil, com o consequente afastamento do regime fixado no artigoº 751º do mesmo Código.
7) Ora, uma vez que os créditos dos trabalhadores da Falida, emergentes de contratos individuais de trabalho não estão sujeitos a registo, o Recorrido que registou o seu privilégio hipotecário, ver-se-ia (não fosse, designadamente, o princípio geral estabelecido no já referido artigo 749º do Código Civil), confrontado com o reconhecimento de créditos que frustraria a fiabilidade que o registo predial merece, sendo certo, também, que aqueles credores têm também outros meios, constitucionalmente garantidos em sede de segurança social e solidariedade (artigo 63º, nºs. 1 e 3 da Constituição da República).
8) Acrescenta-se que, quando o legislador interveio nesta matéria, concretamente quando foi alterada a redacção dos artigoºs 735.º nº 3 e 751º do Código Civil, pelo DL nº 38/03, de 08/03, não fixou a respectiva eficácia dos privilégios imobiliários gerais face a terceiros, tendo clarificado que "são sempre especiais os privilégios imobiliários previstos no Código e que os privilégios imobiliários oponíveis a terceiros nos termos do artigoº 751º são os imobiliários especiais".
9) E, só com a posterior aprovação do Código do Trabalho é que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador passaram a gozar de privilégio imobiliário especial, sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade. Só então o legislador decidiu conceder aos créditos laborais tal privilégio, reconhecendo implicitamente que o privilégio imobiliário geral antes concedido não dispunha de tal eficácia.
10) E o disposto no artigoº 377º do Código do Trabalho não se aplica aos presentes autos, nos termos do artigoº 12º nº 1 Código Civil.
11) Além do mais, se o artigoº 12º da lei no 17/86, de 14.06 fosse interpretado no sentido de consagrar um privilégio creditório imobiliário oponível a terceiros que adquiram um prédio ou direito real sobre ele, seria de declarar essa norma inconstitucional por violação do princípio da confiança, ínsito no Estado de Direito democrático, consagrado no artigoº 2º da Constituição, conforme decidiu já o Tribunal Constitucional no Acórdão 363/2002 para o caso paralelo do privilégio imobiliário geral previsto no artigoº 2º do DL nº512/76, de 03/07 e no artigoº 11 do DL nº 103/89 de 09/05.
12) O entendimento dos Recorrentes não pode ser admitido pois violaria o disposto:
- no artigoº 12º da lei 17/86 e artigoº 4º da lei 96/2001, e nomeadamente os artºs 686, nº 1, 735º, nº 3, 748º, 749º e 751º, todos do Código Civil, na medida em que a tais créditos, garantidos por privilégio imobiliário geral, se aplica no disposto do artigoº 749 do C. P. Civil e não o disposto no artigoº 751 também do C. Civil, pois, esta última norma é, apenas, aplicável aos privilégios imobiliários especiais e não também aos privilégios imobiliários gerais. Não estando abrangidos pelo artigoº 751 do C. Civil, os créditos dos trabalhadores deverão ficar graduados posteriormente ao crédito do Recorrido (que goza de garantia hipotecária), nos termos do artigoº 749 do C. Civil.
- no artigoº 2º da Constituição da República Portuguesa, por violação dos princípios constitucionais de confiança e de segurança jurídicas, verificando-se inconstitucionalidade, quando interpretadas aquelas mesmas normas no sentido de que os créditos dos trabalhadores que gozam do privilégio imobiliário geral prevalecem sobre os créditos hipotecários e cuja hipoteca se encontra registada desde 7.3.1997.
13) A decisão constante no Acórdão proferido pelo STJ não merece pois qualquer censura, tendo aplicado correctamente as normas de Direito que se impunham e observado os princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança do cidadão emanados do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
14) A interpretação da lei, nos presentes termos não põe em causa o direito dos trabalhadores à remuneração do trabalho prestado. Mas, para a salvaguarda de tal direito, foi criado o Fundo de Garantia Salarial e outros institutos pelo que não deverão ser terceiras entidades privadas a assegurar o cumprimento dos deveres públicos.
15) Aqueles credores têm também outros meios, constitucionalmente garantidos em sede de solidariedade e segurança social (artigo 63º, nºs. 1 e 3 da Constituição da República).»
7 - O recorrido Barclays Bank PLC contra-alegou, concluindo da forma seguinte:
«I. Vem o presente recurso da douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que considerou inconstitucional a aplicação da norma do artigo 12.º do Decreto-Lei 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral que nele era concedido aos trabalhadores preferiria à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil.
II. O crédito da ora Recorrida encontra-se garantido por hipoteca, devidamente registada, relativamente ao imóvel descrito sob a verba 1 do auto de arrolamento; por seu turno, o crédito dos Recorrentes encontra-se garantido por um privilégio imobiliário geral, o qual lhes foi concedido através do artigo 12.º do Decreto-Lei 17/86, de 14 de Junho.
III. Discute-se, assim, nos presentes autos qual dos dois créditos prevalece em caso de concurso, se a hipoteca devidamente registada, se o privilégio imobiliário geral que era concedido aos trabalhadores nos termos supra referidos.
IV. Com efeito, anteriormente à alteração introduzida no Código Civil pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, aquele diploma apenas reconhecia e regulava o regime legal aplicável aos privilégios mobiliários gerais e especiais, assim como aos privilégios imobiliários especiais, desconhecendo por completo os privilégios imobiliários gerais.
V. Esta última espécie de privilégios foi criada por diplomas avulsos posteriores à publicação do Código Civil.
Assim, conclui o Tribunal que «não é constitucionalmente proibido que a lei ordinária confira prevalência ao crédito garantido por uma hipoteca anteriormente registada sobre os créditos laborais. Nesta conformidade, deve entender-se que o princípio da confiança, assim defendido pela norma impugnada, não encontra obstáculo constitucional.».
Refira-se, ainda, que se fosse intenção do legislador ordinário dar preferência aos créditos laborais quando em conflito com outros direitos de terceiro, aquando da alteração ao Código Civil (Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março), não teria alterado o artigo 751.º do Código Civil de modo a que este passasse a referir expressa e especificamente que só os privi1égios imobiliários especiais é que preferem à hipoteca.
Resta ainda dizer que o credor hipotecário é frequentemente um impulsionador do emprego. Na verdade, é graças a este credor que o empregador consegue ter fundos para investir na actividade e criar postos de trabalho. Se o seu crédito ficar totalmente esvaziado em favor dos créditos salariais, o risco inerente ao crédito será maior, o que tornará o próprio crédito mais oneroso. Sendo o crédito mais caro, fica prejudicado o principal mecanismo de incentivo de criação de emprego. Logo, em última análise, o que está em causa é um conflito entre o direito ao salário ou o direito ao emprego. Numa lógica de justiça social mais ampla, e tendo em conta que existem outros mecanismos eficazes de assegurar o direito ao salário, devem prevalecer os princípios da confiança, da iniciativa privada e, bem vistas as coisas, do emprego.
VI. No entanto, os diplomas que vieram criar os privilégios imobiliários gerais não estabeleceram, desde logo, um regime aplicável aos mesmos quando em concurso com outros direitos de terceiros, gerando uma lacuna na lei.
VII. Assim, a questão que se colocava na data de criação destes diplomas e até à alteração do Código Civil pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, era a de saber qual o regime aplicável aos privilégios imobiliários gerais quando em concurso com outros direitos de terceiros, se o regime dos privilégios mobiliários gerais previsto no artigo 749.º do Código Civil, se o regime dos privilégios imobiliários especiais previsto no artigo 751.º do Código Civil.
VIII. Entretanto, e com a redacção do artigo 751.º do Código Civil que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, o legislador terá querido pôr termo a esta controvérsia passando a referir expressamente que só os privilégios imobiliários especiais é que preferem à hipoteca.
IX. De salientar que a norma do artigo 751.º do Código Civil tem uma natureza interpretativa que, nos termos do artigo 13.º, n.º 1 do Código Civil, se integra no próprio dispositivo (e, necessariamente, nos próprios diplomas legais que atribuíram aos créditos laborais privilégio imobiliário geral), pelo que a sua aplicação aos créditos sub judice não constitui aplicação retroactiva.
X. Do exposto, resulta já que os privilégios imobiliários gerais concedidos aos trabalhadores não preferem à hipoteca e, portanto, ao crédito da ora Recorrida.
XI. Por outro lado, discute-se, ainda, nos presentes autos, a conciliação entre vários valores com dignidade constitucional - direito da retribuição ao trabalho e o princípio da confiança, da certeza e da segurança jurídica - devendo esta conciliação ser efectuada de modo a assegurar a menor compressão possível de cada um desses bens jurídicos.
XII. A este respeito, a doutrina vertida nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 362/2002 e 363/2002, ambos de 17 de Setembro, é perfeitamente extensível e aplicável aos créditos laborais.
XIII. Com efeito, tal como nos casos apreciados pelos referidos Acórdãos, também os créditos laborais dos ora Recorrentes não têm uma estreita conexão com o imóvel arrolado sobre a verba 1 do auto de arrolamento, nem com qualquer outro bem da respectiva entidade patronal, até porque tal ligação nem sequer é alegada por aqueles.
XIV. Por seu turno, também os Recorrentes gozam de outros meios alternativos para cobrança dos seus créditos, nomeadamente, de um privilégio mobiliário geral relativamente aos bens móveis da entidade patronal, bem como do Fundo de Garantia Salarial, através do qual podem ver satisfeitos os seus créditos por dívidas emergentes do contrato de trabalho ou da sua cessação.
XV. Assim, ao se dar preferência a um crédito garantido por hipoteca não se viola de modo algum os créditos laborais, nem qualquer direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, já que estes sempre se poderão socorrer do referido Fundo de Garantia Salarial ou mesmo do Fundo de Desemprego.
XVI. Refira-se, ainda, o facto de os créditos hipotecários serem frequentemente os impulsionadores do emprego.
XVII. Assim, e caso o entendimento sufragado pelos Tribunais fosse o contrário do que aqui se defende, ou seja, fosse a preferência do crédito laboral relativamente ao crédito hipotecário, faria com que, em última análise, estivesse em causa um conflito entre o direito ao salário e o direito ao emprego, já que os bancos passariam a recusar empréstimos por falta de garantia dos mesmos, e consequentemente, seriam criados menos postos de trabalho por falta de financiamento das entidades patronais.»
8 - Os recorrentes responderam à questão prévia suscitada nas contra-alegações do recorrido Banco Comercial Português, pugnando pela sua improcedência.
9 - Por despacho de fls. 907, foram notificados para alegar no recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Os recorrentes apresentaram alegações, rematadas pelas conclusões seguintes:
«1. As normas do artigo 12.º do Decreto-Lei 17/86, de 14-06, do artigo 4.º da lei 96/2001, de 20-08, e do artigo 751.º do Código Civil, na interpretação e aplicação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão recorrido, segundo a qual os privilégios imobiliários gerais conferidos por aquelas normas aos créditos dos trabalhadores emergentes do contrato individual de trabalho não prevalecem sobre a hipoteca, são inconstitucionais.
2 - Inconstitucionalidade resultante da violação dos artigos 1.º, 53.º, 59.º n.º 1 alínea a) e n.º 3 e 204.º da Constituição da República Portuguesa;
3 - Os referidos normativos - artigo 12.º da lei 17/86 e 4.º da lei 4/2001 conjugados com o artigo 751.º - assim interpretados e aplicados são inconstitucionais, na medida em que não garantem a efectividade da protecção à retribuição do trabalho - direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva "sobrevivência condigna" - imposta pela CRP, nomeadamente, nos artigos l.º e 59.º (especialmente os n.º 1 alinea a), n.º 2 e n.º 3);
4 - É a própria Dignidade da vida humana (base sobre a qual se funda a nossa República, vide artigo 1º da CRP) que está em causa, pois também esta pressupõe a autonomia vital de que emanam os direitos constitucionais à retribuição do trabalho de forma a garantir uma existência digna (artigo 59.º n.º 1, a)) e o direito à segurança no emprego (artigo 53.º);
5 - Sendo que a ratio legis subjacente aos referidos artigos 12.º e 4.º é a intencionalidade jurídico-constitucionalmente imposta de protecção efectiva e eficaz dos créditos laborais.
6 - A protecção do direito à retribuição do trabalho enquanto direito constitucional incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, que o Tribunal Constitucional já considerou como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, - sob pena de se verificar uma flagrante violação dessa especial garantia constitucional - não pode deixar de ser acrescida em relação (e no confronto) com qualquer outro tipo de crédito de natureza meramente patrimonial.
7 - Daí que a protecção conferida aos créditos meramente patrimoniais, garantidos por hipoteca, não possa prevalecer sobre a protecção conferida aos créditos dos trabalhadores que têm uma natureza alimentar ao permitir a subsistência pessoal do trabalhador.
8 - Argumentação que não sai prejudicada pelo facto de se puder sustentar que, "do lado" do credor hipotecário, se apresenta a tutela da confiança prosseguida através do registo predial e constitucionalmente protegida pelo artigo 2.º da Constituição.
9 - Pois o direito à retribuição do trabalho, também ele ínsito num estado de direito democrático subordinado ao princípio da democracia social, por contender com o "indeclinável direito a uma vida digna", tem um valor mais relevante e. como tal, "deve prevalecer, numa hierarquia de normas constitucionais".
10 - E, se assim se poderia afirmar em geral, por maioria de razão se deve afirmar na presente situação, já que o princípio da confiança surge, aqui, enquanto "protector" de um crédito de natureza meramente patrimonial.
11 - Princípio da confiança - aqui subjacente à tutela regista! - que não é neste caso atingido de forma a justificar uma interpretação normativa que sustente uma compressão da protecção (necessária e) imposta pela Constituição aos créditos salariais.
12 - No caso sub iudice está-se perante uma situação em que a quase totalidade dos trabalhadores dedicaram toda uma vida de trabalho às Cerâmicas Estaco - Estatuária Artística de Coimbra e que, apesar de toda essa dedicação, correm o risco de não receber aquilo a que por lei têm direito.
13 - Sendo pois a limitação à confiança, resultante do registo, um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição.
14 - No Acórdão recorrido, aquando da interpretação e aplicação das referidas normas não se considerou a especifica natureza dos créditos laborais, afirmando-se - pelo contrário - a identidade entre os privilégios imobiliários de que gozam os créditos laborais e os conferidos aos créditos da Fazenda Pública e da Segurança Social.
15 - Da solução sufragada no Acórdão do STJ resultaria, no fundo, a subversão das referidas normas constitucionais e da hierarquia de valores e princípios que lhes está subjacente.
16 - O respeito da Constituição e da ponderação/relevância/hierarquia dos direitos e princípios no seu seio impõe-se ao legislador aguando da elaboração das leis e ao Juiz ao aplicar essas mesmas leis (204.º CRP).
17 - Aquela regulamentação dos direitos constitucionalmente consagrados não pode subverter a relevância relativa (preponderância) que aos mesmos é atribuída na Constituição.
18 - Diferentemente do que se sustenta no Acórdão recorrido, o legislador ordinário nunca pretendeu que os créditos laborais não preferissem à hipoteca nos termos do artigo 751.º do Código Civil - o legislador, ao alterar o artigo 751.º CC., visou adequa-lo à jurisprudência do T.C vertida nos Acórdãos n.º s 362/02 e 363/2002, mantendo no artigo 377.º CT a protecção conferida aos créditos laborais.
19 - Atendendo à especifica natureza do direito a retribuição e à protecção da dignidade da pessoa humana que lhe está subjacente, é pois, constitucionalmente proibido que uma lei ordinária confira prevalência/preferência a um crédito de natureza meramente patrimonial sobre créditos laborais, unicamente por esse crédito estar garantido por uma hipoteca anteriormente registada.
20 - Por maioria de razão, não pode o julgador (artigo 204.º CRP) socorrer-se da margem de manobra que a Constituição concede ao legislador para - interpretando as normas por este elaboradas - subverter a intencionalidade normativo-constitucional que subjaz às mesmas. In casu, a protecção efectiva e acrescida dos créditos laborais em relação a créditos com uma natureza meramente patrimonial.»
O recorrido Banco Comercial Português, S. A. (Finangeste, S. A., na qualidade de cessionária) deu por reproduzidas as contra-alegações apresentadas.
O recorrido Barclays Bank PLC contra-alegou, concluindo da forma seguinte:
«I. Vem o presente recurso da douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que recusou aplicar a norma do artigo 12.º do Decreto-Lei 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral que nele era concedido aos trabalhadores preferiria à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil, por a considerar inconstitucional.
II. Ora, tendo sido o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, deverá o mesmo ser rejeitado, na medida em que pressupõe a aplicação de uma norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
III. No caso sub judice, o que existiu foi uma recusa de aplicação do artigo 751.º do Código Civil e, consequentemente, a aplicação do artigo 749.º daquele mesmo Código.
IV. Assim, e uma vez que o recurso é limitado ao objecto do pedido, não deverá o Tribunal conhecer o mesmo, já que aquele pressupõe a aplicação do artigo 751.º do Código Civil, que não aconteceu.
V. No entanto, e sem prescindir, sempre se dirá que o crédito da ora Recorrida encontra-se garantido por hipoteca, devidamente registada, relativamente ao imóvel descrito sob a verba 1 do auto de arrolamento; por seu turno, o crédito dos Recorrentes encontra-se garantido por um privilégio imobiliário geral, o qual lhes foi concedido através do artigo 12.º do Decreto-Lei 17/86, de 14 de Junho.
VI. Discute-se, assim, nos presentes autos qual dos dois créditos prevalece em caso de concurso, se a hipoteca devidamente registada, se o privilégio imobiliário geral que era concedido aos trabalhadores nos termos supra referidos.
VII. Com efeito, anteriormente à alteração introduzida no Código Civil pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, aquele diploma apenas reconhecia e regulava o regime legal aplicável aos privilégios mobiliários gerais e especiais, assim como aos privilégios imobiliários especiais, desconhecendo por completo os privilégios imobiliários gerais.
VIII. Esta última espécie de privilégios foi criada por diplomas avulsos posteriores à publicação do Código Civil.
IX. No entanto, os diplomas que vieram criar os privilégios imobiliários gerais não estabeleceram, desde logo, um regime aplicável aos mesmos quando em concurso com outros direitos de terceiros, gerando uma lacuna na lei.
X. Assim, a questão que se colocava na data de criação destes diplomas e até à alteração do Código Civil pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, era a de saber qual o regime aplicável aos privilégios imobiliários gerais quando em concurso com outros direitos de terceiros: se o regime dos privilégios mobiliários gerais previsto no artigo 749.º do Código Civil, se o regime dos privilégios imobiliários especiais previsto no artigo 751.º do Código Civil.
XI. Entretanto, e com a redacção do artigo 751.º do Código Civil que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, o legislador terá querido pôr termo a esta controvérsia passando a referir expressamente que só os privilégios imobiliários especiais é que preferem à hipoteca.
XII. De salientar que a norma do artigo 751.º do Código Civil tem uma natureza interpretativa que, nos termos do artigo 13.º, n.º 1 do Código Civil, se integra no próprio dispositivo (e, necessariamente, nos próprios diplomas legais que atribuíram aos créditos laborais privilégio imobiliário geral), pelo que a sua aplicação aos créditos sub judice não comporta qualquer aplicação retroactiva.
XIII. Do exposto, resulta já que os privilégios imobiliários gerais concedidos aos trabalhadores não preferem à hipoteca e, portanto, ao crédito da ora Recorrida.
XIV. Por outro lado, discute-se, ainda, nos presentes autos, a conciliação entre vários valores com dignidade constitucional - direito da retribuição ao trabalho e o princípio da confiança, da certeza e da segurança jurídica - devendo esta conciliação ser efectuada de modo a assegurar a menor compressão possível de cada um desses bens jurídicos.
XV. A este respeito, a doutrina vertida nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 362/2002 e 363/2002, ambos de 17 de Setembro, é perfeitamente extensível e aplicável aos créditos laborais.
XVI. Com efeito, tal como nos casos apreciados pelos referidos Acórdãos, também os créditos laborais dos ora Recorrentes não têm uma estreita conexão com o imóvel arrolado sobre a verba 1 do auto de arrolamento, nem com qualquer outro bem da respectiva entidade patronal, até porque tal ligação nem sequer é alegada por aqueles.
XVII. Por seu turno, também os Recorrentes gozam de outros meios alternativos para cobrança dos seus créditos, nomeadamente, de um privilégio mobiliário geral relativamente aos bens móveis da entidade patronal, bem como do Fundo de Garantia Salarial, através do qual podem ver satisfeitos os seus créditos por dívidas emergentes do contrato de trabalho ou da sua cessação.
XVIII. Assim, ao se dar preferência a um crédito garantido por hipoteca não se viola de modo algum os créditos laborais, nem qualquer direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, já que estes sempre se poderão socorrer do referido Fundo de Garantia Salarial ou mesmo do Fundo de Desemprego.
XIX. Refira-se, ainda, o facto de os créditos hipotecários serem frequentemente os impulsionadores do emprego.
XX. Assim, e caso o entendimento sufragado pelos Tribunais fosse o contrário do que aqui se defende, ou seja, fosse a preferência do crédito laboral relativamente ao crédito hipotecário, faria com que, em última análise, estivesse em causa um conflito entre o direito ao salário e o direito ao emprego, já que os bancos passariam a recusar empréstimos por falta de garantia dos mesmos, e consequentemente, seriam criados menos postos de trabalho por falta de financiamento das entidades patronais.
XXI. Termos em que deverá ser o negado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser mantida a douta decisão recorrida.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
10 - Importa, antes de mais, ter presente o teor das normas que são objecto dos recursos em apreciação. O artigo 12.º da Lei 17/86, de 14 de Junho, tem o seguinte teor:
«Artigo 12.º
(Privilégios creditórios)
1 - Os créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2 - Os privilégios dos créditos referidos no n.º 1, ainda que resultantes de retribuições em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a despesas de justiça, sem prejuízo, contudo, dos privilégios anteriormente constituídos, com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei.
3 - A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737.º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à Segurança Social.
4 - Ao crédito de juros de mora é aplicável o regime previsto no número anterior».
A Lei 96/2001, de 20 de Agosto, deu nova redacção ao n.º 2 do artigo 12.º, que passou a ter a seguinte formulação:
«Os privilégios dos créditos referidos no n.º 1, ainda que resultantes de retribuições em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a despesas de justiça».
A mais disso, a referida lei dispôs, no seu artigo 4.º, e para o que agora releva:
«1 - Os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei 17/1986, de 14 de Junho, gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior os créditos de carácter excepcional, nomeadamente as gratificações extraordinárias e a participação nos lucros das empresas».
Por força desta lei foi, assim, alargado o âmbito da garantia: para além dos créditos retributivos (os "salários em atraso"), já cobertos pelo artigo 12.º da Lei 17/86, passaram a estar abrangidos os créditos indemnizatórios dos trabalhadores, por força da cessação dos respectivos contratos.
O artigo 751.º do Código Civil, por último, na formulação anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, rezava assim:
«Os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores».
A) Questões prévias
A1) Pressupostos do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC
11 - O recorrido BCP sustentou a não verificação dos pressupostos do recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Em seu entender, a decisão do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que o privilégio imobiliário geral reconhecido no artigo 12.º da Lei 17/86, de 14 de Junho, não beneficiava do regime de oponibilidade a terceiros previsto no artigo 751.º do Código Civil assentou numa "operação de interpretação jurídica", em que não teve lugar qualquer juízo de inconstitucionalidade.
E, na verdade, é bem certo que aquele Tribunal desenvolveu um extenso arrazoado argumentativo, no puro plano da hermenêutica do direito ordinário, tendente a demonstrar que o referido artigo 751.º é insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral.
Nessa linha argumentativa, duas razões foram decisivas para considerar o princípio geral contido no artigo 751.º do Código Civil insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral: o facto de este «não incidir sobre bens certos e determinados» e o facto de «os privilégios imobiliários gerais não serem conhecidos aquando do início da vigência do actual Código Civil, o que implicava que, dizendo o n.º 3 do artigo 735.º que os privilégios imobiliários eram sempre especiais, só a privilégios imobiliários especiais o dito 751.º se podia referir (...)».
Como se vê, foi recorrendo exclusivamente, neste segmento da decisão, a cânones hermenêuticos comuns, e, em especial, ao elemento sistemático da interpretação, que o Supremo Tribunal de Justiça pôde concluir pela não integração dos privilégios imobiliários gerais, e, em particular, do concedido pelo artigo 12.º da Lei 17/86, de 14 de Junho, no regime do artigo 751.º do Código Civil.
Mas, menos certo não é que o citado Tribunal não deixou de invocar, como uma outra razão para fundamentar a decisão nesse sentido, a inconstitucionalidade da interpretação oposta. De facto, abonando-se nos Acórdãos n.º 362/02, de 17.09.02 (DR, 1.ª série-A, de 16.10.02), e n.º 363/02, da mesma data e com publicação no mesmo número do DR, ambos do Tribunal Constitucional, cuja doutrina considerou "extensiva aos créditos laborais", a decisão recorrida pronunciou-se pela «inconstitucionalidade também do artigo 12.º do citado Decreto-Lei 17/86 na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral que nele era concedido preferiria à hipoteca». Por este trecho da decisão recorrida, é patente que nela se recusou a aplicação dessa interpretação normativa também com fundamento em inconstitucionalidade.
Estamos, pois, perante dois fundamentos distintos e autónomos, qualquer deles bastante para sustentar, como ratio decidendi, a graduação prioritária do crédito hipotecário. Aliás, os próprios recorrentes, para justificar, em resposta ao despacho de fls. 805/806, a utilidade da apreciação do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não deixaram de reconhecer que «o argumento da inconstitucionalidade não parece ser único fundamento da não aplicação da norma no contexto da decisão recorrida».
Se assim é, temos que concluir pela inutilidade do conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. De facto, qualquer que seja a decisão quanto à constitucionalidade da norma do artigo 12.º da Lei 17/86, interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela concedido prefere à hipoteca, a decisão recorrida manter-se-á inalterada, pois o outro fundamento em que ela se apoia não será minimamente afectado por essa pronúncia do Tribunal Constitucional.
Uma eventual decisão de constitucionalidade daquela norma, contrariando a decisão recorrida, significaria apenas que este Tribunal considera constitucionalmente admissível a interpretação rejeitada, de prevalência dos créditos referidos no citado artigo 12.º sobre os créditos garantidos por hipoteca.
Mas não implicaria que o Tribunal entenda que a Constituição impõe essa interpretação, como a única a ela conforme. Para isso, seria necessária uma decisão no sentido da inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral conferido por aquela norma não prevalece sobre a hipoteca. Mas a aplicação da norma com esse alcance já é uma questão de constitucionalidade que não cabe no âmbito do recurso pela alínea a), caindo no âmbito do recurso da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Atendendo à natureza instrumental da fiscalização concreta da constitucionalidade, como é jurisprudência uniforme deste Tribunal, a insusceptibilidade de a decisão do recurso se repercutir utilmente na decisão recorrida leva ao não conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Termos em que procede a questão prévia suscitada pelo recorrido BCP.
A2) Utilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC
12 - No que respeita ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, entende-se o presente Relator, como já se infere do anteriormente exposto, que a questão de constitucionalidade nele suscitada tem autonomia em relação ao interposto ao abrigo da alínea a) da mesma norma, não sendo inútil o seu conhecimento.
Na verdade, não proferindo este Tribunal uma decisão de fundo, quanto à constitucionalidade da interpretação da norma do artigo 12.º da Lei 17/86, segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela referido prefere à hipoteca, fica em aberto a hipótese da inexistência de obstáculo constitucional a essa eficácia preferencial.
Mas, um juízo de não inconstitucionalidade é apenas isso mesmo, a negação de uma desconformidade da norma ou interpretação normativa com o disposto na Constituição, não a afirmação de que essa norma ou interpretação corresponde a um imperativo constitucional, sendo o único meio de lhe dar satisfação. Ora, com o recurso interposto ao abrigo da citada alínea b), o que os recorrentes pretendem, ao arguirem a inconstitucionalidade de uma interpretação que não confira aos crédito laboral referido no artigo 12.º da Lei 17/86 prevalência sobre a hipoteca, é justamente uma decisão da qual se infira que uma tal prevalência é constitucionalmente imposta, em termos de obstar à constitucionalidade de qualquer outra que dela divirja.
Não pode, assim, contestar-se a utilidade, para o recorrente, de uma decisão de provimento do pedido, formulado ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Na verdade, em caso de êxito, ficará obstaculizada, no presente processo, qualquer outra interpretação normativa do artigo 12.º da Lei 17/86, do artigo 4.º da Lei 96/2001 e do artigo 751.º do Código Civil que não seja a da atribuição de preferência àquele privilégio sobre a hipoteca.
Nestes termos, tomar-se-á conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
B) Apreciação do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC
13 - A questão subjacente ao presente recurso é a de saber se, em concurso de credores, deve ser dada preferência, na graduação dos créditos reconhecidos em relação aos imóveis integrados na massa falida, aos dos trabalhadores recorrentes, com base no privilégio imobiliário geral previsto naquela norma, ou aos dos bancos recorridos, com base em hipoteca.
O artigo 12.º da Lei 17/86 nada diz sobre esta questão, de forma que a solução para ela tem que ser obtida conjugando-a com o regime dos privilégios creditórios consagrado no Código Civil.
A preferência dos privilégios imobiliários sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada, está consagrada, em excepção ao princípio prior in tempore, potior in iure, no artigo 751.º do Código Civil. Sendo assim, perguntar se o privilégio imobiliário geral concedido pelo artigo 12.º da Lei 17/86 e pelo artigo 4.º da Lei 96/2001 prevalece sobre a hipoteca é o mesmo que perguntar se este privilégio cai ou não dentro do âmbito de previsão do artigo 751.º
A questão, anteriormente à alteração do artigo 751.º do Código Civil operada pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, e à aprovação do Código do Trabalho, pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto (que veio conceder um privilégio imobiliário especial aos créditos laborais), suscitava dúvidas fundas. Essas dúvidas nasciam, além do mais, do facto de o artigo 751.º, na sua formulação originária, referir os privilégios imobiliários, sem mais especificações, sendo certo, todavia, que, dentro do sistema do Código Civil, os privilégios imobiliários eram sempre especiais, como expressamente se estabelecia no artigo 735.º, n.º 3. Só a partir da alteração introduzida pelo Decreto-Lei 38/2003, o artigo 751.º passou a referir os privilégios imobiliários especiais como o seu âmbito de incidência.
Seja qual for a melhor solução, no plano infraconstitucional, para a presente questão de constitucionalidade importa apenas averiguar se está ferida de inconstitucionalidade uma interpretação das normas objecto do presente recurso que não atribua aos créditos garantidos pelo privilégio imobiliário geral nele previsto graduação prioritária perante créditos hipotecários.
Pronunciando-se sobre normas que consagram outros privilégios imobiliários gerais - os atribuídos à Segurança Social e aos créditos do Estado por imposto sobre o rendimento das pessoas singulares - o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de tais normas, quando interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil (Acórdãos n.º s 362/2002 e 363/2002, publicados no DR, 1.ª série A, de 16.10.2002, que foram antecedidos por vários acórdãos no mesmo sentido, proferidos em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade).
Nestes arestos considerou-se, em síntese, que aquela interpretação normativa viola o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
A fundamentação desses acórdãos remete para considerações expendidas no Acórdão 160/2000, do seguinte teor:
«[...] a interpretação que o acórdão recorrido fez destas normas, mediante a aplicação do regime do artigo 751.º do Código Civil, confere a este privilégio a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para a previdência, à data da instauração da execução, e, atribui-lhe preferência sobre direitos reais de garantia - a consignação de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção - ainda que anteriormente constituídos.
Este privilégio, com esta amplitude, funciona à margem do registo (já que a ele não está sujeito) e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no artigo 751.º, designadamente a hipoteca - que é o caso dos autos.
[...] o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar (cf. inter alia, os acórdãos n.º s. 303/90 e 625/98, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Dezembro de 1990 e 18 de Março de 1999, respectivamente).
A esta luz, pergunta-se - e os recorrentes fazem-no - que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa.
É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas - que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário (cf. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, pág. 333; Isabel Pereira Mendes, "Repercussão no Registo das Acções dos Princípios do Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo Predial" in - O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág. 604; Paula Costa e Silva, "Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção Conferida ao Terceiro Adquirente", in - Revista da Ordem dos Advogados, ano 58, 1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862).»
Todavia, nem a garantia decorrente do registo de uma hipoteca é absoluta - comprova-o, além do mais, a preferência do direito de retenção (também ele um direito não sujeito a registo), ainda que a hipoteca tenha sido registada anteriormente (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil) - nem os créditos laborais são inteiramente equiparáveis aos créditos em causa nestes acórdãos. Na verdade, eles apresentam especificidades significativas, que, do ponto de vista valorativo, os diferenciam destes.
Essas diferenças foram percucientemente apontadas no Acórdão 498/2003 (seguido pelo Acórdão 672/04), onde se salienta, em primeiro lugar, que «não se pode dizer com a mesma intensidade que não exista, no caso dos créditos abrangidos pelo n.º 1 do artigo 12.º da Lei 17/86 'qualquer conexão' com os imóveis onerados. É certo que não ocorre a conexão presente nos casos dos privilégios imobiliários especiais constantes dos artigos 743.º e 744.º do Código Civil; mas é igualmente certo que estão em causa privilégios incidentes sobre os bens imóveis da empresa ao serviço da qual se encontram os trabalhadores beneficiários, e que esta ligação necessária, no mínimo, atenua o carácter oculto e imprevisível para o credor com garantia real registada da possibilidade de virem a existir os referidos créditos.» Daí «parece poder concluir-se que, no caso, não é tão intensamente atingido o princípio da confiança, especialmente prosseguido pelo registo predial.»
Destaca o referido Acórdão, em segundo lugar, que os credores da remuneração laboral «não têm à sua disposição os meios alternativos que, quer a Fazenda Pública, quer a Segurança Social detêm, para cobrar os seus créditos».
Por último, o Acórdão 498/2003 chama a atenção para a particular "natureza do direito" aqui confrontado com o princípio da confiança.
E esta é, do nosso ponto de vista, uma diferença particularmente relevante. Na verdade, a retribuição da prestação laboral, quer na sua causa, que na sua destinação típica, está intimamente ligada à pessoa do trabalhador. Ela é a contrapartida da disponibilização da sua energia laborativa, posta ao serviço da entidade patronal. Ela é também, por outro lado, o único ou principal meio de subsistência do trabalhador, que se encontra numa situação de dependência da retribuição auferida na execução do contrato para satisfazer as suas necessidades vivenciais.
É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam, para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais activas.
É, na verdade, esta perspectiva valorativa que levou à consagração do direito à retribuição do trabalho entre os direitos dos trabalhadores enumerados no n.º 1, alínea a), do artigo 59.º da CRP, por forma a "garantir uma existência condigna" - direito este já expressamente considerado pelo Tribunal Constitucional como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão 379/91). Por outro lado, no n.º 3 do mesmo preceito estabelece-se que "os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei".
Esta previsão constitucional de garantias especiais para créditos salariais seguramente que, não só justifica, como impõe, regimes consagradores da sua discriminação positiva, em relação aos demais créditos sobre os empregadores (cf., neste sentido, GOMES Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 777).
Afigura-se-nos, pois, por este conjunto de razões, que a situação de conflito concursal que se nos depara nos presentes autos não estrutura um campo de ponderação relativa valorativamente idêntico ao que se nos apresenta quando os créditos contrapostos aos dos credores hipotecários não são de fonte laboral. Assim sendo, há fundamento para que a sua solução obedeça a uma linha de tratamento não coincidente com a seguida nesses casos. Há fundamento, designadamente para «não julgar inconstitucional a norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil», tal como decidiu o citado Acórdão 498/2003.
Mas, afirmar a não contrariedade à Constituição desta interpretação normativa do artigo 12.º não é, evidentemente, o mesmo que sustentar a inconstitucionalidade da solução oposta, da solução que negue ao privilégio referido nesta norma preferência em relação à hipoteca. Isso equivaleria a conferir automaticamente a uma interpretação constitucionalmente admissível o alcance de uma solução constitucionalmente imposta. Como se exprime o Acórdão 284/2007:
«Só que destas considerações - suficientes para aceitar a conformidade constitucional de uma solução legislativa que admita que os créditos laborais preferem ao crédito que é garantido por hipoteca anteriormente registada -, não decorre a obrigação constitucional de a lei ordinária conferir obrigatoriamente aos créditos laborais uma prevalência sobre crédito garantido por uma hipoteca anteriormente registada».
A questão de constitucionalidade que nos ocupa terá, pois, que ser apreciada em si mesma, implicando um juízo autónomo quanto à necessidade ou não de um regime de prevalência dos créditos laborais sobre os hipotecários para se efectivar um nível de protecção constitucionalmente adequado daqueles créditos.
Nessa apreciação, não serve de parâmetro o disposto no artigo 53.º da CRP, cujo âmbito de protecção, como bem se valorou no Acórdão 284/2007, não cobre a questão objecto do recurso. O ponto de partida e o quadro normativo de referência primordial é-nos dado antes pelo direito à retribuição do trabalho, consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da CRP. Como a norma expressamente acentua - nos seus próprios termos, tem-se em vista "garantir uma existência condigna"-, o reconhecimento de tal direito exprime o valor básico da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), constituindo, no seu específico âmbito de protecção, um instrumento do preenchimento das condições materiais da realização deste valor. E o relevo nuclear do direito à (justa) remuneração do trabalho é atestado pela vinculação do legislador ao estabelecimento de garantias especiais para os salários (n.º 3 do artigo 59.º).
É na correcta aplicação desta norma que reside a chave para a resposta à questão da constitucionalidade da preferência dos créditos hipotecários sobre os créditos retributivos dos trabalhadores. E o ponto decisivo está em saber se esse regime desprotege intoleravelmente estes créditos, despojando-os de uma tutela que seria constitucionalmente devida, ou, dito de forma inversa, se a preferência absoluta dos créditos laborais é uma solução exigida para dar satisfação ao mandato constitucional de garantias especiais para os créditos salariais.
É sabido que a ordem jurídica dispõe de um conjunto muito diversificado de mecanismos e instrumentos de tutela dos bens constitucionalmente protegidos. Quer quanto à natureza do meio empregue, quer quanto ao grau de tutela, o legislador ordinário é colocado perante um espectro extenso de medidas, a utilizar de forma cumulativa ou optativa, para cumprir o encargo de uma regulação especialmente protectora que o n.º 3 do artigo 59.º lhe fixou.
E o legislador tem lançado mão dessas possibilidades variadas de conformação, configurando um sistema protector dos créditos laborais em que se inclui, designadamente, entre outras soluções, e para além dos privilégios creditórios, o Fundo de Garantia Salarial, criado pelo Decreto-Lei 50/85, de 27 de Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei 219/99, de 15 de Junho (e hoje previsto no artigo 380.º do Código do Trabalho e nos artigos 316.º e seguintes da Lei 35/2004, de 29 de Julho, que o regulamenta), a impenhorabilidade parcial dos salários (artigo 824.º do Código de Processo Civil), a insusceptibilidade de cessão em medida idêntica à da impenhorabilidade, limites à possibilidade de compensação com créditos da entidade patronal, um regime favorável de prescrição.
É tendo em conta o efectivo alcance tutelador deste conjunto de medidas que tem que ser ponderado se a denegação do grau máximo de eficácia a uma delas - os privilégios creditórios - , que levaria à atribuição de preferência aos créditos garantidos mesmo perante créditos hipotecários, pode fundar o juízo de que o legislador ficou aquém do que lhe era constitucionalmente exigido.
É nossa convicção de que uma tal conclusão se não justifica. Na verdade, estamos perante uma expressa remissão para o legislador, sem predeterminação, a nível constitucional, de um concreto grau de garantia. Uma solução que, concedendo aos créditos laborais a garantia de um privilégio imobiliário geral, não lhes reconheça, todavia, preferência em face de créditos garantidos por hipoteca, flanqueada que está por outras medidas de protecção, acima enunciadas, cabe ainda dentro do poder de conformação legislativa, representando uma legítima opção concretizadora de uma manifestação parcial da tutela constitucionalmente exigida.
E a não desrazoabilidade desta solução é ainda evidenciada pelo facto de ela preservar a confiança institucional num mecanismo garantístico - a hipoteca - que desempenha um relevante papel no tráfico jurídico-económico, como instrumento qualificado de tutela de interesses de segurança e certeza jurídicas.
Acompanhando o decidido pelos acórdãos n.º 284/2007 e 287/2007, pode concluir-se, em suma, que não é constitucionalmente proibido que a lei ordinária confira prevalência ao crédito garantido por hipoteca sobre os créditos laborais garantidos por um privilégio imobiliário geral.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por inutilidade;
b) Não julgar inconstitucionais as normas do artigo 12.º da Lei 17/86, de 14 de Junho, do artigo 4.º da Lei 96/2001, de 20 de Agosto, e do artigo 751.º do Código Civil (na redacção anterior ao Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março), na interpretação segundo a qual aos privilégios imobiliários gerais conferidos por aquelas normas aos créditos dos trabalhadores emergentes do contrato individual de trabalho não é aplicável o regime do artigo 751.º do Código Civil, pelo que estes créditos não prevalecem sobre os garantidos por hipoteca.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 30 de Abril de 2008. - Joaquim de Sousa Ribeiro - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano - Rui Manuel Moura Ramos.