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Acórdão 225/95, de 29 de Junho

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Sumário

DECIDE DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DA NORMA DO ARTIGO 50 DA LEI NUMERO 109/88, DE 26 DE SETEMBRO, NA REDACÇÃO ORIGINÁRIA E NA QUE LHE FOI DADA PELA LEI NUMERO 46/90, DE 22 DE AGOSTO - PRESSUPOSTOS DA SUSPENSÃO DE EFICÁCIA DE ACTOS ADMINISTRATIVOS QUE, NO ÂMBITO DA REFORMA AGRÁRIA, DETERMINEM A ENTREGA DE RESERVAS OU RECONHECAM NAO TER SIDO EXPROPRIADO OU NACIONALIZADO DETERMINADO PRÉDIO RUSTICO-, POR VIOLAÇÃO DO ARTIGO 13 DA CONSTITUICAO. DECIDE NAO TOMAR CONHECIMENTO DO PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS CONSTANTES DOS ARTIGOS 17-CONTITULARIDADE E HERANÇAS INDIVISAS-, 18 [RESSALVADA A ALÍNEA A)]-SOCIEDADES-, 28, NUMEROS 2 E 3,-DEMARCACAO DA RESERVA-, 30,-REVERSAO-, E 33-APLICACAO A RESERVAS JÁ DEMARCADAS-, DA LEI NUMERO 109/88, DE 26 DE SETEMBRO, NA SUA VERSÃO ORIGINÁRIA. DECIDE AINDA NAO DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS CONSTANTES DOS ARTIGOS 4-POLITICA AGRICOLA-, 11 (EM COMBINACAO COM O ARTIGO 15)-AMBITO DAS EXPROPRIACOES-, 12-PREDIOS NAO EXPROPRIAVEIS-, E 21-ACTOS INEFICAZES, 13-DIREITO DE RESERVA-, 14-CONTEUDO DO DIREITO DE RESERVA-, 15, CONSIDERADO AUTONOMAMENTE - PONTUAÇÃO DA RESERVA-, 18 ALÍNEA A)-SOCIEDADES-, 19-ALTERNATIVAS DOS RESERVATARIOS-, E 28, NUMERO 1-DEMARCACAO DA RESERVA-, DA VERSÃO ORIGINÁRIA DA MESMA LEI, BEM COMO DAS NORMAS CONSTANTES DOS ARTIGOS 14-A-DEVOLUCAO DE PRÉDIOS MERAMENTE OCUPADOS-, 17-CONTITULARIDADE E HERANÇAS INDIVISAS-, 18-SOCIEDADES-, 28-DEMARCACAO DA RESERVA-, 39-COMPETENCIA-, E 37-BENEFICIARIOS DA ENTREGA PARA EXPLORACAO-, DA REFERIDA LEI, COM A REDACÇÃO QUE LHE FOI DADA PELA LEI NUMERO 46/90, DE 22 DE AGOSTO. (PROC. NUMERO 406/88)

Texto do documento

Acórdão 225/95
Processo 406/88
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - Nos termos e ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição (na redacção anterior à resultante da Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho) e no n.º 1 do artigo 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, 27 deputados do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português requereram a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas da Lei 109/88, de 26 de Setembro (Lei de Bases da Reforma Agrária), indicadas no texto que seguidamente se transcreve, em que apresentam os fundamentos do seu pedido:

A Lei 109/88, de 26 de Setembro, visa abertamente reconstituir o latifúndio e a grande exploração capitalista, liquidando as unidades colectivas de produção e as cooperativas agrícolas de produção, invertendo por completo o conceito constitucional da reforma agrária tal qual decorre, designadamente, dos artigos 9.º, alínea d), 81.º, alínea h), 96.º, 97.º, 100.º e 102.º, n.º 1, da Constituição.

É esse o efeito da aplicação conjugada de múltiplos dispositivos inconstitucionais (em si mesmos ou na sua articulação), cuja declaração de inconstitucionalidade se requer.

São os seguintes:
a) A Lei 109/88, de 26 de Setembro, fixa objectivos da política agrícola (artigo 4.º) deliberadamente desconformes aos decorrentes do artigo 96.º da Constituição, omitindo, designadamente, as referências neste contidas à transformação das estruturas fundiárias, à transferência progressiva da posse útil da terra e dos meios de produção directamente utilizados na sua exploração para aqueles que a trabalham, ao objectivo de igualdade efectiva dos que trabalham na agricultura com os demais trabalhadores e à reforma agrária como instrumento fundamental para a realização dos objectivos da política agrícola;

b) Ao reduzir drasticamente a extensão da terra a entregar «a quem a trabalha» (cuja transferência progressiva é constitucionalmente obrigatória), quer diminuindo a área sujeita à expropriação (artigos 11.º - em combinação com o disposto no artigo 15.º -, 12.º e 21.º), quer consagrando e alargando a área susceptível de reserva (artigos 13.º, 14.º, 15.º e 19.º), quer multiplicando os titulares potenciais de reservas e os mecanismos da sua concessão (artigos 17.º, 18.º e 33.º), a Lei 109/88, nas normas citadas, viola o disposto no artigos 96.º, n.os 1, alínea a), e 2, e 97.º da Constituição da República;

c) Ao permitir (artigo 30.º) a reversão de prédios rústicos nacionalizados que hajam permanecido na posse material e exploração de facto dos anteriores titulares ou na dos respectivos herdeiros (ou regressado à sua posse antes de 24 de Fevereiro de 1988, independentemente do acto administrativo com esse objectivo), a Lei 109/88 viola, ademais, o artigo 83.º da Constituição;

d) Ao facultarem a criação irrestrita de unidades de exploração agrícola privadas, as disposições enumeradas na alínea b) do presente requerimento conduzem à violação do disposto no artigo 99.º, n.º 2, da Constituição da República;

e) Ao estabelecer um regime excepcional de suspensão de eficácia de actos administrativos que no âmbito da reforma agrária determinem a entrega de reservas ou reconheçam não ter sido expropriado ou nacionalizado determinado prédio rústico, o artigo 50.º da Lei 109/88 estabelece para os destinatários constitucionais da reforma agrária regras excludentes, restritivas e discriminatórias que ofendem o disposto nos artigos 13.º, 20.º, n.º 2, e 268.º, n.º 3, da Constituição;

f) Ao fixar um regime de demarcação de reservas (artigo 28.º) que exclui a audiência das UCP/cooperativas e permite a respectiva «realização» por edital, institui um regime sem formalidades essenciais relevantes, subterfúgio tendente a inviabilizar o exercício do direito constitucional ao recurso contencioso previsto no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição, cujo conteúdo essencial é atingido (com ofensa do disposto no artigo 18.º, n.os 2 e 3, aplicável ex vi do artigo 17.º) e ferindo discriminatoriamente as UCP/cooperativas, cuja legitimidade activa no recurso contencioso é eliminada (com ofensa do disposto nos artigos 13.º, 20.º, n.º 2, e 268.º, n.º 3, da Constituição).

Notificado para se pronunciar, querendo, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos relativamente ao presente pedido.

2 - O processo originado pelo pedido acabado de descrever dos deputados subscritores, e que na continuação do presente acórdão passará a ser designado, para comodidade de exposição, por pedido A, veio a incorporar mais três pedidos, por determinação tomada nos termos do artigo 64.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro), visto que nesses pedidos se requer a declaração de inconstitucionalidade de normas com sentido preceptivo idêntico.

Cada um desses pedidos vai ser seguidamente identificado, pela ordem cronológica da sua apresentação, com as designações de pedido B, pedido C e pedido D.

3 - Assim, o pedido B foi formulado por 25 deputados também do Grupo Parlamentar do Partido Comunista, mas incidindo sobre as normas da lei citada na redacção resultante da Lei 46/90, de 22 de Agosto, epigrafada como «Alteração à Lei 108/88, de 26 de Setembro (Lei de Bases da Reforma Agrária)». Transcreve-se seguidamente o teor desse pedido:

1 - A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 97.º, prevê expressamente a eliminação dos latifúndios, determinando, no seu n.º 2, que «as terras expropriadas serão entregues a título de propriedade ou de posse, nos termos da lei, a pequenos agricultores, de preferência integrados em unidades de exploração familiar, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores, ou a outras formas de exploração por trabalhadores», sendo que «eliminar os latifúndios» constitui igualmente uma incumbência prioritária do Estado [artigo 81.º, alínea h)].

Ora, o objectivo que orienta toda a Lei 46/90, de 22 de Agosto, que veio dar uma nova redacção à Lei 109/88, de 26 de Setembro, corresponde exactamente ao inverso dos objectivos expressos nos comandos constitucionais citados, assim como viola o princípio da igualdade e do acesso ao direito e à justiça tal inversão do sentido constitucional é particularmente patente nas seguintes normas:

a) O artigo 17.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, com as alterações aprovadas pela Lei 46/90, de 22 de Agosto, elimina o seu n.º 5, deixando de sofrer de nulidade os actos jurídicos que conduzam à reunificação das reservas atribuídas aos contitulares ou herdeiros de reservas indivisas.

Ora, seja através do mecanismo da multiplicação e junção de reservas que o artigo 17.º permite, seja através da possibilidade de os vários herdeiros concorreram a reservas separadas que num e noutro caso passam a poder ser reunificadas, tal significa que a aplicação destes mecanismos conduz inexoravelmente à (re)constituição de latifúndios, violando os citados artigos 81.º, alínea h), e 97.º da Constituição da República Portuguesa;

b) No artigo 18.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, com a redacção definida na Lei 46/90, passa a referir-se a «uma reserva múltipla equivalente à soma de várias reservas», eliminando-se também a alínea e) do artigo 18.º da anterior redacção que feria igualmente de nulidade os actos administrativos que conduzissem à reunificação das reservas atribuídas às sociedades, violando-se também aqui os artigos 81.º, alínea h), e 97.º da Constituição da República Portuguesa.

No contexto concreto da zona de intervenção da reforma agrária constante do Decreto-Lei 236-B/76, de 5 de Abril, as vias abertas pela nova redacção dos artigos 17.º e 18.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, conduzem à restauração do latifúndio tal como historicamente existiu e como, na prática, tem estado a suceder;

c) As alterações definidas pela Lei 46/90, de 22 de Agosto, para o artigo 17.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, esvaziam de conteúdo o limite aparente de 91000 pontos previstos no artigo 15.º, pelo que também aqui aquela norma - até pela aplicação conjugada dos vários dispositivos da lei (artigos 11.º, em combinação com o disposto nos artigos 15.º, 12.º e 21.º, 13.º, 14.º, 15.º e 19.º, 17.º, 18.º e 33.º) - viola ainda a alínea n) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa, que determina que a lei deve fixar os «limites máximos e mínimos das unidades de exploração agrícola privadas»;

d) No que se refere ao artigo 14.º-A, aditado à Lei 109/88, de 26 de Setembro, invade-se a competência dos tribunais negando-se-lhes a possibilidade de se pronunciarem, em cada caso concreto, sobre os direitos de propriedade dos prédios ocupados.

Esta norma atribui à Administração competências que são indubitavelmente da função judicial, contrariando os artigos 205.º e 206.º da Constituição;

e) Quanto ao direito de recurso contencioso, a nova redacção do artigo 50.º agrava ainda mais a excepcionalidade do regime de suspensão de eficácia dos actos administrativos tendentes à atribuição ou devolução de terras. Tal excepcionalidade apenas significa o tratamento discriminatório dos trabalhadores agrícolas da reforma agrária com posse e gestão da terra.

O privilégio do carácter prioritário e de grave urgência para a realização do interesse público (artigo 142.º, n.º 2, da Lei 109/88), articulado como privilégio de um regime excepcional quanto ao recurso e suspensão dos actos administrativos (artigo 50.º), é um regime jurídico de privilégio jurídico, que é agora acentuado pela nova redacção do artigo 50.º

Aliás, a redacção anterior do artigo 50.º da Lei 109/88 é já hoje tida como inconstitucional pela maioria da doutrina e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, como se pode ver, por exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de Abril de 1989, da 1.ª Secção do Contencioso Administrativo.

Por isso, ao restringir o direito dos interessados ao recurso contencioso e ao estabelecer um regime excepcional de suspensão de eficácia de actos administrativos que tenham como efeito principal ou subordinado a atribuição ou devolução de terras, o artigo 50.º da Lei 109/88, com a nova redacção dada pela Lei 46/90, de 22 de Agosto, viola os artigos 13.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa;

f) Ao privilegiar, no n.º 2 do artigo 37.º da Lei 109/88, com a redacção dada pela Lei 46/90, uns determinados beneficiários na entrega de prédios expropriados ou nacionalizados em detrimento de outros igualmente previstos na Constituição, a nova redacção definida para o artigo 37.º da Lei 109/88 viola claramente o princípio da igualdade definido no artigo 13.º da Constituição e o disposto no n.º 2 do artigo 97.º da Constituição da República Portuguesa;

g) Por fim, ao retirar, na nova redacção dos artigos 28.º e 39.º, a obrigatoriedade da audiência dos trabalhadores permanentes e efectivos em serviço nos prédios expropriados ou nacionalizados nos processos de demarcação de reserva e de entrega de terras para exploração a Lei 109/88 (com a redacção da Lei 46/90), viola o artigo 101.º e o n.º 3 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa.

Por tudo o que se refere, os deputados abaixo assinados requerem ao Tribunal Constitucional a redeclaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 14.º-A, 17.º, 18.º, 28.º, 37.º, 39.º e 50.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro (Lei de Bases da Reforma Agrária), com a redacção dada pela Lei 46/90, de 22 de Agosto.

O Presidente da Assembleia da República, na sua resposta, ofereceu o merecimento dos autos e juntou os números do Diário da Assembleia da República relativos à discussão e aprovação das Leis n.os 109/88 e 46/90.

4 - O terceiro pedido, pedido C, foi introduzido por requerimento do procurador-geral-adjunto em exercício neste Tribunal como representante do Ministério Público, ao abrigo dos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei 28/82.

Tem por objecto a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 50.º, n.º 1, da Lei 109/88, de 26 de Setembro. Fundamenta-se no facto de tal norma já ter sido julgada inconstitucional, por violação do disposto no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição, pelo Acórdão 366/92, que confirmou o Acórdão 43/92, ambos publicados no Diário da República, 2.ª série, n.º 45, de 23 de Fevereiro de 1993, pelo Acórdão 205/93, que confirmou o Acórdão 450/91, e pelo Acórdão 206/93, que confirmou o Acórdão 452/91, todos inéditos à data de 15 de Março de 1993, em que foi formulado o pedido.

5 - Finalmente, o pedido D consta de requerimento apresentado pelo Procurador-Geral da República, no uso da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 281.º, n.os 1, alínea a), e 2, alínea e), da Constituição, e visa a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 50.º da Lei 109/88, mas desta vez na redacção que lhe foi dada pela Lei 46/90.

O pedido invoca a fundamentação contida nos Acórdãos n.os 450/91, 452/91 (inéditos à data da apresentação) e 43/92, citados, para sustentar que a redacção que veio a ser dada ao artigo 50.º da Lei 109/88 continua a recusar aos detentores da posse útil das terras, objecto dos actos administrativos referidos nessa norma, o direito de requererem a suspensão da eficácia desses actos quando contenciosamente impugnados.

Para a nova solução legislativa valerão, segundo a entidade requerente, os mesmos argumentos que conduziram os acórdãos do Tribunal Constitucional que citou a considerarem a originária redacção do mesmo preceito violadora do princípio constitucional da igualdade. Esta circunstância, no entendimento do Procurador-Geral da República, torna dispensável uma sua tomada de posição sobre se, no caso, também concorre a violação das garantias constitucionais de acesso aos tribunais e de recurso contencioso.

Na sua resposta a estes dois últimos pedidos, o Presidente da Assembleia da República não ofereceu outros elementos para além dos já constantes do processo.

Feita a súmula dos diversos pedidos formulados, importa analisar as questões que os mesmos suscitam.

II - Fundamentação
a) Questões prévias
6 - Tendo em especial consideração a especificação contida no final do pedido B e o teor do pedido A, temos o seguinte quadro de normas, cuja declaração de inconstitucionalidade é requerida:

Quanto à versão originária da Lei 109/88, as normas constantes dos artigos 4.º, 11.º - em combinação com o disposto no artigo 15.º -, 12.º e 21.º, 13.º, 14.º, 15.º e 19.º, 17.º, 18.º e 33.º, 30.º, 50.º e, finalmente, 28.º;

Quanto à versão posterior resultante das alterações introduzidas pela Lei 46/90, as normas constantes dos artigos 14.º-A, 17.º, 18.º, 28.º, 37.º, 39.º e 50.º

A comparação entre os dois enunciados permite verificar como, relativamente aos artigos 17.º, 18.º, 28.º e 50.º, é solicitado este Tribunal a apreciar normas que vieram integral ou parcialmente substituir as correspondentes da redacção originária, as quais, obviamente, já não estão em vigor.

Por sua vez, verifica-se ainda, quanto às normas abrangidas pelo primeiro pedido e cuja apreciação não foi requerida no segundo, que a redacção em vigor difere da originária, em resultado das alterações introduzidas pela Lei 46/90, no que respeita aos artigos 15.º, 30.º e 33.º

O Tribunal não pode deixar de previamente ponderar as implicações desta sucessão de normas, da sobreposição de pedidos, e, igualmente, da sucessão de parâmetros constitucionais à luz dos quais deverá proceder na sua tarefa de apreciação da constitucionalidade. Quanto a este último ponto, há desde já que lembrar que no período de tempo que mediou entre as duas leis entrou em vigor a Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho.

6.1 - Em matéria de apreciação de normas revogadas, o Tribunal vem mantendo a orientação de que a regra segundo a qual a revogação não constitui, só por si, obstáculo à declaração de inconstitucionalidade da norma revogada cede naqueles casos em que se não vislumbre interesse jurídico relevante nessa declaração. Tal situação ocorre quando, em aplicação do disposto no n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, considerações de segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional relevo justificarem a limitação dos efeitos da inconstitucionalidade, de forma que fiquem salvaguardados os efeitos produzidos pela norma antes da sua revogação. Trata-se de uma mera operação de prognose, que não pressupõe um conhecimento prévio da conformidade à Constituição das normas questionadas: meramente se antecipam os efeitos que poderiam resultar da declaração de inconstitucionalidade para os ponderar, dentro dos parâmetros consentidos pelo n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, à luz dos efeitos já entretanto operados pela revogação a que o legislador procedeu (cf., na jurisprudência mais recente, os Acórdãos n.os 186/89, in Diário da República, 2.ª série, de 14 de Maio de 1994, e 308/93, in Diário da República, 2.ª série, de 22 de Julho de 1993).

Não se encontram razões para divergir desta orientação, sublinhando-se agora que tal doutrina vale também para o caso em que uma norma passe a ter nova redacção materialmente inovadora, sendo assim substancialmente outra norma. Mas essa doutrina já não vale para o caso em que uma norma, apesar de modificada na sua redacção, mantém inalterado o seu respectivo conteúdo preceptivo, ou seja, para o caso em que a norma questionada continua a ser substancialmente a mesma (v., neste sentido e por último, o Acórdão 57/95, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Abril de 1995).

Nos presentes autos não oferecem especialidades relevantes quanto à referida orientação jurisprudencial os casos dos artigos 17.º, 18.º, 28.º, 30.º e 33.º

6.1.1 - Quanto aos artigos 17.º, 18.º e 28.º, não se verifica a subsistência de um interesse jurídico relevante no conhecimento da conformidade à Constituição da respectiva formulação originária. Convém ter presente e confrontar ambas as redacções:

(ver documento original)
Referem-se estes artigos à atribuição de reservas quando estas respeitem a prédios expropriados englobados em heranças indivisas ou apropriados em contitularidade (artigo 17.º) ou a prédios expropriados pertencentes ao património de sociedades (artigo 18.º) e às diligências necessárias a fazer por quem tem a competência para proceder à aprovação da demarcação das respectivas reservas (artigo 28.º). Ora, independentemente de considerações baseadas na tutela da segurança jurídica poderem aconselhar a salvaguarda dos efeitos produzidos pelas normas revogadas, certo é que, por força do artigo 33.º da lei, na sua nova redacção (transcrito infra), situações existentes à data da entrada em vigor desta puderam e continuam a poder ser apreciadas pela primeira vez ou reapreciadas à luz da disciplina mais recente. Nestas condições, uma declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal, ainda que revestida da plenitude dos efeitos previstos no n.º 1 do artigo 282.º da Constituição, teria perdido de imediato relevância prática porque às situações contempladas por essa declaração logo se tornaria aplicável a disposição legal correspondente na sua formulação posterior.

A eliminação da cominação de nulidade que deixou de impender sobre os actos jurídicos que tiverem conduzido à reunificação das reservas atribuídas nos termos dos artigos 17.º e 18.º, resultante da supressão do n.º 5 do artigo 17.º e da alínea e) do artigo 18.º da versão originária, insere-se na mesma linha de raciocínio, não sendo necessário sequer averiguar agora em que medida os deputados subscritores do pedido A também terão querido efectivamente questionar a constitucionalidade das disposições acabadas de referir.

Na verdade, por abertura ou reabertura de processos de atribuição de reservas nos termos previstos no novo artigo 33.º, toda a situação de possível reunificação de reservas, qualificável como nula por aplicação do direito revogado, é susceptível de caber no campo de aplicação das normas de direito novo, com prejuízo dos efeitos e, consequentemente, da relevância prática de uma eventual declaração de inconstitucionalidade.

Nesta conformidade, os artigos 17.º, 18.º e 28.º, n.os 2 e 3, serão objecto de apreciação em satisfação do pedido B, ou seja, na parte em que a redacção vigente os alterou, não se tomando conhecimento, aí, do pedido A. Ressalva-se a alínea a) do artigo 18.º na sua versão originária, que corresponde à alínea a) do n.º 1 desse artigo na vigente redacção, e bem assim o n.º 1 do artigo 28.º, que manteve a redacção inicial, ainda que os requerentes não tenham suscitado qualquer questão de constitucionalidade relativamente à competência nele fixada.

6.1.2 - No pedido A vem também questionada a constitucionalidade dos artigos 30.º e 33.º, normas estas que não são objecto do pedido B. Esta circunstância, refira-se desde já, impede que se proceda à apreciação da constitucionalidade das duas normas na sua redacção vigente: a tal se opõe o princípio do pedido.

O confronto destes artigos nas suas duas versões, que seguidamente se transcrevem, mostra que a Lei 46/90 revogou, na íntegra, os artigos correspondentes na versão originária.

Os textos respectivos são os seguintes:
(ver documento original)
Nos dois casos a revogação implicou alterações substanciais do conteúdo preceptivo das normas.

Quanto ao artigo 30.º, não só é relevante a previsão de mais um fundamento de reversão, agora referido na nova alínea c) do n.º 1, e o diferimento para 1 de Janeiro de 1990 do regresso à posse material e exploração de facto, prevista na alínea b) do n.º 1. Também relevante, na linha de considerações seguida até aqui, é o acrescentamento do n.º 2, que comete aos serviços desconcentrados a apreciação da prova produzida e que vai reflectir-se sobre as situações tipificadas nas três alíneas do número anterior, que dão lugar à possibilidade de reversão. Por esta forma, e ainda que a alínea a) não sofra alterações na sua letra, é modificado o artigo na sua globalidade em termos que levam a qualificá-lo como norma nova.

Mais clara é a solução a dar quanto ao artigo 33.º, cujos n.os 2 e 3 são aditados na versão de 1990. Basta o regime contido nestes dois novos números sobre a iniciativa de abertura ou de reabertura de um processo de atribuição de reservas e a previsão da sua aplicação também a casos de reversão para que se possa afirmar que estamos globalmente perante norma materialmente nova, com repercussões nas esferas jurídicas de potenciais interessados que anteriormente não se encontravam previstas.

Dado que no pedido B não vem requerida a declaração de inconstitucionalidade da nova redacção dos artigos 30.º e 33.º, o raciocínio que acabou de se seguir quanto aos artigos 17.º e 18.º aplica-se aqui por inteiro.

É que as situações existentes à data da entrada em vigor da Lei 46/90, de 22 de Agosto, poderão ser reapreciadas, dado o disposto no artigo 33.º, na sua nova redacção, à luz da disciplina mais recente. Não faria sentido, na verdade, com o que se repete argumentação já aduzida a propósito dos artigos 17.º, 18.º e 28.º (supra n.º 6.1.1), pronunciar-se o Tribunal em termos de a declaração de inconstitucionalidade que proferisse quanto à versão originária destas duas normas se visse imediatamente desprovida de qualquer relevância prática, pois as situações nelas contempladas entrariam de pronto a fazer parte do âmbito de aplicação de um regime novo, sobre o qual o princípio do pedido vem impedir uma pronúncia do Tribunal.

Assim sendo, o Tribunal não conhecerá, por falta de interesse jurídico relevante, do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, formulado no pedido A quanto aos artigos 30.º e 33.º da Lei 106/88 (versão originária).

6.1.3 - No pedido A, e já não no pedido B, é pedida a declaração de inconstitucionalidade do artigo 15.º

Trata-se de um preceito que, com a Lei 46/90, apenas foi alterado no seu n.º 1, conforme se pode verificar pela transcrição a que agora se procede:

(ver documento original)
Não está em causa a posição a tomar quanto aos n.os 2, 3, 4 e 5 do artigo. Não tendo sido alterados, deles deverá conhecer o Tribunal.

Já quanto ao n.º 1 se põe a questão de apurar se se tratou aí de uma alteração substancial aquela que foi introduzida. O simples confronto das duas redacções permite concluir que se procedeu à alteração, por aditamento, das remissões contidas nesse número. Sucede contudo que já na versão originária o artigo 18.º, para o qual não era feita remissão, constituía, por conter regime especial, um fundamento de derrogação do regime regra contido na primeira parte da norma, segundo o qual o direito de reserva é equivalente a 91000 pontos. O aditamento da referência a esse artigo 18.º (na redacção da Lei 46/90) não teve, a título algum, efeito constitutivo e ter-se-á devido a razões de pura técnica legislativa.

Por este motivo, a alteração introduzida não poderá considerar-se como conduzindo a uma nova norma. Deverá portanto conhecer-se do artigo 15.º, assim se satisfazendo, nessa parte, o pedido A.

Advirta-se que, na parte em que explicita uma ressalva, que de qualquer modo se teria de entender implícita, o n.º 1 do artigo 15.º não tem valor substancial próprio. Por esse motivo, a posição a tomar está dependente daquela que foi tomada quanto ao regime, esse substantivo, dos artigos 17.º e 18.º, para os quais o legislador remete. Ora, nessa sede já se concluiu que os artigos 17.º e 18.º seriam apreciados não na sua versão originária mas apenas na versão em vigor - com a ressalva da alínea a) do artigo 18.º Assim sendo, a segunda parte do n.º 1 do artigo 15.º só será objecto de apreciação na parte em que remete para a alínea a) do agora n.º 1 do artigo 18.º e, muito naturalmente, só a propósito de e no local em que se proceder à apreciação desta última norma.

6.1.4 - Em sede de questão prévia resta tomar posição sobre o artigo 50.º, que em cada uma das suas versões é objecto de pedidos de declaração de inconstitucionalidade. Assim, nos pedidos A e C requer-se a apreciação da constitucionalidade da norma na sua versão originária e nos pedidos B e D na sua redacção em vigor.

Que em 1990 foram introduzidas modificações de tomo no preceito resulta da simples leitura das respectivas redacções, que se passam a transcrever:

(ver documento original)
Novamente se coloca a questão do interesse jurídico relevante no conhecimento do pedido na parte em que estão questionadas normas revogadas. Mas no contexto destas duas disposições há que ter em conta a particularidade resultante da possibilidade de existirem processos de recurso contencioso em que tenha sido requerida a suspensão da eficácia de actos administrativos que determinaram a entrega de reservas ou reconheceram não ter sido expropriado ou nacionalizado determinado prédio rústico, com aplicação do artigo 50.º na sua versão originária, sobre os quais não se tenha ainda formado caso julgado nessa parte, por ser admissível que estejam pendentes recursos para o pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, interpostos com fundamento em oposição de julgados.

Com efeito, naquele Tribunal verificou-se uma divisão de jurisprudência, tendo sido proferidas várias decisões em que se concluiu no sentido da plena constitucionalidade do referido artigo 50.º da Lei 106/88, na sua versão originária (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27 de Julho de 1989, tirados nos recursos n.os 27178-S, 27179-S e 27198-A, todos publicados no apêndice ao Diário da República, de 18 de Novembro de 1994, pp. 4993 a 5009; Acórdão de 20 de Abril de 1989, tirado no recurso n.º 26951, publicado in Acórdãos Doutrinais, ano XXIX, n.º 339, p. 336), não deixando de se reconhecer que a corrente maioritária naquele Tribunal era no sentido da inconstitucionalidade, sendo, por isso, provável que tenham sido interpostos recursos nos termos da alínea b) do artigo 24.º do Decreto-Lei 129/84, de 27 de Abril - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Nesta medida, torna-se necessário entrar aqui em linha de conta com outros interesses, também já definidos em anterior decisão deste Tribunal e que podem levar a uma posição diferente da que já foi várias vezes referida quanto à inexistência de interesse jurídico relevante na apreciação da conformidade constitucional de normas entretanto revogadas.

Na verdade, a estatuição constante do artigo 50.º da Lei 109/88 diverge do regime geral sobretudo na parte em que define os pressupostos de legitimidade para interposição, em sede de processo administrativo contencioso, do pedido de suspensão de eficácia de determinados actos administrativos.

Sendo uma norma de natureza processual, qualquer vicissitude que a afecte é sempre de aplicação imediata no processo, mas não de aplicação retroactiva. Em casos como o presente, para a ponderação de efeitos em que se fundamenta a orientação do Tribunal, que toma por base a prognose das consequências retroactivas da declaração de inconstitucionalidade, não estão reunidos, pelo menos de forma directa, todos os pressupostos de aplicação. Pode bem dizer-se que os actos jurisdicionais sob recurso, tanto os praticados ao abrigo da redacção originária como os praticados ao abrigo da redacção posterior, estão colocados no mesmo plano temporal, dentro dos termos gerais de aplicação no tempo da lei de processo, bem como por referência ao regime geral do pedido de suspensão da eficácia dos actos administrativos (artigos 76.º e seguintes do Decreto-Lei 267/85, de 16 de Julho - Lei de Processo nos Tribunais Administrativos).

Nesta conformidade, não havendo aqui que ressalvar quaisquer efeitos, deve o Tribunal conhecer da questão da constitucionalidade do artigo 50.º, tanto na sua versão em vigor como na sua versão originária, no que verdadeiramente não está a modificar a sua jurisprudência, pois foi com base em considerações de ordem de alguma forma análoga que procedeu no Acórdão 91/85 (Diário da República, 2.ª série, de 18 de Julho de 1985, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., pp. 277 e seguintes).

Deve, assim, o Tribunal conhecer do artigo 50.º, tanto na sua versão em vigor como na sua versão origininária.

6.2 - As normas cuja conformidade constitucional vem questionada e constantes dos diversos pedidos podem contender com duas versões da Constituição - a de 1982 e a de 1989. Importa, assim, estabelecer qual deve ser o parâmetro de aferição da constitucionalidade de tais normas.

Trata-se, no caso, de contrastar a legitimidade constitucional do conteúdo das normas jurídicas, ou seja, da respectiva constitucionalidade material em que se procura averiguar se as estatuições contidas na norma ordinária respeitam o preceituado na Constituição.

Ao contrário do que acontece quando se trata da inconstitucionalidade orgânica e formal, em que está em causa a regularidade de formação da lei, pelo que relevantes só podem ser as normas constitucionais vigentes ao tempo da emissão da norma, nesta sede, a norma constitucional relevante para aferir a legitimidade constitucional é a que estiver em vigor no momento em que se procede ao controlo.

Não desconhecendo a existência, na doutrina, de posições divergentes (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, p. 244), o certo é que este Tribunal afirmou já - embora em processo de fiscalização concreta de constitucionalidade - que, «quando esteja em causa a inconstitucionalidade material, o parâmetro constitucional a ter em conta é o texto constitucional vigente no momento da aplicação da norma que é questionada» (cf. Acórdão 408/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., p. 1147). Também Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., p. 487, e Fundamentos da Constituição, pp. 272 e seguintes) defendem idêntica posição, a qual decorre também com nitidez do Acórdão deste Tribunal n.º 444/93, de 14 de Julho de 1993, in Diário da República, 2.ª série, de 19 de Outubro de 1993.

A constitucionalidade das normas questionadas nos presentes autos irá, assim, ser apreciada face à versão actual da Constituição, sem prejuízo de, para melhor enquadramento das questões resultantes desta apreciação, se poderem fazer considerações introdutórias sobre o relacionamento de tais normas com a versão de 1982 da lei fundamental.

6.3 - Na sequência do que acabou de se mencionar e não havendo outras questões a tratar previamente, importa, antes de mais, fazer uma súmula das normas relativamente às quais se tem de conhecer da respectiva conformidade à lei fundamental relativamente a cada um dos pedidos formulados e cumulados nos presentes autos.

Assim, as normas que irão ser objecto de apreciação são as seguintes, relativamente a cada um dos pedidos:

Com referência ao pedido A, o Tribunal apreciará a constitucionalidade das normas da versão originária da Lei 109/88 constantes dos artigos 4.º, 11.º (em combinação com o disposto no 15.º), 12.º e 21.º, 13.º, 14.º, 15.º (nos termos que ficam esclarecidos supra, n.º 6.1.3) e 19.º, 18.º, n.º 1, alínea a), 28º, n.º 1, e 50.º (também incluído no pedido C);

Com referência aos pedidos B e D, o Tribunal apreciará a constitucionalidade das normas da Lei 108/88, na versão que lhes foi dada pela Lei 46/90, constantes dos artigos 14.º-A, 17.º, 18.º (na parte alterada em 1990), 37.º, 28.º, n.os 2 e 3, e 39.º e 50.º

Para facilidade da exposição, a norma do artigo 50.º, na sua versão originária e na da Lei 46/90, será tratada a final e seguidamente, em vez de separadamente com referência a cada pedido, como é o caso das restantes normas.

Também para de algum modo facilitar o entendimento das soluções que se propõem, far-se-á uma introdução à apreciação do respectivo mérito, por forma a fazer ressaltar a evolução constitucional da reforma agrária ao longo das diferentes versões da lei fundamental.

B) Questões de mérito
7 - A evolução da Constituição no que se refere à reforma agrária.
Para uma integral compreensão dos pedidos formulados (pedidos A e B), interessa considerar a evolução que o tema da reforma agrária foi sofrendo através das revisões constitucionais.

Em ambos os pedidos censura-se à lei o ter procedido à inversão dos objectivos fixados nas normas constitucionais que num e noutro caso deveriam ter sido observadas. E refere-se, no primeiro pedido, que a lei visa «abertamente reconstituir o lafifúndio e a grande exploração capitalista [...], invertendo por completo o conceito constitucional da reforma agrária», tal como, também no segundo pedido, é referido que o objectivo que orienta toda a Lei 46/90 corresponde, exactamente, ao inverso do objectivo constitucional da eliminação dos latifúndios.

Uma sucinta referência à evolução dos preceitos constitucionais neste domínio facilitará certamente um melhor enquadramento da problemática que virá a ser suscitada pela análise de cada uma das normas legais cuja apreciação é solicitada ao Tribunal.

A despeito de na primeira revisão constitucional não terem sido especialmente marcantes as alterações introduzidas na parte II da Constituição, «Organização económica», já aí a reforma agrária passou a inserir-se no âmbito da política agrícola, da qual passou a ser um dos instrumentos fundamentais da realização dos objectivos correspondentes (cf. o n.º 2 do artigo 96.º da Constituição, na versão de 1982). Deixou então de ser encarada como um dos instrumentos fundamentais para a construção da sociedade socialista (cf. proémio do artigo 96.º da versão originária), sendo que a disposição sobre a eliminação dos latifúndios (artigo 97.º) não sofreu então qualquer alteração.

São muito mais sensíveis e significativas as alterações introduzidas com a revisão de 1989, com a qual é suprimida a própria referência à reforma agrária, no sentido que à expressão poderia caber de expropriação de solos e transferência de domínio. Neste contexto, a eliminação dos latifúndios, que continua a ser prevista na alínea h) do artigo 81.º, que enuncia as incumbências prioritárias do Estado na área económica, assume um significado algo diverso.

A eliminação dos latifúncios, por um lado, deixa de ser um limite material expresso das leis de revisão constitucional com a nova redacção dada à alínea f) do actual artigo 288.º Mas se já com a revisão de 1982 a expropriação de latifundiários e de grandes proprietários deixou de poder ter lugar sem direito a qualquer indemnização (artigo 82.º, n.º 2, da versão originária, que foi eliminado), em 1989 passou a consagrar-se expressamente o direito de reserva (artigo 97.º, n.º 1) e a prever-se a entrega das terras expropriadas também a título de propriedade [artigos 96.º, n.º 1, alínea b), e 97.º, n.º 2], com o que deixou de se mencionar a mera transferência da posse útil da terra e dos meios de produção. Ao mesmo tempo, e em matéria propriamente de latifúndios, era introduzida uma formulação que, sem fornecer critérios para a densificação do conceito de latifúndio, pelo menos relaciona a respectiva dimensão com os objectivos que a cada momento tiverem sido definidos - pelo legislador - para a política agrícola (artigo 97.º, n.º 1).

Hoje, num contexto de coexistência dos diversos sectores de propriedade dos meios de produção e em que a nenhum deles é assinalada uma tendencial predominância, ou sequer especial desenvolvimento, a Lei de Bases da Reforma Agrária, da qual está agora em apreciação uma série de normas, não pode porém dizer-se que se insira num quadro constitucionalmente neutro e totalmente entregue à liberdade de iniciativa privada e ao jogo das leis do mercado. Ao Estado continuam a impor-se incumbências significativas, especialmente em sede de ordenamento e reconversão agrária (cf. o n.º 2 do artigo 96.º da Constituição), mas os instrumentos de que pode servir-se o legislador estão direccionados para objectivos que, se não são radicalmente dissemelhantes, passam, pelo menos, pelo reconhecimento de valores que antes se encontravam subalternizados, designadamente a coexistência dos vários sectores de propriedade e a titularidade da propriedade privada.

A análise a que se irá proceder relativamente às diversas disposições legais questionadas não poderá deixar de ter isto mesmo na devida conta.

Começando a apreciação do pedido identificado como pedido A, passa-se à apreciação do artigo 4.º da Lei 106/88.

B)1 - Pedido A
8 - A norma constante do artigo 4.º da Lei 109/88.
Este preceito, que não foi objecto de alteração pela Lei 46/90, de 22 de Agosto, tem o seguinte teor:

Artigo 4.º
Política agrícola
A política agrícola visa prosseguir os seguintes objectivos:
a) O reforço e aperfeiçoamento da ligação do homem com a terra;
b) A melhoria da situação económica, social e cultural e a garantia dos direitos dos trabalhadores e dos agricultores;

c) A optimização do aproveitamento dos recursos para aumento da produção e da produtividade;

d) A protecção dos recursos naturais e o aumento do fundo de fertilidade dos solos;

e) A adequação dos recursos existentes aos objectivos da política agrária comum.

O artigo 96.º da Constituição, indicado como parâmetro de aferição, sob a epígrafe «Objectivos da política agrícola», estabelece o seguinte:

1 - São objectivos da política agrícola:
a) Aumentar a produção e a produtividade da agricultura, dotando-a das infra-estruturas e dos meios humanos, técnicos e financeiros adequados, tendentes a assegurar o melhor abastecimento do País, bem como o incremento da exportação;

b) Promover a melhoria da situação económica, social e cultural dos trabalhadores rurais e dos agricultores, a racionalização das estruturas fundiárias e o acesso à propriedade ou à posse da terra e demais meios de produção directamente utilizados na sua exploração por parte daqueles que a trabalham;

c) Criar as condições necessárias para atingir a igualdade efectiva dos que trabalham na agricultura com os demais trabalhadores e evitar que o sector agrícola seja desfavorecido nas relações de troca com os outros sectores;

d) Assegurar o uso e a gestão racionais dos solos e dos restantes recursos naturais, bem como a manutenção da sua capacidade de regeneração;

e) Incentivar o associativismo dos agricultores e a exploração directa da terra.

2 - O Estado promoverá uma política de ordenamento e reconversão agrária, de acordo com os condicionalismos ecológicos e sociais do País.

Já no Acórdão deste Tribunal n.º 187/88, de 17 de Agosto de 1988 (in Diário da República, 2.ª série, de 5 de Setembro de 1988), foi a norma do artigo 4.º apreciada em sede de fiscalização preventiva, tendo-se concluído pela sua não inconstitucionalidade, quando confrontada com a versão da Constituição resultante da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro.

É certo que o facto de a norma ter sido já objecto de um juízo de não inconstitucionalidade, em sede de fiscalização preventiva, não obsta a que essa questão volte a ser examinada em fiscalização sucessiva (cf. Acórdão 444/93, citado), nem a que o parâmetro de aferição da constitucionalidade seja agora a versão decorrente da Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho, em que o artigo 96.º, n.º 1, indicado pelos requerentes como norma violada, apresenta algumas modificações de redacção relativamente à versão anterior.

São estas modificações as seguintes:
A actual alínea a) era a alínea b), mas ficando com a mesma redacção;
A anterior alínea a) passou a ser a actual alínea b), mas com diferenças de redacção (v. g., eliminação da referência a «pequenos e médios agricultores», eliminação da referência à «transferência progressiva da posse útil da terra», continuando, porém, a promover-se o acesso à propriedade ou posse da terra e demais meios de produção por parte de quem a trabalha);

O acrescentamento da alínea e) no sentido de incentivar o associativismo dos agricultores e a exploração directa da terra;

Por último, reformulou-se por completo o n.º 2, com o desaparecimento do texto constitucional da expressão «reforma agrária» e passando a fazer incumbir ao Estado a promoção de «uma política de ordenamento e de reconversão agrária», tendo em atenção os «condicionalismos ecológicos e sociais do País».

Ora, estas modificações, a serem relevantes, sê-lo-ão inequivocamente no sentido contrário ao invocado pelos requerentes.

Antes de mais, deve referir-se que não são apresentados agora argumentos inovadores susceptíveis de conduzir à modificação da posição adoptada naquele acórdão face à anterior versão da Constituição. Para concluir pela conformidade constitucional do artigo 4.º será suficiente reiterar o que ficou dito nesse aresto, ao concluir a análise da matéria: «para lá desta ou daquela forma utilizadas, o que conta para avaliar da constitucionalidade de qualquer lei hão-de ser as soluções materiais que incorpora, as metas objectivas que aponta, os meios e interesses a que dê prevalência». Aí ficou ainda entendido que «o reforço e aperfeiçoamento da ligação do homem com a terra», consignado como objectivo da política agrícola na alínea a) do artigo 4.º da Lei 109/88, cabia na previsão dos objectivos constitucionais de transformação das estruturas e da transferência progressiva da posse útil, contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 96.º da Constituição, na versão anterior à Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho.

Mais fácil ainda, à luz do parâmetro vigente, será ver o «reforço e aperfeiçoamento da ligação do homem com a terra» enquadrado nas referências constitucionais à racionalização das estruturas fundiárias e ao acesso à propriedade e à posse da terra e demais meios de produção, referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 96.º, na redacção em vigor da lei fundamental.

E como não ver na «optimização do aproveitamento dos recursos para aumento da produção e da produtividade» o melhor meio de realização da finalidade constitucional do aumento da produção por forma a melhor abastecer o País e desenvolver a exportação [alínea a) do n.º 1]?

Também a «protecção dos recursos naturais e o aumento do fundo de fertilidade dos solos» [alínea d) do artigo 4.º] visa assegurar o uso e a gestão racionais dos solos e dos restantes recursos naturais, tal como a manutenção da respectiva capacidade de regeneração [alínea d) do n.º 1 do artigo 96.º da Constituição].

Assim sendo, isto é, não se verificando qualquer contradição entre as finalidades da política agrícola, tal como são definidas no artigo 4.º da Lei 106/88, e as constantes do artigo 96.º da Constituição, tem de se concluir pela não inconstitucionalidade da norma em apreço.

9 - As normas constantes dos artigos 11.º (em combinação com o artigo 15.º), 12.º e 21.º, 13.º, 14.º, 15.º e 19.º e 18.º, alínea a), da Lei 109/88.

Sob a censura genérica de que a lei reduz drasticamente a extensão da terra a entregar «a quem a trabalha», os requerentes do pedido A alinham três grupos de normas, todas elas alegadamente violadoras do disposto nos artigos 96.º, n.os 1, alínea a), e 2, e 97.º da Constituição (redacção anterior a 1989), normas estas que correspondem, na redacção vigente da Constituição, aos artigos 96.º, n.os 1, alínea b), e 2, e 97.º, estes últimos com redacção diferente.

Os requerentes invocam também como violado o artigo 99.º, n.º 2, da versão de 1982 da Constituição ao facultarem tais normas a criação irrestrita de unidades de exploração agrícola privadas [alínea d) do pedido]. Porém, para além de tal norma não poder ser o parâmetro de aferição da constitucionalidade, como se referiu anteriormente, não só o mencionado n.º 2 do artigo 99.º passou a ter uma redacção que lhe retira toda a possibilidade de constituir tal parâmetro, como também a norma, que substituiu, de certo modo, a estatuição contida no preceito invocado pelos requerentes, consta agora do artigo 97.º, n.º 1, in fine, com a referência à «reserva de área suficiente para a viabilidade e racionalidade da sua própria exploração», depois de a revisão de 1989 ter incluído na competência reservada da Assembleia da República o estabelecimento das «bases da política agrícola, incluindo a fixação dos limites máximos e mínimos das unidades de exploração agrícola privadas» [artigo 168.º, n.º 1, alínea n)].

Constituem o primeiro grupo, como se depreenderá do enunciado da epígrafe supra, as normas dos artigos 11.º, em conjugação com o artigo 15.º, 12.º e 21.º, relativas ao âmbito das expropriações e à delimitação dos actos ineficazes.

O segundo grupo é integrado pelas normas constantes dos artigos 13.º, 14.º, 15.º e 19.º da Lei 106/88, de 26 de Setembro, relativas ao direito de reserva e respectivo alargamento ilegítimo.

O terceiro grupo de normas cuja constitucionalidade vem questionada é constituído pelos artigos 18.º, n.º 1, alínea a), e 28.º, n.º 1, da referida lei.

9.1 - Por razões de mais fácil arrumação e encadeamento de raciocínio, procede-se à análise conjunta das normas do primeiro grupo relativamente aos fundamentos que os peticionantes alinham no desenvolvimento da fundamentação genérica também pelos mesmos aduzida.

É a seguinte a redacção dos referidos preceitos:
Artigo 11.º
Âmbito das expropriações
Ficam sujeitos a expropriação o prédio ou o conjunto de prédios rústicos localizados na zona de intervenção da reforma agrária que correspondam a pontuação superior à estabelecida para o direito de reserva e sejam propriedade de:

a) Pessoa singular ou colectiva privada;
b) Duas ou mais pessoas em contitularidade, comunhão ou herança indivisa;
c) Duas ou mais sociedades, quando em todas elas haja directa ou indirectamente sócios comuns em posição dominante ou quando essas sociedades forem coligadas ou participantes no mesmo grupo económico;

d) Uma pessoa singular e uma ou mais sociedades de que aquela seja sócia em posição dominante.

Artigo 12.º
Prédios não expropriáveis
1 - Não são expropriáveis, qualquer que seja a sua pontuação, os prédios rústicos que sejam propriedade de:

a) Agricultores autónomos;
b) Cooperativas agrícolas, constituídas nos termos do Código Cooperativo;
c) Instituições particulares de reconhecida utilidade pública.
2 - Não são expropriáveis, qualquer que seja a sua pontuação, os prédios referidos no artigo anterior que, no seu conjunto, tenham área inferior a 60 ha.

3 - Se a parte do prédio, ou prédios rústicos, excedente à área da reserva, por si só ou em conjunto com áreas de prédios anexos, for inferior à dimensão mínima indispensável ao estabelecimento de uma exploração agrícola do tipo familiar, acrescerá à respectiva reserva, deixando de ser expropriada.

Artigo 21.º
Actos ineficazes
1 - Para efeitos da presente lei são ineficazes os actos ou contratos, relativos a prédios já expropriados, praticados depois do início do processo de expropriação dos quais resulte diminuição de área expropriável.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior considera-se iniciado o processo de expropriação com a verificação da primeira das seguintes formalidades:

a) Publicação da portaria que opere a expropriação;
b) Publicação de declaração de utilidade pública para expropriação;
c) Comunicação ao interessado para demarcação da reserva a atribuir no âmbito da presente lei.

Segundo o pedido, as disposições transcritas diminuem especificamente a área sujeita a expropriação. De alguma forma as considerações que vierem a fazer-se acabarão por ser aplicáveis às normas do segundo grupo, pois nestas se projectarão as conclusões entretanto obtidas. Por essa razão não se procedeu agora à transcrição do n.º 1 do artigo 15.º, que surgirá incluído no segundo grupo.

9.1.1 - O critério legal quanto à definição das áreas expropriáveis é, em termos gerais, o de que ficam sujeitos a expropriação o prédio ou conjunto de prédios rústicos que ultrapassem a pontuação superior à estabelecida para o direito de reserva (corpo do artigo 11.º), fixada tendo em conta o rendimento fundiário que passou a ser de 91000 pontos (artigo 15.º, n.º 1, tanto na redacção originária como na vigente). Ressalvam-se o prédio ou prédios de área inferior a 60 ha (n.º 2 do artigo 12.º) e, em sede de elementos relevantes para a determinação da pontuação, nos n.os 3 e 4 do artigo 15.º estabelecem-se deduções e regras relativas à pontuação a atribuir ao sobcoberto das plantações agrícolas e povoamentos florestais. No n.º 3 do artigo 12.º estabelece-se que, em certos casos, áreas excedentes à reserva a esta poderão acrescer.

Na redacção da Lei 77/77, de 29 de Setembro, em contraste com o que se deixou referido, a regra geral era a de que as expropriações se aplicariam a prédio ou prédios de pontuação superior a 70000 pontos (artigo 26.º). Mas previam-se majorações e dispensa de requisitos aos candidatos a reservas, agora eliminadas (artigos 26.º, n.º 5, e 28.º). Igualmente se fixavam áreas máximas de reserva independentemente da pontuação que lhes coubesse (artigo 29.º).

Da susceptibilidade da expropriação estavam ressalvados os prédios de área inferior a 30 ha (n.º 4 do artigo 23.º) e também se previa um outro tipo de situações em que as áreas de reserva poderiam ser acrescidas com áreas não susceptíveis de expropriação.

9.1.2 - Descrito sumariamente o quadro normativo, diga-se desde já que não vai este Tribunal proceder a uma comparação ponto por ponto entre as novas normas que, facultando o alargamento das reservas, efectivamente proporcionam a diminuição da área expropriável e aquelas que as antecederam, como se uma eventual discordância entre elas fosse susceptível de gerar um vício de inconstitucionalidade das normas posteriores. A Lei da Reforma Agrária de 1977 não teve valor constitucional e os parâmetros por ela consagrados não estão dotados de rigidez superior à de qualquer outra lei ordinária, na medida em que a lei fundamental consentir ao legislador uma margem de conformação legislativa na matéria. E essa margem existe e é considerável, dentro dos objectivos constitucionalmente fixados para a política agrícola.

O juízo a formular é necessariamente global: o de que ao legislador não será consentido, tomando em consideração quer a redacção da Constituição anterior à segunda revisão quer a resultante desta, vedar a expropriação dos latifúndios - alcance imediatamente perceptivo do princípio em causa com sentido proibitivo que imediatamente vincula o legislador - e ou inverter a orientação geral da política agrícola, levando à reconstituição da situação anterior, ou intencionalmente criar obstáculos ao desenvolvimento e prossecução dessa mesma política.

É certo que na alínea a) do n.º 1 do artigo 96.º da Constituição, na redacção anterior à 2.ª revisão constitucional, se aludia à «transferência progressiva da posse útil da terra e dos meios de produção directamente utilizados na sua exploração para aqueles que a trabalham», obtida através da «expropriação dos latifúndios e das grandes explorações agrícolas» (n.º 1 do artigo 97.º). Não queira ver-se naquela transferência «progressiva» um processo de sentido único, sem paragens ou sequer sem retrocessos. É que, mesmo para quem pretenda ater-se apenas às suas disposições citadas, a transferência teria sempre como objectivos a melhoria da situação económica, social e cultural dos trabalhadores rurais e dos pequenos e médios agricultores [artigo 86.º, n.º 1, alínea a), citado]. Avaliar da medida em que esses objectivos estão sendo alcançados é juízo que cabe no poder conformativo do legislador, respeitados os parâmetros constitucionais que marcam o limite externo desse poder de apreciação e que acabam de ser indicados.

Também nesta perspectiva, menor terá de ser a relevância a conceder a opções normativas que tenham sido tornadas aconselháveis pela experiência colhida da aplicação da revogada Lei 77/77, de 29 de Setembro, tendo em vista a resolução de casos duvidosos, a uniformização de critérios, o reforço da segurança e do direito aplicável.

9.1.3 - Em vão se procurará na Constituição uma definição que nesta matéria vincule a dimensões pré-fixadas o poder de conformação do legislador. Tão-pouco se encontrará uma definição constitucional de latifúndio ou de grande exploração capitalista. Conforme se escreveu no Parecer da Comissão Constitucional n.º 24/77 (in Pareceres da Comissão Constitucional, 3.º vol., p. 101), a determinação de conceito de latifúndio «não releva do puro juízo jurídico mas fundamentalmente de critérios técnicos e de decisões políticas que competem ao legislador ordinário - e só a ele -, contanto que não fique frustrado o conteúdo essencial dos comandos constitucionais».

9.1.4 - Indiscutível é que o artigo 11.º consigna a sujeição a expropriação dos prédios que correspondam a pontuação superior à estabelecida para o direito de reserva.

Mas não são arbitrários os novos parâmetros. Têm fundamento material objectivo. Não são obstáculo só por si à prossecução das finalidades pretendidas para a política agrícola, no quadro do artigo 96.º da Constituição (redacção de 1982). Podem ser interpretados como resultantes da eliminação da possibilidade de diversos entendimentos do texto anterior e como clarificadores de situações de facto e de direito, constituídas ao abrigo desse texto, constituídas, sublinhe-se, em aplicação dessa lei. A aplicação tanto pode ter sido correcta como incorrecta.

Neste último caso, foi e é única missão dos tribunais invalidar o ilegal.
Assim, e sumariamente:
A subida de 70000 para 91000 pontos (n.º 1 do artigo 15.º) poderá encontrar explicação no facto de a lei revogada atribuir uma pontuação base de 70000 pontos ao explorador directo da terra, que poderia ser majorada de 10% e mais 20%. Dessas majorações aproveitaram muitos reservatários, mas, independentemente desse facto, o que é certo é que os critérios legais consentiam amplos poderes legais que remetiam para juízos técnicos não inequívocos {«tecnicamente aconselhável»; «quando se torne aconselhável não afectar a produtividade do estabelecimento agrícola»; «complementaridade [...] tecnicamente justificada», dependência «económica e predominante do rendimento de prédios expropriáveis»};

Quanto à elevação de 30 ha para 60 ha do limite da área não expropriável (artigo 12.º, n.º 2), ninguém certamente sustentará que 60 ha corresponderão a um latifúndio e não se nega ao legislador legitimidade para ter passado a entender que 30 ha, área fixada em 1977, serão inferiores à dimensão mínima «indispensável ao estabelecimento de uma exploração agrícola de tipo familiar» (artigo 12.º, n.º 3);

Quanto ao acréscimo, às áreas de reserva, de áreas não susceptíveis de expropriação (artigo 12.º, n.º 3), compreende-se a medida, visto que não faria sentido, e seria contrário aos objectivos da política agrícola, dar origem a explorações agrícolas sem um mínimo de capacidade de sobrevivência económica;

Quanto à supressão da previsão de áreas máximas independentemente da pontuação prevista no artigo 29.º da Lei 77/77, é ela expressão do abandono, por parte do legislador, em sede de limites máximos de reserva, de critérios baseados puramente na extensão em superfície do fundo. Cabe nos seus poderes de conformação dar preferência a um outro critério, que é o do rendimento fundiário e que passou agora a ser dominante;

Quanto às deduções e aos novos critérios legais na matéria (n.os 3 e 5 do artigo 15.º), justificou-os o então Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação nos trabalhos parlamentares (v. Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 107, de 29 de Julho de 1988, p. 4370) em termos que revelam ter sido a decisão de abolir, na nova lei, a exigência de as benfeitorias terem sido feitas pelo próprio agricultor para efeitos de dedução à pontuação resultante do apuramento do rendimento fundiário, bem como a decisão de fazer entrar nessa dedução os povoamentos florestais e não apenas plantações agrícolas ou florestais como anteriormente, fundada em valorações que não podem deixar de caber no poder de conformação do legislador.

9.1.5 - Em síntese, as modificações operadas quanto à determinação da área das reservas, cujo alargamento envolve, consequentemente, diminuição da área expropriável, vistas as coisas objectivamente, não são determinadas pelo propósito, ainda que tácito ou implícito, de repor a situação anterior e de liquidar as radicais transferências de propriedade ocorridas. Uniformizar regimes, simplificar critérios, abandonar distinções, que entretanto se terão revelado perturbadoras, são desideratos de mérito não sindicáveis pelo juiz constitucional.

9.2 - Feita uma resenha minimamente pormenorizada das normas em análise face à Lei Constitucional vigente no momento da sua emissão, importa agora passar à apreciação das normas referenciadas com o verdadeiro parâmetro de aferição da conformidade constitucional, que é a redacção da Constituição da República após a Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho.

Do ponto em que o pedido vem sendo analisado, e na parte em que se reporta à delimitação das áreas susceptíveis de expropriação, os já analisados artigos 11.º (em combinação com o artigo 15.º) e 12.º não sofreram alterações (salvo o n.º 1 do artigo 15.º, nos termos já atrás referenciados), na redacção que a Lei 109/88 recebeu em 1990, e não estão abrangidos no pedido B.

No entanto, como se referiu supra (n.º 6.2), os princípios gerais sobre aplicação no tempo das normas constitucionais impõem que as normas sindicadas sejam aferidas à luz da Constituição em vigor.

E adiante-se desde já que a apreciação anteriormente feita não carece de reformulação quanto ao sentido das conclusões entretanto alcançadas.

No novo texto constitucional, donde é eliminado o conceito de reforma agrária, anteriormente não concretizado, embora referido no n.º 2 do artigo 96.º não como objectivo em si mas apenas como instrumento para consecução de objectivos, não desaparece a eliminação dos latifúndios como incumbência cometida ao Estado. Ela é expressamente referida nos artigos 81.º, alínea h), e 97.º da Constituição. É no n.º 1 deste artigo que muito claramente se estabelece a ligação entre os objectivos da política agrícola globalmente considerados e «o redimensionamento das unidades de exploração agrícola que tenham dimensão excessiva» do ponto de vista desses objectivos.

Se anteriormente a expropriação dos latifúndios era susceptível de ser entendida como expressão da exigência constitucional de transferência progressiva da posse útil da terra [alínea a) do n.º 1 do artigo 96.º], o confronto com a actual alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo mostra como o poder de conformação legislativa foi alargado neste domínio, em que modificações do regime da propriedade fundiária vão dirigidas ao acesso à propriedade ou à posse da terra em benefício daqueles que a trabalham.

Tanto basta para não incorrerem as normas legais questionadas em censura de inconstitucionalidade à face dos padrões introduzidos na lei fundamental pela versão da Lei Constitucional 1/89.

9.2.1 - Sobre o artigo 21.º, atrás transcrito, novamente se exige do intérprete um juízo global.

E começa por apontar-se que a questão só se põe porque o legislador decidiu em 1977 explicitar uma norma que feria de ineficácia actos ou contratos praticados depois de 25 de Abril de 1974 que tivessem tido determinados objectivos ou efeitos.

Trata-se do artigo 24.º, que, sob a epígrafe «Actos declarados ineficazes», estabelecia o seguinte:

1 - Para efeitos de aplicação das medidas estabelecidas na presente lei, são ineficazes os actos ou contratos praticados desde 25 de Abril de 1974 até 29 de Julho de 1975 dos quais tenha resultado, por qualquer forma, diminuição de área expropriável, se tiverem tido por objecto determinante essa diminuição.

2 - Para efeitos de aplicação das medidas estabelecidas na presente lei, são ineficazes os actos e contratos praticados depois de 29 de Julho de 1975 que tenham tido o efeito referido no número anterior.

3 - Presume-se, salvo prova em contrário, que têm por objectivo determinante a diminuição da área expropriável os actos ou contratos referidos no n.º 1 que tenham sido celebrados com parentes ou afins, excepto quando tenham origem em transmissões mortis causa ocorridas após 25 de Abril de 1974, casos em que é ininvocável a presunção aqui prevista.

Não se vê como da Constituição possa decorrer a exigência dessa norma, claramente retroactiva além do mais. A ordem jurídica tem meios para invalidar negócios jurídicos contrários à lei - cf. desde logo o artigo 280.º do Código Civil.

O que se pergunta, em sede de juízo de inconstitucionalidade e à luz do texto da Constituição, é se uma norma, que desloca para o início do processo de expropriação a data a partir da qual se comina a ineficácia, contribui de forma censurável para a diminuição da área expropriável.

A resposta é positiva se se entender que as normas constitucionais vigentes a partir de 1982 consagravam a expropriação como objectivo a se. Mas já se viu que não era assim; pretendia-se a expropriação como forma de abolir o latifúndio e de transferir para terceiros direitos sobre a terra.

Por isso, o intérprete terá de dar por adquirido, desde já, que:
a) Do ponto de vista constitucional - e só dele aqui se cura - apenas lhe caberá averiguar se os negócios em causa desencadearam ou não a fragmentação de algum latifúndio ou grande exploração capitalista;

b) A norma em questão não obsta à aplicabilidade dos princípios gerais sobre a validade dos negócios jurídicos.

Se tiver havido transferências de propriedade válidas, a aplicabilidade da lei a extensões expropriáveis não é posta em dúvida, pois não permitem tal conclusão os próprios termos das disposições em causa, lidos em conjugação com o artigo 11.º

Se os negócios realizados estiverem viciados, não é a data a partir da qual deixam de ser eficazes factor absolutamente determinante. Mesmo eficazes, continuarão sujeitos ao regime das invalidades, se disso for caso.

Nesta perspectiva, e em qualquer dos casos, repete-se, a Constituição acabará por não ser ferida pelo conteúdo da norma do artigo 21.º

9.2.2 - Assim, conclui-se pela não inconstitucionalidade dos artigos 11.º, em conjugação com os artigos 15.º, 12.º e 21.º da Lei 109/88.

10 - As normas dos artigos 13.º, 14.º, 15.º e 19.º da Lei 109/88.
Cabe agora apurar se serão desconformes à lei fundamental as normas que constituem o 2.º grupo e que a seguir se transcrevem.

Estão elas postas em crise porque alegadamente, «consagrando e alargando a área susceptível de reserva [...]», violarão «o disposto nos artigos 96.º, n.os 1, alínea a), e 12, e 97.º da Constituição da República». Também violarão o disposto no artigo 99.º, n.º 2, da Constituição, por facultarem a criação irrestrita de unidades de exploração agrícola privadas [alínea d) do pedido A].

Trata-se das seguintes disposições legais:
Artigo 13.º
Direito de reserva
Aos proprietários dos prédios expropriados é atribuído o direito de reserva de propriedade de uma área determinada nos termos desta lei.

Artigo 14.º
Conteúdo do direito de reserva
1 - A concessão do direito de reserva determina o restabelecimento do respectivo direito de propriedade, tal como existia à data da expropriação ou da ocupação, quando esta tenha ocorrido em primeiro lugar.

2 - A execução da decisão final proferida nos processos de reserva regulados pela presente lei é considerada prioritária e de grave urgência para a realização do interesse público;

3 - O despacho de atribuição do direito de reserva tem força probatória plena, nomeadamente para efeitos de inscrição no registo predial.

Artigo 15.º
Pontuação da reserva
1 - O direito de reserva é equivalente a 91000 pontos, sem prejuízo do disposto no artigo 17.º

2 - A pontuação é fixada tendo em atenção o rendimento fundiário, com base no cadastro oficialmente em vigor em 19 de Setembro de 1977 e de acordo com as tabelas anexas ao Decreto-Lei 406-A/75, com a excepção prevista no n.º 5 deste artigo.

3 - No cálculo da pontuação não serão consideradas as benfeitorias existentes nos prédios rústicos, bem como plantações agrícolas e povoamentos florestais, exceptuando as realizadas pelo Estado ou outra pessoa colectiva pública.

4 - Ao sobcoberto das plantações agrícolas e povoamentos florestais referidos no número anterior será atribuída, com base na classificação da respectiva carta de capacidade de uso do solo, uma pontuação de 90 pontos por hectare das classes D e E, de 130 pontos por hectare da classe C, de 200 pontos por hectare da classe B e de 300 pontos por hectare da classe A.

5 - A pontuação de áreas de reserva, desde que calculadas em conformidade com este artigo, não será alterada depois da sua demarcação.

Artigo 19.º
Alternativas dos reservatários
Aos reservatários é conferido o direito de optarem entre a área equivalente à pontuação da respectiva reserva e uma área até 60 ha, independentemente da pontuação.

10.1 - Na parte em que é pressuposto das normas transcritas o poder de o legislador consagrar, tal como o tinha feito em 1977, o instituto da reserva, mais não será agora necessário do que confirmar a doutrina que já vem do Parecer 24/77 da Comissão Constitucional (ob. cit., vol. cit., p. 99) e que se transcreve:

A Constituição não contempla directamente o direito de reserva a conferir a titulares de prédios expropriados ou nacionalizados. A legislação anterior à Constituição previu-o, porém, e não tem sido seriamente impugnada a sua constitucionalidade, quer ele se fundamente na não nacionalização integral do solo, com eliminação apenas dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas, quer na directiva constitucional de que a reforma agrária se efectuará salvaguardando os interesses dos que não tenham outros modos de subsistência, quer na garantia da propriedade privada da terra dos médios agricultores (artigo 99.º, n.º 2); esta garantia liga-se ao princípio da pluralidade dos sectores de propriedade dos meios de produção (artigos 89.º e 90.º), válido também para a agricultura e também para a zona de intervenção.

Nem se sustente a ilegitimidade do direito de reserva por o artigo 97.º não incluir os latifundiários ou ex-latifundiários entre aqueles a quem as terras podem ser entregues para exploração. Não estão incluídos com efeito, nem poderiam estar, porque a entrega para exploração se situa sempre num regime de sector público - transferida é apenas a posse útil, seja o que for que por esta se entenda -, ao passo que o direito de reserva tem, embora com limitações, um conteúdo de direito de propriedade nos termos da lei civil (e isso tanto à face do artigo 38.º do novo decreto como do artigo 2.º do Decreto-Lei 406-A/75 e do artigo 3.º do Decreto-Lei 407-A/75). [Suprimiram-se as remissões para notas de pé de página.]

Sublinha-se que a própria legislação anterior à Constituição tinha consagrado o direito de reserva e que a garantia em que o mesmo se consubstancia se liga ou se funda no princípio da pluralidade dos sectores de propriedade dos meios de produção (artigo 89.º, sobretudo o seu n.º 2, da Constituição, na versão de 1982).

Assim sendo, não há que analisar, quanto a este problema, os artigos 13.º, 14.º e 15.º, restando referir o artigo 19.º de forma muito sucinta. A disposição não reveste autonomia problemática. Numa perspectiva sistemática do entendimento de cada disposição do diploma, a opção dada ao reservatário entre a área equivalente à pontuação da reserva a que tiver direito e uma área até 60 ha é compaginável com a previsão de que não serão expropriáveis prédios de extensão inferior. Por outras palavras, e tendo em conta a redacção anterior (artigo 33.º da Lei 77/77), que, diferentemente do que agora se dispõe, mandava demarcar essa área em terrenos de qualidade média idêntica à dos expropriáveis, a nova opção legislativa compreende-se por que as áreas de reserva se localizam nos prédios expropriados ou sujeitos a expropriação. Novamente um juízo sobre essa situação tem sede própria no campo da liberdade conformadora do legislador e é alheio à ordem de juízos que ao Tribunal Constitucional cabe emitir.

Consagra assim a lei, sem violar a Constituição, o instituto da reserva. Quanto ao alargamento da área susceptível de reserva, valem para aqui as considerações formuladas a propósito dos artigos 11.º (em combinação com o artigo 15.º) e 12.º, pois é bem claro que quando diminui a área sujeita a expropriação é alargada a área susceptível de reserva.

10.2 - Das alterações introduzidas na revisão constitucional de 1989, será nesta matéria relevante assinalar que, segundo a nova redacção do n.º 1 do artigo 97.º da Constituição, a lei deverá prever a reserva de área suficiente para a viabilidade e a racionalidade da sua própria exploração.

O instituto de reserva recebeu assim expresso acolhimento. E quanto à sua extensão, tal como quanto ao latifúndio, embora se deva reconhecer que o legislador não goza de uma liberdade absoluta, ajuizar dela releva do seu poder de conformação. Em termos de fiscalização da constitucionalidade, aproveitáveis para uma apreciação do problema da extensão dos latifúndios, deverá o intérprete entender que, no redimensionamento das unidades de exploração agrícola com consequente eliminação dos latifúndios, o legislador constitucional teve por critério a viabilidade e a racionalidade respectivas. O latifúndio começa para além das reservas.

10.3 - Conclui-se assim que as normas dos artigos 13.º, 14.º, 15.º e 19.º em apreciação não são contrárias à Constituição.

11 - As normas dos artigos 18.º, alínea a), e 28.º, n.º 1, da Lei 109/88.
A alínea b) do pedido A comporta os preceitos referidos em epígrafe; contudo, e conforme se deixou escrito em sede de questão prévia, não se irá conhecer do artigo 17.º nem da parte do artigo 18.º que não foi objecto das alterações introduzidas pela Lei 46/90. Transcrevem-se, portanto, apenas as disposições que agora competirá apreciar:

Artigo 18.º
Sociedades
...
a) As reservas são tantas quantas as quotas ou participações no capital social, existente à data da expropriação, de cuja percentagem sobre o total da pontuação do prédio resulte área ou pontuação superior a 60 ha ou 91000 pontos, podendo os sócios agrupar-se para efeitos de atingirem essa percentagem, mediante assinatura em conjunto do requerimento de reserva;

Artigo 28.º
Demarcação da reserva
1 - Compete ao Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação aprovar a demarcação das reservas previstas nesta lei.

2 - ...
Adverte-se desde já, quanto à alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º, que, por a norma se inscrever num contexto normativo que será objecto de apreciação a propósito do pedido B, não será agora curial tratá-la de forma autónoma. Os problemas de constitucionalidade suscitados a seu respeito - imputa-se-lhe o facto de ser uma de entre várias formas de alargamento dos potenciais titulares de reservas - também serão tratados adiante, e, conforme se verá, em termos e dentro de parâmetros que não são objecto de inflexão em resultado da revisão constitucional de 1989.

12 - Também quanto ao preceito do n.º 1 do artigo 28.º, cuja redacção se manteve inalterada na Lei 46/90, os problemas de constitucionalidade se suscitam relativamente aos n.os 2 e 3 do preceito, não dispondo, na perspectiva dos peticionantes, o n.º 1 de qualquer autonomia, pelo que o seu tratamento se fará quando se apreciar o pedido B.

B)2 - Pedido B
13 - Importa analisar de seguida a conformidade com a Constituição das normas cuja declaração de inconstitucionalidade vem requerida no pedido B.

Recapitulando pontos adquiridos em sede de questão prévia, será conveniente relembrar que se deixaram de fora do campo de análise, quanto ao pedido A, as normas constantes dos artigos 17.º, 18.º e 28.º da versão originária da Lei 109/88. Recorda-se que a consideração da originária alínea a) do artigo 18.º [actual alínea a) do seu n.º 1] e do n.º 1 do artigo 28.º foi relegada para o contexto de apreciação da nova versão dos referidos artigos (n.os 11 e 12].

Estas normas, porém, foram objecto do pedido B. Por essa razão serão apreciadas oportunamente, no seguimento da análise das normas questionadas na redacção que lhes foi dada pela Lei 46/90, de 22 de Agosto.

14 - A norma do artigo 14.º-A da Lei 109/88 (redacção da Lei 46/90).
Assim sendo, começará por se apreciar a conformidade à constituição da norma constante do artigo 14.º-A, objecto de um aditamento introduzido pela Lei 46/90, seguindo-se a ordenação formulada pelos requerentes na síntese conclusiva do seu pedido.

É a seguinte a redacção dessa norma:
Artigo 14.º-A
Devolução de prédios meramente ocupados
Aos proprietários de prédios meramente ocupados aplicam-se com as necessáriass adaptações, as disposições relativas ao direito de reserva, devendo o Estado proceder às desocupações de todas as terras que, em conformidade com o disposto na presente lei, não são passíveis de expropriação.

Consideram os deputados signatários do pedido B que esta norma consente à Administração invadir a competência dos tribunais, por a estes ser negada a possibilidade de se pronunciarem, em cada caso concreto, sobre os direitos de propriedade dos prédios ocupados. Ao abrigo da norma questionada, a Administração exerceria competências que seriam indubitavelmente do foro jurisdicional, assim se contrariando os artigos 205.º e 206.º da Constituição.

14.1 - O alcance da norma não oferece quaisquer dificuldades interpretativas: visa-se pôr termo a situações que se terão constituído à margem da lei, com a ocupação de terras não passíveis de expropriação, sendo que, quanto àquelas que se encontrarem meramente ocupadas mas que correspondam a pontuação superior à estabelecida para o direito de reserva, a constituição desta pode ser requerida pelos respectivos proprietários.

14.2 - Não se vê em que medida possa verificar-se invasão da competência dos tribunais, se se atender a que a Administração actua no cumprimento da lei e com vista ao restabelecimento de uma situação de normalidade jurídica. A norma apenas determina que o Estado, e aqui será de entender que se refere aos órgãos e agentes da função administrativa, procederá à desocupação de todas as terras que não são passíveis de expropriação. Não está directamente investida do poder de se pronunciar sobre «os direitos de propriedade dos prédios ocupados»; antes, perante uma ocupação desprovida de qualquer outro título que não seja o da mera factualidade contrária à lei, deverá proceder às operações materiais exigidas pelo restabelecimento da legalidade. Ela (a Administração) não dirime qualquer conflito de direito tendo por objecto esses bens. Aliás, deverá notar-se que a latitude da sua actuação é desde logo limitada na medida em que se não procederá à desocupação relativamente a prédios expropriáveis.

Do que antecede resulta que a Administração Pública não vai praticar actos jurisdicionais sob a veste de actos administrativos. Poderá, em contrário, argumentar-se com a circunstância de a actuação em concreto da Administração pressupor um prévio juízo sobre a qualificação jurídica da situação. Mas não é esse juízo, a existir, o meio pelo qual se definem direitos e obrigações dotados de estabilidade e dignos da tutela própria de uma decisão judicial. Isto por um lado. Por outro lado, e em tese geral, nem sequer da formulação de juízos daquele primeiro género estão arredados os órgãos da função administrativa, desde logo na matéria de que se ocupa o presente acórdão. Com efeito, no âmbito da lei em análise, são a própria expropriação e a própria atribuição de reservas chamadas a tomar a forma de actos administrativos.

14.3 - Não se encontrando, assim, qualquer base sólida para que se imponha uma análise mais aprofundada da questão, dado que o invocado argumento da invasão da reserva da função jurisdicional claudica logo à partida, conclui-se pela não inconstitucionalidade da norma em apreço.

15 - As normas dos artigos 17.º e 18.º da Lei de Bases da Reforma Agrária (redacção da Lei 46/90).

Segue-se, na ordenação do pedido B, a apreciação da conformidade à Constituição das normas indicadas em epígrafe. Deixe-se apenas assinalado que a apreciação vai ter de ter em conta também a parte do artigo 18.º que não foi alterada em 1990 - a sua anterior alínea a) -, que agora volta a transcrever-se para facilitar a consulta do texto:

Artigo 17.º
Contitularidades e heranças indivisas
1 - Nas contitularidades ou nas heranças indivisas existentes à data da expropriação ou ainda nos casos em que tais situações se constituíram, por morte do ex-titular ou de um dos ex-titulares dos prédios expropriados, em data anterior a 26 de Setembro de 1988, cada uma das partes, ou de quinhões hereditários, tem direito a uma reserva cuja pontuação é a correspondente à respectiva percentagem sobre a pontuação total dos prédios expropriados.

2 - Para cada contitular ou herdeiro a soma da pontuação correspondente à percentagem da respectiva parte ou quinhão e da pontuação de outras áreas de que seja, ou tenha sido, reservatário ao abrigo da lei anterior não pode, porém, exceder a pontuação estabelecida para o direito de reserva.

3 - Os contitulares ou herdeiros podem agrupar as respectivas partes ou quinhões hereditários, mediante a assinatura em conjunto do requerimento de reserva, mas a área atribuída a cada grupo de contitulares ou herdeiros não pode exceder a pontuação estabelecida para o direito de reserva.

4 - Para os efeitos do disposto nos números anteriores, os cônjuges são considerados um só titular quanto aos bens comuns.

Artigo 18.º
Sociedades
1 - Às sociedades cujo património foi expropriado ou nacionalizado cabe uma reserva múltipla equivalente à soma de várias resesrvas, nos termos seguintes:

a) [Redacção originária não alterada pela Lei 46/90] As reservas são tantas quantas as quotas ou participações no capital social existentes à data da expropriação, de cuja percentagem sobre o total da pontuação do prédio resulte área ou pontuação superior a 60 ha ou 91000 pontos, podendo os sócios agrupar-se para efeitos de atingirem essa percentagem, mediante assinatura em conjunto do requerimento de reserva;

b) Por cada sócio, a soma da pontuação correspondente à percentagem da respectiva quota ou participação no capital social de uma ou mais sociedades e da pontuação de outras áreas de que ele seja ou tenha sido reservatário, ao abrigo da lei anterior, não pode, porém, exceder 91000 pontos.

2 - A pontuação da reserva atribuída nos termos do número anterior não pode exceder 364000 pontos, excepto quanto às sociedades por quotas, em relação às quais a produção de efeitos da atribuição da reserva para além da pontuação limite fica condicionada a que a parte excedente seja separada por divisão, cisão ou partilha ou pela liquidação da sociedade.

Referem os deputados subscritores que a eliminação do n.º 5 do artigo 17.º, «seja através do mecanismo da multiplicação e junção de reservas [...], seja através da possibilidade de os vários herdeiros concorrerem a reservas separadas que num e noutro caso passam a poder ser reunificadas [...], significa que a aplicação destes mecanismos conduz inexoravelmente à (re)constituição de latifúndios», com violação dos artigos 81.º, alínea h), e 97.º da Constituição da República Portuguesa. Referem ainda que as alterações introduzidas neste artigo «esvaziam de conteúdo o limite aparente de 91000 pontos previstos no artigo 15.º Esta circunstância, conjugada com vários dispositivos da lei, designadamente os artigos 11.º, em combinação com o disposto nos artigos 15.º, 12.º e 21, 13.º, 14.º, 15.º e 19.º, 17.º, 18.º e 33.º», viola ainda a alínea n) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição.

Quanto ao artigo 18.º, sublinham os deputados requerentes do pedido B que, na nova redacção, se passa a referir «uma reserva múltipla equivalente à soma de várias reservas» ao mesmo tempo que se elimina também a alínea e) da anterior redacção, a qual feria de nulidade os actos administrativos que conduzissem à reunificação das reservas atribuídas às sociedades. De tudo isto resultaria a violação, também aqui, dos artigos 81.º, alínea h), e 97 da Constituição da República Portuguesa.

Em síntese, no pedido B sustenta-se que «as vias abertas pela nova redacção dos artigos 17.º e 18.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, conduzem à restauração do latifúndio tal como historicamente existiu e, como na prática, tem estado a suceder».

A questão não é nova em sede de confronto dos artigos 17.º e 18.º da Lei de Bases com o artigo 97.º, n.º 1, da Constituição, pois já foi abordada explicitamente no Acórdão deste Tribunal n.º 187/88, já citado. A orientação aí firmada é de manter.

15.1 - O artigo 17.º respeita aos chamados indivisos (contitularidades e heranças indivisas) e trata os quinhoeiros nas propriedades expropriadas, nos termos do que se dispõe no artigo 11.º da lei, como titulares individualizados de um direito de reeserva. Coloca-os na posição em que se encontrariam se, à data da expropriação, a situação não fosse de indivisão e cada interessado tivesse então direito a uma reserva.

Sobre esta questão parece oportuno deixar duas notas.
Em primeiro lugar, a permanência da situação de indivisão poderá ser devida a circunstâncias puramente fortuitas, de forma que qualquer distinção de regimes que se pretendesse gizar com base nela acabaria por gerar desigualdades, que não custaria atribuir ao acaso e que seriam portanto arbitrárias. Assim seria se o destino da propriedade herdada ficasse dependente do grau de diligência com que os herdeiros tivessem procedido à partilha, uns, os mais expeditos, saindo beneficiados, os outros, os menos expeditos, por terem eventualmente deparado com dificuldades no processo ou com delongas na respectiva tramitação judicial não imputáveis à sua vontade, saindo prejudicados.

Depois, anotar-se-á que as disposições questionadas são em si próprias instrumentos da extinção de situações de compropriedade e dessa forma, simultaneamente, estímulo à eliminação dos próprios latifúndios ou grandes explorações capitalistas (cf. artigo 97.º, n.º 1, da Constituição, na versão anterior à própria revisão constitucional de 1989). Ainda que a subsistência da indivisão se devesse à intenção de manter o latifúndio ou a grande exploração, o certo é que a indivisão, por força da alínea b) do artigo 11.º da lei, não é obstáculo à expropriação.

Dir-se-á que se posterga ou relega para segundo plano o objectivo constitucional da transferência progressiva da posse útil da terra [artigo 96.º, alínea a), segunda parte, da Constituição na versão anterior à vigente, que deverá ser confrontada com a actual alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo]. Não colhe tal argumentação, ou antes, só colhe para quem optar por uma postura de defesa de uma radical e imediata mutação das relações dominiais, contrariando a ideia de progressividade esboçada na disposição constitucional citada. A verdade é que tal transferência está prevista na lei, na presente situação, num segundo momento, o que inclusivamente satisfaz ao princípio da progressividade da transferência, agora sem assento constitucional. É que cada contitular ou herdeiro fica sujeito a ser expropriado se vier a reunir no seu património uma área que exceda a pontuação máxima, segundo o n.º 2 do artigo 17.º, além de que, ainda que sobrevenham agrupamentos de partes ou quinhões hereditários (n.º 3 deste artigo), não poderá a pontuação correspondente exceder a que é estabelecida para o direito de reserva.

Postas as coisas nestes termos, tudo reverte para o conceito legal de latifúndio, que tem como parâmetro base o cálculo de uma pontuação a atribuir a um prédio ou conjunto de prédios rústicos superior à estabelecida para o direito de reserva (cf. o artigo 11.º da lei), sabendo-se também que a exploração agrícola do tipo familiar (n.º 2 do artigo 12.º da lei), ou áreas inferiores a 60 ha, não será qualificável como latifúndio. Na matéria, já o Tribunal tomou posição: a fixação da quantificação entra no campo do poder de conformação do legislador, e só merecerá censura se objectivamente for conducente à prossecução de objectivos que contrariem a Constituição. Mas não é o caso.

15.2 - Valem para o artigo 18.º considerações de tipo semelhante, bem como a remissão para o juízo já formulado no Acórdão 187/88, já várias vezes citado.

Também aqui se pode dizer que o legislador procura corrigir situações que, na sua óptica, terão relevado de uma intenção política de radical modificação das estruturas da propriedade e não de uma sua progressiva transformação. E também aqui se poderá dizer que a norma sindicada, vista agora em perspectiva de progressiva transferência da propriedade, é ainda instrumental desta transferência. Uma perspectiva que sacrificasse o princípio do respeito pelo direito de propriedade ao princípio da colectivização de grandes extensões fundiárias ignoraria intencionalmente o estatuto jurídico originário destas extensões. Todavia, mesmo uma perspectiva de «transferência progressiva» apontaria para uma concordância prática dos dois princípios conflituantes, em termos de o segundo só ganhar prevalência quando a titularidade unipessoal, convertida em propriedade perfeita ou pelo menos não compartilhada, tornada obrigatória quando (ainda) não verificada, viesse a posteriori legitimar a expropriação, a título de eliminação do latifúndio [artigo 97.º, n.º 1, conjugado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 96.º e com o artigo 62.º, todos na redacção da Constituição imediatamente anterior à vigente].

Assim sendo, sem dificuldade se entenderá que voltamos a ser reconduzidos à questão da determinação do conceito constitucional de latifúndio - ou melhor, à questão da margem, reconhecidamente ampla, em que ao legislador é permitido mover-se nesta matéria. Visto já ficou que, desse lado, não terão advindo vícios para as normas produzidas.

15.3 - Reportemo-nos agora conjuntamente aos dois artigos acabados de analisar, mas estritamente encarando as questões suscitadas no pedido B, designadamente tendo em conta que foi eliminada a sanção da nulidade cominada para os actos jurídicos que conduzam à reunificação das reservas atribuídas [anteriores n.º 5 do artigo 17.º e alínea e) do artigo 18.º da Lei 109/88, na sua versão originária].

Com os artigos 17.º e 18.º, os indivisos e os acervos apropriados em comunhão societária são, pelo menos tendencialmente, reconduzidos à propriedade titulada individualmente e dessa operação poderá ter resultado a atribuição de reservas. Mesmo que contitulares ou herdeiros, nesse contrato, tenham agrupado as respectivas partes ou quinhões hereditários, a área atribuída a cada grupo não pode exceder a pontuação estabelecida para o direito de reserva (n.os 3 e 4 do artigo 17.º, em ligação com o n.º 1 do artigo 11.º). Para as sociedades vigora um regime especial, mas também aí se mantém, relativamente a cada sócio, o limite da pontuação [alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º], sendo que a pontuação da reserva atribuída não poderá exceder aquela que é equivalente a quatro reservas de titularidade individual, ou seja, os 364000 pontos previstos no n.º 2 do artigo 18.º

O regime estabelecido, novamente se diga, reconduz-se, quanto ao juízo a formular, à temática da determinação do conceito constitucional de latifúndio. A posição anteriormente tomada também, e consequentemente, não tem de ser reformulada. Resulta do artigo 97.º, n.º 1, da Constituição que lafitúndio é conceito aplicável a uma exploração agrícola que tenha dimensão excessiva do ponto de vista dos objectivos da política agrícola. O latifúndio começa para além da reserva e esta deve corresponder a uma área suficiente para a viabilidade e racionalidade da sua própria exploração.

Do ponto de vista do regime a que são submetidas as contitularidades e heranças indivisas, nada do que é essencial no preceito constitucional parece tocado.

E também o mesmo se dirá quanto ao regime aplicável ao património das sociedades, sabido como é que é indeterminado o número de sócios de cada uma, hipoteticamente titulares de direitos de reserva se, em vez de terem conjugado e posto em comum recursos de cada um deles, tivessem optado pela titularidade singular desses mesmo recursos. O limite equivalente à área de quatro reservas (mesmo para as sociedades por quotas é necessário ter em conta a norma do n.º 2 do artigo 18.º) não parece arbitrário nem desrazoável.

E o que se diz vale tanto para a redacção originária na parte em que está também agora em apreciação a alínea a) do artigo 18.º, quer se confrontasse com o texto constitucional vigente à data da feitura da Lei 109/88, quer se procedesse ao confronto dessa mesma norma com o texto constitucional vigente.

15.3.1 - O pedido, porém, visa ainda outros aspectos, que têm a ver com a dinâmica do sistema, doravante entregue ao jogo da autonomia privada.

Que as normas acabadas de analisar conduzam inexoravelmente ou não à reconstituição de latifúndios não é afirmação que possa acolher-se, tendo presente o regime jurídico nelas contemplado na sua aplicação a fundos agrícolas, tal como se encontravam antes dessa aplicação. A intenção do legislador é precisamente a contrária, mesmo quando permite o agrupamento de partes ou quinhões hereditários (n.º 3 do artigo 17.º) ou a subsistência de sociedades [artigo 18.º, n.os 1, alínea b), e 2]. Há limites máximos de pontuação, bem como não podem considerar-se iguais os casos de titularidade individual e os casos de contitularidade ou de comunhão societária.

O argumento da possibilidade de reconstituição in futuro dos latifúndios, explicitamente invocado apenas a propósito do artigo 17.º, tem porém mais peso e carece de elucidação complementar, também quanto ao regime consagrado no artigo 18.º Poderá na verdade perguntar-se se tal efeito não se produzirá uma vez esgotada no tempo a aplicação da lei, uma vez terminada a reestruturação fundiária que é objecto do respectivo capítulo II (artigos 11.º e 34.º).

Mas a resposta está já contida no que acabou de referir-se. Na medida em que parece ser legítimo interpretar o pedido como visando não só o regime de reestruturação fundiária como também aquele que será aplicável ao futuro posterior a essa reestruturação, o que deve dizer-se é que o capítulo II tem natureza transitória e não aspira a mais do que isso mesmo, ou seja, os artigos 17.º e 18.º inscrevem-se no programa normativo do destino a dar a prédios anteriormente expropriados (artigos 13.º), localizados na zona de intervenção agrária (corpo do artigo 11.º), sendo que a nova redacção do artigo 1.º (o artigo 2.º foi expressamente revogado pelo artigo 3.º da nova lei) trazida pela Lei 46/90 vem esclarecer definitivamente a questão.

Com efeito, a lei regula o redimensionamento das unidades de exploração agrícola e o destino das áreas expropriadas e nacionalizadas (n.º 1 do artigo 1.º) e mantém, a prazo, a composição da zona de intervenção da reforma agrária (ZIRA), constante do Decreto-Lei 236-B/76, de 8 de Abril (n.º 2 do mesmo artigo 1.º). A Lei da Bases da Reforma Agrária não é a legislação de âmbito nacional que estabelecerá as bases gerais do fomento agrário e das estruturas agrícolas (n.º 2 do artigo 1.º, com itálicos agora introduzidos). De tal forma, não será legítimo exigir-lhe mais do que ela própria visa, sem prejuízo de uma hipotética censura por omissão legislativa, que, além do mais, não pode ter lugar em sede de fiscalização abstracta sucessiva por acção, que é que agora se está a levar a cabo.

Resta o argumento tirado da alínea n) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, que, segundo os requerentes, estabelece um dever de fixação dos «limites máximos e mínimos das unidades de exploração agrícola privadas». Mas novamente se lhe aplicam as considerações respeitantes a possíveis omissões legislativas.

E, não se julgando suficiente ficar por aqui, importa referir que a alínea n) citada é acima de tudo uma norma da competência e, a esse título, uma norma autorizadora de legislação. Por outro lado, a proibição da reconstituição do latifúndio poderá passar por outras vias, que não exclusivamente aquelas que impliquem a fixação de limites máximos das unidades de exploração agrícola privadas.

15.4 - Concluiu-se portanto: não violam a Constituição quer a norma constante da redacção originária da alínea a) do artigo 18.º quer as normas dos artigos 17.º e 18.º da Lei 109/88, na redacção que lhes foi dada pela Lei 46/90.

16 - Os artigos 28.º e 39.º da Lei 106/88 (versão da Lei 46/90).
Passa-se agora à apreciação dos artigos 28.º e 39.º da lei, na sua redacção vigente, referidos conjuntamente na alínea g) do pedido B, começando por se transcrever o texto correspondente:

Artigo 28.º
Demarcação da reserva
1 - [Texto não alterado em 1990.] Compete ao Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação aprovar a demarcação das reservas previstas nesta lei.

2 - A demarcação da reserva ou a reversão do prédio rústico é obrigatoriamente precedida da notificação, para audiência, dos titulares de outros direitos sobre os prédios em causa, referidos no n.º 1 do artigo 20.º, e dos beneficiários da entrega para exploração, referidos no n.º 1 do artigo 29.º, de áreas da respectiva reserva.

3 - A notificação prevista no número anterior, na impossibilidade de ser feita directamente, é efectuada por edital publicado, ainda que sem identificação pessoal dos interessados, em, pelo menos, dois números de um jornal de grande tiragem e afixado na sede da junta de freguesia da localização do respectivo prédio.

Artigo 39.º
Competência
Compete ao Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação determinar, para efeitos de entrega pra exploração:

a) ...
b) ...
c) ...
d) ...
Não se reproduz o texto das quatro alíneas desta última disposição por o pedido não recair sobre o respectivo conteúdo. Por sua vez, relembra-se que da redacção originária do artigo 28.º apenas está incluído no âmbito do pedido A e relegado para conhecimento neste momento o seu n.º 1, pelas razões inicialmente referidas.

Ao artigo 28.º, na sua versão originária, imputavam os requerentes vários vícios. A demarcação das reservas excluiria a audiência das UCP/cooperativas e permitiria a respectiva «realização» por edital. Faltariam aqui formalidades essenciais relevantes, no contexto de um regime que inviabilizaria o exercício do direito ao recurso, cujo conteúdo essencial seria atingido. Seriam discriminatoriamente feridas as UCP/cooperativas, cuja legitimidade activa nos recursos contenciosos seria eliminada.

É lícito ao intérprete concluir que os n.os 2 e 3 do artigo 28.º, na sua versão originária, precisamente aqueles que foram alterados em 1990, não chegaram a ter aplicação. Na verdade, o Decreto Regulamentar 44/88, de 14 de Dezembro, que estabeleceu o processo do exercício do direito de reserva, só veio a ser revogado pelo Decreto-Lei 12/91, de 9 de Janeiro, editado já sob a expressa invocação do regime jurídico instituído pela Lei 46/90, em conformidade com o que nesta ficou disposto no n.º 2 do artigo 52.º Até então esteve sempre em vigor o decreto regulamentar de 1988.

Assim sendo, e ultrapassado este parêntesis, é de referir que os deputados subscritores do pedido B sustentam que a nova redacção dos artigos 28.º e 39.º retira a obrigatoriedade da audiência dos trabalhadores permanentes e efectivos dos prédios expropriados ou nacionalizados nos processos de demarcação de reserva e de entrega de terras para exploração. Desta forma, estarão a ser violados os artigos 101.º e 268.º, n.º 3, da Constituição (redacção vigente).

16.1 - É verdade que a Lei 46/90 suprimiu as referências, contidas no texto originário, à audiência dos trabalhadores efectivos ao serviço dos prédios expropriados, prévia à demarcação da reserva ou à reversão do prédio rústico, como resulta do confronto entre as versões sucessivas do n.º 2 do artigo 28.º E também em sede de entrega para exploração dos prédios expropriados ou nacionalizados, como se alcança do confronto entre o texto dos proémios do artigo 39.º que se sucederam, deixou o Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação de estar obrigado a ouvir os trabalhadores permanentes e efectivos.

Importa ter presente que a nova redacção dos artigos postos em causa elimina a necessidade de audiência prévia dos trabalhadores efectivos e permanentes, mas mantém a obrigatoriedade de audiência «dos titulares de outros direitos em causa», referida no n.º 1 do artigo 20.º, e dos beneficiários da entrega para exploração, referida no n.º 1 do artigo 29.º, de áreas da respectiva reserva (n.º 2 do artigo 28.º), isto muito claramente em matéria da demarcação da reserva ou reversão de prédio rústico. Os terceiros a que alude esta norma parcialmente transcrita são, nos termos do n.º 1 do artigo 20.º, os titulares de outros direitos reais ou os arrendatários à data da expropriação ou da ocupação. É neste contexto que a resposta a dar à interrogação deve colocar-se, porque, efectivamente, não pode dizer-se que liminarmente estejam excluídos do direito de audiência os trabalhadores efectivos e permanentes se se mostrarem investidos dos títulos requeridos pela lei.

Através da concessão do direito de reserva ou da reversão procede-se, caso não se queira ver aí uma forma de modificação do direito de propriedade, pelo menos a uma alteração da entidade que passa a deter direitos de exploração sobre o fundo e a ser responsável pela unidade produtiva. Em vão se procurará encontrar, porque não existe, uma disposição constitucional que confira a trabalhadores, tomados atomisticamente e desligados das respectivas organizações representativas, o direito a pronunciarem-se sobre mutações que venham a ocorrer relativas ao direito de propriedade dos meios de produção ou à titularidade dos direitos do sujeito jurídico que encabeça a empresa, seja ela agrícola, industrial ou comercial. E compreende-se que assim seja, já que essas mutações não constituem, por si só, causa de cessação do vínculo juslaboral. Não há ligação incindível entre o direito ao posto de trabalho e a titularidade da empresa ou dos meios de produção.

16.2 - Um juízo de censura dos dois preceitos em análise não se poderá retirar do artigo 101.º da Constituição, tomado isoladamente, como acabou de se concluir. Em ambos os pedidos, porém, e designadamente no pedido B, que é aquele que está a ser apreciado, a essa norma constitucional acrescentam os requerentes a referência ao artigo 268.º, n.º 3, da Constituição.

A invocação do disposto nesta última norma como fundamento para a censura de inconstitucionalidade em que a lei alegadamente incorre ao suprimir a obrigatoriedade de audiência dos trabalhadores permanentes e efectivos suscita alguma perplexidade. É manifesto que o n.º 3 do artigo 268.º da Constituição não releva, pelo menos de forma directa, para a apreciação da constitucionalidade das normas legais questionadas, pois, não estando em causa a exigência de fundamentação dos actos, na parte que interessa para o caso, a norma constitucional apenas se limita a exigir a notificação dos actos administrativos aos interessados. Escapam à sua previsão, portanto, as fases do procedimento anteriores à perfeição do acto, nomeadamente a audiência dos interessados. Por outro lado, à alteração introduzida na lei com a redacção de 1990 é também estranha a matéria do direito ao recurso contencioso e das normas em análise não resulta só por si uma restrição do âmbito dos sujeitos legitimados para a respectiva interposição, vício esse que vinha alegado, nesta parte, no pedido A.

Mas também não conduz a um juízo negativo a análise dos normativos postos em crise, agora à luz do princípio constitucional da participação dos interessados na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito, contido no n.º 4 do artigo 267.º da lei fundamental, análise a que, atentas as conexões de conteúdo, passa a proceder-se, nos termos do n.º 5 do artigo 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional).

Retenha-se um primeiro ponto: o legislador não eliminou a participação dos interessados nos actos de demarcação de reservas, de reversão ou de entrega para exploração, estes contemplados no artigo 39.º - a este aspecto já se deixou referência. Com a nova redacção, o legislador delimitou em novos termos o universo dos sujeitos legitimados para intervirem na fase procedimental de audiência.

Ao excluir a obrigatoriedade de audiência dos trabalhadores efectivos e permanentes em serviço nos prédios expropriados ou nacionalizados - o que desde logo permite concluir que essa audiência não foi proibida mas sim deixado à Administração o poder de a ela proceder quando entender conveniente ou oportuno - terá o legislador excedido os limites do seu poder de conformação?

Deixando de lado a questão de saber se e em que medida se aplica às situações tipificadas pelas normas em apreciação, modificando a respectiva previsão, o regime constante do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei 442/91, de 15 de Novembro (cf. os respectivos artigos 2.º, 100.º e 53.º), deve dizer-se que não se encontra motivo para uma censura de inconstitucionalidade. Dada a sua estrutura de princípio, a norma do artigo 267.º, n.º 4, da Constituição está aberta à concretização legislativa, admitindo mais que uma solução, e já se deixou referido que o estatuto jurídico dos trabalhadores não tem de acompanhar as vicissitudes que para a exploração vierem a resultar de mutações dominiais.

Nesta perspectiva, os trabalhadores efectivos e permanentes passaram a estar colocados na situação dos demais trabalhadores afectos a explorações industriais, comerciais ou mesmo agrícolas às quais não se apliquem as normas da Lei 109/88, e não se pode afirmar que o legislador tenha actuado fora do espírito do sistema, inclusivamente tendo presente, também e conjugadamente, o disposto no artigo 101.º da Constituição. A participação dos trabalhadores através das suas organizações representativas assegurada por esta norma constitucional, no plano sistemático em que a mesma está colocada, tem com certeza virtualidades garantísticas apreciáveis, mas a força irradiante que dela se quiser extrair ainda aí não se oferece com a densidade preceptiva suficiente para impor ao legislador a consagração da obrigatoriedade de audiência dos trabalhadores efectivos e permanentes.

16.3 - Nesta conformidade, conclui-se pela não inconstitucionalidade das identificadas normas.

17 - A norma do artigo 37.º da Lei de Bases da Reforma Agrária (redacção da Lei 46/90).

A penúltima norma cuja declaração de inconstitucionalidade é requerida no pedido B é a norma constante do artigo 37.º da Lei 106/88, na redacção que lhe foi dada pela Lei 46/90, cujo teor seguidamente se transcreve:

Artigo 37.º
Beneficiários da entrega para exploração
1 - Os prédios expropriados ou nacionalizados são entregues em propriedade ou para exploração a beneficiários aptos a contribuírem para os objectivos da política agrícola, nos termos da Constituição.

2 - O Estado privilegia, como beneficiários da entrega prevista no número anterior, os pequenos e médios agricultores, de preferência integrados em unidades ou empresas de índole familiar.

Os deputados subscritores, conforme se alcança da interpretação da prévia exposição de motivos, apenas põem em causa a norma do n.º 2, designadamente porque o n.º 1 do artigo não tem conteúdo preceptivo autónomo, visto ele próprio se remeter para «os termos da Constituição» no que respeita à entrega em propriedade ou para exploração dos prédios expropriados ou nacionalizados a «beneficiários aptos a contribuírem para os objectivos da política agrícola». Porém, sendo certo que o n.º 1 não está posto em causa, constitui ele um elemento interpretativo e de relevo para esse efeito, do que se dispõe no número seguinte, conforme se verá.

O pedido, nesta parte, vem fundamentado na circunstância de a lei privilegiar «uns determinados beneficiários [...] em detrimento de outros igualmente previstos na Constituição», do que resultaria violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa) e do disposto no n.º 2 do artigo 97.º também da Constituição da República Portuguesa.

Segundo esta disposição constitucional, «as terras expropriadas serão entregues a título de propriedade ou de posse, nos termos da lei, a pequenos agricultores, de preferência integrados em unidades de exploração familiar, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores ou a outras formas de exploração por trabalhadores [...]».

Enumeram-se na Constituição três categorias de possíveis destinatários da terra. A lei limita-se a mencionar, referindo que são privilegiados como beneficiários, «os pequenos e médios agricultores, de preferência integrados em unidades ou empresas de índole familiar».

17.1 - Imediatamente ressalta uma discrepância entre o texto legal e o texto constitucional, na medida em que este não refere os «médios» agricultores como beneficiários. Mas importa colocar esta discrepância em termos adequados, que não têm de ser, forçosamente, aqueles que resultam da falta de correspondência literal entre as duas redacções.

Importa designadamente determinar se terá sido transgredido o âmbito constitucionalmente relevante do conceito de pequeno agricultor. E aqui desde logo ressalta a extrema fluidez e imprecisão da linha de fronteira entre os conceitos de pequeno e de médio agricultor, a convidar, mais exactamente a requerer, uma interpretação sistemática, sediada nas próprias normas sobre política agrícola da lei fundamental.

Tenha-se assim em conta que, quando são enumerados os beneficiários do auxílio do Estado na prossecução dos objectivos da política agrícola no n.º 1 do artigo 100.º, pequenos e médios agricultores surgem como candidatos preferenciais a esse auxílio, «nomeadamente quando integrados em unidades de exploração familiar». Precisamente é também a integração em unidades de exploração familiar o factor preferencial de entrega das terras expropriadas aos pequenos agricultores, previsto no n.º 2 do artigo 97.º, enquanto a disposição legal refere a integração em «unidades ou empresas de índole familiar».

A constituição de unidades de exploração familiar - ainda que não se queira entender que a enumeração do n.º 2 do artigo 97.º não é fechada, na medida em que nela se faz referência a «outras formas de exploração por trabalhadores» - surge assim como elemento comum e, sob pena de quebra de unidade de sentido do sistema, deverá o intérprete conferir-lhe um alcance pelo menos tendencialmente parificador dos conceitos de pequeno e de médio agricultor, na parte que agora releva quanto à entrega de terras.

Na verdade, ao analisarem-se as normas do n.º 2 do artigo 97.º e do n.º 1 do artigo 100.º da Constituição, tem de se concluir que, se o objecto imediato da previsão é diferente nas suas normas, todavia as finalidades a prosseguir não diferem. Significativo é que, subjacente a ambos os preceitos, esteja a realização da política agrícola que, ao promover a racionalização das estruturas fundiárias e o acesso à propriedade ou à posse da terra, tem em vista beneficiar aqueles que a trabalham, cumprindo assim o que se estabelece na alínea b) do n.º 1 do artigo 96.º da Constituição, fixando-se como condição de preferência, quer para a exploração ou entrega das terras quer para o auxílio do Estado, a integração do trabalhador da terra em unidades de exploração familiar.

Deve portanto relativizar-se a discrepância de terminologias - a própria Constituição parece também proceder desta forma noutros lugares da parte II, «Organização económica», ao referir em vários dos seus preceitos conjuntamente as pequenas e médias empresas [v. g., nos artigos 85.º, n.º 2, 87.º, n.º 2, e alínea d) do artigo 103.º] -, embora dentro de certos limites. Passam eles pela impostação de que a lei, ao designar «os pequenos e médios agricultores» como beneficiários da entrega de terras para exploração, ou seja, a título de posse na terminologia constitucional, se limita a estabelecer uma preferência, no âmbito daquela categoria, em favor de agricultores «integrados em unidades ou empresas de índole familiar».

Na parte em que o artigo 37.º da Lei 109/88, na redacção da Lei 46/90, complementado pela legislação de desenvolvimento, ou seja, o Decreto-Lei 63/89, de 24 de Fevereiro, se aplica às entregas «para exploração», é de destacar que o legislador se movimenta ainda dentro das linhas já esboçadas.

Com efeito, nas definições contidas no decreto-lei citado, de publicação anterior às alterações de 1990, para além do conceito de «pequeno agricultor» [alínea c) do n.º 1 do artigo 3.º], surge-nos aí um outro, que é o de «pequeno e médio agricultor (PMA)».

Este conceito, que vem definido como tratando-se de um «agricultor autónomo, jovem agricultor ou empresário agrícola, incluindo o jovem veterinário ou técnico agrícola sem terra ou que assente o seu empreendimento na exploração agrícola familiar» [alínea d) do mesmo número e artigo], é considerado como «equivalente ao de pequeno agricultor dotado de profissionalidade agrícola» (parte final da referida alínea).

Face a esta equivalência, parece legítimo sustentar-se que o conceito de «pequeno agricultor» a que faz referência o n.º 2 do artigo 97.º da Constituição engloba o de «médio agricultor», que, afinal, mais não é que o camponês ou agricultor autónomo dotado de conhecimentos profissionais agrícolas e que, se integrado também em unidades de exploração familiar, goza de preferência na entrega de terras para exploração.

Assim, tem de se concluir que, neste segmento e segundo este entendimento, a norma do artigo 37.º, n.º 2, da Lei 106/88, na redacção da Lei 46/90, não viola a Constituição.

17.2 - Contudo, importa analisar o conteúdo da norma em causa na perspectiva da violação do princípio da igualdade.

Depois de, no n.º 1, o legislador ordinário ter estabelecido que «os prédios expropriados ou nacionalizados são entregues em propriedade ou para exploração a beneficiários aptos a contribuírem para os objectivos da política agrícola, nos termos da Constituição», determinou no n.º 2, ao fixar os beneficiários da entrega para exploração, que «o Estado privilegia, como beneficiário da entrega prevista no número anterior, os pequenos e médios agricultores, de preferência integrados em unidade ou empresas de índole familiar».

Privilegiar, no contexo de todo o artigo, não significa a exclusão das outras duas categorias constitucionais de possíveis beneficiários, a saber, cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores, bem como outras formas de exploração por trabalhadores. Privilegiar significa então dar preferência, em igualdade de condições, a candidatos à entrega dos prédios.

A verdade é que, sendo admissível a pluralidade de categorias de candidatos (sem afastar a hipótese de pluralidade de candidatos no âmbito da mesma categoria), a lei vem limitar o poder de escolha da Administração, ainda que em termos amplos e carecidos de desenvolvimento, o que se justifica por estarmos perante uma lei de bases, de entre todos aqueles que se mostrarem aptos a contribuir para os objectivos da política agrícola.

Privilégio não envolve, neste contexo, exclusão nem favorecimento absoluto, e um determinado critério de preferência tem de ser adoptado como forma de evitar uma actuação administrativa insusceptível de controlo quando, relativamente ao mesmo prédio ou prédios, surgir uma pluralidade de pretensões.

17.3 - Violação do n.º 2 do artigo 97.º da Constituição não ocorre, portanto. Preferência, em concorrência de candidaturas, no caso, poderá porém envolver preterição do princípio da igualdade?

É desde já necessário não esquecer que estamos perante uma segunda fase do processo - aquela que pressupõe uma anterior, em que serão admitidos a beneficiários da entrega candidatos das três categorias contempladas no n.º 2 do artigo 97.º A força deôntica da igualdade surge, consequentemente, mais diluída, pois não se reporta à titularidade de um direito, mas projecta-se no âmbito da limitação da discricionariedade administrativa.

Ora, neste segundo plano há que perguntar se é desajustado um relativo (não absoluto) favor em benefício dos pequenos e médios agricultores (quanto a estes no entendimento que já ficou referido) e, de entre estas duas categorias, em terceiro plano, daqueles que se mostrem integrados em unidades ou empresas de tipo familiar.

Em reforço da solução adoptada pelo legislador fala o n.º 2 do próprio artigo 97.º da Constituição, sobretudo se lido também em conjugação com o n.º 1 do artigo 100.º É difícil não ver na enumeração a que procedem estas duas normas uma graduação valorativa, que vem em apoio do n.º 2 do artigo 37.º da lei. Mas decisiva é, conforme aliás a lei explicita, a consideração dos objectivos, definidos para a política agrícola, no artigo 96.º, n.º 1, da Constituição.

Por que razão, em igualdade de condições, preferir os pequenos e médios agricultores de preferência integrados em unidades ou empresas de índole familiar? Porque essa será uma das vias de «promover [...] o acesso à propriedade ou à posse da terra e demais meios de produção directamente utilizados na sua exploração por parte daqueles que a trabalham». Não se nega que cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores ou outras formas de exploração por trabalhadores sejam também forma de acesso à terra e demais meios de produção. Formas de associativismo, designadamente cooperativo, dos trabalhadores rurais e dos agricultores são, aliás, candidatos constitucionalmente legítimos ao apoio do Estado [cf. a alínea d) do n.º 2 do artigo 100.º da Constituição da República Portuguesa].

No entanto, e desde logo pela via do associativismo, uma categoria não exlui a outra ou outras, visto que pequenos agricultores podem estar ou vir a estar associados em cooperativas.

Sendo porém necessário um critério de preferência, a opção legal em favor dos pequenos agricultores, de preferência integrados em unidades ou empresas de índole familiar, é plenamente conforme à Constituição e não pode contrariar o princípio da igualdade. Este tem de ser lido no contexto e no seguimento das exigências positivas extraídas dos valores constitucionalmente relevantes, o que, aliás, é uma perspectiva de entendimento só por si mais exigente do que a mera censura externa de opções legislativas arbitrárias por lhes faltar fundamento material bastante. E, patentemente, não é esse o caso quando se analisa o n.º 2 do artigo 37.º da Lei de Bases da Reforma Agrária na sua redacção vigente.

17.4 - Conclui-se, pelas razões apontadas, pela não inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 37.º da Lei 106/88, de 26 de Setembro, na redacção da Lei 46/90, de 22 de Agosto.

B)3 - Pedidos A, B, C e D
18 - A norma do artigo 50.º da Lei de Bases da Reforma Agrária (versão originária e da Lei 46/90).

Finalmente resta apreciar a conformdiade à Constituição do artigo 50.º da Lei de Bases da Reforma Agrária, na redacção originária (pedidos A e C) da Lei 106/88 e na que lhe foi dada em 1990 (pedidos B e D), desta forma se dando cumprimento ao solicitado nos referidos pedidos, no contexto e pelas razões já apontadas em sede de questão prévia. Transcreve-se aqui apenas a redacção actual dessa norma (quer a redacção originária quer a actual constam já do texto, no n.º 6.1.4):

Artigo 50.º
Pressupostos da suspensão de eficácia
A suspensão da eficácia de actos administrativos que tenham como efeito principal ou subordinado a atribuição ou devolução de terras a quem delas haja sido privado só pode ser decretada judicialmente se, preenchidos os demais requisitos da lei, o requerente estiver investido no direito de exploração de determinada área por acto administrativo ou contrato válido oponível ao Estado.

18.1 - Sobre esta matéria tem o Tribunal Constitucional produzido abundante jurisprudência, ainda que com votos de vencido, tendo a questão da conformidade constitucional desta norma subido ao plenário do Tribunal, que, através dos Acórdãos n.os 366/92, de 17 de Novembro de 1992, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 23 de Fevereiro de 1993, e 205/93, de 9 de Março de 1993, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Março de 1993, decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 50.º, n.º 1, da Lei 109/88 (versão originária), por violação do artigo 13.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, remetendo para a fundamentação dos acórdãos que confirmou, com os n.os 43/92, de 28 de Janeiro de 1992, e 450/91, de 3 de Dezembro de 1991, respectivamente.

É esta fundamentação que aqui se reitera no que respeita à versão originária do artigo 50.º, n.º 1, da Lei 106/88, em relação à qual o relator é vencido, mas que passa a expor-se, como ratio decidendi no sentido da pronúncia de inconstitucionalidade, recorrendo à transcrição parcial do Acórdão 43/92:

O artigo 50.º, n.º 1, da Lei 109/88 veio definir um regime específico sobre os «pressupostos da suspensão de eficácia» de actos administrativos que, no âmbito da reforma agrária, determinem a entrega de reservas ou reconhecem não ter sido expropriado ou nacionalizado determinado prédio rústico.

E tal regime, de conteúdo manifestamente restritivo, importa, quando comparado com o regime geral contido na LPTA, duas significativas alterações:

Restringe às empresas agrícolas que explorem o prédio abrangido mediante concessão de exploração, licença de uso privativo, arrendamento rural ou exploração de campanha, a legitimidade para requerer a suspensão da eficácia, retirando às demais, isto é, a todas as outras que o explorem a outro título, essa mesma legitimidade;

Impede a concessão da suspensão da eficácia sempre que a pontuação da área na posse do requerente seja inferior à pontuação da reserva atribuída ao interessado na execução do acto.

Mas, ao instituir esta disciplina limitadora do instituto da «suspensão da eficácia» de certos actos administrativos praticados no âmbito da reforma agrária, o legislador acabou por atentar contra o texto constitucional.

Como é sabido, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição proíbe o legislador de tratar desigualmente aquilo que é essencialmente igual e de tratar igualmente aquilo que é essencialmente desigual.

Porém, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.

Só quando os limites externos da discricionariedade legislativa são violados, isto é, quando a norma legal não dispõe de adequado suporte material, é que existe desrespeito do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio.

De outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não se baseando em qualquer motivo constitucionalmente impróprio (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. 1, 2.ª ed., Coimbra, 1984, pp. 148 e seguintes).

Pois bem: a jurisprudência pacífica e reiterada do Supremo Tribunal Administrataivo, com a concordância, aliás, da melhor doutrina (cf., entre outros, os Acórdãos de 10 de Janeiro de 1978 e de 17 de Abril de 1980, com anotações de assentimento por parte do Prof. Afonso Queiró, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 113.º, p. 274, e ano 114.º, p. 85), tem-se pronunciado no sentido de às «unidades colectivas de produção» titulares de posse útil sobre determinado prédio pertencer interesse directo, pessoal e legítimo na impugnação de acto atributivo de reserva ou reconhecedor de inexistência de expropriação ou nacionalização relativo a tal prédio na área de intervenção da reforma agrária, dispondo por isso de legitimidade para o respectivo recurso contencioso e, consequentemente, para o correspondente pedido de suspensão de eficácia.

Todavia, por força da norma aqui questionada, estabeleceu-se uma discriminação entre as entidades com legitimidade para a impugnação contenciosa em termos de umas - as que são ali elencadas (o requerente há-de explorar o prédio em causa mediante concessão de exploração, licença de uso privativo, arrendamento rural ou exploração de campanha)- poderem requerer a suspensão da eficácia dos respectivos actos administrativos, não assistindo já tal direito às demais entidades, isto é, a todas as outras que explorem o prédio a qualquer outro título (e aqui se incluem as entidades que exploram o prédio com base na posse útil que sobre o mesmo detêm).

Não se encontra qualquer fundamento material que sirva de suporte a este tratamento diferenciado e discriminatório, que se assume, assim, como constitucionalmente insustentável.

Com efeito, quando se tiver em atenção que o direito de impugnação contenciosa despojado da possibilidade de se requerer a suspensão da eficácia fica desprovido do seu conteúdo essencial, a discriminação estabelecida naquela norma apresenta-se, de todo, como arbitrária e irrazoável, desde logo, por força das consequências que dela advêm ou podem advir.

Aliás, e tal como se assinala na alegação do Sr. Procurador-Geral-Adjunto, «a situação é similar à que foi apreciada pelo Tribunal Constitucional italiano nas suas sentenças n.os 284/84 e 227/85 (publicadas em Giurisprudenza Constituzionale, ano 19.º, 1974, t. II, p. 2953, e ano 20.º, 1975, t. II, p. 1686), a propósito de uma norma que veio restringir (aos casos de erro grave e evidente na identificação do imóvel expropriado ou dos respectivos proprietários) os fundamentos da suspensão judicial dos actos expropriativos. Aí se ponderou que é erróneo o entendimento de que, competindo à lei ordinária determinar os casos de anulação de actos administrativos, fica na livre disponibilidade do legislador limitar (ou eliminar) o poder instrumental de suspensão é um elemento conatural de um sistema de tutela jurisdicional, pelo que a exclusão desse poder ou a limitação da área de exercício do mesmo a determinadas categorias de actos ou a certos tipos de vícios contrasta com o princípio da igualdade sempre que não ocorra uma justificação racional da diversidade de tratamento».

À luz do exposto, e considerando ainda o facto de este Tribunal (cf. os citados Acórdãos n.os 450/91 e 452/91), com base em argumentação similar à que aqui se desenvolveu, já também assim haver decidido, impõe-se a conclusão de que a norma do artigo 50.º, n.º 1, da Lei 109/88 viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição.

Conclui, assim, o Tribunal no sentido de declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 50.º da Lei 106/88, por violação do artigo 13.º da Constituição.

Face a tal conclusão, torna-se inútil apurar se viola ou não as outras normas constitucionais que vêm invocadas.

18.2 - Importa, por último, analisar se a redacção dada ao artigo 50.º da Lei 106/88 pela Lei 46/90 é ou não violadora da Constituição, como pretendem os requerentes dos pedidos B e D.

Vejamos, antes de mais, as modificações introduzidas no texto legal.
Por um lado, verifica-se que a lei, na sua redacção actual, deixou de indicar expressamente as categorias de recorrentes que poderiam requerer a suspensão da eficácia do acto administrativo impugnado.

Por outro lado, a nova redacção eliminou o requisito da pontuação (só podia requerer a suspensão da eficácia do acto administrativo que determinava a entrega de reservas ou reconhecia não ter sido expropriado ou nacionalizado certo prédio quem, preenchendo os anteriores requisitos, fosse, à data de tal acto, possuidor de área de terra com pontuação inferior à pontuação da reserva atribuída ao interessado na execução do acto), tendo também eliminado os n.os 2 e 3 da versão originária.

Ora a versão actual do artigo 50.º, embora se entenda que a situação dele resultante não será mais gravosa que a da redacção originária, o certo é que é passível da mesma censura em que incorreu a versão originária.

Com efeito, a restrição da legitimidade para requerer a suspensão da eficácia a quem estiver investido no direito de exploração de determinada área por «acto administrativo ou contrato válido oponível ao Estado» é tão arbitrária e discriminatória quanto o era a feita na anterior redacção.

Assim, pelos fundamentos já invocados quanto à primeira redacção, relativos à discriminação sem fundamento material bastante entre as entidades com legitimidade para requererem a suspensão da eficácia de actos administrativos relativos à atribuição ou devolução de terras no âmbito da reforma agrária e as que a não tinham (v. g. UCP, titulares da posse útil da terra), tem de ser concluir pela inconstitucionalidade da norma em causa, igualmente por violação do artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portugeusa.

III - Decisão
19 - Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 17.º, 18.º [ressalvada a alínea a)], 28.º, n.os 2 e 3, 30.º e 33.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, na sua versão originária;

b) Não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 11.º (em combinação com o artigo 15.º), 12.º e 21.º, 13.º, 14.º, 15.º, considerado autonomamente, 18.º, alínea a), 19.º e 28.º, n.º 1, da versão originária da mesma lei, bem como das normas constantes dos artigos 14.º-A, 17.º, 18.º, 28.º, 39.º, e 37.º da referida lei, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 46/90, de 22 de Agosto;

c) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 50.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, na redacção originária e na que lhe foi dada pela Lei 46/90, de 22 de Agosto, por violação do artigo 13.º da Constituição.

Lisboa 3 de Maio de 1995. - Vítor Nunes de Almeida [vencido, conforme declaração aposta ao Acórdão 450/91, relativamente à alínea c) da decisão, cujos fundamentos valem para a redacção actual da lei] - Antero Alves Monteiro Dinis - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Guilherme da Fonseca [vencido, em parte, quanto à decisão constante da alínea b)] - Armindo Ribeiro Mendes [vencido, em parte, quanto à decisão constante da alínea b), por ter considerado inconstitucionais os artigos 14.º-A e 37.º, n.º 2, da Lei 109/88, na redacção dada pela Lei 46/90, de 22 de Agosto] - Maria Fernanda Palma [vencida, em parte, quanto à decisão constante da alínea b), por ter considerado inconstitucionais os artigos 14.º-A e 37.º, n.º 2, da Lei 109/88, na redacção da Lei 46/90, de 22 de Agosto] - Bravo Serra [vencido quanto à decisão constante da alínea c) do acórdão, pelas razões do Acórdão 154/91, de que fui relator. Por outro lado, e uma vez que mantenho a posição que, verbi gratia e por mais recente, defendi no Acórdão 57/91, não dou a minha anuência ao que se expõe no n.º 6.1 do presente aresto e, sequentemente, não conhecia do pedido no que tange ao artigo 15.º da versão originária da Lei 109/88, de 26 de Setembro] - Fernando Alves Correia [vencido, quanto à alínea c) da decisão, pelos fundamentos do Acórdão 173/91 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 205, de 6 de Setembro de 1991), de que fui relator] - Messias Bento [vencido quanto à decisão constante da alínea c): entendi, de facto, que o artigo 50.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, não é inconstitucional na versão originária nem na redacção introduzida pela Lei 46/90. As razões são as que constam do Acórdão 187/88, que, na nova lei, ganham maior força, pois o decretamento da suspensão de eficácia exige agora menos requisitos especiais] - José Manuel Cardoso da Costa [vencido quanto à decisão da alínea c), conforme a posição que, sobre essa temática, já antes assumi em decisões anteriores do Tribunal].


Declaração de voto
Votei vencido, em parte, quanto à matéria constante da alínea b) da parte decisória do acórdão, por entender verificar-se o vício de inconstitucionalidade relativamente às seguintes normas:

1) A do artigo 4.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, que não foi objecto de alteração pela Lei 46/90, de 22 de Agosto, e que o acórdão trata no seu n.º 8, relativamente ao pedido A, para concluir «pela não inconstitucionalidade da norma em apreço».

Sem questionar a posição do acórdão quando se entende que a «inconstitucionalidade das normas questionadas nos presentes autos irá, assim, ser apreciada face à versão actual da Constituição», porque se trata no caso de inconstitucionalidade material, sendo que, «nesta sede, a norma constitucional relevante para aferir a legitimidade constitucional é a que estiver em vigor no momento em que se procede ao controlo» (n.º 6.2 do acórdão), a verdade é que não acompanho inteiramente as considerações do aresto relativamente à «evolução da Constituição no que se refere à reforma agrária» (n.º 7).

O desejo de ver na supressão da «própria referência à reforma agrária», com a revisão constitucional de 1989, um alcance de «sensíveis e significativas» alterações introduzidas com essa revisão na constituição agrária, não corresponde inteiramente ao sentido de tais alterações, e, portanto, aquela supressão não é tão intensiva e extensiva como se deseja no acórdão.

Sucede que, tendo sido suprimida a expressão «reforma agrária», foram mantidos os imperativos constitucionais contrários à reconstituição do latifúndio e favoráveis à entrega da terra para exploração «por parte daqueles que a trabalham» [artigo 96.º, n.º 1, alínea b)], devendo facultar-se o acesso à propriedade ou à posse (e já não posse útil) da terra às mesmas entidades anteriormente qualificadas como destinatários da reforma agrária (artigo 97.º, n.º 2). À inovação consistente na possibilidade de acesso à propriedade de terra nacional soma-se a expressa previsão do direito de reserva para o proprietário expropriado (artigo 97.º, n.º 1).

Pensando no futuro da agricultura portuguesa, uma coisa é certa: não seria possível assegurar a «transformação e modernização das estruturas económicas e sociais» [artigo 9.º, alínea d)] fazendo regressar aos campos a desoladora expressão económica, social e política do latifúndio, cuja eliminação é «incumbência prioritária do Estado» [artigo 81.º, alínea h)] - é o entendimento de José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, p. 97.

No mesmo sentido pronunciam-se Gomes Canotilho e Vital Moreira, para quem a eliminação do conceito de reforma agrária que «era uma das imagens de marca do texto originário da CRP [...], não significa a eliminação dos instrumentos em que ela se traduzia» - Constituição Anotada, 3.ª ed., p. 438.

Mas, a acrescentar ao que dizem aqueles autores, pode ainda buscar-se, para ver que afinal a constituição agrária não se alterou assim tanto, a partir do texto originário da lei fundamental, pese embora a «imagem de marca» que aí tinha, o próprio preâmbulo desta lei, onde ainda se encontra a intenção socialista, «tendo em vista a construção de um país livre, mais justo e mais fraterno», que pode continuar «a poder servir, pelo menos, para impedir uma densificação 'fraca' do princípio da 'democracia económica, social e cultural' (artigo 2.º)», tal-qualmente se expressam Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., p. 45). E o citado artigo 2.º, donde releva o princípio social ou do Estado social, como directiva constitucional emanente do Estado de direito democrático, e ainda todo o quadro constitucional integrador da organização económica, como seja, de modo mais sobressaliente:

O princípio da coexistência «do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social da propriedade dos meios de produção», com protecção deste último sector [alíneas b) e e) do artigo 80.º].

As incumbências prioritárias do Estado de promover «o aumento do bem-estar social e económico e da qualidade de vida do povo, em especial das classes mais desfavorecidas», de operar «as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento» e de orientar «o desenvolvimento económico e social no sentido de um crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões e eliminar progressivamente as diferenças económicas e sociais entre a cidade e o campo» [alíneas a), b) e d) do artigo 81.º].

A garantia da «existência de três sectores de propriedade dos meios de produção», compreendendo especificamente o sector cooperativo e social os «meios de produção objecto de exploração colectiva por trabalhadores» [n.os 1 e 4, alínea c), do artigo 82.º].

É o próprio acórdão a reconhecer, a contragosto, que «não pode porém dizer-se que se insira (a Lei de Bases da Reforma Agrária) num quadro constitucionalmente neutro e totalmente entregue à liberdade de iniciativa privada e ao jogo das leis do mercado», mas não retira de tal reconhecimento todas as virtualidades que ele poderia comportar (pelo contrário, veio depois estender-se em posições que, se não são pura exaltação do latifúndio, correspondem, pelo menos, a um retrocesso latifundista).

E é logo o que acontece com o artigo 4.º da Lei 109/88, posto em confronto com o artigo 96.º da Constituição, não querendo o acórdão ver «qualquer contradição entre as finalidades agrícolas», tal como são definidas naquele artigo 4.º, e as constantes da norma constitucional.

Mas há contradição, ficando muito aquém os objectivos da política agrícola definidos na lei ordinária relativamente aos objectivos que a directiva constitucional do artigo 96.º impõe ao legislador (neste sentido apontaram já alguns votos de vencido, que acompanham o Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 187/88, citado no aresto - cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12.º vol., pp. 91, 92 e 95 a 101).

Sem querer questionar aqui se é ou não perfeita e correcta a técnica legislativa de repetir em lei ordinária os comandos constitucionais, então que se repitam estes pura e simplesmente, quando o legislador o quer fazer, mas sem alterar, contradizer ou inverter os tais comandos.

Ora os objectivos da política agrícola definidos nas alíneas b), c) e e) do n.º 1 do artigo 96.º não encontram eco em nenhuma das alíneas do questionado artigo 4.º, nomeadamente nas alíneas a) e b).

Com efeito, e só para aludir a alguns aspectos desses objectivos constitucionais, o do «acesso à propriedade ou à posse da terra e demais meios de produção directamente utilizados na sua exploração por parte daqueles que a trabalham», ou o da criação de «condições necessárias para atingir a igualdade efectiva dos que trabalham na agricultura com os demais trabalhadores», ou ainda o da incentivação do «associativismo dos agricultores e a exploração directa da terra», não encontram tradução, mínima que seja, no artigo 4.º, não bastando dizer-se, como aí se diz e no acórdão se aceita, que a política agrícola visa prosseguir o «reforço e aperfeiçoamento da ligação do homem com a terra» [alínea a)] e a «melhoria da situação económica, social e cultural e a garantia dos direitos dos agricultores» [alínea b)]. Estas são fórmulas legais ocas e vagas, que não espelham o modelo constitucional, podendo até servir unicamente para o sector privado, cuja propriedade ou gestão pertence a pessoas singulares ou colectivas privadas, com completa marginalização do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção, cuja protecção - e não só a existência - é, como se viu já, um dos princípios fundamentais da constituição económica.

Tanto basta para concluir, tal-qualmente se concluiu nos aludidos votos de vencido, que não interessa estar aqui a reproduzir que há desconformidade entre a norma em questão e o preceito constitucional do n.º 1 do artigo 96.º, pelo que julgaria materialmente inconstitucional o artigo 4.º da Lei 109/88.

2) As dos artigos 11.º (em combinação com o artigo 15.º), 12.º e 21.º da Lei 109/88, relativas ao âmbito das expropriações e à delimitação dos actos ineficazes, e que o acórdão trata nos seus n.os 9.1 e 9.2, para concluir «pela não inconstitucionalidade» de tais normas, dando assim por improcedente a arguição constante do pedido A de que elas «diminuem especificamente a área sujeita a expropriação».

Ainda que acompanhe o acórdão no ponto em que se dá como apurado, em síntese, que «as modificações operadas quanto à determinação da área das reservas, cujo alargamento envolve, consequentemente, diminuição da área expropriável, vistas as coisas objectivamente, não são determinadas pelo propósito, ainda que tácito ou implícito, de repor a situação anterior e de liquidar as radicais transferências de propriedade ocorridas», não incorrendo ainda «as normas legais questionadas em censura de insconstitucionalidade à face dos padrões introduzidos na lei fundamental pela versão da Lei Constitucional 1/89», dele divirjo, no entanto, no aspecto em que se reporta à delimitação dos actos ineficazes, matéria constante do artigo 21.º

Com efeito, mesmo na perspectiva aceitável - e que é a do acórdão - de consentir a lei fundamental «ao legislador uma margem de conformação legislativa na matéria», e «essa margem existe e é considerável, dentro dos objectivos constitucionalmente fixados para a política agrícola», a verdade é que uma norma daquele tipo, que «desloca para o início do processo de expropriação a data a partir da qual se comina a ineficácia, contribui de forma censurável para a diminuição da área expropriável», para usar a linguagem do acórdão.

Vendo a razão de ser do preceito do artigo 21.º na necessidade ainda sentida pelo legislador de 1988 de criar, através da figura da ineficácia de actos ou contratos, um mecanismo que evitasse a «diminuição de área expropriável», em conjugação com o artigo 11.º, relativo ao âmbito das expropriações (e combinado este com o artigo 15.º, que fixa o rendimento fundiário em 91000 pontos), a verdade é que a alteração introduzida relativamente ao artigo 24.º da Lei 77/77, de 29 de Setembro, veio significar mais um «retrocesso latifundista», contrário àquele objectivo de se evitar a «diminuição de área expropriável».

É que, enquanto na óptica daquele artigo 24.º o mecanismo da ineficácia, amortecedor das consequências lesivas para os trabalhadores da aplicação da citada Lei 77/77, começava logo a partir da data de 25 de Abril de 1974, funcionando ainda uma presunção (n.º 3), relativamente a actos ou contratos que «tenham sido celebrados com parentes ou afins», com o artigo 21.º, esse mecanismo só se reporta a «actos ou contratos relativos a prédios já expropriados, praticados depois do início do processo de expropriação, dos quais resulte diminuição de área expropriável», desaparecendo também aquela presunção.

Mesmo que se entenda que da Constituição não decorre a exigência de uma norma legal do tipo do artigo 24.º da Lei 77/77, certo é que ao legislador estava vedado eliminar agora, na prática, uma medida concebida para lutar contra a reconstituição do latifúndio. Mas conseguiu-o com o artigo 21.º, ora questionado, fazendo desaparecer a ineficácia dos actos ou contratos que posteriormente à data de 25 de Abril de 1974 tiveram em vista o resultado de diminuir a área expropriável, sobretudo através de negociatas com parentes, afins ou amigos, que permitiram fazer reviver o statu quo anterior àquela data, na zona de intervenção da reforma agrária.

Sendo o latifúndio naquela zona «um dos mais trágicos flagelos económicos e sociais» que durante longo período marcaram a agricultura portuguesa no Sul do País (cf. J. Magalhães, ob. cit., p. 71, referindo-se ainda às «martirizadas terras do latifúndio»), isso mesmo o reconhece o legislador constituinte, que fez da reforma agrária a tal «imagem de marca» de que se falou já (e é sabido que a supressão dos latifúndios está ligada à concepção tradicional da reforma agrária).

Em todo o caso, como diz aquele autor, ficaram insatisfeitos «os que desejavam que a II Revisão convertesse a Constituição da República num hino ao latifúndio (ou o esvaziamento de directrizes e garantias antilatifundistas, estabelecendo um silêncio constitucional propício à livre reconstituição latifundiária)», sendo, que o «novo regime causa porém apreensão»:

[...] acarreta as mesmas consequências jurídicas do anterior (e traz os benefícios da desideologização)? Assim pode permitir concluir com algum esforço uma interpretação escorreita dos preceitos da Constituição revista. Irão, porém, fazê-la aqueles mesmos que na vigência da redacção anterior foram contrariando, ano após ano, os sinais que a ruptura revolucionária de 1974-1975 espalhou pelas martirizadas terras do latifúndio?

É de presumir que não. E é mesmo de reconhecer que para esses a terceira revisão já começou ... (ob. cit., p. 71).

E um sinal dessa «apreensão» é exactamente a norma questionada do artigo 21.º, regredindo em relação à anterior solução do artigo 24.º da Lei 77/77, e abrindo na sua aplicação o caminho para resultados opostos ao propósito manifestado na norma e relacionado com a evitação da «diminuição de área expropriável», na medida em que se limita a ineficácia dos actos ou contratos, relativamente a prédios já expropriados, aos «praticados depois do início do processo de expropriação» e só a estes.

O próprio acórdão arranca uma resposta positiva em sede de juízo de inconstitucionalidade e à luz do texto da Constituição, a que seguidamente não adere, «se se entender que as normas constitucionais vigentes a partir de 1982 consagravam a expropriação como objectivo a se. E é assim mesmo, no meu entendimento, que não é o do acórdão, nada impedindo que se olhe com tal perspectiva a expropriação, pois o objectivo fundamental de introduzir uma profunda correcção nas estruturas e na repartição do rendimento do mundo rural continua a ser, quer se queira quer não, a característica basilar da constitução agrária portuguesa. Tal modelo constitucional não permite ao legislador ordinário tomar opções geradoras de retrocessos, como é opção do artigo 21.º, abrindo o caminho para efectivamente diminuir - e não evitar a diminuição - a área sujeita a expropriação.

Se no quadro político foram criadas condições, na década de 1980, para inverter o sinal da constituição agrária, aproveitando a eliminação de expressões ideologicamente marcantes de um projecto de transformação da agricultura portuguesa, na zona de intervenção da reforma agrária, nascido com o 25 de Abril de 1974, não venha agora o legislador ordinário a dar um impulso mais a tal inversão.

Veja-se, em Portugal 20 anos de Democracia, Círculo de Leitores, pp. 183 e seguintes e 199-201, a notícia histórica da movimentação que conduziu à reforma agrária, com «as primeiras ocupações de terras no Alentejo e em algumas zonas contíguas do Ribatejo», podendo, a propósito, ler-se aí o seguinte:

Por outro lado, um dos pilares constitucionais do socialismo revolucionário - a «Reforma Agrária» - resistiu longos anos, mas terminou mais cedo, por um processo maciço de atribuição de reservas nos termos da lei ordinária (de 1977 a meados dos anos 80). Operou-se, pois, a sua liquidação por uma mera prática administrativa, muitas vezes necessitando, para se manter, do desrespeito sistemático de decisões dos tribunais, como foi o caso da não execução de mais de duas centenas de acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo que anulavam actos de atribuição de reservas por parte do Governo (p. 193).

Não pode ignorar-se [...] que, cabendo ao legislador ordinário praticar opções fundamentais definidoras de conceitos como o de «dimensão excessiva» [artigo 168.º, n.º 1, alínea n)], é sempre no sistema político que se gerarão as condições necessárias aos avanços (ou retrocessos) dentro do quadro geral desenhado pela Constituição. De um milhão e duzentos mil hectares de terra ocupada na zona da reforma agrária após o 25 de Abril restavam na posse de unidades colectivas de produção, no ano de 1989, escassos milhares, minguantes, por força de uma política inconstitucional (antes e após a revisão) de reconstituição do latifúndio ... (É o que escreve, a propósito, José Magalhães, ob. cit., p. 21.)

Por tudo isto, e para encurtar razões, ao contrário da conclusão a que se chega no acórdão, entendo sair ferida a Constituição no seu ramo da constituição agrária, pelo conteúdo da norma do artigo 21.º, conjugada com o artigo 11.º e combinado este com o artigo 15.º, e assim o meu juízo é um juízo de inconstitucionalidade relativamente a esse conjunto de normas.

3) A do artigo 14.º-A, objecto de um aditamento intruzido pela Lei 46/90, de 22 de Agosto, e questionada no pedido B, ao abrigo da qual, e segundo esse pedido, «a Administração exerceria competências que seriam indubitavelmente do foro jurisdicional, assim se contrariando os artigos 205.º e 206.º da Constituição».

Contrariamente ao entendimento a que se chegou no acórdão, no seu n.º 14, no sentido de que o «argumento da invasão da reserva da função jurisdicional claudica logo à partida» - e daí concluir-se «pela não inconstitucionalidade da norma em apreço» -, entendo que há ferimento da Constituição, exactamente das normas dos artigos 205.º e 206.º

Isto porque, e seguindo a linguagem do acórdão, «pôr termo a situações que se terão constituído à margem da lei, com a ocupação de terras não passíveis de expropriação», sendo que é o Estado - «e aqui será de entender que se refere (a norma) aos órgãos e agentes da função administrativa»: lê-se de modo claro no aresto - a proceder «à desocupação de todas as terras que não são passíveis de expropriação», é invadir a «competência dos tribunais» e não apenas «proceder às operações materiais exigidas pelo restabelecimento da legalidade».

Neste ponto, e para encurtar razões, acompanho convictamente as declarações de voto dos Exmos. Conselheiros Maria Fernanda Palma e Ribeiro Mendes, apontando, e bem, para a «conclusão de que a norma do artigo 14.º-A da LBRA é frontalmente contrária ao disposto nos artigos 205.º, n.º 2, e 206.º da Constituição» («está em causa uma actividade administrativa que pressupõe a definição de direitos, numa situação de conflito social com eventual repercussão jurídica, sem intervenção dos tribunais»).

É que, se o Estado não tiver o direito de disposição e os bens estiverem na posse, ainda que sem a correspondente situação jurídica, de pessoas particulares, é evidente que a Administração, exercendo uma função administrativa, não tem legitimidade para ordenar a restituição ou entrega ou ainda a devolução desses bens.

Não pode ignorar-se em tais casos a existência de um conflito, sendo que não se verifica a presença de relevante interese público para intervir, antes a heterocomposição de conflitos de interesses privados.

Assim, tal comportamento da Administração, traduzido na prática de actos administrativos, irá feri-los necessariamente de invalidade por vício de usurpação de poder, arrastando a consequência da nulidade (cf., por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de Março de 1983, in Acórdãos Doutrinais, n.º 264, p. 1437, e de 11 de Dezembro de 1986, in Boletim, n.º 358, p. 400).

4) As dos artigos 17.º e 18.º da Lei 109/88, na redacção da Lei 46/90, e que o acórdão trata no seu n.º 15, para concluir que «não violam a Constituição quer a norma constante da redacção originária da alínea a) do artigo 18.º quer as normas dos artigos 17.º e 18.º da Lei 109/88, na redacção que lhes foi dada pela Lei 46/90».

Respeitando aquele artigo 17.º aos chamados indivisos (contitularidades e heranças indivisas), para tratar aí os quinhoeiros nas propriedades expropriadas como titulares individualizados de um direito de reserva (diz o acórdão: «Coloca-os na posição em que se encontrariam se, à data da expropriação, a situação não fosse de indivisão e cada interessado tivesse então direito a uma reserva»), e reportando-se o artigo 18.º ao património das sociedades, para aí fazer «caber uma reserva múltipla equivalente à soma de várias reservas», é bom de ver que, tal-qualmente se posiciona o acórdão, que «tudo reverte para o conceito legal de latifúndio» ou ainda se reconduz «à questão da determinação do conceito constitucional de latifúndio - ou melhor, à questão da margem, reconhecidamente ampla, em que ao legislador é permitido mover-se nesta matéria».

Mas, se é certo que, nesta matéria, «a fixação da quantificação entra no campo do poder de conformação do legislador, e só merecerá censura se objectivamente for conducente à prossecução de objectivos que contrariem a Constituição», não é menos verdade que, contrariamente ao juízo a que aderiu o acórdão, nada inovando relativamente ao anterior Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 187/88 - cuja «orientação aí firmada é de manter» -, a proibição constitucional da reconstituição do latifúndio, consagrada nos artigos 81.º, alínea h), e 97.º, da lei fundamental, sai fortemente atingida (razão têm, pois, os requerentes do pedido B quando, em síntese, sustentam que «as vias abertas pela nova redacção dos artigos 17.º e 18.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, conduzem à restauração do latifúndio, tal como historicamente existiu e como na prática tem estado a suceder»).

E isto quer no aspecto da pura aplicação dos mecanismos permissivos dos artigos 17.º e 18.º quer no aspecto da conjugação dessa aplicação com a eliminação da sanção da nulidade cominada para os actos jurídicos que conduzam à reunificação das reservas atribuídas [anteriores n.º 5 do artigo 17.º e alínea e) do artigo 18.º da Lei 109/88, na sua versão originária].

É de todos sabido, e também sabe o acórdão, o que significa latifúndio, não em sentido físico - uma muito grande propriedade privada, em suma -, mas no sentido verdadeiro, que é o económico, correspondente à ideia essencial de propriedade excessiva («latifúndio é conceito aplicável a uma exploração agrícola que tenha dimensão excessiva do ponto de vista dos objectivos da política agrícola» - lê-se no acórdão). «Excessiva num duplo sentido: a) porque proporciona ao respectivo proprietário rendimento bastante para lhe assegurar amplas possibilidades de usufruir, sem que para tal se veja obrigado a exercer a função empresarial, isto é, com recurso a um ou a múltiplos arrendamentos das suas terras, um nível de vida igual ao das classes mais elevadas da pirâmide social e, portanto, muitíssimo superior ao da grande maioria dos empresários agrícolas na região; b) porque ultrapassa, em exigências, a capacidade normal de gestão agrícola de uma pessoa, o que faz com que esta gestão seja deficientemente exercida, com fraco aproveitamento dos recursos disponíveis e, em particular, da capacidade produtiva do solo» (cf. Focus, Enciclopédia Internacional, vol. III, p. 288, acrescentando-se ainda: «As estruturas agrárias caracterizadas pelo predomínio ou pela forte representação da propriedade latifundiária não se caracterizam, porém, apenas pela extensividade dos sistemas de produção, mas também pela extrema assimetria económica na repartição do rendimento social-agrícola, pelo absentismo dos proprietários, pelos contratos mal equilibrados de arrendamento e de parceria, pelo fraco e descontínuo grau de emprego da população rural e pelo baixo nível de vida da maioria desta.»).

Álvaro Cunhal revela, com números e tabelas referidos às décadas de 1940-1960, e por distritos do continente, a situação da divisão da propriedade no nosso país, para constatar que «Portugal é, a um tempo, um país de muito grandes e muito pequenos proprietários, com predomínio dos muito grandes proprietários» (Contribuição para o Estudo da Questão Agrária, vol. I, p. 253). E, a propósito, regista que:

[Mas], tendo em conta que as áreas médias dos prédios rústicos nos distritos de Beja e Setúbal são mais elevadas do que respectivamente nos distritos de Portalegre e Évora; tendo em conta que os maiores latifúndios estão situados no distrito de Setúbal; tendo em conta que nos Distritos de Castelo Branco, Santarém, Lisboa e Faro e ainda junto do Douro e raia beiroa existem vastas áreas onde domina a grande propriedade - ao reparar-se que os 1904 maiores proprietários dos distritos de Évora e Portalegre possuem (sem contar com os prédios de menos de 60 ha nem com as propriedades em mais de um distrito) mais de 1 milhão de hectares (quase uma oitava parte do território continental), não pode deixar de se pensar que menos de 10000 grandes proprietários (no total de 1 milhão e meio de proprietários) possuem mais de metade das terras de Portugal continental.

Ora, é uma situação assim figurada que acaba por arrastar a aplicação dos questionados artigos 17.º e 18.º, em especial com a eliminação agora da sanção da nulidade que, por cautela, o legislador, e bem, fazia constar da versão originária daqueles preceitos (a «dinâmica do sistema, doravante entregue ao jogo da autonomia privada», como lhe chama o acórdão, no n.º 15.3.1).

E não se diga, como faz o acórdão, que o «latifúndio começa para além da reserva e esta deve corresponder a uma área suficiente para a viabilidade e racionalidade da sua própria exploração», pois é claro que o funcionamento dos mecanismos que os artigos 17.º e 18.º facultam, mesmo considerando para o património das sociedades o «limite equivalente à área de quatro reservas», vai necessariamente implicar a multiplicidade de reservas e possibilitar a tal «propriedade excessiva», que é nota típica do latifúndio. Este não começa só «para além da reserva», como se diz no acórdão, é antes preenchido pelas reservas múltiplas a que se vão arrogar os quinhoeiros e os sócios, contemplados com as benesses legislativas.

E também não se desqualifique a tal «dinâmica do sistema, doravante entregue ao jogo da autonomia privada», por via da eliminação da sanção da nulidade, com a consideração simplista a que adere o acórdão de que «o capítulo II tem natureza transitória e não aspira a mais do que isso mesmo, ou seja, os artigos 17.º e 18.º inscrevem-se no programa normativo do destino a dar a prédios anteriormente expropriados (artigo 13.º), localizados na zona de intervenção agrária (corpo do artigo 11.º), sendo que a nova redacção do artigo 1.º (o artigo 2.º foi expressamente revogado pelo artigo 3.º da nova lei), trazida pela Lei 46/90, vem esclarecer definitivamente a questão». É que a Lei de Bases da Reforma Agrária, a de 1988, com as alterações introduzidas pela Lei 46/90, de 26 de Setembro, não é em nenhum dos seus capítulos uma lei transitória, é, sim, a lei disciplinadora, para o presente e para o futuro, do «redimensionamento das unidades de exploração agrícola» e do destino das áreas expropriadas e nacionalizadas - com expressa invocação da directiva constitucional da eliminação dos latifúndios constante do artigo 97.º da lei fundamental -, estabelecendo ainda «os princípios gerais relativos ao uso e mau uso dos solos agrícolas e ao fomento hidroagrícola» (artigo 1.º, n.º 1). Transitória é tão-só a «composição da zona de intervenção da reforma agrária (ZIRA), constante do Decreto-Lei 236-B/76, de 5 de Abril», mantida ainda até à «entrada em vigor da legislação, de âmbito nacional, que estabelecerá as bases gerais do fomento agrário das estruturas agrícolas» (n.º 2), o que significa que se mantêm as fronteiras de tal zona até que saia nova legislação, que poderá ou não alterá-las.

Portanto, não tem sentido falar, como faz o acórdão, no esgotamento no tempo da «aplicação da lei, uma vez terminada a reestruturação fundiária que é objecto do respectivo capítulo II (artigos 11.º a 34.º)», pois o regime jurídico da propriedade na ZIRA não se vai esgotar no tempo, mesmo no capítulo da reestruturação fundiária, e terá sempre a presidi-lo a directiva constitucional do artigo 97.º

Aliás, o acórdão sente a dificuldade, quando reconhece que o «argumento da possibilidade de reconstituição in futuro dos latifúndios» tem «mais peso» e poderia «na verdade perguntar-se se tal efeito não se produzirá», mas responde à pergunta com a consideração da «natureza provisória» do dito capítulo II, o que é curto, como que a resposta de «mau pagador» (e tanto parece assim que acaba o acórdão por introduzir a ideia de «uma hipotética censura por omissão legislativa», quanto a verdadeira censura é de acção legislativa).

Por tudo isto, e tal-qualmente se exarou no já referenciado voto de vencido que acompanhou o Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 187/88, esta «multiplicação de reservas» que se consente às contitularidades e heranças indivisas contraria um dos obejctivos assinalados à política agrícola, ou seja, precisamente a transferência progressiva da posse útil da terra para queles que a trabalham [alínea a) do n.º 1 do artigo 96.º], transferência essa que, nos termos do n.º 1 do artigo 97.º da Constituição, deve ser obtida «através da expropriação dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas» (cf. ob. cit., p. 92).

Daí que o meu juízo seja um juízo de inconstitucionalidade por violação daquelas normas constitucionais.

5) A do artigo 37.º da Lei 109/88, na redacção que lhe foi dada pela Lei 46/90, questionada no pedido B, na base de que aí se estava a privilegiar «uns determinados beneficiários [...] em detrimento de outros igualmente previstos na Constituição», do que «resultaria violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa) e do disposto no n.º 2 do artigo 97.º também da Constituição da República Portuguesa». Contrariamente ao entendimento a que se chegou no acórdão, no seu n.º 17, no sentido da «não inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 37.º da Lei 106/88, de 26 de Setembro, na redacção da Lei 46/90, de 22 de Agosto», entendo que ela viola grosseiramente as normas dos artigos 97.º, n.º 2, e 13.º da Constituição.

Isto porque, e desde logo, como se reconhece no acórdão, imediatamente «ressalta uma discrepância entre o texto legal e o texto constitucional, na medida em que este não refere os 'médios' agricultores como beneficiários», só que o acórdão não retira daí as consequências devidas e antes se mete por caminhos tortuosos, para chegar a um juízo de conformidade constitucional. Quando o verdadeiro juízo passaria até só pela interpretação declarativa do n.º 2 do artigo 97.º da Constituição, vedando que, para os efeitos nele previstos, os médios agricultores constituam categoria autónoma, e daí a desconformidade da norma questionada com a Constituição.

Neste ponto, e para encurtar razões, acompanho inteiramente as declarações de voto dos Exmos. Conselheiros Maria Fernanda Palma e Ribeiro Mendes, convergindo para a solução da violação frontal da Constituição. - Guilherme da Fonseca.


Declaração de voto
1 - Embora acompanhando a maior parte das decisões constantes do acórdão, afastei-me da maioria do Tribunal relativamente ao juízo de não inconstitucionalidade feito quanto às normas dos artigos 14.º-A e 37.º da Lei de Bases da Reforma Agrária - LBRA (Lei 109/88, de 26 de Dezembro, na redacção introduzida pela Lei 46/90, de 22 de Agosto).

Passarei a referir brevemente as razões da minha discordância.
2 - A norma do artigo 14.º-A da LBRA.
Na alteração da LBRA de 1990 foi introduzido um novo artigo, o artigo 14.º-A, que estatui que aos proprietários de prédios meramente ocupados se aplicam, «com as necessárias adaptações, as disposições relativas ao direito de reserva, devendo o estado proceder às desocupações de todas as terras que, em conformidade com o disposto na presente lei, não são passíveis de expropriação» (itálico acrescentado).

Os deputados signatários do pedido B (processo 272/90, que foi incorporado no processo 406/88) sustentaram que a norma em causa sofria de inconstitucionalidade, na medida em que o legislador invade «a competência dos tribunais, negando-se-lhes a possibilidade de se pronunciarem, em cada caso concreto, sobre os direitos de propriedade dos prédios ocupados». E no respectivo pedido concluíram que a norma impugnada «atribui à Administração competências que são indubitavelmente da função judicial, contrariando os artigos 205.º e 206.º da Constituição».

A maioria do Tribunal não viu em que medida se podia verificar «invasão da competência dos tribunais, se se atender que a Administração actua no cumprimento da lei e com vista ao restabelecimento de uma situação de normalidade jurídica» (n.º 14.1 do acórdão). Depois de interpretar a norma como atribuindo uma competência às autoridades administrativas do Estado - interpretação que parece, de um ponto de vista sistemático, a mais adequada, muito embora se justificasse, em minha opinião, uma interpretação conforme à Constituição que implicasse a leitura de que a competência era atribuída aos órgãos judiciais do Estado -, considerou que a Administração não ficava directamente investida no poder de se pronunciar sobre «os direitos de propriedade dos prédios ocupados», antes devendo, «perante uma ocupação desprovida de qualquer outro título que não seja o da mera factualidade contrária à lei», proceder «às operações materiais exigidas pelo restabelecimento da legalidade», não dirimindo, assim, «qualquer conflito de direito tendo por objecto esses bens».

Em minha opinião, trata-se de uma doutrina perigosíssima, permitindo que o legislador possa confiar sistematicamente às autoridades policiais a competência para pôr termo a situações de esbulho entre particulares.

De harmonia com o n.º 2 do artigo 205.º da Constituição, incumbe aos tribunais «dirimir os conflitos de interesses públicos e privados».

Como referem os comentadores Gomes Canotilho e Vital Moreira, permanece uma «questão altamente controvertida», a delimitação da reserva de competência judicial. Em todo o caso, os mesmos constitucionalistas notam que não há dúvidas nessa delimitação quando se trate da «definição autoritária de conflitos de interesses privados», pois tal definição cabe iniludivelmente aos órgãos judiciais, como deverão caber os casos duvidosos, por decorrência de «um entendimento exigente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º)» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., revista, Coimbra, 1993, pp. 792-793).

Ora, é bem conhecido que, após a revolução de Abril de 1974, os camponeses do Sul do País procederam a ocupações de propriedades rústicas pertencentes a terceiros, tendo sido criadas explorações agrícolas de tipo cooperativo que se desenvolveram e em que houve consolidação de situações fácticas de «posse útil da terra», com duração por vários anos. Deve notar-se que esse movimento fáctico ou revolucionário de ocupações foi acompanhado por diplomas legais que, de certo modo, procuraram legalizar algumas dessas situações (nomedamente os Decretos-Leis n.os 406-A/75 e 407-A/75, de 30 de Julho). Entre 1975 e 1988, sucederam-se igualmente duas leis de reforma agrária (Lei 77/77, de 29 de Setembro, vulgarmente conhecida como Lei Barreto, e Lei 109/88, de 26 de Dezembro).

Não pode, face à multiplicidade de situações jurídicas ou fácticas constituídas à sombra de legislações sucessivas, pretender-se que, em 1990, as autoridades administrativas, nomeadamente as autoridades policiais, possam proceder às desocupações de todas as terras, manu militari, que não sejam passíveis de expropriação e estejam meramente ocupadas, sem que tenham de proceder a actividades de «definição autoritária de conflitos de interesses provados» entre proprietários desapossados e exploradores de facto, com posse útil.

Trata-se de uma actividade que implica dirimir conflitos privados, não se vendo como pode aí haver - tal como sustenta a tese maioritária - simples «operações materiais exigidas pelo restabelecimento da legalidade». Só juízes independentes podem interpretar e aplicar a lei aos factos apurados nos processos intentados pelos proprietários desapossados.

E, como é evidente, a afirmação de que a Administração Pública actua «no cumprimento da lei» não pode chegar para se considerar que tem a possibilidade de dirimir quaisquer litígios entre particulares, ainda quando esteja em causa o asseguramento «da normalidade jurídica» e interesses públicos de boa gestão da economia agrária. De outro modo, teria de se concluir pela inexistência de uma imposição constitucional da reserva do juiz.

Tão-pouco se pode argumentar - como se faz na tese maioritária - com que a expropriação e a atribuição de reservas se fazem através da prática de actos administrativos. Por um lado, não foi pedida ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade de tais soluções legais. Por outro lado, e decisivamente, o que está em causa é a resolução de litígios sobre a posse de terras entre privados, em que tem de apurar-se se existe ou não ocupação titulada, sendo certo que tais situações de ocupação remontam, por vezes, a longos períodos e em que há mesmo explorações agro-industriais, inexistentes na data do início da situação controvertida.

Daí a conclusão de que a norma do artigo 14.º-A da LBRA é frontalmente contrária ao disposto nos artigos 205.º, n.º 2, e 206 da Constituição.

3 - A norma do n.º 2 do artigo 37.º da LBRA.
O artigo 37.º da versão de 1990 da LBRA prevê, no seu n.º 1, que os prédios expropriados ou nacionalizados são entregues em propriedade ou para exploração a beneficiários aptos a contribuírem para os objectivos da política agrícola, nos termos da Constituição.

Por seu turno, o n.º 2 deste artigo cria preferências legais relativamente à entrega a terceiros de prédios expropriados ou nacionalizados pelo Estado:

O Estado privilegia, como beneficiários da entrega prevista no número anterior, os pequenos e médios agricultores, de preferência integrados em unidades ou empresas de índole familiar.

Considero que este n.º 2 do artigo 37.º contraria, frontal e iniludivelmente, a prescrição constitucional constante do artigo 97.º, n.º 2, da lei fundamental, ao menos quando se trate da entrega de prédios expropriados (sendo embora sustentável que, por analogia, não deva ser outra a solução em caso de entrega de prédios nacionalizados, dada a substancial identidade das duas situações no domínio da reforma agrária).

Este preceito constitucional prevê a quem deverão ser entregues as terras expropriadas, a título de propriedade ou de posse, nos termos da lei:

A pequenos agricultores, de preferência integrados em unidades de exploração familiar;

A cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores;
A outras formas de exploração por trabalhadores.
O mesmo texto prevê ainda que a entrega dessas terras antes da outorga da propriedade plena é feita «sem prejuízo da estipulação de um período probatório da efectividade e da racionalidade da respectiva exploração».

Face ao grau de concretização desta previsão constitucional, tenho como indiscutível que o legislador ordinário não pode criar uma preferência nova e diversa, para efeitos de entrega de terras expropriadas (ou nacionalizadas), a favor de médios agricultores, por um lado. E, por outro, não pode também privilegiar arbitrariamente nenhuma das categorias contempladas (pequenos agricultores, cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores, outras formas de exploração por trabalhadores, nomeadamente as chamadas «unidades colectivas de produção»), já que a única preferência constitucionalmente admitida, no que toca a uma das categorias e dentro dessa mesma categoria, foi a dos pequenos agricultores integrados em unidades de exploração familiar.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao comentarem este n.º 2 do artigo 97.º da Constituição, afirmam que, embora a lei fundamental não defina os critérios de repartição da terra pelas duas categorias reais de beneficiários (trabalhadores e pequenos agricultores), a liberdade de conformação do legislador deve ser balizada pelos seguintes critérios constitucionalmente adequados:

(a) Se a eliminação do latifúndio visa proporcionar o acesso da terra a quem a trabalha, então hão-de ter preferência os trabalhadores rurais e agricultores (rendeiros, seareiros) que já estivessem ligados à própria terra nacionalizada; (b) as formas cooperativas e equiparadas permitirão o acesso de maior número de trabalhadores e agricultores à posse e gestão da terra do que as explorações individuais, dando assim melhor realização ao referido objectivo constitucional» (Const. cit., p. 441).

Quanto à categoria de trabalhador rural, a sua definição não suscita dúvidas. Trata-se da dos assalariados que não possuem terra e que, mediante contrato de trabalho, desenvolviam a sua actividade em benefício do antigo explorador da terra expropriada ou nacionalizada ou de outros exploradores privados e que, individualmente ou em organizações associativas (cooperativas de trabalhadores, UCP), passaram a trabalhar nesses prédios [cf. artigo 82.º, n.º 4, alíneas a) e c), da Constituição].

Mais difícil é a caracterização de pequeno agricultor, uma vez que tem de admitir-se uma actividade de concretização pelo legislador. Como referem ainda os mesmos comentadores, a tarefa de densificação pelo legislador não pode, porém, ser arbitrária, havendo o mesmo legislador de «tomar em conta as definições correntes na economia agrária» (ob. cit., p. 441).

O que o legislador ordinário, seguramente, não pode fazer é criar uma nova preferência, em detrimento dos trabalhadores e a favor dos médios agricultores.

A maioria vencedora não pôde escamotear a patente discrepância entre o texto constitucional e o legal. Para «colocar essa discrepância em termos adequados» optou, porém, por fazer uma leitura correctiva ou ab-rogante do texto constitucional em benefício do texto legal ...

Para sustentar tão estranha operação interpretativa - de atribuição de um alcance pelo menos tendencialmente parificador dos conceitos de pequeno e médio agricultor -, a tese maioritária socrreu-se de um pretenso lugar paralelo na Constituição - o artigo 100.º, n.º 1, preceito que estatui que, na prossecução dos objectivos de política agrícola, o Estado apoiará preferencialmente «os pequenos e médios agricultores, nomeadamente quando integrados em unidades de exploração familiar, individualmente ou associados em cooperativas, bem como as cooperativas de trabalhadores agrícolas e outras formas de exploração por trablahadores». Simplesmente não demonstrou qual a razão por que o legislador constituinte se terá exprimido com impropriedade no artigo 97.º, n.º 2, do texto constitucional, nem explicou por que haviam de ser paralelas as soluções a perfilhar, no domínio da atribuição em propriedade ou em posse de prédios expropriados ou nacionalizados (isto é, de prédios do Estado) ou outras, no domínio da concessão de apoio preferencial (assistência técnica, apoio de empresas públicas e de cooperativas de comercialização a montante e a jusante da produção, socialização de certos riscos «naturais», estímulos ao associativismo) pelo próprio Estado a diferentes agentes económicos na agricultura.

Acrescente-se que não é metodologicamente correcto chamar à colação normas constitucionais sobre benefícios a pequenas e médias empresas, comerciais ou industriais - normas que tutelam um propósito antimonopolista do legislador constitucional, que tem por objectivo «a realização da democracia económica, social» [artigo 2.º da Constituição; v. ainda os artigos 9.º, alínea d), 80.º, alíneas a) e e), 81.º, alíneas e) e f)] -, para justificar a opção divergente do legislador ordinário, quando o próprio legislador constitucional impõe uma certa opção [artigos 81.º, alínea h), e 97.º, n.º 2]. Nem se vê por que razão se há-de «relativizar» qualquer discrepância de terminologia ...

Diferentemente do que se afirma no texto do acórdão, não deve haver fluidez nem imprecisão da linha de fronteira entre os conceitos de pequeno e médio agricultor. Seja como for, a existir tal fluidez ou imprecisão na legislação ordinária (indica-se o Decreto-Lei 63/89, de 24 de Fevereiro, diploma que institui os princípios orientadores da entrega para exploração de prédios expropriados e nacionalizados, onde se equipara o pequeno agricultor a «pequeno e médio agricultor» - PMA, e cuja apreciação de constitucionalidade não é objecto deste processo), a mesma não pode servir de álibi ao legislador ordinário da Lei de Bases da Reforma Agrária para subverter as imposições constitucionais!

Por estas razões, considerei frontalmente inconstitucional o n.º 2 do artigo 37.º da LBRA. - Armindo Ribeiro Mendes.


Declaração de voto
I
Votei vencida quanto à declaração de não inconstitucionalidade do artigo 14.º-A da Lei 109/88, na redacção da Lei 46/90, por entender que ele contraria o artigo 205.º da Constituição, ofendendo a reserva do juiz e da função jurisdicional.

A violação do citado princípio constitucional resulta de a fórmula legislativa conceber uma actividade do Estado na prossecução do interesse público - o que seria próprio da função administrativa -, em situações de conflitualidade de direitos, envolvendo, nomeadamente, o direito de propriedade, para as quais a Constituição declara competentes os tribunais.

Como resulta do texto do acórdão, a lei admite que a Administração actue com fundamento numa qualificação jurídica prévia - o que significa, na situação concreta, que se permite que sejam tomadas como pressupostos de actuação valorações de uma situação de conflito de direitos.

Se é indiscutível que a finalidade da actuação concebida pelo legislador não é a definição de direitos (eventualmente envolvidos num conflito), não é menos verdade que uma actuação dirigida a realizar o interesse na reposição da «normalidade jurídica», numa situação de conflito de interesses (no plano social e jurídico), não pode anteceder a definição dos direitos prevalecentes pelos tribunais.

Assim, mesmo que a norma do artigo 14.º-A da Lei 109/88 não pretenda atribuir à Administração os atributos da função jurisdicional, está em causa uma actividade administrativa que pressupõe a definição de direitos, numa situação de conflito social com eventual repercussão jurídica, sem intervenção dos tribunais.

II
Votei igualmente vencida quanto à declaração de não inconstitucionalidade do artigo 37.º, n.º 2, da Lei 109/88, na redacção da Lei 46/90, na medida em que tal norma viola frontalmente o disposto nos artigos 97.º, n.º 2, e 13.º da Constituição, ao excluir as cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores ou outras formas de exploração por trabalhadores da categoria de beneficiários da entrega para exploração que o Estado privilegia.

A preferência legal quanto aos beneficiários da entrega dos prédios expropriados não coincide com a preferência constitucional. Admite-se, deste modo, que a lei infraconstitucional introduza uma discriminação positiva dos pequenos e médios agricultores em detrimento das organizações de trabalhadores, não justificada pelos objectivos constitucionais de política agrícola [artigo 86.º, alínea b)] e, nesse sentido, puramente arbitrária (em violação do artigo 13.º).

É completamente inaceitável, no plano lógico-valorativo, o argumento de que existe uma graduação no artigo 97.º, n.º 2, da Constituição, que viria em apoio do regime consagrado no artigo 37.º, n.º 2, da Lei 109/88, isto é, que autorizaria a concessão de preferência exclusivamente aos pequenos e médios agricultores.

Na realidade, uma simples enumeração não expressa a primazia do primeiro elemento, na medida em que é impossível enumerar sem utilizar uma ordem. Da enumeração não decorre, por conseguinte, uma diferente valoração dos vários elementos.

Por outro lado, o argumento da graduação (pretensamente literal) é profundamente contraditório com a inclusão dos médios agricultores entre os beneficiários, já que eles nem sequer constam daquela enumeração constitucional.

É impossível, assim, afirmar simultaneamente que «é difícil não ver na enumeração a que procedem estas duas normas uma graduação valorativa que vem em apoio do n.º 2 do artigo 37.º» e que os médios agricultores podem ser uma categoria de beneficiários preferidos, apesar de o texto constitucional a eles não se referir, na mesma enumeração do artigo 97.º, n.º 2. Na realidade, impor-se-á a pergunta: como não ver na exclusão dos médios agricutores da enumeração constitucional do artigo 97.º, n.º 2, uma preferência valorativa pelos pequenos agricultores e pelas outras formas de exploração pelos trabalhadores? - Maria Fernanda Palma.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/67289.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1975-07-29 - Decreto-Lei 406-A/75 - Ministério da Agricultura e Pescas

    Fixa as normas a que deve obedecer a expropriação de determinados prédios rústicos.

  • Tem documento Em vigor 1975-07-30 - Decreto-Lei 407-A/75 - Ministério da Agricultura e Pescas

    Nacionaliza vários prédios rústicos beneficiados, no todo ou em parte, pelos aproveitamentos hidroagrícolas de Caia, Campilhas, S. Domingos e Alto Sado, Divor, Loures, Idanha, Mira, Odivelas, Roxo, vale do Sado e vale do Sorraia.

  • Tem documento Em vigor 1976-04-05 - Decreto-Lei 236-B/76 - Ministério da Agricultura e Pescas

    Estabelece as circunscrições administrativas que ficam compreendidas na área da intervenção da Reforma Agrária.

  • Tem documento Em vigor 1977-09-29 - Lei 77/77 - Assembleia da República

    Aprova as bases gerais da Reforma Agrária.

  • Tem documento Em vigor 1982-09-30 - Lei Constitucional 1/82 - Assembleia da República

    Aprova a primeira revisão Constitucional, determinando a sua entrada em vigor no trigésimo dia posterior ao da publicação no diário da república, bem como publicação conjunta da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, no seu novo texto.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-04-27 - Decreto-Lei 129/84 - Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano

    Aprova o estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (no uso da autorização conferida ao Governo pela Lei n.º 29/83, de 8 de Setembro).

  • Tem documento Em vigor 1985-07-16 - Decreto-Lei 267/85 - Ministério da Justiça

    Aprova a lei de processo nos tribunais administrativos.

  • Tem documento Em vigor 1985-07-18 - Acórdão 91/85 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade material do § 1.º do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 29931, de 15 de Setembro de 1939, por violação dos n.os 1, 2, alínea b), e 4 do artigo 56.º da Constituição da República.

  • Tem documento Em vigor 1988-09-17 - Lei 106/88 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a aprovar os diplomas reguladores do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) e legislação complementar.

  • Tem documento Em vigor 1988-09-24 - Lei 108/88 - Assembleia da República

    Define a autonomia das universidades.

  • Tem documento Em vigor 1988-09-26 - Lei 109/88 - Assembleia da República

    Aprova a lei de bases da Reforma Agrária.

  • Tem documento Em vigor 1988-12-14 - Decreto Regulamentar 44/88 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Disciplina o exercício do direito de reserva previsto na Lei n.º 109/88, de 26 de Setembro (Lei de Bases da Reforma Agrária).

  • Tem documento Em vigor 1989-02-24 - Decreto-Lei 63/89 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Disciplina a entrega de terras nacionalizadas ou expropriadas para exploração.

  • Tem documento Em vigor 1989-07-08 - Lei Constitucional 1/89 - Assembleia da República

    Segunda revisão da Constituição.

  • Tem documento Em vigor 1990-08-22 - Lei 46/90 - Assembleia da República

    Altera a Lei n.º 109/88, de 26 de Setembro (Lei de Bases da Reforma Agrária).

  • Tem documento Em vigor 1991-01-09 - Decreto-Lei 12/91 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Disciplina o exercício do direito de reserva previsto no capítulo II da Lei n.º 109/88, de 26 de Setembro, que aprova a Lei de Bases da Reforma Agrária.

  • Tem documento Em vigor 1991-11-15 - Decreto-Lei 442/91 - Presidência do Conselho de Ministros

    Aprova o Código do Procedimento Administrativo, publicado em anexo ao presente Decreto Lei, que visa regular juridicamente o modo de proceder da administração perante os particulares.

Ligações para este documento

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