I
1 - O procurador-geral-adjunto da República em exercício neste Tribunal Constitucional, por delegação do procurador-geral da República, requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, conjugado com o artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78, de 20 de Dezembro, por esta haver já sido julgada materialmente inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em três casos concretos, e mais precisamente nos seus Acórdãos n.os 20/83, de 6 de Novembro, 23/83, de 22 de Novembro, e 3/84, de 11 de Janeiro.2 - Admitido o pedido por despacho do presidente do Tribunal Constitucional, foi o Primeiro-Ministro notificado para, querendo, no prazo de 30 dias, sobre ele se pronunciar, nos termos dos artigos 54.º e 55.º da Lei 28/82.
3 - Dentro do referido prazo, foi remetida a este Tribunal uma informação do Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, sobre a qual exarou o Primeiro-Ministro um despacho de concordância.
Nessa informação, com base em variados argumentos que já haviam sido aduzidos nos processos referentes aos acórdãos acima referidos, também se conclui que o n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78, de 20 de Dezembro, não ofende, enquanto norma retroactiva, nem a garantia de recurso (artigo 268.º, n.º 3, da Constituição) nem os princípios de confiança e segurança jurídicas subjacentes a um Estado de direito democrático.
4 - Tudo visto e verificado que no processo pendente existem cópias de acórdãos, hoje publicados, relativos a três casos concretos em que este Tribunal declara a inconstitucionalidade da mesma norma (cf. Acórdãos n.os 20/83 e 23/83, in Diário da República, n.º 27, de 1 de Fevereiro de 1984, e Acórdão 3/84, in Diário da República, n.º 98, de 27 de Abril de 1984), cumpre decidir.
II
5 - Pela primeira vez se apresenta perante este Tribunal Constitucional um recurso com base no artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, o qual, segundo a redacção introduzida pela revisão constitucional de 1982, dispõe:O Tribunal Constitucional aprecia e declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade [...] de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional [...] em três casos concretos.
Simplesmente, como esta redacção é susceptível de várias leituras, quer quanto ao desencadeamento ou iniciativa deste processo de fiscalização, quer quanto ao âmbito da competência de apreciação deste Tribunal, cumpre indagar o alcance jurídico da disposição em apreço, até com vista a determinar se, no caso sub judice, se acham ou não reunidas as condições de admissão do pedido.
6 - Porém, antes de proceder a estas indagações prévias, e no intuito de as facilitar, recordar-se-á que o preceito constitucional já referido tem como fonte de inspiração directa e imediata o próprio artigo 281.º, n.º 2, da Constituição de 1976, cuja redacção inicial era, na parte que nos interessa, a seguinte: «O Conselho da Revolução poderá declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de uma norma se a Comissão Constitucional a tiver julgado inconstitucional em três casos concretos [...]», ou «num só» caso concreto se se tratasse de inconstitucionalidade orgânica ou formal; mas esta parte do antigo preceito não foi retomada na revisão constitucional de 1982 (veja ainda o artigo 23.º do Decreto do Conselho da Revolução n.º 31/81, de 18 de Fevereiro, que aprova o respectivo Regimento Interno, in Diário da República, 1.ª série, n.º 41).
Com vista à implementação daquela disposição constitucional, o Decreto-Lei do Conselho da Revolução n.º 503-F/76, de 30 de Junho, que aprova o Estatuto da Comissão Constitucional (cf. Diário da República, 1.ª série, 5.º suplemento ao n.º 151), veio dispor, no seu artigo 48.º:
Sempre que a Comissão Constitucional tiver julgado uma norma inconstitucional em três casos concretos [...] comunicará o facto ao Conselho da Revolução, para o efeito de este exercer, querendo, a faculdade conferida pelo n.º 2 do artigo 281.º da Constituição.
Muito embora, e infelizmente, não tenham ocorrido debates no Plenário da Assembleia Constituinte sobre o mencionado artigo 281.º, n.º 2, da Constituição (cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.º 116, de 10 de Março de 1976, p. 3833), pode-se, no entanto, formular duas conclusões acerca do mesmo preceito: de uma banda, ocorrido o terceiro caso concreto, o Conselho da Revolução não era obrigado a declarar a inconstitucionalidade da norma, com força obrigatória geral, dispondo, pois, da faculdade de declaração; de outra banda, a iniciativa deste processo de fiscalização não pertencia à Comissão Constitucional - o envio previsto no artigo 48.º do seu Estatuto consubstanciava uma mera comunicação para eventuais efeitos previstos no artigo 281.º, n.º 2, da lei fundamental.
Mas afora estas duas conclusões, a redacção de 1976 não permite extrair outras ilações; designadamente, não responde à questão de saber se, ocorridos os três casos concretos, havia ou não obrigatoriedade de apreciação pelo Conselho da Revolução, e, também, em que moldes se processava tal apreciação; isto porque, apesar da específica composição do Conselho da Revolução, a sua decisão, neste tipo de fiscalização, não era precedida de qualquer parecer da Comissão Constitucional (cf., a contrario, anterior artigo 284.º da Constituição).
E acresce que, além de não serem publicadas as actas das reuniões do Conselho da Revolução, a resposta também não vinha do teor, formalmente sintético, das decisões tomadas, nesta matéria, por este órgão de soberania.
Veja-se, com efeito, e como exemplo mais resumido, a sua Resolução 14/78, de 11 de Janeiro, assim formulada:
Ao abrigo do artigo 146.º, alínea c), e do artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, o Conselho da Revolução, vistos os Acórdãos da Comissão Constitucional proferidos em 20 e 27 de Outubro de 1977 e em 13 de Dezembro de 1977, respectivamente nos autos de recurso n.os 27/77, 34/77 e 26/77, declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes no n.º 4 e no § único do artigo 109.º do Código Administrativo [in Diário da República, 1.ª série, n.º 25, de 30 de Janeiro de 1978; veja também Resolução 13/78, ibidem; nesta, referem-se 9 acórdãos da Comissão Constitucional, todos proferidos num único mês, isto é, em Maio de 1977].
E veja-se ainda, na sua forma mais extensa, pois se cita a disposição constitucional violada e se decreta uma inconstitucionalidade parcial, a sua Resolução 259/80, de 26 de Junho, assim redigida:
Nos termos da alínea c) do artigo 146.º e do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, o Conselho da Revolução, vistos os Acórdãos da Comissão Constitucional n.os 164, 198 e 217, proferidos, respectivamente nos processos de recurso n.os 4/79, 34/80 e 60/80, em 10 de Julho de 1979 e em 29 de Abril e 27 de Maio de 1980, declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º da Constituição e do princípio constitucional da defesa, da norma constante do último período do primeiro parágrafo do n.º 4 do artigo 61.º do Código da Estrada, «o pagamento voluntário da multa feito depois de instaurado o processo equivalente à condenação», na parte em que permite a aplicação da inibição da faculdade de conduzir como efeito automático do pagamento e, assim, independentemente da audiência de julgamento e da possibilidade efectiva da constituição de defensor e da presença e audiência do arguido [cf. Diário da República, 1.ª série, n.º 161, de 15 de Julho de 1980; veja também a Resolução 292/80, de 6 de Agosto, in Diário da República, 1.ª série, n.º 191, de 20 de Agosto de 1980, e a Resolução 64/78, de 19 de Abril, in Diário da República, 1.ª série, n.º 108, de 11 de Maio de 1978].
Em consequência, muito embora o actual artigo 281.º, n.º 2, da lei fundamental mergulhe certas raízes na redacção de 1976, a análise interpretativa do preceito inicial não é de grande socorro; tanto mais que, desta feita, luz não advém também, mas tão-só quanto à matéria em apreço, dos reputados comentários dos anotadores Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1978, pp. 502-504); e, aliás, o intérprete actual deveria ter sempre em conta o profundo fosso que separa, do ponto de vista da respectiva natureza jurídica, o Conselho da Revolução e o Tribunal Constitucional.
7 - Tendo em conta estas considerações, pode-se enfrentar agora a interpretação do actual artigo 281.º, n.º 2, da Constituição; e logo se dirá, num primeiro entendimento, que, ocorrido o terceiro caso concreto, o Tribunal Constitucional automaticamente aprecia e declara a inconstitucionalidade da norma questionada.
Porém, a mais de um título, tal entendimento é inaceitável.
A obrigação de declaração de inconstitucionalidade não se coaduna com o poder de livre apreciação de que dispõe, em geral, todo e qualquer tribunal e, em particular, o próprio Tribunal Constitucional.
E enquanto os trabalhos preparatórios relativos à revisão constitucional de 1982 apontam, insofismavelmente, e como atempadamente se verificará, para a faculdade de declaração (cf. infra, n.º 9), nada, no espírito e na letra da actual lei fundamental, justificaria reduzir a intervenção deste Tribunal, nesta matéria, a uma simples constatação formal da existência de três casos concretos e à consequente declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Aliás, o modo de funcionamento do Tribunal Constitucional, em secções não especializadas, para os casos concretos, e em plenário, para as fiscalizações abstractas, impede que a declaração de inconstitucionalidade possa ou deva ser automática: é que pode haver, quanto a uma determinada norma, jurisprudência divergente das duas secções, com reflexos a nível de maiorias no próprio plenário.
8 - Assim, afastado este primeiro entendimento, até por razões de pura lógica funcional, logo surge um outro: uma vez declarada a inconstitucionalidade no terceiro caso concreto, a apreciação é obrigatória, mas pode desembocar ou não em declaração de inconstitucionalidade.
Tal faculdade de não declaração enquadra-se, desta feita, nas tradicionais funções de apreciação de todo e qualquer tribunal e permite que o juiz, liberto dos aspectos casuísticos e interesses individualizados dos casos concretos, tenha agora em conta as próprias exigências e interesse de todo o sistema jurídico; e que, apenas a esta luz, possa declarar ou não a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma determinada norma, podendo até recorrer, no caso afirmativo, por exigência de «segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo», à modulação dos efeitos da sua declaração de inconstitucionalidade (cf. artigo 282.º, n.º 4, da Constituição).
Não há, pois, dúvidas quanto à faculdade de o Tribunal Constitucional declarar ou não a inconstitucionalidade; mas, inversamente, imporá o mesmo artigo 281.º, n.º 2, da Constituição a automaticidade da apreciação quando ocorre o terceiro caso concreto? 9 - A este respeito, não se pode ignorar que, quando dos debates parlamentares relativos à revisão constitucional, as intervenções, precisamente as dos dois proponentes da actual redacção do citado n.º 2 do artigo 281.º, apontam, manifestamente, não só no sentido acima referido da faculdade de não declaração, acima explicado (cf. supra, n.º 7), mas também no sentido agora discutido da obrigatoriedade da apreciação.
Com efeito, o deputado Jorge Miranda abria os debates nestes termos (cf.
Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 178, de 28 de Junho de 1982, p. 5375):
A proposta que, conjuntamente com o Sr. Deputado Luís Nunes de Almeida, apresentei, relativamente ao n.º 2, destina-se a salientar a separação entre a fiscalização concreta e a fiscalização abstracta prevista neste artigo.
O n.º 2 estabelece uma ponte entre a fiscalização concreta e a abstracta, mas pretende-se nele salientar, tal como no actual n.º 2 do artigo 282.º, que o órgão de fiscalização, ao fazer a declaração com força obrigatória geral, não deve decidir segundo o juízo do caso concreto.
É obrigado a apreciar, desde que tenha havido uma pronúncia pela inconstitucionalidade em certo número de casos, mas poderá declarar ou não a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, se assim o entender na perspectiva global da defesa da constitucionalidade (itálico nosso).
Trata-se, ainda, de uma decorrência da norma que vai com certeza ser aprovada para o novo artigo 285.º, em que se prevê a possibilidade de a fiscalização concreta vir a caber a secções do Tribunal Constitucional.
Logo depois, o deputado Luís Nunes de Almeida prosseguia os debates (cf.
ibidem, pp. 5375-5376), nestes termos:
Efectivamente, como já foi referido pelo Sr. Deputado Jorge Miranda, a intenção é a de que, depois da terceira vez em que é julgada inconstitucional a norma em fiscalização concreta, fique o Tribunal Constitucional habilitado a declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral. Mas fica simultaneamente obrigado a apreciar esta inconstitucionalidade.
A apreciação é obrigatória, enquanto a declaração depende evidentemente da decisão do Plenário, até porque a fiscalização concreta pode ser feita em secção [...] (itálicos nossos).
Contudo, apesar da transparência das intervenções ora reproduzidas, será porventura exagerado afirmar que o poder constituinte derivado, ao votar finalmente a actual redacção do preceito questionado, quis reservar ao Tribunal Constitucional, expressa e exclusivamente, a automática iniciativa do processo, ocorrido o terceiro caso concreto. Pode-se, pelo contrário, considerar que o mesmo poder constituinte quis, quanto a esta e outras questões relativas ao futuro Tribunal Constitucional, que a Assembleia da República viesse a decidir atempadamente. Por isso, aliás, a Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, numa das suas disposições finais e transitórias, decidiu que, «até à data da entrada em vigor da presente lei de revisão, a Assembleia da República aprovará a legislação respeitante à organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional [...]» (cf.
artigo 244.º, n.º 1).
E, sugestivamente, aquando da discussão parlamentar sobre a referida legislação, no quadro da Comissão Eventual para o Tribunal Constitucional, o deputado Luís Nunes de Almeida, acima referido, dizia:
A meu ver, as três decisões no sentido de inconstitucionalidade em fiscalização concreta não devem desembocar automaticamente num processo para efeitos de fiscalização abstracta [cf. Diário da Assembleia da República, 2.ª série, suplemento ao n.º 43, de 26 de Janeiro de 1983, p.
594-(105) (itálico nosso)].
Assim, a intima convicção do deputado ora transcrito, que havia participado activamente, na matéria em apreço, nos debates em sede de revisão constitucional e participava agora nos debates relativos à futura Lei 28/82, de 15 de Novembro, relativa à «organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional», era de que o poder constituinte derivado não havia fixado, quando da aprovação da lei de revisão, a sua posição sobre a automaticidade da apreciação.
O mesmo se pode dizer, também, do outro deputado constituinte acima citado;
com efeito, o professor Jorge Miranda, embora reconhecendo que na revisão constitucional havia decidido «(assim como o deputado Nunes de Almeida, mas não a deputada Margarida Salema) a obrigatoriedade da apreciação», opina, finalmente, perante a fórmula pouco clara do actual artigo 281.º, n.º 2, da Constituição:
Uma obrigatoriedade de apreciação (mesmo com faculdade de não declaração) seria algo de demasiado rígido, não jogaria plenamente com a necessidade de um pedido ou de uma iniciativa (como parece exigir a natureza de um tribunal) e poderia não permitir suficiente distanciamento entre o terceiro caso concreto e o juízo de inconstitucionalidade em abstracto ou em tese [cf.
Manual de Direito Constitucional, op. cit., t. II, p. 382, e nota (2)].
Pode-se, pois, admitir, na esteira deste mesmo constitucionalista, e prestando também vénia à parémia nemo iudex sine auctore, que o mais ajustado com a índole do sistema será que a apreciação fique dependente de uma iniciativa.
10 - Contudo, a questão não se acha resolvida. A dúvida não resulta agora, directamente, da redacção do n.º 2 do artigo 281.º da lei fundamental.
Admitindo que aquele preceito acaso não postule, pelo menos permite, ou porventura sugere, que não haja juízo sem autor ou, se se quiser, que o Tribunal Constitucional não possa conhecer da inconstitucionalidade ex officio, a dúvida resulta agora da conjugação entre os dois números que compõem o citado artigo 281.º Vejamos porquê.
Dando por conhecido o já reproduzido n.º 2 do preceito constitucional que se vem comentando, e cuja epígrafe é «fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade», lembrar-se-á que a alínea a) do seu n.º 1 dispõe que o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, «a inconstitucionalidade de quaisquer normas, a requerimento do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, do Provedor de Justiça, do procurador-geral da República, de um décimo dos deputados à Assembleia da República ou, com fundamento em violação dos direitos das regiões autónomas, das respectivas assembleias regionais ou dos presidentes dos governos regionais».
Conjugando o preceito nesta alínea com o disposto no n.º 2, poder-se-ia sustentar que as entidades enumeradas naquela primeira disposição são também aquelas que podem ter a iniciativa do controle previsto no último número; e isto porque, como a epígrafe do artigo 281.º indica, estamos perante um mesmo tipo de fiscalização: a abstracta; ora, no actual texto constitucional, a ratio de tal tipo de fiscalização aponta para a outorga da correspondente iniciativa a um número de entidades limitativa e expressamente indicadas.
Sendo assim, no caso sub judice, não podia o procurador-geral-adjunto em exercício neste Tribunal, com ou sem delegação do procurador-geral da República, desencadear o presente processo; é que o poder constitucional estabelecido no artigo 281.º da lei fundamental consubstancia atribuição eminentemente política outorgada intuitu personae ou intuitu institutionis e, como tal, indelegável; desde logo, repetindo jurisprudência deste Tribunal Constitucional, também aqui se deveria decidir que «no caso dos autos, porque se trata de uma competência de natureza política, por isso mesmo insusceptível de ser exercida por substituição ou mercê de delegação, o pedido foi formulado com manifesta falta de legitimidade» (cf. Acórdãos n.os 7/83 e 8/83, ambos de 26 de Julho, in Diário da República, 2.ª série, n.º 23, de 27 de Janeiro de 1984).
Contudo, a conclusão acabada de transcrever apenas é válida para o n.º 1 do citado artigo 281.º, e o mesmo se dirá da interpretação que a sustenta, apesar da abrangente generalidade da epígrafe daquela disposição. Não há, com efeito, coincidência entre as previsões dos seus n.os 1 e 2. Para aí aponta, aliás, a própria redacção deste último número, pois diz que o Tribunal Constitucional «aprecia e declara ainda [...]». Na previsão deste mesmo preceito, o desencadeamento do respectivo processo é anterior e exterior à fase de fiscalização abstracta propriamente dita; está-se, utilizando epígrafe extraída da obra do Prof. Jorge Miranda, em fase de «passagem da fiscalização concreta à fiscalização abstracta» (cf. Manual de Direito Constitucional, op. cit., t. II, p. 380). Não há, pois, necessária coincidência entre as entidades que podem desencadear os processos de fiscalização previstos, respectivamente, nos n.os 1 e 2 do artigo 281.º da lei fundamental.
Poderia, sem dúvida, o poder constituinte derivado, no exercício do seu soberano poder nesta matéria, ter determinado tal coincidência. Poderia, ainda, e como atempadamente se discutiu, ter expressamente reservado a iniciativa do processo ao próprio Tribunal Constitucional. Ou poderia, enfim, homenageando uma certa tradição parlamentarista, tornar a Assembleia da República herdeira, nesta matéria, dos poderes do Conselho da Revolução; e, aqui, com fundamento em antiga tradição constitucional portuguesa, hoje consubstanciada na alínea a) do artigo 165.º da lei fundamental, a qual estipula que compete à Assembleia da República, no exercício de funções de fiscalização, «vigiar pelo cumprimento da Constituição [...]»; e, também aqui, inspirando-se em sistemas de fiscalização estrangeiros, de que constitui exemplo acessível o artigo 42.º, inciso VII da actual Constituição Brasileira, que outorga competência ao Senado Federal para suspender, parcial ou totalmente, a execução de lei ou de decreto que, em decisão definitiva, haja sido declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (cf., entre outros, J. Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1984, p. 16).
11 - Porém, nenhum dos modelos acabados de referir teve a preferência do poder constituinte derivado de 1982. Este decidiu não especificar, no próprio texto constitucional, a entidade ou entidades competentes para desencadear o processo previsto no citado artigo 281.º, n.º 2, da Constituição. Em consequência, por vontade do mesmo poder constituinte derivado, tal especificação passou a caber, definitivamente, no âmbito da competência legislativa da Assembleia da República [v. artigos 167.º, alínea h), e 168.º, alínea q)].
Entretanto, como atrás se referiu, por força do artigo 244.º, n.º 1, da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, o órgão parlamentar aprovou a já citada Lei 28/82, de 15 de Novembro, cujo artigo 82.º determinou que o desencadeamento do processo de fiscalização previsto no citado artigo 281.º, n.º 2, da Constituição teria lugar «por iniciativa de qualquer dos [...] juízes» do Tribunal Constitucional «ou do ministério público» (e não do procurador-geral da República, enquanto tal).
Ora, dispondo o artigo 44.º do mesmo diploma que «o ministério público é representado junto do Tribunal Constitucional pelo procurador-geral da República, que poderá delegar as suas funções no vice-procurador-geral-adjunto ou num procurador-geral-adjunto», e havendo este último sido designado para o efeito, mediante ofício do procurador-geral da República de 24 de Maio de 1984, arquivado neste Tribunal (cf. ofício n.º 3000/83, de 24 de Maio, da Procuradoria-Geral da República), cabia-lhe competência para desencadear o processo que ora se aprecia.
Para tanto, existindo essa delegação genérica - obviamente, para efeitos diversos daqueles resultantes do artigo 281.º n.º 1, da lei fundamental [v. artigo 10.º, n.º 2, alínea c), da Lei 39/78, de 5 de Julho] -, escusaria até o requerente, no caso concreto, e para efeitos do n.º 2 do artigo 281.º da lei fundamental, de invocar ou de basear-se em delegação especial do procurador-geral da República.
Destarte, no caso dos autos, estão reunidas as condições de admissão do pedido, devendo, agora, este Tribunal Constitucional pronunciar-se quanto ao fundo.
III
12 - E, consigne-se desde já, também nesta última perspectiva se acham reunidas as condições para que este mesmo Tribunal Constitucional se pronuncie, com força obrigatória geral, pela inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78, de 20 de Dezembro.E não é só porque existem três casos concretos, acima referenciados (cf.
supra, n.º 1), em que houve pronúncia de inconstitucionalidade dessa mesma norma; e também não é apenas porque o princípio da igualdade de todos perante a administração da justiça, a segurança jurídica ou fundas razões de economia processual impõem tal declaração, perante a sucessão, em curto espaço de tempo, de acórdãos sobre a norma em apreço, todos no sentido da inconstitucionalidade (cf. Acórdãos n.os 5/84, 9/84, 10/84, 13/84, 17/84, 18/84, 19/84, 28/84, 32/84, 33/84, 34/84, 35/84 e 51/84, publicados no Diário da República, 2.ª série, respectivamente n.os 99, de 28 de Abril, 103, de 4 de Maio, 104, de 5 de Maio, 107, de 9 de Maio, 111, de 14 de Maio, 112, de 15 de Maio, 113, de 16 de Maio, 120, de 24 de Maio, 121, de 29 de Maio, 124, de 29 de Maio, 125, de 30 de Maio, 126, de 31 de Maio, e 173, de 27 de Julho; veja ainda o Acórdão 73/84, de 4 de Julho, inédito); é que, como se demonstrará, existem fundadas razões jurídicas para, em sede de fiscalização abstracta, declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78, de 20 de Dezembro.
Antes de as explicitar, nomeadamente com base nos argumentos aduzidos na numerosa jurisprudência deste Tribunal Constitucional, e que aqui se dão por conhecidos e reproduzidos, cumpre desvendar as razões político-normativas que levaram o legislador a adoptar a norma cuja constitucionalidade se contesta.
13 - Essas razões estão intimamente ligadas ao preceituado no Decreto 317/76, de 30 de Abril (cf. Diário da República, 1.ª série, n.º 102). Com efeito, este diploma, depois de recordar, no seu preâmbulo, que «com o objectivo de harmonizar o regime de aposentação dos trabalhadores civis do Estado em serviço nos territórios ultramarinos com o vigente em Portugal, foram publicados os Decretos n.os 52/75, de 8 de Fevereiro, e 568/75, de 4 de Outubro», e de sublinhar que esses «diplomas só poderão realizar a uniformidade pretendida sendo enquadrados no sistema jurídico que rege a remuneração dos trabalhadores da função pública em Portugal», adita ao artigo 4.º do referido Decreto 52/75 um n.º 8, mediante o qual as pensões de aposentação ficam sujeitas aos limites estabelecidos no artigo 8.º do Decreto-Lei 49410, de 24 de Novembro de 1969 (na redacção do Decreto-Lei 27/74, de 31 de Janeiro).
Com base neste aditamento, os despachos ministeriais fixando as pensões de reforma de antigos «trabalhadores civis do Estado em serviço nos territórios ultramarinos» passaram a aplicar, no respectivo cálculo, os limites estabelecidos por aquele Decreto 317/76.
Simplesmente, esses despachos de aplicação foram impugnados pelos interessados junto do Supremo Tribunal Administrativo, com sucesso, porque inquinados do vício de violação da lei. É que aquele diploma foi decretado pelo Governo no uso da faculdade conferida pelo artigo 3.º, n.º 1, alínea 4), da Lei Constitucional 6/75, de 26 de Março, constituindo assim um mero decreto regulamentar. Sendo assim, esse mesmo diploma não tinha valor jurídico suficiente para alterar ou contrariar o regime jurídico da aposentação dos antigos «trabalhadores civis do Estado em serviço nos territórios ultramarinos», pois que este, na data do acto ou facto determinante da aposentação, estava consignado em diploma com valor hierárquico-normativo superior; com efeito, esse regime, que não estabelecia, aliás, limites especiais para as pensões de aposentação daqueles funcionários, provinha de diplomas com valor equivalente ao dos decretos-leis, quais sejam, por um lado, o Decreto 46982, de 27 de Abril de 1966, que aprovou o Estatuto do Funcionalismo Ultramarino, que foi publicado ao abrigo do artigo 150.º, n.º 3, da Constituição de 1933, e, por outro lado, o Decreto 52/75, de 8 de Fevereiro, cujo artigo 4.º adquiriu, a partir de 1 de Janeiro de 1973, força de decreto-lei, em virtude do artigo único do Decreto-Lei 568/75, de 4 de Outubro.
Assim, para sanar esta ilegalidade, reconhecida e sancionada em jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo, o Governo decretou, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, o Decreto-Lei 413/78, de 20 de Dezembro (cf. Diário da República, 1.ª série, n.º 291); este diploma, depois de repetir no seu preâmbulo, uma vez mais, «que foi sempre preocupação dominante dos governos anteriores harmonizar o regime de aposentação de funcionários da ex-administração ultramarina com o vigente no continente e ilhas adjacentes, produzindo normas adequadas à obtenção desse fim» e, ainda, «que se torna necessário que essas normas tenham a devida eficácia», prescreve no n.º 2 do seu artigo único:
É retrotraído a 30 de Abril de 1976 o início da vigência do Decreto 317/76, de 30 de Abril.
E é precisamente esta norma que o Tribunal Constitucional, em repetida jurisprudência acima referenciada (cf. supra, n.º 12), considera inconstitucional, no seguimento, aliás, da própria jurisprudência da Comissão Constitucional (cf. Acórdãos n.os 156, de 29 de Maio de 1979, e 437, de 26 de Janeiro de 1982, ambos publicados no Boletim do Ministério da Justiça, respectivamente n.os 291, pp. 297 e segs., e 314, pp. 141 e segs.).
14 - Porém, tal inconstitucionalidade não resulta, tal qual, da retroactividade postulada no n.º 2 do artigo único do decreto-lei referenciado.
Tal é a conclusão a que constantemente arriba a jurisprudência acima citada deste Tribunal Constitucional (veja ainda o seu Acórdão 11/83, de 12 de Outubro, in Diário da República, 1.ª série, n.º 242, de 20 de Outubro de 1983), neste ponto apoiada em variada doutrina (v., por todos, J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, ed. Almedina, 1980, 2.ª ed., p. 457), e dando seguimento à constante posição da Comissão Constitucional, quer em arestos (cf., entre muitos outros, Acórdão 463, de 13 de Janeiro de 1983, in apêndice ao Diário da República de 23 de Agosto de 1983, p.133), quer em pareceres (cf., entre muitos outros, parecer 14/82, de 22 de Abril, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 318, pp. 217 e segs.).
É que, com efeito, no actual sistema jurídico português o princípio da não retroactividade das leis não tem assento constitucional geral, salvo em áreas reservadas, quando se trate de lei criminal desfavorável (cf. artigo 29.º da lei fundamental; veja parecer 25/79, de 10 de Setembro, in Pareceres da Comissão Constitucional, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, 9.º vol., pp. 114 e 115) ou de lei restritiva de direitos, liberdades e garantias (cf. artigo 18.º, n.º 3, da lei fundamental; veja J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, ed. Almedina, Coimbra, 1983, pp. 229-247).
Contudo, se uma lei retroactiva não é, per se, inconstitucional, poderá sê-lo se a retroactividade implicar a violação de princípios ou de disposições constitucionais autónomos; isto é, reproduzindo o que se afirma no citado parecer 25/79, «podem certas leis retroactivas vir a ser desconformes com a Constituição, não por virtude desse seu sentido, mas sim por contradição com outros preceitos ou princípios constitucionais» (ibidem, p. 115). Por diferentes palavras, mas no mesmo sentido, se exprime o Prof. Gomes Canotilho, nestes termos:
Quer dizer: é a violação de outros princípios constitucionais e não do princípio da não retroactividade das leis que justificará o juízo de ilegitimidade da lei retroactiva por desconformidade com o parâmetro constitucional [cf. Direito Constitucional, ob. cit., p. 437].
E é isso, precisamente, que se verifica quanto à norma retroactiva do n.º 2 do artigo único do referido Decreto-Lei 413/78, de 20 de Dezembro. Mas a este respeito - urge assinalá-lo - não existe total coincidência argumentativa entre a jurisprudência das 1.ª e 2.ª Secções deste Tribunal Constitucional.
15 - Com efeito, num primeiro entendimento, que repousa na jurisprudência da 1.ª Secção, inaugurada pelo já citado Acórdão 28/83, a norma questionada viola o preceito constitucional que garante «aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios, independentemente da sua forma, bem como para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido» (cf. actual artigo 268.º, n.º 3, da Constituição e seu anterior artigo 269.º, n.º 2).
Muito embora se reconheça que uma maior clarificação do alcance deste preceito não resulta, infelizmente, quanto à matéria que nos interessa, dos debates constituintes, quer quando da redacção de 1976 (cf. Diário da Assembleia Constituinte, n.º 112, de 12 de Fevereiro de 1976, p. 3690), quer quando da revisão de 1982 [cf. Diário da Assembleia da República, 2.ª série, 2.º suplemento ao n.º 114, de 30 de Junho de 1982, p. 2076 (14); 3.º suplemento ao n.º 106, de 16 de Junho de 1982, p. 1998 (66), e suplemento ao n.º 64, de 10 de Março de 1982, p. 1232 (21)], certo é que, ao retrotrair, a norma do n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78 restringiu o direito ao recurso contencioso garantido naquela disposição constitucional; isto porque «veio retirar aos cidadãos lesados nos seus direitos ou interesses legítimos o direito que lhes assistia de fazer anular tais actos [...]» (cf. citado Acórdão 28/83).
E é assim, essencialmente, porque o acto deixou de ser impugnável pelo motivo que efectivamente o tornava ilegal; enquanto antes o interessado podia fazer anular o acto originariamente ilegal, depois do referido decreto-lei deixou de ter essa possibilidade.
Por outras palavras: tal diploma não veio dispor, formalmente, que os actos praticados ao abrigo do Decreto 317/76 deixavam de ser contenciosamente impugnáveis; isto é, não veio retirar ou impedir directamente o recurso contencioso de actos ilegais. Mas, tornado legal o que antes era manifestamente ilegal, obstaculou a impugnação «vitoriosa» dos actos administrativos entretanto praticados; assim, na realidade, e por «ínvio caminho», o cidadão é objectivamente privado de um direito constitucionalmente consagrado e protegido.
Em suma, conclui o citado Acórdão 28/83:
[...] o propósito e o resultado do Decreto-Lei 413/78 foram o de impedir a impugnação vitoriosa dos actos administrativos praticados ao abrigo do Decreto 317/76. Os cidadãos que podiam impugná-los - e que já os tinham impugnado - foram privados dessa prerrogativa ou viram inutilizados os seus recursos. O direito ao recurso contencioso foi, pois, aniquilado - directa ou mediatamente, tanto faz, neste caso -, com violação, portanto, do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (sublinhado no original).
Na senda do entendimento que se vem descrevendo, pretende-se ainda que nem pode ser outro o alcance deste preceito constitucional; caso contrário, confundir-se-ia, inutilmente, com o objecto do artigo 20.º, n.º 2, da Constituição;
isto é, a sua imediata e essencial finalidade seria a de consagrar o direito ao recurso contencioso, que constitui uma das vertentes do direito ao acesso aos tribunais dos interessados para defesa dos seus direitos, já consagrado naquele artigo 20.º, n.º 2.
Desde logo, prossegue-se, a ratio do actual artigo 268.º, n.º 3, da lei fundamental não pode deixar de ser diferente do direito ao recurso postulado no outro preceito constitucional; caso contrário, ou seria inútil ou ter-se-ia de concluir, aberrantemente, que só se acha constitucionalmente garantido um determinado tipo de recurso (o contencioso), com base num único fundamento (a ilegalidade) e contra um determinado tipo de actos (administrativos, definitivos e executórios).
Ora, sublinha-se ainda, não pode obviamente ser assim; o artigo 268.º, n.º 3, dispõe de uma ratio legis específica, própria, autónoma. Por outras palavras: o poder constituinte, tanto o originário como o derivado, não quis só assegurar a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, nomeadamente por via de recurso contencioso (citado artigo 20.º, n.º 2); quis ainda garantir aos interessados, em especial, que o «fundamento em ilegalidade» de recursos contenciosos contra actos administrativos definitivos e executórios, devidamente datados, fosse aferido em função da legislação em vigor na altura em que o acto contestado foi praticado; e é por isso que o Decreto-Lei 413/78, ao conferir força de lei, com efeitos retroactivos à data da sua publicação, ao contestado Decreto 317/76, fere o espírito e a letra do actual artigo 268.º, n.º 3, da lei fundamental, como já feria o seu anterior artigo 269.º, n.º 2.
Aliás, como se sublinha no Acórdão 23/83 deste Tribunal Constitucional, a Comissão Constitucional já havia argumentado nesse sentido, ao afirmar:
[...] o conteúdo da garantia do artigo 269.º, n.º 2, tem de ser aferido pela lei vigente à data em que é praticado o acto definitivo e executório, sob pena de ele poder ser esvaziado total ou parcialmente por acção do legislador, defraudando o princípio constitucional do artigo 267.º, n.º 2 (submissão da Administração à lei). Daí que uma lei retroactiva sanando acto administrativo ilegal afecte directa e imediatamente a garantia constitucional (do direito ao recurso contencioso) [...] [cf. Boletim do Ministério da Justiça, n.º 291 (itálico nosso)].
E, sendo assim, insiste o mesmo entendimento, também se acha violado o disposto no artigo 18.º da lei fundamental. É que o direito de recurso contencioso previsto no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição configura, com indiscutível evidência, um dos «direitos fundamentais de natureza análoga» referidos no seu artigo 17.º; em consequência, aplica-se o regime estabelecido, nomeadamente, naquele artigo 18.º A esta mesma luz, o n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78 logo fere o n.º 2 deste preceito constitucional, que postula que «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição [...]»; isto porque não se vislumbra, em todo o seu extenso articulado, um qualquer preceito que, directa ou indirectamente, legitime uma restrição ao direito estabelecido no artigo 268.º, n.º 3, da lei fundamental.
Do mesmo passo, a mesma norma do Decreto-Lei 413/78 também contraria o disposto no n.º 3 do mesmo artigo 18.º da Constituição; mas não é porque se possa pretender que aquele decreto-lei não reveste «carácter geral e abstracto» (cf. citado Acórdão 13/84 do Tribunal Constitucional, n.º 12), mas sim porque a Constituição estabelece ainda que «as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias [...] não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais»; ora, na linha de entendimento atrás resumida, a norma questionada, cuja retroactividade é evidente, diminui também a extensão e até o alcance do direito reconhecido no artigo 168.º, n.º 3, da Constituição; daí, ainda, a sua inconstitucionalidade.
16 - Assim seria, com efeito, se na verdade se entendesse que a norma do n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78 viola aquele preceito constitucional.
Mas, seguindo entendimento que a 2.ª Secção deste Tribunal encetou com o seu já citado Acórdão 13184, que, por seu turno, se inspira no também já citado Acórdão 437 da Comissão Constitucional, não seria assim.
Sem dúvida que a aplicação da norma retroactiva faz com que fiquem sanados actos feridos de ilegalidade e que, desde logo, estejam vocacionados ao insucesso ulteriores recursos contenciosos ou inutilizados os que tiverem eventualmente sido interpostos; admite-se, ainda, que os destinatários da norma retroactiva perderam um motivo ou um fundamento de recurso contencioso contra certos actos da Administração. Mas tanto não basta para decretar a inconstitucionalidade do preceito contestado.
Com efeito, não são aqueles os interesses que o artigo 268.º, n.º 3, da Constituição visa proteger, ao garantir aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios. Pois que logo se percebe que o ratio deste preceito visa o direito adjectivo de discutir a validade de um acto administrativo perante os tribunais competentes, e não o direito substantivo a uma certa legalidade material.
Assim, por mais ampla que seja a interpretação do referido artigo 268.º, n.º 3, da Constituição, é de todo impossível sustentar que a garantia nele prevista visa proteger, concreta e especificamente, este ou aquele fundamento de recurso, como se - diz-se no conhecido Acórdão 437 da Comissão Constitucional - «um fundamento concreto de recurso, uma vez concedido pela ordem jurídica, não mais pudesse ser retirado por ela e devesse valer eternamente!» (sublinhado no original).
Daí que a eliminação, pelo Decreto-Lei 413/78, de um dos fundamentos do recurso contencioso não afecte a garantia postulada no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição.
O acto administrativo apenas deixa de ser impugnável por um único vício, podendo, no entanto, continuar a ser contestado por qualquer outro motivo. Por outras palavras: o que acontece é que, depois do Decreto-Lei 413/78, o acto deixou de ser ilegal, significando isso, tão-só e apenas, que o recurso deixou de ter fundamento e já não que aquele diploma restringiu ou excluiu o recurso contencioso propriamente dito.
Assim, o direito de recurso contencioso previsto no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição não teria sido atingido pela norma do n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78. Não obstante, e independentemente deste entendimento, e como atempadamente se assinalou, conclui este Tribunal Constitucional pela inconstitucionalidade dessa mesma norma. Vejamos porquê.
17 - É que, agora segundo jurisprudência conforme das duas secções deste Tribunal Constitucional, aquela norma retroactiva viola o princípio do Estado de direito democrático que, referido no preâmbulo da Constituição, se acha actualmente consignado, expressamente, no seu artigo 2.º (sobre a relação deste princípio, na redacção constitucional de 1976, com o conceito de «legalidade democrática», veja Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1978, pp. 37-38).
Sem dúvida que tal princípio, cujos contornos são fluidos, variando no tempo e segundo as épocas e lugares, tem um conteúdo relativamente indeterminado quando não acha directo apoio noutros preceitos constitucionais. Por isso, tais características sempre inspirarão prudência ao intérprete e convidá-lo-ão a não multiplicar, com apoio nesse princípio, as ilações de inconstitucionalidade.
Não obstante, qualquer que seja a latitude jurídica, o princípio do Estado de direito democrático sempre garantirá - parafraseando, uma vez mais, o já citado Acórdão 437 da Comissão Constitucional - «seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e consequentemente a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica» (sublinhado no original).
Ora, aqui, por via da norma questionada, se atinge, a posteriori, um direito individual estabelecido por lei anterior; do mesmo passo se destroça aquele mínimo de certeza e de segurança que os cidadãos devem ter na protecção oferecida por um Estado de direito democrático.
Não se infira, porém, daqui a inadmissibilidade constitucional de normas retroactivas impondo novos encargos aos cidadãos ou estabelecendo-lhes novos deveres; em sentido contrário já se pronunciou, com clareza, este Tribunal Constitucional no seu Acórdão 11/83, de 12 de Outubro.
Porém, desta feita, a retroactividade da norma em apreço compromete direitos e interesses individuais garantidos por lei anterior, que estabelece, precisamente, com carácter objectivo, aspecto importante do estatuto profissional dos respectivos destinatários.
Aliás, neste caso não se trata só de aniquilamento de direitos e interesses legalmente protegidos; trata-se também de aniquilamento de direitos e interesses legitimamente «subjectivados», para a defesa dos quais vários cidadãos lesados já haviam procedido contenciosamente.
Ora, acresce que foi por livre vontade do próprio legislador que, num dado momento, tais direitos e interesses integraram o estatuto do funcionalismo ultramarino e, por essa via, o próprio património individual do funcionário.
Desde logo, o Governo, enquanto tal, ou na veste de Administração Pública, não pode furtar-se, num Estado de direito democrático, e salvo circunstâncias excepcionais, a honrar compromissos que expressa e livremente assumiu e cujo reconhecimento e respeito foi com certeza determinante na criação do vínculo à função pública ultramarina.
Assim, parafraseando novamente o Acórdão 437 da Comissão Constitucional, está-se «perante um claríssimo e irremissível caso em que a retroactividade da lei afecta o princípio da confiança ínsito na ideia do Estado de direito e é, por isso, constitucionalmente inadmissível»; é que, através da norma contestada, «a retroactividade não só actua em desfavor da situação do administrado como só o consegue alcançar através da desautorização, com efeitos para o passado, de uma corrente jurisprudencial, com o que é irremediavelmente afectada a confiança dos cidadãos - merecedora de tutela constitucional -, já não apenas no legislador, mas também no próprio poder judicial» (sublinhado no original).
Mas reparar-se-á que não se pretende dizer que, em geral, a Constituição não consente que o legislador venha, com eficácia retroactiva e sem ofensa de casos julgados, resolver diferentemente determinada situação ou questão jurídica tendo ou não em conta exigências decorrentes de uma jurisprudência constante e uniforme. Dir-se-á, até, que constitui obrigação constitucional do legislador repor a legalidade democrática (artigo 3.º, n.º 2, da Constituição).
Mas veja-se: trata-se para o legislador da obrigação de repor, tão-só e apenas, a legalidade democrática; mas não é esse o objectivo buscado pelo Decreto-Lei 413/78 (v. A. Queiró, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, 113.º, p. 34).
E tudo isto, obviamente, ferindo profundamente o princípio do Estado de direito democrático, por mais reduzida que se entenda ser a garantia ou protecção que este mesmo princípio oferece aos cidadãos em geral e aos antigos funcionários ultramarinos em particular.
IV
18 - Por todo o exposto, nos termos do artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78, de 20 de Dezembro, enquanto norma retroactiva, por violação do princípio do Estado de direito democrático, nomeadamente consagrado no artigo 2.º da lei fundamental.Lisboa, 31 de Julho de 1984. - Jorge Campinos (considerando ainda haver violação do actual artigo 268.º, n.º 3, da Constituição) - José Manuel Cardoso da Costa - Mário Afonso - Mário Brito - Antero Alves Monteiro Dinis - Messias Bento - Raul Mateus (votei o acórdão, considerando ainda, na linha da jurisprudência da 1.ª Secção, ter havido violação do direito ao recurso contencioso) - José Joaquim Martins da Fonseca (considerando ainda haver violação do actual artigo 268.º, n.º 3, da Constituição) - Vital Moreira (entendendo, porém, verificar-se também ofensa do direito ao recurso contencioso, nos termos do acórdão citado no texto, de que fui relator) - Joaquim Costa Aroso - Luís N. Almeida (vencido parcialmente, nos termos e com os fundamentos constantes da declaração de voto junta) - José Magalhães Godinho (vencido, nos termos da relação de voto que junto).
Declaração de voto
Votei parcialmente vencido por entender que apenas se deveria declarar a inconstitucionalidade da norma em apreço, enquanto retroactiva, na parte aplicável a pensões de aposentação já definitivamente fixadas.Efectivamente, o n.º 3 do artigo 18.º da Constituição apenas proíbe a eficácia retroactiva das leis restritivas de «direitos, liberdades e garantias». E estes, conforme resulta do artigo 17.º, são somente os enunciados no título II e os direitos fundamentais de natureza análoga.
Não quer isto dizer que a lei possa restringir, limitar ou diminuir indiscriminadamente, de forma retroactiva, todo e qualquer outro direito. Não o poderá fazer quando, seguindo-se a tese geral já professada por este Tribunal, designadamente no seu Acórdão 11/83, e na esteira da doutrina da Comissão Constitucional, daí resultar atingido o princípio da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, por se estar perante «uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos».
Só que, para demonstrar a existência de violação do referido princípio, não basta demonstrar que a retroactividade em causa afectou determinado direito ou expectativa legitimamente fundada. Como se salientou, há que demonstrar, igualmente, o seu carácter intolerável, inadmissível e arbitrário, no caso concreto, sob pena de, por essa via, se vir a alargar, de forma indiscriminada, o âmbito da proibição constante do n.º 3 do artigo 18.º Ora, no caso vertente, não me parece que se haja feito prova cabal do carácter intolerável, inadmissível e arbitrário da retroactividade em causa. Antes se dá, no acórdão, por adquirido tal carácter, única e exclusivamente por se haver atingido «um direito individual estabelecido por lei anterior», por se verificar terem sido comprometidos «direitos e interesses individuais garantidos por lei anterior», por se considerar que houve «aniquilamento de direitos e interesses legitimamente subjectivados» que, «por livre vontade do próprio legislador», integraram, «num dado momento», «o Estatuto do Funcionalismo Ultramarino e, por essa via, o próprio património individual do funcionário»; mais, seguindo a tese do acórdão, «o Governo, enquanto tal, ou na veste de Administração Pública, não pode furtar-se, num Estado de direito democrático, e salvo circunstâncias excepcionais, a honrar compromissos que expressa e livremente assumiu».
Parece deduzir-se daqui uma inversão da tese geral atrás mencionada e até agora seguida maioritariamente por este Tribunal: a de que, fora do caso das leis restritivas de «direitos, liberdades e garantias», a retroactividade não é, em princípio, proibida, havendo sempre que demonstrar autonomamente o seu carácter intolerável, inadmissível e arbitrário para que possa existir violação do princípio da confiança; agora, pelo contrário, parece entender-se que a retroactividade é, em princípio, sempre proibida, havendo que demonstrar, sim, a existência de circunstâncias excepcionais que possam justificar a constitucionalidade da lei retroactiva que afecte direitos ou expectativas legitimamente adquiridos, ainda que não sujeitos ao regime dos «direitos, liberdades e garantias».
Não subscrevo a tese agora professada pelo Tribunal, que me parece exceder, em muito, o que se impõe no n.º 3 do artigo 18.º e é exigível para respeito do princípio da confiança.
Da mesma forma, não subscrevo o argumento adjuvante que se retiraria do facto de, no caso vertente, a lei retroactiva vir desautorizar uma corrente jurisprudencial.
Não vejo, efectivamente, como poderá ser inconstitucional uma lei que, com eficácia retroactiva e sem ofensa de casos julgados, se proponha resolver determinada questão jurídica controvertida de forma diversa daquela que vinha sendo adoptada por uma tal corrente jurisprudencial, quando se não considere inconstitucional uma lei que, com eficácia retroactiva, venha regular certa matéria que até aí nem sequer chegara a provocar qualquer controvérsia jurídica, de forma totalmente oposta à adoptada em lei anterior.
Na verdade, se existisse uma genérica proibição constitucional das leis retroactivas contraditórias com uma jurisprudência anterior constante e uniforme, tal proibição redundaria, afinal, em conferir a essa jurisprudência não só uma força obrigatória geral, mas também um valor superior ao da própria lei, o que seria manifestamente inaceitável.
Assim, embora possa reconhecer que aqui, como em muitos outros casos, a questão se apresenta fluida, não me pareceu que se pudesse concluir pelo carácter intolerável, inadmissível e arbitrário da retroactividade em causa, até porque ela se destinava a eliminar uma situação de desigualdade material até então existente.
Tal carácter intolerável verificar-se-á quando a retroactividade atingir pensões de aposentação definitivamente já fixadas, em que o direito de receber uma pensão de determinado quantitativo se consolidou na esfera jurídica do funcionário, não sendo já, de forma alguma, previsível uma diminuição desse mesmo quantitativo. Mas, pelo contrário, não se verificará quando apenas atinge pensões provisórias, sempre dependentes de posterior rectificação.
Lisboa, 31 de Julho de 1984. - Luís N. Almeida.
Declaração de voto
Não vejo razão forte que me leve a alterar a posição, nas declarações de voto de vencido, em sucessivos acórdãos proferidos em processos respeitantes à inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78, que retrotraiu o início da vigência, e, portanto, eficácia legislativa, do Decreto-Lei 317/76 a 30 de Abril, isto é, à data da publicação, decreto este que, por seu turno, aditara ao n.º 8 do artigo 4.º do Decreto 52/75 um novo número, estabelecendo que no cálculo da remuneração a levar em conta na fixação das pensões de aposentação aos funcionários da antiga administração ultramarina se passariam a observar os limites do artigo 8.º do Decreto-Lei 49410, na redacção do Decreto-Lei 27/74.Isto, bem entendido, sempre que se tratar de pensão ainda não fixada definitivamente e estando ainda com fixação provisória.
No caso sub judice o acórdão concluiu pela inconstitucionalidade por violação do princípio do Estado de direito democrático.
O acórdão-doutrina declara que, na esteira da Comissão Constitucional, designadamente no Acórdão 437, de 26 de Janeiro de 1982 (publicado no apêndice ao Diário da República de 6 de Janeiro de 1983, a fl. 78), «é inconstitucional a norma retroactiva que viola de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que as pessoas e a comunidade têm a obrigação (e também o direito) de respeitar na ordem jurídica que os rege», ou, como resulta do acórdão da mesma Comissão Constitucional n.º 463, de 13 de Janeiro de 1983 (publicado no apêndice ao Diário da República de 23 de Agosto de 1983, a p. 133), que igualmente cita, há inconstitucionalidade de norma retroactiva quando «se estiver em presença de uma retroactividade arbitrária ou opressiva que envolva uma violação demasiado acentuada daquela confiança», e isto porque, «num tal caso, é justamente a ideia de Estado de direito que é posta em causa».
E é com base nestes princípios, e só nestes, que o acórdão conclui que se verifica a inconstitucionalidade da norma retroactiva do n.º 2 do artigo único do Decreto-Lei 413/78.
Ora, afigura-se que a análise dos fins que o Decreto-Lei 413/78 visou e quis atingir não se coaduna, não consente uma tal conclusão.
Vejamos:
O Estatuto do Funcionalismo Ultramarino, no seu artigo 444.º e na redacção primitiva do Decreto 46982, de 27 de Abril de 1966, conferia ao funcionário o direito a uma pensão de aposentação a partir da data da publicação da portaria de desligação do serviço e a fixar naquela, que será provisória até ser concedida a aposentação e definitiva depois disso.
Em 1972, pelo Decreto 180/72, de 29 de Maio, foi alterado este artigo, que, no seu corpo antes transcrito, passou a ter a seguinte redacção:
A partir da desligação de serviço o funcionário terá direito a uma pensão, a fixar por despacho, que será provisória até ser concedida a aposentação e constituirá o encargo das províncias ultramarinas na proporção do tempo de serviço nelas prestado.
Além disso, o Decreto 180/72 alterou totalmente os parágrafos do artigo 444.º citado e acrescentou-lhe um § 4.º e veio estabelecer novo regime, como se depreende da leitura desses mesmos parágrafos.
Assim, o § 3.º veio dispor que a ulterior rectificação do quantitativo da pensão no despacho de aposentação definitiva dará lugar ao abono ou à reposição das diferenças, o que bem denota que com a pensão provisória não adquire um direito que haja de ser respeitado na pensão definitiva, e, antes, que só a pensão definitiva subjectiva o direito ao quantitativo da pensão, já que tanto pode ser maior como menor em relação à pensão provisória.
Por outro lado, no § 4.º acrescentado estabeleceu-se o princípio de que a pensão provisória seria suportada pela verba «pessoal aguardando aposentação ou reforma», ainda no capítulo 3 da tabela da despesa ordinária dos orçamentos gerais das províncias ultramarinas.
Daqui tem, minimamente, de concluir-se que todo o sistema de aposentações dos funcionários ultramarinos ficava, em todas as suas fases, dependente dos governos das chamadas províncias ultramarinas.
Daqui desde logo resulta a conclusão de que tal sistema terminava, caducava, no dia em que deixassem de existir «províncias ultramarinas».
Isto significa, sem sombra de dúvida, que quando as ex-colónias, ou as províncias ultramarinas, como se lhes chamava, adquirissem a sua independência e se transformassem em Estados soberanos, cessavam as obrigações criadas para com os funcionários que do continente, de Portugal, tinham ido preencher os quadros ou lugares do funcionalismo dessas antigas colónias ou províncias ultramarinas.
É evidente que, sobretudo a partir de 1971, era já uma certeza que a guerra colonial terminaria pela vitória das forças dos territórios até então sob dominação portuguesa e que, logicamente, os funcionários de estrutura administrativa desses territórios perderiam os seus lugares e os seus direitos, e só por um esforço relevante do Estado Português poderiam ser resguardados ou salvaguardados em certa medida, já que tudo o que até então havia era suportado, constituía encargo das ditas províncias ultramarinas onde tivessem prestado serviço, e a partir de então teriam de passar a ser suportados, a constituir encargos do Orçamento Geral do Estado de Portugal continental, portanto.
Tendo os funcionários ultramarinos de incorporar-se nas regras dos metropolitanos, os seus direitos não deveriam ser superiores aos destes, sob pena de se estabelecer discriminação intolerável, um privilégio injustificável, um autêntico atropelo, uma evidente violação do princípio da igualdade dos cidadãos que o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa consagra.
Logicamente, qualquer disposição legal, ainda que com efeito retroactivo, que os colocasse em igualdade de situação com os funcionários do território nacional, longe de poder ser acusada de violadora de direitos dos princípios constitucionais, antes seria indiscutivelmente um acto de justiça igualizador de situações para as quais deixava de haver razão de qualquer diferença.
Deixou de poder pensar-se no interesse dos indivíduos para ter de pensar-se no interesse colectivo, no interesse público que passou a impor a transformação da antiga norma jurídica do artigo 444.º do Estatuto Ultramarino e da sua adaptação a novas necessidades e concepções sociais, mesmo à custa de posições jurídicas e de possíveis expectativas fundadas no antigo Estado de direito. E este era um interesse premente, um interesse geral da comunidade jurídica, um interesse de política legislativa na unidade e homogeneidade de ordenamento, factores de segurança e pressupostos da igualdade de justiça, para utilizarmos as expressões do parecer da Procuradoria-Geral da República de 21 de Dezembro de 1977, publicado na 2.ª série do Diário da República.
Foram estes interesses, aliás, ainda mesmo assim, salvaguardando o mais possível os interesses, enquanto concordassem com um fim legítimo, dos funcionários ditos ultramarinos, que os Decretos-Leis n.os 317/76, de 30 de Abril, ao aditar o n.º 8 ao artigo 4.º do Decreto 52/75, de 8 de Fevereiro, e 413/78 tiveram em conta, todos visando harmonizar e igualizar, portanto, os regimes de aposentação dos servidores do Estado em serviço nos então designados territórios ultramarinos com os regimes em Portugal e nas regiões autónomas, e não os ter considerado seria até imoral.
Daí que a retroactividade imposta é integralmente legítima e nada tem de inconstitucional, pois não ofende nenhum preceito constitucional autónomo, não trai qualquer princípio de confiança ou de legítima expectativa, já que era obviamente de esperar que, dados os problemas criados nos territórios das ex-colónias, designadamente a partir do 25 de Abril de 1974, era previsível, mais, era seguro, que esses territórios ascenderiam à independência, conquistariam a soberania e os funcionários que tinham a sua situação contemplada por um Estatuto Ultramarino inevitavelmente caduco, perante a caducidade do regime ultramarino, teriam de, regressados ao continente, enquadrar-se nas regras aplicáveis a todo o funcionalismo, sob pena de criar e alimentar uma situação de privilégio que já nada justificava e que, essa sim, violaria o direito fundamental da igualdade dos cidadãos perante a lei, que o artigo 2.º, definidor do Estado de direito democrático, impõe, que, de outra forma, seriam manifestamente desrespeitadas.
É que, neste caso, a retroactividade da norma, longe de ser opressiva, desproporcionada, arbitrária ou ofensiva, antes se revela como igualizadora, defensora dos princípios do Estado de direito, ajustada e proporcionada à necessidade que lhe está implícita, justa e salvaguardando o direito à pensão, que não ao seu quantitativo, o que seria inadequado nas circunstâncias verificadas.
Continuo, pois, a entender que o Decreto-Lei 413/78, bem como os Decretos-Leis n.os 317/76 e 52/75 não violaram qualquer norma constitucional nem ofenderam o princípio do Estado de direito democrático que a Constituição consigna no seu artigo 2.º José Magalhães Godinho.