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Acórdão 94/2015, de 9 de Julho

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Sumário

Não julga inconstitucionais as normas dos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e n.º 6, e 186.º-K a 186.º-R do Código de Processo do Trabalho

Texto do documento

Acórdão 94/2015

Processo 822/14

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

Relatório

O Ministério Público instaurou no Tribunal do Trabalho de Lisboa, ao abrigo do artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro, e dos artigos 186.º-K e 186.º-L do Código de Processo de Trabalho, ação declarativa de reconhecimento de existência de contrato de trabalho contra LCS - Linha de Cuidados de Saúde, S. A., pedindo que fosse declarada a existência de um contrato de trabalho entre a trabalhadora Ana Maria Pina Gonçalves Jerónimo Duarte e a Ré.

O Tribunal do Tribunal de Lisboa proferiu despacho saneador em 17 de julho de 2014, no qual, conhecendo da questão da inconstitucionalidade dos artigos 26.º, n.º 1, alínea i) e n.º 6, e 186.º-K a 186.º-R do CPT, suscitada pela Ré, decidiu recusar a aplicação das referidas normas com fundamento na sua inconstitucionalidade e, em consequência, absolver a Ré da instância.

O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, pedindo a fiscalização da constitucionalidade das normas cuja aplicação foi recusada.

O Ministério Público apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:

«88 - O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor do douto despacho de fls. 214 a 227 dos presentes autos, proferido pelo Tribunal de Trabalho de Lisboa - 2.º Juízo, 2.ª Secção, "[...] ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 72.º n.º 1 alínea a) e n.º 3 e 70.º n.º 1 alínea a) da Lei 28/82 de 15/11".

89 - O objeto do presente recurso vem identificado nos seguintes termos:

"As normas [sobre] cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional se pronuncie são as seguintes:

Artigos 26.º n.º 1 al. i), 186.ºK a 186.ªR todos do Código do Processo de Trabalho".

90 - Os parâmetros constitucionais da desconformidade declarada, embora não expressos no requerimento de interposição de recurso, são os invocados na douta sentença recorrida, a saber, o "Princípio Fundamental do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da C.R.P, na sua vertente do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança"; o "Princípio Fundamental da Liberdade de Escolha do Género de Trabalho, consagrado no artigo 47.º/1 da C.R.P."; e o "Princípio Fundamental da Igualdade, consagrado no artigo 13.º da C.R.P.".

91 - As conclusões sobre a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e n.º 6; e 186.º-K a 186.º-R, do Código de Processo do Trabalho, alcançadas pelo Mm.º Juiz "a quo", fundaram-se num argumentário ideológico de que discordamos e que contestamos, sinteticamente, nos termos que em seguida se discriminam.

92 - O Mm.º Juiz "a quo", desprezando os potenciais desequilíbrios (e mesmo desigualdades) entre os contratantes-patrões e os contratantes-trabalhadores, que constituem a razão de ser do desenvolvimento do direito do trabalho enquanto ramo especial do direito privado, trata o contrato de trabalho como se de um qualquer contrato celebrável entre contraentes colocados no mesmo plano fáctico-jurídico - um contrato do âmbito do direito civil - se tratasse.

93 - Desvaloriza, igualmente, o Mm.º Juiz "a quo", que, por via da regulamentação laboral estatuída, se propõe o legislador ordinário compatibilizar a liberdade contratual, corolário do princípio da autonomia privada, com o princípio da igualdade nas suas vertentes de proibição do arbítrio e de obrigação de diferenciação.

94 - Concretizando o seu pensamento, e lançando os fundamentos da decisão de não aplicação das normas dos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e n.º 6; e 186.º-K a 186.º-R, do Código de Processo do Trabalho, por inconstitucionalidade, defendeu, o Mm.º decisor "a quo", que o regime legal criado por estas normas jurídicas, representa uma intromissão ilegítima do Estado numa relação jurídica de natureza absolutamente privada, impondo aos contraentes a resolução judicial de um litígio inexistente e a desnecessária conformação de interesses convergentes ou não conflituantes, sem que se verifique qualquer interesse público cuja prossecução justifique tal intervenção, o que não se aceita.

95 - Ora, contrariamente ao afirmado pelo Mm.º Juiz "a quo", entendemos que o bloco normativo desaplicado não limita a liberdade contratual ou a autonomia das partes, uma vez que não as inibe de celebrarem quaisquer tipos de contratos, nomeadamente contratos de prestação de serviços.

96 - Para além disso, também não aceitamos que a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho promove um litígio onde o conflito era inexistente e os interesses contratuais eram convergentes, uma vez que, se o nomen juris atribuído ao contrato não corresponder aos seus objeto e conteúdo, em fraude à lei, então é seguro que inexiste tal convergência de interesses e que o litígio só não é espoletado porque o contraente mais frágil se encontra económica, social e juridicamente constrangido.

97 - Contestados estes pressupostos ideológicos, contesta-se, igualmente, a consequência abusiva retirada pela douta decisão impugnada, no sentido de que a introdução, pelo legislador, de uma nova forma processual sem qualquer alteração legislativa do direito substantivo privado, constituiria uma mutação da ordem jurídica com a qual os destinatários não poderiam contar.

98 - A previsibilidade da atuação dos poderes públicos, ínsita nos princípios da segurança jurídica e da confiança, reporta-se a expectativas, legitimamente criadas pelos cidadãos, resultantes de comportamentos dos poderes públicos e não, conforme resulta do sustentado na douta decisão recorrida, do desejo privado de imutabilidade da ordem jurídica.

99 - Ora, conforme resulta, com evidente clareza, do caso sob escrutínio, nunca o Estado criou, nos cidadãos - trabalhadores ou empregadores -, qualquer expectativa de imutabilidade da ordem jurídica no tocante a meios processuais de defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores, que os levasse a prever, conformando, assim, as suas ações, que não seria criado um tipo processual que permitisse reconhecer se um contrato estabelecido entre privados, independentemente do seu nomen juris, era, ou não, um contrato de trabalho.

100 - Assim, não ocorreu, pois, qualquer alteração imprevisível da ordem jurídica nem qualquer frustração de expectativas legítimas objetivamente consolidadas e, consequentemente, não se verifica que o bloco normativo desaplicado ofenda o princípio constitucional do Estado de direito democrático, plasmado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, quer na sua vertente de princípio da segurança jurídica, quer na do princípio da confiança.

101 - Não se verifica, igualmente, a ofensa do princípio da liberdade de escolha do género de trabalho, consagrado no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, dado que as normas desaplicadas se revelam insuscetíveis de o violarem, uma vez que não regulam qualquer dimensão substantiva da eleição de uma profissão ou de um género de trabalho, objeto da proteção constitucional, apenas prescrevendo sobre o procedimento de adequação da regulamentação jurídica à atividade profissional efetivamente desenvolvida.

102 - Por fim, também não violam, aquelas normas, o princípio constitucional da igualdade, o qual não é, sequer, convocável neste cenário de estrita contraposição entre regimes processuais distintos, marcados por diferenças insuscetíveis de se repercutirem significativamente nas esferas jurídicas dos cidadãos.

103 - Todavia, ainda que assim não fosse, a regulamentação da ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho obedece aos requisitos constitucionais que alicerçam o princípio da igualdade, não o ofendendo, nomeadamente, na sua dimensão de proibição do arbítrio, contrariamente ao sustentado na douta sentença recorrida, tratando de forma proporcionalmente diferente, situações, também elas, diferentes.

104 - Em face do ora expendido, não deverá o Tribunal Constitucional julgar materialmente inconstitucional as normas jurídicas contidas nos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e n.º 6; e 186.º-K a 186.º-R, do Código de Processo do Trabalho, por violação dos princípios constitucionais do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da C.R.P, nas suas vertentes dos princípios da segurança jurídica e da confiança; da liberdade de escolha do género de trabalho, plasmado no artigo 47.º, n.º 1 da C.R.P.; e da igualdade, previsto no artigo 13.º, da C.R.P.

Nos termos do acabado de explanar, deverá o Tribunal Constitucional conceder provimento ao presente recurso, assim fazendo a costumada JUSTIÇA.»

A Recorrida apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:

«1.ª A ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é de simples apreciação positiva, estando o objeto do processo limitado à qualificação do vínculo contratual.

2.ª A possibilidade conferida a terceiro de, sem interesse dos contraentes, nem conflito entre eles, convocar a tutela jurisdicional do Estado para qualificar o vínculo que estes mantêm, num ordenamento jurídico caracterizado pela liberdade contratual e autonomia da vontade, infringe a proteção da confiança ínsita no princípio do Estado de Direito democrático.

3.ª Atento o objeto do processo, inexiste interesse público naquela qualificação, já que desta não decorrem efeitos de Direito para outras relações jurídicas conexas com o trabalho autónomo ou subordinado, designadamente de natureza tributária ou previdencial.

4.ª A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não prossegue interesse público, o Ministério Público não é o seu autor, nem a sua posição processual prevalece sobre a do putativo trabalhador.

5.ª Interpretação que reconhecesse ao Ministério Público a autoria da mencionada ação, remetendo o putativo trabalhador para papel meramente acessório ou de assistência e subordinando a vontade deste à posição prevalecente do Ministério Público, designadamente para efeitos de conciliação a realizar em sede de audiência de partes, infringiria a conformação constitucional de situações jurídicas ainda decorrente do Estado de Direito democrático, como a liberdade de escolha do género de trabalho ou o direito a tutela jurisdicional efetiva mediante processo equitativo, bem como, noutro plano, a liberdade de iniciativa económica.

6.ª Interpretação com esse sentido infringiria o direito de ação na medida em que a vontade prevalecente na composição de interesses subjacente ao litígio judicial, desde o momento da convocação da tutela jurisdicional até à definição da situação jurídica por sentença, pertenceria a terceiro que não é parte na relação material controvertida, em ação que se limita a qualificar a fonte desta.

7.ª E poria em causa a liberdade de escolha do género de trabalho porque a prestação oferecida a título profissional seria reconduzida a modelo contratual típico (in casu, o contrato de trabalho) por efeito de vontade de terceiro, sem consideração pelos interesses específicos de quem a realiza, nem pelas opções tomadas aquando do respetivo exercício.

8.ª A mesma liberdade de escolha do género de trabalho é postergada pela circunstância de a tramitação processual em apreço permitir que um sujeito de Direito veja declarada a existência de contrato de que é parte, sem ter tido oportunidade de conhecer a existência da sujeição a juízo da correspondente pretensão, nem de sobre ela se pronunciar.

9.ª Diversas soluções normativas da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho - a designação dada à ação e respetivas partes, o efeito cominatório pleno da revelia do réu, as limitações probatórias, o regime de custas - revelam tratamento desequilibrado e parcial dos sujeitos processuais, que infringe o direito a processo equitativo.

10.ª A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho pode obstar ao exercício pleno do direito a advogado, contrariando o valor da tutela jurisdicional efetiva de que aquele direito constitui corolário.

11.ª A promoção processual obrigatória da participação da Autoridade para as Condições do Trabalho que dá início à instância na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, é contrária ao princípio constitucional da autonomia do Ministério Público,

12.ª A diferença de tratamento processual entre as situações idênticas de putativo trabalhador abrangido por ação inspetiva da Autoridade para as Condições do Trabalho e outro que o não seja, quanto ao ónus de impulso processual, representação por mandatário judicial, tramitação processual urgente e responsabilidade pelos custos do processo, ofende o princípio constitucional da igualdade de tratamento.

13.ª Atentas as dimensões constitucionais convocadas - os princípios da proteção da confiança, da liberdade de escolha do género de trabalho, do direito a tutela jurisdicional efetiva mediante processo equitativo, do direito a advogado, da liberdade de iniciativa económica, da autonomia do Ministério Público e da igualdade - e o modo como a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho se estrutura em oposição àquelas, a inconstitucionalidade atinge todas as normas dos artigos 26.º/1, alínea i) e 186.º-K a 186.º-R do Código de Processo do Trabalho, na redação dada pela Lei 63/2013.

Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.»

Fundamentação

1 - Delimitação do âmbito do recurso

A Recorrida, nas suas contra-alegações, invocou novos fundamentos de inconstitucionalidade das normas cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo, entendendo que o Tribunal Constitucional deverá tomar conhecimento dos mesmos ao abrigo dos poderes de cognição que lhe são conferidos pelo artigo 79.º-C da LTC.

De acordo com esta norma, o Tribunal Constitucional pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada. No entanto, estes poderes cognitivos conferidos ao Tribunal Constitucional estão circunscritos à questão de inconstitucionalidade suscitada no processo em causa e apreciada pelo tribunal a quo, conforme decorre do disposto no artigo 71.º, n.º 1 da LTC.

No caso concreto, a Recorrida suscita diversas questões respeitantes à tramitação da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, designadamente, questões relativas ao facto de ser o Ministério Público a entidade a quem compete propor a ação na sequência de participação da Autoridade para as Condições do Trabalho (artigo 186.º-K, n.º 1 do CPT), ao regime da revelia do empregador (artigo 186.º-M do CPT), ao regime da marcação da audiência e da falta das partes e dos seus mandatários (artigos 186.º-N, n.º 1, e 186.º-O, n.os 3 e 4, do CPT), ao regime da admissibilidade, oferecimento e produção da prova (artigo 186.º-N, n.º 3, do CPT), à realização da audiência de julgamento e prolação de sentença (artigo 186.º-O, n.os 5 a 7, do CPT), à responsabilidade por custas (artigo 186.º-Q do CPT), à contagem de prazos (artigo 186.º-R do CPT), pretendendo, com esta referência a diversas soluções previstas para a tramitação processual desta ação, invocar a violação de outros parâmetros constitucionais.

Mais do que invocar outros fundamentos de inconstitucionalidade das normas cuja aplicação foi recusada, a recorrida suscita, em abstrato, novas questões de constitucionalidade, que não foram objeto de apreciação pelo tribunal a quo.

Com efeito, a decisão recorrida rejeitou a aplicação de todo um conjunto de normas que estabelecem o regime jurídico da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho», prevista no artigo 26.º, n.º 1, al. i), e cuja tramitação se encontra disciplinada nos artigos 186.º-K a 186.º-R, todos do Código de Processo de Trabalho, com fundamento na violação do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, na sua vertente do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança, do princípio da liberdade de escolha do género de trabalho, consagrado no artigo 47.º, n.º 1 da Constituição, e do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.

Ou seja, a decisão recorrida rejeitou a aplicação de todo um bloco normativo no qual se encontra prevista e regulada a tramitação da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho», sendo que os fundamentos em que fez assentar essa recusa de aplicação dizem respeito, genericamente, a esse regime jurídico na sua totalidade e não às soluções especificamente previstas em cada uma das suas normas.

Assim, a recorrida, ao pretender que o Tribunal Constitucional tome conhecimento das questões de constitucionalidade que enuncia nas suas contra-alegações - questões essas respeitantes a aspetos específicos regulados em algumas das normas do referido regime jurídico e que não foram objeto de apreciação específica pelo tribunal a quo no caso concreto - está a sugerir que, enxertada num processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, se proceda a uma apreciação abstrata da conformidade constitucional de tais preceitos normativos.

Ora, conforme se disse, os poderes de cognição conferidos ao Tribunal pelo artigo 79.º-C da LTC no âmbito dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade circunscrevem-se à questão de inconstitucionalidade «suscitada» no processo em questão e apreciada pelo tribunal a quo, conforme decorre do disposto no artigo 71.º, n.º 1, da LTC, sendo que não integram o âmbito do recurso as questões de inconstitucionalidade em relação às quais não se verifiquem os respetivos pressupostos de admissibilidade.

No presente caso, tendo o recurso sido interposto ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, a sua admissibilidade pressupõe que a decisão recorrida tenha recusado efetivamente a aplicação de certa norma ou interpretação normativa relevante para a resolução do caso e que tal desaplicação normativa se funde num juízo de inconstitucionalidade do regime jurídico nela estabelecido.

Ora, a decisão recorrida, conforme se disse, recusou a aplicação de todo o regime jurídico em que se encontra prevista e regulada a tramitação da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» e os fundamentos dessa recusa de aplicação dizem respeito, genericamente, a todo esse regime, sendo manifesto que que não se pronunciou, em termos de tal ser relevante para a dirimição do litígio concreto, sobre as questões relativas a aspetos específicos regulados em algumas das normas do referido regime jurídico, nos termos e com os contornos agora definidos pela recorrida nas suas contra-alegações.

Assim, a título de mero exemplo, não se colocou nos autos qualquer questão concreta, sobre a qual o tribunal a quo se tivesse pronunciado (ou devesse fazê-lo), a respeito da revelia das partes, da constituição de advogado, da posição processual do Ministério Público e do trabalhador, ou das demais situações hipotisadas em abstrato pela recorrida, e em que tenha sido recusada a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, de determinada norma tida como convocável e aplicável para resolução dessa questão.

Deste modo, proceder à apreciação das questões de constitucionalidade agora enumeradas pela recorrida nas suas contra-alegações seria ignorar um dos requisitos fundamentais dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, extravasando-se o âmbito do presente recurso.

Pelo exposto, o Tribunal restringirá os seus poderes de cognição às questões de constitucionalidade apreciadas na decisão recorrida, não tomando conhecimento das que foram invocadas ex-novo pela recorrida nas contra-alegações.

2 - Do mérito do recurso

O tribunal a quo recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas dos artigos 26.º, n.º 1, al. i), e n.º 6, e 186.º-K a 186.º-R, todos do CPT.

Na sua fundamentação, a decisão recorrida começou por referir que o legislador, sem proceder a qualquer alteração legislativa ao nível do ordenamento jurídico substantivo e com o objetivo de instituir «mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado», alterou o Código de Processo de Trabalho através da Lei 63/2013, de 27 de agosto, consagrando uma nova forma de processo especial, a «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho», regulada nos referidos artigos 186.º-K a 186.º-R e igualmente prevista no artigo 26.º, n.º 1, al. i), do referido Código, que visa a declaração da existência ou não de relação jurídica laboral, bem como a fixação da data do seu início, salientando que esta declaração ocorre em relação a duas pessoas que não correspondem à entidade que faz a participação prevista no artigo 186.º-K, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, nem ao Ministério Público que intenta a ação.

Entendeu, por isso, a decisão recorrida que se colocava no caso concreto a questão de saber se o Estado, através de uma entidade administrativa (Autoridade para as Condições de Trabalho - ACT) e do Ministério Público, poderia intrometer-se numa relação jurídica de natureza privada estabelecida entre duas pessoas, em relação à qual as partes não haviam suscitado qualquer conflito de interesses, nem estavam em litígio.

Seguidamente, depois de apontar diversas deficiências técnicas e "incoerências" ao referido regime legal, a decisão recorrida considerou que a «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» não corresponde à efetivação de qualquer concreto direito material/substantivo, designadamente, de um direito ou interesse de ordem pública, consubstanciando uma intervenção e intromissão do Estado numa relação jurídica de natureza absolutamente privada, estabelecida entre duas pessoas ao abrigo dos princípios da liberdade contratual e da autonomia privada, não tendo em vista tal intervenção solucionar um qualquer litígio existente entre elas, mas sim sujeitá-las a uma declaração judicial da qualificação do contrato que tal relação jurídica consubstancia, obrigando-as a um litígio judicial que as mesmas não querem e que efetivamente não é por elas suscitado, podendo mesmo obrigá-las à modificação da relação jurídica que constituíram entre si.

Feitas estas considerações, a decisão recorrida concluiu que o regime legal da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» era desconforme com a Constituição, tendo recusado a aplicação das mencionadas normas dos artigos 26.º, n.º 1, alínea i) e n.º 6, e 186.º-K a 186.º-R, todos do Código do Processo de Trabalho, com fundamento na violação do "Princípio Fundamental do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da C.R.P, na sua vertente do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança", do "Princípio Fundamental da Liberdade de Escolha do Género de Trabalho, consagrado no artigo 47.º/1 da C.R.P." e do "Princípio Fundamental da Igualdade, consagrado no artigo 13.º da C.R.P."

Antes de apreciar se o referido regime normativo viola os referidos parâmetros constitucionais, importa, para melhor análise das questões suscitadas, proceder a um enquadramento das alterações legislativas introduzidas pela Lei 63/2013, de 27 de agosto.

Esta lei, conforme consta do seu artigo 1.º, teve como propósito instituir «mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado». Tendo em vista esse objetivo, criou um procedimento administrativo da competência da Autoridade para as Condições do Trabalho (previsto no 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro, aditado pelo artigo 4.º da referida Lei 63/2013, de 27 de agosto), bem como uma nova ação judicial (a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho), que passou a integrar o conjunto das ações enumeradas no artigo 26.º, estando a sua tramitação prevista nos artigos 186.º-K a 186.º-R do Código de Processo do Trabalho, aditados pelo artigo 5.º da referida Lei 63/2013, de 27 de agosto.

Este último diploma teve a sua origem no Projeto de Lei 142/XII, resultante de iniciativa legislativa de cidadãos, em cuja exposição de motivos constava o seguinte:

«A precariedade atinge hoje cerca de 2 milhões de trabalhadores em Portugal e o seu crescimento ameaça todos os outros. Com a situação atual, defrauda-se o presente, insulta-se o passado e hipoteca-se a futuro. Desperdiçam-se as aspirações de toda uma geração de novos trabalhadores, que não pode prosperar. Desperdiçam-se décadas de esforço, investimento e dedicação das gerações anteriores, também elas cada vez mais afetadas pelo desemprego e pela precariedade. Desperdiçam-se os recursos e competências, retiram-se esperanças e direitos e, portanto, uma perspetiva de futuro.

É necessário desencadear uma mudança qualitativa do país. É urgente terminar com a situação precária para a qual estão a ser arrastados os trabalhadores, que legitimamente aspiram a um futuro digno com direitos em todas as áreas da vida.

Assim, a presente "Lei Contra a Precariedade" introduz mecanismos legais de modo a evitar a perpetuação das formas atípicas e injustas de trabalho, incidindo sobre três vetores fundamentais da degradação das relações laborais com prejuízo claro para o lado do trabalhador: os falsos recibos verdes, a contratação a prazo e a trabalho temporário.»

No decurso do processo legislativo, o referido Projeto de Lei 142/XII baixou à Comissão de Segurança Social e Trabalho, sem votação, por um prazo de 30 dias, após o que esta Comissão apresentou um texto de substituição que, tendo merecido aprovação, veio dar origem à Lei 63/2013, de 27 de agosto.

Este diploma legislativo deve ser enquadrado num âmbito mais vasto, inserindo-se num conjunto de outras intervenções legislativas anteriores orientadas no sentido de combater a utilização indevida da figura do contrato de prestação de serviços em relação de trabalho subordinado e a consequente precariedade laboral daí decorrente.

Importa, por isso, proceder a uma breve análise desta problemática.

Como é sabido, a qualificação de determinada relação jurídica como sendo um contrato de trabalho implica a aplicação a essa relação de um determinado regime jurídico, não só no plano laboral, mas também, por exemplo, para efeitos contributivos. São frequentes, por isso, como forma de impedir a aplicação destas regras, as práticas de fuga ao regime laboral.

Tais práticas traduzem-se, muitas vezes, em titular expressamente o contrato em causa como contrato de prestação de serviços, embora, na sua execução prática, esse contrato tenha as características de um contrato de trabalho, designadamente, pelo facto de o trabalhador estar colocado perante o empregador numa posição de subordinação. Noutros casos, em que o contrato não é reduzido a escrito, a contratação do trabalhador é efetuada em regime de trabalho independente, com a emissão do correspondente recibo pelo trabalhador, quando na verdade este se encontra a desempenhar as duas funções em regime de subordinação (é a questão dos denominados "falsos independentes" ou falsos "recibos verdes").

Este recurso indevido à figura da prestação de serviços em situação de existência de uma verdadeira relação de trabalho subordinado tem diversas implicações negativas laterais, entre as quais, o prejuízo que as mesmas acarretam para a sustentabilidade dos sistemas de pensões em face da entrada tardia dos jovens no mercado de trabalho propriamente dito e pela menor entrada de contribuições que o trabalho dissimulado (e também o trabalho não declarado) representam, para além de implicar uma concorrência desleal entre empresas (sobre esta matéria e, em geral, sobre o regime da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, cf. Pedro Petrucci de Freitas, Da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho: breves comentário, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73 - Vol. IV - Out./Dez-2013, pp. 1423 e ss.).

Por outro lado, embora o trabalhador seja, por regra, o principal interessado na qualificação dessa relação jurídica como contrato de trabalho (por ser essa a qualificação que, tendencialmente, lhe confere uma melhor tutela), a sua situação de dependência económica em face da entidade empregadora faz com que se sinta normalmente inibido de acionar judicialmente esta última entidade no sentido de ser reconhecida a natureza laboral da referida relação, o que torna ainda mais difícil a prova dos elementos característicos de um contrato de trabalho, designadamente, da existência de uma relação de subordinação.

Face a este conjunto de problemas e dificuldades, não é de agora a preocupação do legislador em combater estas práticas de evasão à tutela laboral, tendo vindo a adotar diversas medidas com esse objetivo.

Uma dessas medidas traduziu-se na consagração de presunções de laboralidade, com a finalidade de facilitar a prova da existência de um contrato de trabalho em situações de dúvida, protegendo a posição do trabalhador no diferendo sobre a qualificação do seu contrato.

Embora tivesse sido anteriormente tentada a sua consagração (designadamente, através de um projeto legislativo apresentado 1996), só com o Código do Trabalho de 2003 se veio a prever expressamente, no artigo 12.º, uma presunção de laboralidade. Esta norma, embora com novas formulações, foi mantida quer com as alterações ao Código do Trabalho entretanto efetuadas pela Lei 9/2006, de 20 de março, quer no Código de Trabalho de 2009, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro.

A Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou o Código do Trabalho de 2009, assumiu claramente o propósito de combater as situações de dissimulação de contrato de trabalho.

Tendo em vista esse objetivo, procedeu a alterações relativas à caracterização do contrato de trabalho e introduziu medidas de combate ao falso trabalho independente.

Assim, o referido Código definiu o contrato de trabalho como sendo «aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas» (cf. artigo 11.º do Código do Trabalho) e, conforme se disse, alterou a redação do artigo 12.º do anterior código, mantendo a consagração de uma presunção de laboralidade.

Assim, no n.º 1 deste artigo 12.º estabeleceu-se uma presunção da existência de um contrato de trabalho nos casos em que, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das características enumeradas nas alíneas a) a e) desta norma.

De realçar ainda que na redação introduzida em 2009, o artigo 12.º, do Código do Trabalho passou a sancionar, no seu n.º 2, como contraordenação muito grave imputável ao empregador, as situações de qualificação fraudulenta do negócio, cujo objetivo seja a subtração ao regime laboral, quando se possa com isso causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado, estabelecendo o n.º 3, em caso de reincidência, a aplicação de uma sanção acessória de privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, por período até dois anos.

Estas medidas foram justificadas na exposição de motivos da Proposta de Lei 216/X (que veio a dar origem à referida Lei 7/2009, de 12 de fevereiro). Refere-se aí que «[...] com o desiderato de combater a precariedade e a segmentação dos mercados de trabalho, alteram-se os pressupostos que operam para a presunção da caracterização do contrato de trabalho e cria-se de uma nova contraordenação, considerada muito grave, para cominar as situações de dissimulação de contrato de trabalho, com o desiderato de combater o recurso aos "falsos recibos verdes" e melhorar a eficácia da fiscalização neste domínio».

Foi também este o propósito subjacente à aprovação da Lei 107/2009, de 14 de setembro (que estabelece o regime jurídico do procedimento aplicável às contraordenações laborais e de segurança social), conforme resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei 282/X (que esteve na origem do referido diploma legislativo), onde consta, além do mais, ter sido acordado entre o XVII Governo Constitucional e os parceiros com assento na Comissão Permanente de Concertação Social (CPCS) «[...] que o novo regime processual de contraordenações deveria prever a atribuição de competências à Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e aos serviços do Instituto da Segurança Social, I. P. (ISS, I. P.) para qualquer um deles poder intervir na identificação de situações de dissimulação de contrato de trabalho, de forma a prevenir e a desincentivar o incumprimento dos deveres sociais e contributivos das empresas e a garantir o direito dos trabalhadores à proteção conferida pelo sistema de segurança social», acrescentando-se ainda que «tal desiderato só será alcançável se forem criados os mecanismos e as condições que permitam aos serviços envolvidos dispor dos instrumentos legais que os habilitem, designadamente, a exercer uma ação fiscalizadora, simultaneamente eficaz e preventiva, no combate à utilização abusiva dos "falsos recibos verdes"».

Por outro lado, a preocupação com o combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços teve também reflexos no âmbito do regime das contribuições devidas à segurança social. Assim, o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (aprovado pela Lei 110/2009, de 16 de setembro), relativamente aos trabalhadores independentes, considera no seu artigo 132.º que são obrigatoriamente abrangidos por tal regime «as pessoas singulares que exerçam atividade profissional sem sujeição a contrato de trabalho ou a contrato legalmente equiparado, ou se obriguem a prestar a outrem o resultado da sua atividade, e não se encontrem por essa atividade abrangidos pelo regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem». No entanto, o artigo 140.º, n.º 1, do mesmo diploma, estabelece que «As pessoas coletivas e as pessoas singulares com atividade empresarial, independentemente da sua natureza e das finalidades que prossigam, que no mesmo ano civil beneficiem de pelo menos 80 % do valor total da atividade de trabalhador independente, são abrangidas pelo presente regime na qualidade de entidades contratantes».

A obrigação contributiva destas entidades contratantes «constitui-se no momento em que a instituição de segurança social apura oficiosamente o valor dos serviços que lhe foram prestados e efetiva-se com o pagamento da respetiva contribuição» e, verificada tal situação (que, nos termos do referido artigo 140.º, n.º 1, ocorre sempre que as pessoas coletivas e as pessoas singulares, independentemente da sua natureza e das finalidades que prossigam, beneficiem, no mesmo ano civil, de pelo menos 80 % do valor total da atividade do trabalhador independente), são notificados «os serviços de inspeção da Autoridade para as Condições do Trabalho ou os serviços de fiscalização do Instituto da Segurança Social, I. P., com vista à averiguação da legalidade da situação».

Deste regime legal resulta que, constatando-se que determinado trabalhador prestou no mesmo ano civil, em regime de trabalho independente, 80 % do valor total da sua atividade à mesma entidade, se considera que poderão existir indícios de uma verdadeira relação de trabalho subordinado, sendo essa a razão da notificação dos serviços de inspeção da Autoridade para as Condições do Trabalho ou dos serviços de fiscalização do Instituto da Segurança Social, I. P., para fiscalização da legalidade da situação.

Assim, como o demonstram todas as referidas intervenções legislativas no sentido de combater tal prática, o problema do recurso indevido à figura da prestação de serviços em situações de existência de uma verdadeira relação de trabalho subordinado não é um problema novo.

É certo que a Lei 63/2013, de 27 de agosto, veio estabelecer, por um lado, a regulamentação do procedimento a adotar pela ACT quanto constate que se verifica uma situação de utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado e, por outro lado, na sequência deste procedimento, uma nova ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

O referido procedimento encontra-se regulado no artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro, aditado pela Lei 63/2013, de 27 de agosto. De acordo com o n.º 1 deste artigo, no caso de o inspetor do trabalho verificar a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.

Na hipótese, prevista no n.º 2 do referido artigo 15.º-A, de o empregador fazer prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral, o procedimento é arquivado.

No caso de se mostrar decorrido o prazo previsto no n.º 1 deste artigo 15.º-A sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada, o n.º 3 determina que a ACT remeta, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público da área de residência do trabalhador, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

Assim, o que este artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro, trouxe de inovador foi a criação de um específico procedimento formal em que estabelece quais os trâmites a adotar em caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviços, ficando a ACT, enquanto entidade de natureza pública, vinculada à sua observância.

No entanto, no plano substantivo, esta matéria já havia sido, conforme se referiu, objeto de intervenção legislativa. Por outro lado, mesmo antes da entrada em vigor da Lei 63/2013, de 27 de agosto, a ACT tinha já a possibilidade de, em tais casos, - seguindo eventualmente outros trâmites que não os que estão agora especificamente regulados no artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro - atuar no âmbito das suas competências e atribuições, por via de ação inspetiva, de modo a promover a regularização da utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado, bem como participar as infrações à Segurança Social, Administração Tributária e Aduaneira e ao Ministério Público. A isto acresce que, tal como atualmente, o trabalhador poderia também recorrer à via judicial no sentido de ver regularizada uma situação de dissimulação do contrato de trabalho, através de uma ação de processo comum (cf., a este respeito, Pedro Petrucci de Freitas, ob. cit., pp.1426-1427).

Tecidas estas considerações sobre o enquadramento geral do regime instituído pela Lei 63/2013, de 27 de agosto, bem como dos seus antecedentes legislativos, importa agora apreciar as questões de constitucionalidade em causa nos autos.

a) Da violação do princípio do Estado de direito democrático, na vertente do princípio da segurança jurídica ou da proteção da confiança

A decisão recorrida entendeu que o regime legal da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» implica uma violação grave ao princípio do Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, na sua vertente do princípio da segurança e do princípio da confiança, entendido o primeiro «no sentido de que o indivíduo tem o direito de poder confiar que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e validas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico» e o segundo, no sentido de que a «previsibilidade das soluções visa a proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica de tal forma que as alterações na lei hão de ter em conta direitos adquiridos, expectativas criadas, situações jurídicas estabilizadas que justifiquem o sacrifício da aplicação imediata da nova lei».

Segundo a decisão recorrida, a aludida desconformidade com a Constituição resulta da introdução pelo legislador de uma nova forma de processo, sem qualquer alteração legislativa do direito substantivo privado, nomeadamente, no que respeita aos princípios da liberdade contratual e da autonomia privada, especificamente concretizados na livre escolha pelas partes do tipo contratual em que querem que a sua relação jurídica se desenvolva, e na garantia de que, sem serem elas próprias a quererem-no ou a solicitá-lo em razão de um concreto conflito sobre tal relação, a qualificação jurídica da mesma se manterá inalterada.

Importa, pois, apreciar se as normas cuja aplicação foi recusada, nos termos expostos, são violadoras do princípio da proteção da confiança.

Como é sabido, a tutela constitucional da confiança emana do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição. De acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio do Estado de direito "mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia de sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança" (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, pág. 205). Acrescentam ainda estes autores que "não está à partida excluída a possibilidade de colher dele normas que não tenham expressão direta em qualquer dispositivo constitucional, desde que elas se apresentem como consequência imediata e irrecusável daquilo que constitui o cerne do Estado de direito democrático, a saber, a proteção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça (especialmente por parte do Estado)" (cit., pág. 206).

Ora, um dos princípios que surge como projeção irrecusável do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, é justamente o princípio da segurança jurídica ou da proteção da confiança.

A garantia de segurança jurídica, traduz-se, no plano subjetivo, na ideia de proteção da confiança dos particulares relativamente à estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes, proteção essa que vale em relação as todas as áreas de atuação Estadual, mediante exigências que são dirigidas à Administração, ao poder judicial e, particularmente, ao legislador.

No caso dos autos está em causa a aplicação de um regime adjetivo previsto no Código de Processo do Trabalho, introduzido pela Lei 63/2013, de 27 de agosto, a relações laborais já existentes e qualificadas pelos respetivos contraentes como contratos de prestação de serviços (ou como outros tipos de contrato, que não o contrato de trabalho).

A questão que se coloca é, pois, a de saber se tal circunstância pode justificar a existência de uma expectativa jurídica que, à luz do princípio da proteção da confiança, torne inconstitucional a aplicação das normas em causa a relações jurídicas já celebradas e entendidas pelos contraentes como contratos de prestação de serviços.

Tendo em atenção a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a tutela jurídico-constitucional da «confiança» pressupõe que se mostrem reunidos quatro diferentes requisitos: «[...] é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa» (cf., Acórdão 128/2009, cujo entendimento teve seguimento, entre muitos outros, nos acórdãos n.os 188/2009, 3/2010 e 401/2013, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

No caso concreto, e no que respeita ao primeiro dos aludidos requisitos, não se poderá afirmar que o Estado tenha tido comportamentos donde se possa inferir a criação, nos privados, de «expectativas» de continuidade de um determinado regime legal. Com efeito, como se viu, tem havido sempre a preocupação por parte do Estado, no âmbito do direito do trabalho, de desincentivar as situações jurídico-laborais que, sendo equiparáveis a verdadeiros contratos de trabalho, desprotegessem em maior medida o trabalhador, bem como de combater as situações em que, por detrás de uma outra roupagem contratual, se constituem verdadeiras relações de trabalho subordinado. Assim, dificilmente se poderá sustentar que existissem fundadas expectativas privadas no sentido de que não pudessem ser escrutinadas pelo Estado situações em que se levantassem dúvidas quanto à existência de um verdadeiro contrato de trabalho.

Acresce ainda, e no que respeita agora ao segundo dos aludidos requisitos, que não se pode também dizer que as expectativas dos visados com as normas em causa, a existirem, sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões.

Com efeito, nas situações em que as referidas normas são convocáveis, não se poderá afirmar, contrariamente ao que parece resultar da fundamentação da decisão recorrida, que as partes tenham, ao abrigo dos princípios da liberdade contratual e da autonomia privada, feito uma livre escolha do tipo contratual em que querem que a sua relação jurídica se desenvolva, tendo a expectativa de que, sem serem elas próprias a quererem-no ou a solicitá-lo em razão de um concreto conflito sobre tal relação, a qualificação dessa relação jurídica se mantenha inalterada.

Em primeiro lugar, importa antes de mais, salientar que no âmbito do direito do trabalho o princípio da autonomia privada não tem a mesma amplitude que no direito civil. A este respeito, António Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 16.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 22-23), sustentando uma posição que é comum na doutrina, refere o seguinte:

«O Direito do Trabalho apresenta-se, assim, ao mesmo tempo, sob o signo da proteção do trabalhador e como um conjunto de limitações à autonomia privada individual. O contrato de trabalho é integrado por uma constelação de normas que vão desde as condições pré-contratuais, passam pelos direitos e deveres recíprocos das partes, atendem com particular intensidade aos termos em que o vínculo pode cessar, e vão até aspetos pós-contratuais (como a preferência na readmissão e a abstenção de concorrência).

É, pois, traço de caráter do Direito do Trabalho a desvalorização da estipulação individual das condições de trabalho - a chamada "individualização" do conteúdo da relação de trabalho. Se a liberdade formal do candidato ao emprego é pressuposto do contrato, como meio de acesso ao trabalho livre - com exclusão do trabalho forçado, servil ou compelido -, a verdade é que a liberdade de estipulação está, pelo lado do trabalhador, originariamente condicionada. As condições do contrato, na medida em que se encontram na disponibilidade dos contraentes, são, em regra, ditadas pelo empregador, a quem cabe, também, a iniciativa do processo negocial e, depois, já na fase de execução do contrato, a determinação concreta da posição funcional do trabalhador. A atuação do Direito do Trabalho visa enquadrar, através de um sistema de limitações imperativas, o protagonismo do empregador na definição dos termos em que a relação de trabalho se vai desenvolver.»

Em sentido semelhante, sustentando que a autonomia dogmática do direito do trabalho se alicerça em «princípios ou valorações materiais subjacentes ao sistema normativo laboral» que se diferenciam dos princípios subjacentes ao direito civil, Maria do Rosário Palma Ramalho refere que é «inevitável o reconhecimento da autonomia dogmática do direito do trabalho, porque subjacentes aos diversos institutos e regimes laborais [...] se encontram valorações materiais específicas, e porque a própria construção da área jurídica em termos sistemáticos é informada por uma lógica que a afasta do direito civil: por um lado, [...] os principais institutos laborais (o contrato de trabalho, a convenção coletiva e a greve) mostram-se irredutíveis aos quadros dogmáticos do direito comum, porque o seu regime jurídico contraria alguns dos princípios civis fundamentais e se orienta por valores concorrentes ou alternativos aos do direito civil, como o da proteção do trabalhador ou o da salvaguarda dos interesses de gestão do empregador, o da igualdade de tratamento entre trabalhadores ou o da autonomia coletiva; por outro lado, a organização do sistema normativo laboral com base numa lógica coletiva e de autossuficiência (provada pela indissociabilidade dos fenómenos laborais individuais e coletivos e pela capacidade de desenvolver recursos específicos de tratamento dos problemas de interpretação e aplicação das normas laborais e da tutela dos interesses e institutos laborais, que asseguram a coerência interna e a sobrevivência do próprio sistema) mostra-se também inspirada por valores específicos, atinentes à proteção dos interesses dos trabalhadores e/ou dos empregadores, à autonomia coletiva ou à paz social» (cf. Maria do Rosário Palma Ramalho, Da Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 961-962; cf. ainda, Tratado de Direito do Trabalho, Parte I - Dogmática Geral, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 493 e ss.).

É neste contexto que tem de ser entendido o regime jurídico cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida, o qual visa prevenir as situações de utilização abusiva da figura do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado ou da utilização dos chamados "falsos recibos verdes", enquanto práticas de fuga ao regime laboral.

Ora, como é manifesto, neste tipo de situações, desde logo, não se poderá falar na existência de expectativas legítimas, justificadas e fundadas em boas razões por parte dos destinatários das normas em causa. Tendo estes recorrido a uma prática de utilização abusiva ou fraudulenta de mecanismos que visavam impedir a aplicação do regime laboral, é manifesto as expectativas que porventura tenham sido geradas com a celebração do contrato não serão legítimas.

Não estando preenchidos estes requisitos essenciais à intervenção da tutela jurídico-constitucional da confiança, não é possível, com esse fundamento, julgar inconstitucional as normas sub judicio.

Daí que seja forçoso concluir que não se mostra violado, pelo regime jurídico cuja aplicação foi recusada, o princípio da confiança, enquanto emanação da ideia de Estado de direito democrático.

b) Da violação do princípio da «liberdade de escolha do género de trabalho»

Segundo a decisão recorrida, podendo a «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» conduzir à modificação da relação jurídica em causa, torna-se possível atribuir a uma pessoa, que preste uma qualquer atividade a outrem, a qualidade jurídica de trabalhador, com sujeição às inerentes obrigações, quando essa pessoa não quer estar sujeita a nenhuma relação de subordinação jurídica ou quando está vinculada a uma relação jurídica de um específico tipo contratual que não lhe permite ter uma ou outra relação jurídica de natureza laboral.

Na primeira hipótese, segundo a decisão recorrida, enquadram-se os casos das pessoas que optem por exercer a sua atividade em regime distinto do contrato de trabalho para não estarem sujeitas às obrigações que este tipo de contrato impõe. Segundo a decisão recorrida, estas pessoas podem ver a sua liberdade de escolha do género de trabalho ser violada pela «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho». Na segunda hipótese, ainda de acordo com a decisão recorrida, encontram-se os prestadores de atividade que já têm um contrato de trabalho com uma certa entidade e que, embora podendo prestar trabalho a outras pessoas ou entidades, não o podem legalmente fazer sujeitos a nova relação de subordinação jurídica, pelo que o fazem no quadro de um qualquer tipo contratual pelo qual livremente optam, o que lhes é constitucionalmente garantido pelo referido princípio fundamental da liberdade de escolha do género de trabalho, liberdade esta que é também violada pela «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho».

O n.º 1 do artigo 47.º da Constituição, que a decisão recorrida entende ter sido violado, garante a todos «o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade».

A liberdade de escolha de profissão, consagrada nesta norma, para além da faculdade de escolher livremente a profissão desejada, abrange, na sua dimensão positiva, vários níveis de realização, incluindo a obtenção das habilitações académicas e técnicas para o exercício da profissão, o ingresso na profissão e o exercício da profissão, sendo de entender que o exercício livre da profissão está igualmente inserido no âmbito normativo de proteção do artigo 47.º, n.º 1.

Como salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, pág. 967) «não obstante o artigo 47.º, n.º 1, só se referir ao direito de escolha livre da profissão ou do género de trabalho, a escolha, que toca a questão do se uma profissão é assumida, continuada ou abandonada (realização de substância), pressupõe o exercício, que se refere à questão do como (realização da modalidade), da mesma maneira que a segunda de nada valeria sem a primeira».

E ainda segundo estes autores (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, p. 965-966), numa dimensão positiva, a liberdade de escolha de profissão compreende diversas pretensões específicas, entre as quais «o direito de escolher o regime de trabalho - o trabalho independente, o trabalho subordinado por conta de qualquer empresa, a função pública ou trabalho subordinado por conta do Estado ou de outra entidade pública e a própria iniciativa económica (artigo 61.º), esta na medida em que a iniciativa ou a gestão de uma atividade empresarial (provada, cooperativa ou autogestionária) pressupõe, além de outras, uma escolha do género ou tipo de trabalho».

Conforme decorre da respetiva fundamentação, é esta a dimensão do direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho que a decisão recorrida entende ter sido violada pelo regime da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho».

No entanto, é manifesto que tal regime legal não coloca em causa este direito. Com efeito, o que se pretende com o mesmo não é impor a quem presta determinada atividade remunerada que o faça, contra a sua vontade, em regime de contrato de trabalho, mesmo que o pretenda fazer em regime de trabalho independente.

Conforme se viu, o que se pretende é combater a utilização indevida do contrato de prestação de serviço nas situações em que, apesar de determinada relação ser formalmente titulada pelas partes como contrato de prestação de serviço, corresponda, substancialmente, a uma situação de trabalho subordinado, à qual deveria, por isso, ser aplicado o regime laboral. Nas situações problematizadas na decisão recorrida (os casos em que uma pessoa não quer estar sujeita a nenhuma relação de subordinação jurídica ou em que está vinculada a uma relação jurídica de um específico tipo contratual que não lhe permite ter uma ou outra relação jurídica de natureza laboral), não se verifica um caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviço, visto que, nenhuma das partes (e, concretamente, quem presta a outrem determinada atividade remunerada) pretende que a relação jurídica em causa esteja sujeita ao regime laboral.

Nestas situações, o referido regime contém suficientes garantias de esta vontade do trabalhador poder ser expressa nos autos e levada em conta, de modo a que tal situação não seja tratada como sendo um caso de trabalho subordinado.

Com efeito, o artigo 186.º-L, n.º 4, do Código de Processo de Trabalho, determina que, simultaneamente com a notificação da data da audiência de julgamento, sejam remetidos ao trabalhador o duplicado da petição inicial e da contestação, simultaneamente «com a expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário» e o artigo 186.º-O, também do Código de Processo de Trabalho prevê, no seu n.º 1, que «[s]e o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los».

Independentemente das eventuais deficiências técnicas deste regime apontadas pela decisão recorrida (matéria sobre a qual não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se), a verdade é que o mesmo garante a intervenção nos autos, quer do trabalhador, quer da entidade empregadora, sendo facultada ao trabalhador, a oportunidade processual de tomar posição quanto às circunstâncias concretas em que desenvolve a sua atividade, podendo, além do mais, invocar que se pretendeu vincular num regime que não o do contrato de trabalho (designadamente, por não querer estar sujeito a nenhuma relação de subordinação jurídica ou por estar vinculado a uma relação jurídica de um específico tipo contratual que não lhe permite ter outra relação jurídica de natureza laboral).

Face ao exposto, não se nos afigura que o regime da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» viole a liberdade de escolha de profissão, consagrada no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, concretamente na dimensão em que consagra o direito de escolher o regime de trabalho.

c) Da violação do princípio da igualdade

Segundo a decisão recorrida, o legislador prevê para a «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» uma regulamentação completamente distinta e muito mais favorável do que a regulamentação que se encontra fixada para a ação declarativa comum, cujo objeto e pedido (pelo menos, o principal) é exatamente o mesmo, isto é, o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho.

Ainda de acordo com a decisão recorrida, a natureza mais favorável do regime da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» traduz-se na atribuição de natureza urgente ao processo, na possibilidade de realização de julgamento sem necessidade da sua marcação com o prévio acordo com os mandatário das partes, na limitação do número de testemunhas por parte a três, a serem apresentadas pelas partes, na fixação do prazo de 30 dias para conclusão do julgamento, na atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso e na alteração do modo de contagem do prazo de prescrição dos créditos laborais (cf. arts. 26.º, n.º 6, 186.º-N, 186.º-O, 186.º-P e 186.º-R do CPT), regime esse que não tem correspondência na ação declarativa comum para reconhecimento da existência de um contrato de trabalho, em que o processo não tem natureza urgente, se exige o prévio acordo com os mandatários no que respeita à marcação da data para realização de audiência de julgamento, as partes não estão sujeitas a uma tão reduzida limitação de testemunhas e podem pedir a sua notificação para comparecer em julgamento, a realização do julgamento pode demorar mais que 30 dias, o recurso pode ter efeito suspensivo e o regime de prescrição de créditos laborais mantém-se o mesmo.

Sustenta a decisão recorrida que nesta ação comum, ao contrário do que sucede na «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho», as partes são efetivamente os titulares da relação jurídica cuja declaração como sendo de natureza laboral é peticionada e existe um efetivo e real conflito/litígio sobre o tipo contratual da relação jurídica que estabeleceram, que deve ser efetivamente solucionado pelo Tribunal. Entende-se, por isso, que existe uma diferenciação injustificada e desproporcional entre os regimes destes dois tipos de ação, cuja finalidade é exatamente a mesma, ao que acresce o facto de se conferir uma proteção e tutela jurídica e processual maior e mais favorável numa situação em que não existe conflito entre as partes, em comparação com a proteção conferida na situação em que tal conflito existe e é real e que, por isso, seria mais urgente solucionar.

Conclui, por isso, a decisão recorrida que se mostra violado o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, na dimensão da proibição do arbítrio.

A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo. No entanto, importa realçar que a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Significa isto que só existirá infração ao princípio da igualdade quando os limites externos da discricionariedade legislativa sejam violados, isto é, quando a medida legislativa adotada não tenha adequado suporte material.

Ou seja, a teoria da proibição do arbítrio não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial. Trata-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. A proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade.

Definidos assim os contornos do princípio da igualdade nesta dimensão, importa agora apreciar se o mesmo se mostra violado pelas normas cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida.

Como vimos, a «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» tem subjacente um procedimento prévio (previsto no artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro), em que, tendo sido verificada a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas às de um contrato de trabalho, e na falta de regularização da situação pela entidade empregadora, a ACT remete participação dos factos para os serviços do Ministério Público para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

Ou seja, esta ação tem na sua base uma verificação prévia por parte de uma entidade pública (a ACT), a quem foram atribuídas competências para o efeito, da existência de indícios de uma situação de qualificação fraudulenta (e legalmente proibida) de um determinado contrato como tendo uma natureza diferente de um contrato de trabalho, com o objetivo da subtração da relação em causa ao regime laboral, causando-se com isso prejuízo ao trabalhador e ao Estado.

Por outro lado, a intervenção do Estado neste âmbito tem, como vimos, subjacentes diversas razões de interesse público, que levam a que o Estado proceda a um escrutínio (e mesmo à punição) das situa-ções em que se pretenda, de modo fraudulento, impedir a aplicação do regime laboral a uma relação jurídica que, substancialmente, tem as características de um contrato de trabalho.

Estas razões fazem com a que a situação não seja idêntica aos casos em que, pura e simplesmente, surja um litígio entre determinadas pessoas sobre a qualificação de determinada relação jurídica (que, inclusive, poderá até já ter cessado), como contrato de trabalho.

Por outro lado, nas situações em que se esteja perante circunstâncias idênticas às que motivaram a aprovação do regime da ação para o reconhecimento de existência de contrato de trabalho, o trabalhador que pretenda discutir a qualificação da sua situação não está impedido de, em vez que propor uma ação de processo comum, participar a situação à Autoridade para as Condições de Trabalho que, na sequência dessa queixa, caso verifique que a situação se enquadra nos pressupostos previstos no artigo 15.º-A da Lei 107/2009, de 14 de setembro, dará seguimento à mesma no sentido de ser proposta a competente ação.

Em suma, dificilmente se poderá falar numa situação de tratamento desigual de trabalhadores, mas ainda que assim fosse, tal diferença de tratamento (refletida nos diferentes mecanismos processuais colocados à disposição de cada um), não se poderia considerar desrazoável, arbitrária ou destituída de fundamento, de modo a que se pudesse considerar violadora do parâmetro constitucional da igualdade.

Conclui-se, assim, que as normas cuja aplicação foi recusada não violam também o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.

Em face do exposto e não se vislumbrando que as normas fiscalizadas possam violar qualquer outro parâmetro constitucional, deverá ser concedido provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida.

Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 26.º, n.º 1, al. i), e n.º 6, e 186.º-K a 186.º-R do Código de Processo do Trabalho;

b) consequentemente, conceder(*) provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo.

Sem custas.

(*) Retificado conforme ordenado no Acórdão 116/2015, de 11 de fevereiro.

Lisboa, 3 de fevereiro de 2015. - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro.

208766391

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/966787.dre.pdf .

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Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2006-03-20 - Lei 9/2006 - Assembleia da República

    Altera o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, e a respectiva regulamentação, aprovada pela Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, em matérias relativas a negociação e contratação colectiva.

  • Tem documento Em vigor 2009-02-12 - Lei 7/2009 - Assembleia da República

    Aprova a revisão do Código do Trabalho. Prevê um regime específico de caducidade de convenção colectiva da qual conste cláusula que faça depender a cessação da sua vigência de substituição por outro instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.

  • Tem documento Em vigor 2009-09-14 - Lei 107/2009 - Assembleia da República

    Aprova o regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social.

  • Tem documento Em vigor 2009-09-16 - Lei 110/2009 - Assembleia da República

    Aprova o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social.

  • Tem documento Em vigor 2013-08-27 - Lei 63/2013 - Assembleia da República

    Institui mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado - primeira alteração à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que aprova o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social e quarta alteração ao Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de novembro.

Ligações para este documento

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Aviso

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