Acórdão 3/97
Processo 813/96. - Acordam no plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido naquele Tribunal da Relação em 27 de Março de 1996, no processo 168/96, 4.ª Secção, nos termos dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, pelos fundamentos que se expõem:
a) No citado aresto de 27 de Março de 1996 decidiu-se que, com a entrada em vigor do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, designadamente pelo seu artigo 275.º, a doutrina do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989 se encontra prejudicada, não sendo actualmente punível a posse de pistola com calibre de 6,35 mm quando o seu possuidor não seja titular de licença de uso e porte de armas, não estando esta registada ou manifestada;
b) Em Acórdão da mesma Relação de 24 de Janeiro de 1996, proferido no processo 1053/95, 1.ª Secção, havia sido decidido que, não obstante a revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, o referido assento do Supremo Tribunal de Justiça mantinha-se em vigor e que a detenção e posse de arma de calibre 6,35 mm e de cano com 6 cm sem manifesto nem registo é arma proibida e penalmente punível nos termos do artigo 275.º do Código Penal revisto;
c) As decisões em confronto transitaram em julgado e foram proferidas no domínio da mesma legislação, tendo encontrado soluções jurídicas opostas sobre a mesma questão de direito.
Por tais razões, pretendeu-se a intervenção deste Tribunal no âmbito da sua função uniformizadora de jurisprudência para se solucionar o problema da invocada oposição de acórdãos.
Foi o recurso recebido pela forma legal, tendo sido ouvido o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal e foram corridos os respectivos vistos.
Pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de 9 de Outubro de 1996 foi decidido que os dois acórdãos proferidos pela mesma Relação estão em oposição sobre a mesma questão de direito, apresentando soluções opostas quanto a ela, e foram proferidos no domínio da mesma legislação.
Tendo ambos os arestos transitado em julgado, considerou-se que estavam reunidos os pressupostos dos artigos 437.º, 440.º e 441.º do Código de Processo Penal, pelo que se determinou o prosseguimento dos autos.
Foi dado cumprimento ao artigo 442.º, n.º 1, do referido diploma processual e, na sequência das notificações, foram apresentadas as mui doutas alegações do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal, perfilhando a tese da caducidade do assento e da descriminalização.
Na referida alegação propõem-se as seguintes fórmulas para a fixação de jurisprudência, neste caso:
1) Uma pistola de calibre 6,35 mm não manifestada nem registada não é considerada arma proibida, pelo que a sua detenção, uso ou porte não integram o crime previsto no artigo 275.º, n.º 2, do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março;
2) A detenção, uso ou porte de uma pistola de calibre 6,35 mm não manifestada nem registada não constitui o crime previsto e punível pelo artigo 275.º, n.º 2, do Código Penal revisto, preceito que fez caducar o assento de 5 de Abril de 1989.
A questão tal como, em síntese, resulta dos acórdãos em oposição.
1 - No acórdão recorrido.
Era imputado ao arguido a prática em autoria material de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 260.º do Código Penal de 1982, por, alegadamente, em 22 de Março de 1995, ter sido encontrado na posse de uma pistola de calibre 6,35 mm sem que tal arma se encontrasse registada ou manifestada.
Chegou a ser designada data para julgamento, mas o Mmo. Juiz ordenou, oportunamente, o arquivamento dos autos com o fundamento de que, com a entrada em vigor, em 1 de Outubro de 1995, do novo Código Penal, só passaram a ser criminalmente puníveis, face à redacção do seu artigo 275.º, a detenção e uso de armas de fogo consideradas proibidas, ficando de fora as restantes armas de fogo permitidas que se encontrem simplesmente indocumentadas, mostrando-se desse modo caduca a doutrina do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989. Tendo havido recurso, foi chamado o Tribunal da Relação a pronunciar-se, e, pronunciando-se, perfilhou a tese do despacho recorrido, abonando a sua posição no facto de, na sua óptica, da leitura da acta 32 da Comissão Revisora do Código Penal, de 17 de Maio de 1990, o presidente da Comissão ter tomado posição quanto à doutrina do assento então em vigor e referido que «uma arma indocumentada (falta de manifesto, não registada) mas permitida deve receber uma protecção contra-ordenacional e não penal. Só as armas proibidas devem ser alvo de reacções criminais».
2 - No acórdão fundamento.
O arguido, em 16 de Outubro de 1995, tinha na sua posse uma pistola de calibre 6,35 mm com o cano de 6 cm sem que estivesse manifestada ou registada, tendo sido apresentado ao Mmo. Juiz para ser julgado em processo sumário. O magistrado ordenou o arquivamento dos autos por considerar a conduta do arguido descriminalizada à luz do artigo 275.º, n.os 1 e 2, do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março. Interposto recurso, veio o Tribunal da Relação a conhecer do mesmo e, conhecendo, revogou o despacho de arquivamento e ordenou a sua substituição por outro em ordem à realização do julgamento. Entendeu que, embora na Comissão Revisora do Código Penal se tivesse abordado «a necessidade de uma boa legislação sobre armas, onde, nomeadamente, se fosse colher a definição de armas proibidas e prever as respectivas punições», ficou-se pela abordagem, não tendo passado a definição de arma proibida e a posição assumida pelo seu presidente, Prof. Doutor Figueiredo Dias, não transparece na redacção dada em definitivo no artigo 275.º do Código Penal e daí que esteja em vigor o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989.
Fundamentos e decisão.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
É indubitável que, no caso em apreço, como foi decidido na conferência, verifica-se oposição entre os dois mencionados acórdãos. Também se verificam os demais requisitos exigidos pelos artigos 437.º e 438.º, ambos do Código de Processo Penal.
Como se apreende do que atrás tem vindo a ser referido, o problema a resolver consiste em saber «se a detenção, uso e porte de uma pistola de calibre 6,35 mm não manifestada nem registada constitui o crime previsto e punido pelo artigo 275.º, n.º 2, do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, tendo caducado o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989, o qual interpretou o artigo 260.º do Código Penal de 1982 no sentido de que «a detenção, uso e porte de uma pistola de calibre 6,35 mm não manifestada nem registada constitui o crime previsto e punível pelo artigo 260.º do Código Penal de 1982».
Mas, a questão é mais profunda e referencia-se com o problema de saber se a detenção, uso e porte de armas de fogo permitidas e não manifestadas nem registadas é passível de constituir infracção criminal ou, antes, ilícito de mera ordenação social.
Debrucemo-nos, então, sobre a questão colocada nos autos.
Esta problemática já havia dividido a jurisprudência na vigência do artigo 260.º do Código Penal de 1982.
Havia uma corrente que considerava integrada nesta norma - artigo 260.º do Código Penal de 1982 - a falta de manifesto ou de registo de uma arma de defesa, havendo outra que não considerava ilícito criminal aquela falta de manifesto ou de registo (a título de exemplo, e só para citar a 2.ª instância, no primeiro sentido, Acórdãos da Relação de Lisboa de 17 de Abril de 1985, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 353, p. 502, e de 22 de Maio de 1985, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 354, p. 603; no segundo sentido, Acórdãos da Relação de Coimbra de 12 de Fevereiro de 1986, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 354, p. 621, e de 11 de Junho de 1986, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, p. 614).
Tal divergência veio dar origem ao assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989, in Diário da República, 1.ª série, n.º 109, de 12 de Maio de 1989, e cujo sentido já acima expusemos.
Mas, a doutrina fixada nos assentos vale para a relação concreta que serviu de base à decisão. Sendo assim, e segundo o assento, na previsão do artigo 260.º do Código Penal de 1982 apenas se integraria a detenção, uso ou porte de pistola de calibre 6,35 mm não manifestada nem registada e não outras armas. Mas, considerando a aplicação analógica dos assentos (cf. Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.º, fl. 360), começou a considerar-se que a doutrina do assento também era válida para a detenção de todas as armas de fogo permitidas não manifestadas nem registadas (cf. Acórdão da Relação do Porto de 9 de Fevereiro de 1992, processo 9250).
Porém, os assentos caducam quando forem revogados por um preceito legislativo posterior ou quando for modificada a legislação no âmbito da qual foram proferidos, salvo, nesta última hipótese, se a legislação anterior «for substituída por outra que contenha textos idênticos, não havendo razões para excluir que o sentido dos novos textos seja igual ao dos antigos» (cf. Prof. Doutor Vaz Serra, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 96.º, fl. 366, e ano 101.º, fl. 343, em nota).
Ora, o artigo 260.º do Código Penal de 1982 desapareceu com a revisão do Código Penal levada a efeito pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março. Existe, agora, em sua substituição o artigo 275.º do novo Código Penal, que trata de substâncias explosivas ou análogas e armas.
Como iremos demonstrar, o texto desta disposição legal não é idêntico ao do artigo 260.º do Código Penal de 1982 e na previsão de novo preceito - artigo 275.º do Código Penal de 1995 - não se contempla, fazendo-se referência expressa, a detenção, uso e porte de armas de fogo permitidas não manifestadas nem registadas e nem há razões válidas para crer que o legislador tivesse querido contemplar na norma tal situação.
Assim:
I - Não são idênticos:
«Artigo 260.º
Armas, engenhos, materiais explosivos e análogos
A importação, fabrico, guarda, compra, venda ou cedência por qualquer título, bem como o transporte, detenção, uso e porte de armas proibidas, engenhos ou materiais explosivos ou capazes de produzir explosões nucleares, radioactivos ou próprios para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes, fora das condições legais ou em contrário das prescrições das autoridades competentes, serão punidos com prisão até 3 anos ou multa de 100 a 200 dias.
Artigo 275.º
Substâncias explosivas ou análogas e armas
1 - Quem importar, fabricar, guardar, comprar, vender, ceder ou adquirir a qualquer título, transportar, distribuir, detiver, usar ou trouxer consigo engenho ou substância explosiva ou capaz de produzir explosão nuclear, radioactiva ou própria para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - Se as condutas referidas no número anterior disserem respeito a armas proibidas, nestas se incluindo as que se destinam a projectar substâncias tóxicas, asfixiantes ou corrosivas, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3 - Quem detiver ou trouxer consigo mecanismo de propulsão, câmara, tambor ou cano de qualquer arma proibida, silenciador ou outro aparelho de fim análogo, mira telescópica ou munições, destinados a serem montados nessas armas ou por elas disparados, se desacompanhados destas, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.»
As disposições legais em confronto têm estrutura bem diferente. Pois o artigo 260.º tem um só corpo, com abrangência a armas, engenhos, matérias explosivas e análogas, enquanto o artigo 275.º é formado por três números, reservando-se o n.º 2 a armas proibidas, ampliando-se o tipo às que se destinam a projectar substâncias tóxicas, asfixiantes ou corrosivas e eliminando-se a expressão «detenção, uso e porte de armas proibidas», que figurava no artigo 260.º
II - Não há razões válidas para crer que o legislador tivesse querido contemplar na norma a detenção, uso e porte de armas de fogo permitidas não manifestadas nem registadas.
Sem remontarmos ao Código Penal de 1886, em cujo artigo 253.º se tipificava o crime de fabrico, importação, venda ou uso de quaisquer armas brancas ou de fogo, e deixando de lado as alterações que neste particular lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei 33015, de 15 de Outubro de 1945 (artigo 169.º do referido Código Penal), e ainda o Decreto-Lei 37313, de 21 de Fevereiro de 1949, que aprovou o regulamento respeitante ao fabrico, importação, comércio, detenção, manifesto, uso e porte de armas e suas munições, centremos a atenção das normas que reputamos de interesse, do Decreto-Lei 207-A/75, de 17 de Abril, que veio regular, em novos moldes, a posse e o uso de armas, munições e explosivos e estabelecer a respectiva incriminação quando ilegal, o qual viria a ser alterado pelos Decretos-Leis 651/75, de 19 de Novembro, 674-A/75, de 29 de Novembro, 328/76, de 6 de Maio e 462-A/75, de 9 de Junho:
«Artigo 1.º
1 - Consideram-se armas de defesa:
a) As pistolas até calibre 7,65 mm, inclusive, cujo cano não exceda 10 cm;
b) As pistolas até calibre 6,35 mm, cujo cano não exceda 8 cm;
c) Os revólveres de calibre não superior a 7,65 mm (0,32"), cujo cano não exceda 10 cm;
d) Os revólveres de calibre não superior a 9 mm (0,38"), cujo cano não exceda 5 cm.
2 - Apenas para as armas referidas nas alíneas b) e c) poderão, para fins de defesa, ser concedidas licenças de uso e porte aos maiores de 21 anos que se encontrem em pleno uso de todos os direitos de cidadania, e que mostrem carecer da mesma por razões profissionais ou por circunstâncias imperiosas de defesa nacional.
3 - Para as restantes armas de defesa poderá o Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública autorizar o seu uso e porte às entidades designadas na lei, quer a arma seja fornecida pelo Estado, quer seja propriedade do próprio.
4 - O uso e porte de arma por elemento das Forças Armadas e militarizadas será objecto de diploma especial.
Artigo 2.º
1 - É proibido o uso, porte ou simples detenção, por elementos estranhos às Forças Armadas ou militarizadas, de armamento que pelas suas características equipe ou possa ser usado como material de guerra próprio dessas forças.
2 - As armas classificadas como material de guerra, e em especial as automáticas que façam parte de colecções autorizadas, devem, depois de manifestadas e registadas, manter-se guardadas em condições de segurança que garantam a sua inviolabilidade, e em caso algum poderão ser mantidas munições para seu uso.
3 - As autorizações para colecções referidas no número anterior serão passadas pelo Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública, a requerimento discriminativo dos interessados.
Artigo 3.º
1 - É proibida, salvo nos casos previstos neste diploma, a detenção, uso e porte das seguintes armas, engenhos ou materiais explosivos:
a) Pistolas de calibre superior a 6,35 mm;
b) Revólveres de calibre superior a 7,65 mm (0,32");
c) Espingardas ou carabinas de cano estriado ou de alma estriada de calibre superior a 6 mm e de percussão circular;
d) Armas de fogo cujo cano haja sido cortado;
e) Espingardas ou carabinas de precisão, facilmente desmontáveis em peças ou mecanismos principais de reduzida dimensão, bem como estojos portáteis para seu transporte;
f) Armas brancas ou de fogo com disfarce ou ainda outros instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma letal de agressão, não justificando o portador a sua posse;
g) Granadas de mão ou outros artifícios explosivos ou incendiários providos de dispositivos de inflamação próprios;
h) Aparelhos ou instrumentos que possam servir para o emprego de substâncias químicas usadas na guerra.
2 - É igualmente proibida a detenção e uso de:
a) Substâncias, sólidas, líquidas, ou gasosas que sejam intoxicantes ou asfixiantes ou vesicantes e quaisquer outras empregadas na guerra;
b) Silenciadores de armas de fogo ou quaisquer outros aparelhos com fins análogos;
c) Munições próprias das armas referidas no número anterior.
Artigo 4.º
1 - São punidos com pena de prisão maior de dois a oito anos e multa de 10000$00 a 1000000$00 os autores, cúmplices ou encobridores dos crimes de importação, fabrico, guarda, compra, venda, cedência a qualquer título, transporte, detenção ou uso e porte de armas proibidas, engenhos ou matérias explosivas, designadamente as referidas no artigo anterior, ressalvado o disposto nos números seguintes.
2 - É punida com pena de prisão até um ano, não convertível em multa, a detenção de instrumento, ainda que com aplicação definida, com o fim de ser usado como arma de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim, não justificando o portador a sua posse.
3 - São punidos com pena de prisão até seis meses o simples porte ou detenção de armas brancas ou outros instrumentos sem aplicação definida que, embora susceptíveis de ser usados como arma de agressão, possam, pelo seu formato e dimensões, ser considerados de porte frequente, desde que o portador não justifique, no caso concreto, a respectiva posse.
4 - A detenção simultânea das armas e das munições respectivas, ou ainda de silenciadores, constitui circunstância agravante.
Artigo 5.º
1 - São punidos com pena de prisão de 3 meses a 2 anos e multa de 5000$00 a 100000$00 os autores, cúmplices ou encobridores dos crimes de:
a) Detenção, uso e porte de qualquer arma de fogo que, embora não proibida, não se encontre devidamente manifestada e registada;
b) Detenção de munições próprias de armas de guerra.
2 - A detenção simultânea das armas e respectivas munições constitui circunstância agravante.
3 - O material apreendido nestas condições será declarado perdido a favor do Estado.»
Examinando este decreto-lei, na parte transcrita, vê-se que faz uma dicotomia entre armas permitidas e armas proibidas (cf. seu artigo 1.º e artigos 2.º e 3.º, respectivamente).
O Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, no n.º 2 do seu artigo 6.º, revogou os artigos 4.º e 5.º daquele Decreto-Lei 207-A/75.
Assim, mantiveram-se em vigor os seus artigos 1.º, 2.º e 3.º, onde, como se viu, se distinguem as armas permitidas (seu artigo 1.º) das armas proibidas (seus artigos 2.º e 3.º), conceitos que não vieram a ser redefinidos pela legislação penal posterior, designadamente pelo artigo 4.º do Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, com excepção da ampliação do tipo em relação às armas proibidas no n.º 2 do artigo 275.º do Código Penal de 1995, como acima já foi dito.
Aquando da revisão do Código Penal, na discussão que a Comissão Revisora do Código Penal manteve em relação ao já referido artigo 275.º é ilustrado na acta 32, de 17 de Maio de 1990, que o Sr. Prof. Doutor Figueiredo Dias, presidente da Comissão, com a aquiescência dos demais membros, teceu considerações sobre o alcance das alterações propostas, referindo que a matéria se encontrava deficientemente regulada no artigo 260.º (da versão originária). E acrescentou que uma arma indocumentada (falta de manifesto, não registada) mas permitida deve receber uma protecção contra-ordenacional e não penal, só as armas proibidas devendo ser alvo de reacções criminais.
Ora, neste sentido, já vinha sendo orientada parte da jurisprudência, como se alcança dos votos de vencido dos Srs. Conselheiros que subscreveram o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989.
E está de acordo com a orientação do princípio da subsidiariedade do direito criminal, defendido pelas modernas correntes doutrinais, segundo a qual este ramo de direito deve apenas ser utilizado como ultima ratio da política criminal, destinado a punir as ofensas intoleráveis aos valores ou interesses fundamentais à convivência humana, não sendo lícito recorrer a ele para incriminar e sancionar infracções de não comprovada dignidade penal (cf. Prof. Doutor Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal - Parte General, vol. I, pp. 78 a 83, trad. Espanhola, ed. Bosch, e Gonçalo Quintero Olivares, in Introducción al Derecho Penal - Parte General, pp. 48 e 49, ed. Barcanova, Temas Universitários).
E tal princípio é defendido também pelo legislador português, que lhe faz referência, explicitando-o, no preâmbulo do Decreto-Lei 232/79, de 24 de Julho, que instituiu o ilícito de mera ordenação social, e, posteriormente, no Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, que o alterou.
E, na verdade, querer-se subsumir na mesma norma criminal e no mesmo tipo de ilícito o que traz consigo engenho ou substâncias explosivas, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, e o que traz consigo uma vulgar pistola de defesa (arma permitida) não registada nem manifestada seria desproporcionado, excessivo e inadequado, quando é evidente que este último ilícito pode ser tutelado suficientemente com outros instrumentos jurídicos não penais, à semelhança do que vem sucedendo a certas infracções nos domínios da economia, saúde, habitação, cultura e ambiente.
É que a desobediência a este tipo de «infracções» não se reveste da ressonância moral característica do direito penal e o ilícito é bem caracterizado como de mera ordenação social, já que se entra no domínio próprio da intervenção administrativa em matéria do controlo da posse de armas permitidas por particulares.
E, como bem observa o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto nas suas alegações, a necessidade social da punição da falta de registo de armas de fogo, mesmo permitidas por razões de segurança colectiva, através da protecção contra-ordenacional, fica suficientemente garantida.
Do que se acaba de expor resulta nítido que na redacção do artigo 275.º do Código Penal o legislador teve presente:
a) O princípio da subsidiariedade do direito criminal tal como acima foi referido [e que está implícito nas considerações feitas pelo Exmo. Presidente da Comissão Revisora do Código Penal, ao referir que uma arma indocumentada (falta de manifesto, não registada) mas permitida deve receber uma protecção contra-ordenacional e não penal - v. supra];
b) A distinção entre armas de fogo permitidas e armas de fogo proibidas de acordo com a distinção feita pelo Decreto-Lei 207-A/75, de 17 de Abril, e atrás já mencionada (conceitos que não vieram a ser redefinidos por legislação posterior, facto que era do conhecimento do legislador);
c) Que pretendia reacção criminal apenas para as armas de fogo proibidas (o que é expressamente referido pelo Exmo. Presidente da Comissão Revisora do Código Penal como acima se viu);
d) Que a norma a formular não devia ser idêntica à do artigo 260.º do Código Penal de 1982 (o que se extrai das considerações feitas pelo Exmo. Presidente da Comissão Revisora do Código Penal ao criticar o aludido artigo 260.º).
E do exame da norma em questão - artigo 275.º do Código Penal - vê-se, com segurança, que a intenção do legislador foi conseguida, atenta a redacção do referido preceito legal, ou seja, o legislador atingiu os seus objectivos.
Com efeito, tendo presente o já aludido preceito legal - artigo 275.º do Código Penal - e que já atrás tivemos ensejo de transcrever, do mesmo resulta:
O seu n.º 1 refere-se a engenhos ou substâncias explosivas ou capazes de produzir explosão nuclear, radioactivas ou próprias para fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes;
O seu n.º 2 refere-se a armas proibidas.
As armas proibidas a que este n.º 2 se reporta, além da ampliação feita do tipo, são as armas absolutamente proibidas referidas nos artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei 207-A/75, de 17 de Abril, e não também as permitidas ou relativamente proibidas (por se encontrarem fora das condições legais) constantes daquele decreto-lei. É que a remissão que o n.º 2 do preceito faz para o seu n.º 1 diz respeito tão-só às condutas aí especificadas. E a expressão utilizada na parte final do n.º 1 - «fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente» - está a referir-se aos engenhos e às substâncias.
E nunca a remissão que o n.º 2 do preceito faz para o n.º 1 a poderá abranger, sob pena de não ter qualquer sentido a reestrutura da norma que o legislador levou a cabo, face ao antigo artigo 260.º do Código Penal de 1982, que criticou, e de não ter sabido exprimir o sentido da mesma norma em termos adequados, o que é de afastar, face ao disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, que refere que na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados).
No sentido que se defende, v. o estudo do Sr. Procurador da República Dr. Carvalho de Sá, in Revista do Ministério Público, ano 17.º, n.º 65, pp. 127 e seguintes.
Assim, podemos já afirmar que o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989 caducou com a entrada em vigor do artigo 275.º do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, e esta norma deve ser interpretada com um sentido oposto à do citado assento, ou seja, nela não se incrimina a detenção, uso ou porte de uma pistola de calibre 6,35 mm não manifestada nem registada (neste sentido também Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado e Comentado, 9.ª ed., 1996, pp. 858 e 859).
Pois no seu n.º 2 apenas se englobam as armas proibidas constantes dos artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei 207-A/75, de 17 de Abril, e as provenientes do alargamento do tipo «as que se destinem a projectar substâncias tóxicas, asfixiantes ou corrosivas».
Esta posição é reforçada pelo facto de na proposta de lei 58/VII, do Governo, inserta no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 65, de 4 de Outubro de 1996, que visa criminalizar condutas susceptíveis de criar perigo para a vida e integridade física, decorrente do uso e porte de armas e substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos, no âmbito de realizações cívicas, políticas, religiosas, artísticas, culturais ou desportivas, constar expressamente na respectiva exposição de motivos a fl. 1532, quarto parágrafo, daquele «Diário».
«É certo que o uso e o porte de armas e substâncias explosivas ou análogas já são incriminados nos termos do artigo 275.º do Código Penal. Tal disposição, porém, apenas respeita a armas proibidas, excluindo nomeadamente pistolas e revólveres cujo calibre não exceda 6,35 mm e 7,65 mm, respectivamente.» (Sublinhamos.)
Vê-se que é o próprio «legislador» a reconhecer que, presentemente, se está perante um vazio legal nesta matéria, não podendo o juiz substituir-se à lei.
Pelo exposto, decide-se:
a) Estabelecer, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, a seguinte jurisprudência:
A detenção, uso ou porte de uma pistola de calibre 6,35 mm não manifestada nem registada não constitui o crime previsto e punível pelo artigo 275.º, n.º 2, do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, norma que fez caducar o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989;
b) Confirmar o acórdão recorrido.
Sem tributação. Publique-se.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 1997. - José Damião Mariano Pereira - Augusto Alves - Virgílio António da Fonseca Oliveira - Manuel António Lopes Rocha - Carlindo Rocha da Mota e Costa - Luís Flores Ribeiro - Norberto José Araújo de Brito Câmara - Emanuel Leonardo Dias [voto a decisão, abandonando a tese da vigência (actual) do assento de 5 de Abril de 1989, por conceder que, ao estruturar-se o artigo 275.º do Código Penal de 1995 de forma diversa, relativamente ao artigo 26.º do Código Penal de 1982, se quis traduzir o propósito legislativo de excluir, do âmbito da incriminação do n.º 2, as condutas a que se reporta o n.º 1, quando referentes a «armas de fogo permitidas indocumentadas». E só por isso, porquanto, contrariamente ao sustentado no acórdão, me parece evidente que as condutas (n.º 1) que relevam, para efeitos do n.º 2, não são, apenas, a importação, fabrico, guarda, compra e venda, cedência ou aquisição a qualquer título, transporte, distribuição, detenção, uso ou porte, sem mais nada, mas, sim, a importação, fabrico, etc., fora das condições legais ou em contrário a prescrições da autoridade competente. Por outro lado, não é menos evidente que o conceito de «armas proibidas» do n.º 2 do citado artigo 275.º abrange todas as armas proibidas e não apenas as armas de fogo proibidas] - João Henrique Martins Ramires - Florindo Pires Salpico (vencido. Entendo que o conteúdo do artigo 275.º do Código Penal revisto em 1995 continua a manter o alcance do preceito legal incriminador que constava do artigo 260.º do Código Penal de 1982) - Manuel de Andrade Saraiva (vencido. O assento de 5 de Abril de 1989 do Supremo Tribunal de Justiça não caducou com a entrada em vigor do artigo 275.º, n.º 2, do Código Penal de 1995, mantendo-se a jurisprudência obrigatória do mesmo; de acordo com ela, as armas permitidas não legalizadas integravam o crime do artigo 260.º do Código Penal de 1982 por serem relativamente proibidas, dado se encontrarem fora das condições legais; sucede que o n.º 2 do artigo 275.º do Código Penal de 1995, ao remeter para o n.º 1 do mesmo artigo, continua a considerar proibidas as armas permitidas fora das condições legais, pelo que não existe neste ponto e quanto às armas permitidas não legalizadas diferença de redacção entre os dois preceitos) - Joaquim Dias (vencido, por considerar que se encontra em vigor o assento de 5 de Abril de 1989, por serem apenas de forma as diferenças entre os artigos 260.º do Código Penal de 1982 e 275.º do Código Penal de 1995) - Lúcio Teixeira - José Nunes da Cruz - José Pereira Dias Girão - Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira - Sebastião Duarte Vasconcelos da Costa Pereira - Manuel Fernando Bessa Pacheco - Hugo Afonso dos Santos Lopes - António Abranches Martins - António de Sousa Guedes (vencido, conforme declaração de voto que junto).
Declaração de voto
Sendo, a meu ver, clara a identidade de textos, apenas com a diferença de que o do artigo 260.º do Código Penal de 1982 foi dividido em números no artigo 275.º do Código Penal de 1995, não existe motivo para julgar caduca a doutrina do assento de 5 de Abril de 1989, uma vez que - como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela no Código Civil Anotado, I, 53 - «os assentos só caducam quando forem revogados por um preceito legislativo posterior ou quando for modificada a legislação no âmbito da qual foram proferidos, salvo, nesta última hipótese, se a legislação anterior for substituída por outra que contenha textos idênticos, não havendo razões para excluir que o sentido dos novos textos seja igual ao dos antigos».
Mesmo que se ponha em causa o valor dos assentos, face à conhecida doutrina do Tribunal Constitucional, sempre o referido aresto de 5 de Abril de 1989 terá a eficácia referida no artigo 445.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que já vigorava no momento da sua prolação.
É conhecida a douta argumentação do procurador da República Dr. Domingos Silva Carvalho de Sá, no seu estudo publicado na Revista do Ministério Público, ano 17.º, Janeiro/Março de 1996, no sentido da descriminalização da detenção e uso de armas de fogo não registadas nem manifestadas.
Todavia, a meu ver (e conforme já expressei no meu voto no Acórdão de 9 de Maio de 1996, no recurso n.º 48690), não colhe o argumento que o mesmo ilustre magistrado pretende retirar da evolução legislativa posterior, designadamente da ratificação do Acordo de Schengen de 14 de Junho de 1985 (pois ficou ressalvada aos Estados a adopção de medidas mais rigorosas), ou da integração no direito interno da Directiva n.º 91/477/CEE (pois também aí os Estados podem adoptar medidas mais restritivas), ou do legislado no Decreto-Lei 399/83, de 3 de Dezembro, por isso que - podendo fazê-lo ao rever a legislação das armas - o legislador não revogou nesse diploma o artigo 36.º do Decreto-Lei 37313, apenas transformando em contra-ordenações todos os factos tipicamente descritos como transgressões no mesmo Decreto-Lei 37313, quando é certo que o referido artigo 36.º considera crime punível pelo artigo 169.º do Código Penal de 1886 a simples detenção de armamento não registado, e sendo certo ainda que tanto o artigo 260.º do Código Penal de 1982 como o artigo 275.º, n.º 2, do Código Penal de 1995 correspondem quase textualmente ao predito artigo 169.º, § único.
No mesmo sentido do que vem de ser exposto se pronunciou, em importante estudo publicado na Revista do Ministério Público («Alguns problemas sobre a neocriminalização no âmbito dos crimes de perigo comum e contra a segurança das comunicações na reforma penal de 1995»), o juiz de direito Dr. Paulo Sérgio Pinto de Albuquerque, o qual conclui que «a revisão do Código Penal de 1995 não veio alterar o regime resultante do Código Penal de 1982, uma vez que o conceito de arma proibida tem ainda a dimensão que lhe foi reconhecida pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1989, enquanto não for criado um regime contra-ordenacional próprio para as armas permitidas não licenciadas nem registadas».
Estou inteiramente com a argumentação e a conclusão deste magistrado e, por causa da brevidade, limitar-me-ei a dizer que tiraria acórdão uniformizador no sentido contrário ao que fez vencimento, isto é, de que se mantém em vigor, face à redacção do artigo 275.º do Código Penal de 1995, o assento de 5 de Abril de 1989, cuja doutrina é a que melhor assegura a protecção da comunidade. - António de Sousa Guedes.