Acórdão 59/95
Processo 522/94
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - Em 14 de Dezembro de 1994 o Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 278.º da Constituição da República e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade dos artigos 5.º, n.º 2, e 8.º, n.os 1, 2 e 3, do decreto 185/VI da Assembleia da República sobre o «controlo público de rendimentos e património dos titulares de cargos públicos», recebido em 6 do corrente na Presidência da República para promulgação.
2 - O Presidente da República afirma preliminarmente que o decreto 185/VI foi aprovado na sequência da nova apreciação do anterior decreto 174/VI, sobre a mesma matéria, por si solicitada em mensagem fundamentada ao exercer o direito de veto relativamente a esse diploma, e que mantém, na sua maior parte, quanto ao novo decreto, as reservas que anteriormente formulara. Há, todavia, dúvidas de natureza jurídico-constitucional, que crê resultarem de uma opção que consistiu em «tratar de forma uniforme situações e cargos que pela sua especificidade exigiam, salvo melhor opinião, tratamento diferenciado». Essas dúvidas constam dos fundamentos do requerido, que são as seguintes:
1 - O artigo 5.º, n.os 1 e 2, do decreto em apreço, prevê, para o caso de incumprimento culposo, a aplicação de sanções pela não apresentação das declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º, após notificação para cumprimento em determinado prazo.
Salvo quanto ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro, o incumprimento culposo fará incorrer os infractores em declaração de perda do mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos, ou, quando se trate da situação prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 4.º, em inibição por período de 1 a 5 anos para o exercício do cargo que obrigue à referida declaração e que não corresponda ao exercício de funções como magistrado de carreira.
2 - As medidas sancionatórias previstas neste artigo 5.º parecem visar um efeito claramente punitivo, assumindo a natureza de verdadeiras sanções penais, face ao carácter de reprovação que implicitamente possuem e aos fundamentos ético-jurídicos em que se baseiam.
Estas sanções envolvem, para os infractores, a privação ou restrição de direitos fundamentais, como sejam os direitos de participação na vida pública e de acesso a cargos públicos, constantes dos artigos 48.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, da Constituição.
3 - Por sua vez, o artigo 8.º do mesmo decreto atribui competência:
Ao Tribunal Constitucional, para aplicar as sanções referidas no artigo 5.º aos titulares dos cargos referidos nas alíneas b), c) (com excepção do Primeiro-Ministro), d), e) (relativamente aos juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas), e f) a l) do artigo 2.º;
Aos tribunais administrativos, para aplicar as sanções referidas no artigo 5.º aos titulares dos cargos referidos na alínea m) do artigo 2.º;
À entidade que detém poder disciplinar, para aplicar sanções aos juízes dos tribunais supremos, dos tribunais judiciais de 1.ª e 2.ª instâncias, dos demais tribunais administrativos e fiscais, dos tribunais militares e dos tribunais marítimos.
4 - A opção pela atribuição de competência para a aplicação de sanções a diferentes categorias de tribunais e a entidades que detenham poder disciplinar, definida apenas em função do estatuto pessoal dos titulares de cargos públicos, poderá acarretar diferenciações de tratamento, sem fundamento material bastante:
a) Desde logo, em matéria de recurso das decisões punitivas. Os titulares de cargos públicos que vejam as suas causas julgadas nos tribunais administrativos, ou pelas entidades que sobre eles tenham poder disciplinar, têm asseguradas, pelo menos, duas vias de recurso das decisões que lhes apliquem sanções, sendo tal garantia negada aos titulares de cargos públicos sujeitos à jurisdição do Tribunal Constitucional, o que poderá configurar violação do princípio constitucional da igualdade;
b) E também relativamente ao juiz Presidente do Supremo Tribunal Militar e aos juízes vogais. As razões que levaram o legislador a sujeitar os juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas à jurisdição do Tribunal Constitucional e que aparentemente se prendem com o modo de designação e o regime de exercício dos respectivos cargos pareceriam justificar, para o juiz Presidente do Supremo Tribunal Militar e para os juízes vogais, idêntico tratamento, o que não se verifica.
Para eles, a competência punitiva é cometida à entidade que detém poder disciplinar, o que poderá configurar também violação do princípio constitucional da igualdade, desde logo, face ao diferente sistema de garantias de independência, imparcialidade e isenção;
c) O mesmo se poderá passar relativamente aos gestores e aos administradores em representação do Estado ou de pessoa colectiva pública, de empresas de capitais públicos ou de economia mista. Parece não se descortinar, com efeito, fundamento material bastante para subtrair a apreciação dos seus casos à competência da entidade que sobre eles detém poder disciplinar (claramente abrangido nos poderes de tutela), pela mesma ordem de razões - profissionalidade, estatuto profissional próprio e carreira - que terão levado o legislador a prever tal solução para os juízes;
d) Que concluir, finalmente, da situação dos magistrados de carreira que exercem funções no Tribunal Constitucional e no Tribunal de Contas, relativamente aos restantes juízes?
5 - A opção pela atribuição de competência para a aplicação destas sanções a entidades que detenham o poder disciplinar poderá envolver também delicadas questões de natureza jurídico-constitucional.
Prendem-se tais questões com a circunstância de esta opção do legislador o ter obrigado a configurar como sanções de natureza disciplinar (v. artigo 5.º, n.º 2) verdadeiras sanções de natureza penal.
A degradação de sanções de natureza penal em sanções de natureza disciplinar em função apenas das pessoas a quem se irão aplicar poderá envolver, na circunstância, não só violação do princípio constitucional da igualdade como também violação do princípio do Estado de direito democrático, na sua dimensão de Estado de justiça.
Acresce que, a não serem configuradas como sanções disciplinares, sempre sairia violado o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição - reserva de juiz.
6 - A opção pela atribuição de competência para a aplicação destas sanções aos tribunais administrativos poderá vir a ser também passível de censura jurídico-constitucional, se se atentar no disposto no artigo 214.º, n.º 3, da Constituição, na natureza penal das sanções e na circunstância de o incumprimento culposo resultar da prática (por acção ou omissão) de factos totalmente estranhos ao exercício das funções, mesmo até após o termo desse exercício.
7 - Problemática poderá ser também a atribuição de competência para a aplicação destas sanções ao Tribunal Constitucional.
Sendo inquestionável poder a competência do Tribunal Constitucional ser ampliada por via da lei (artigo 225.º, n.º 3, da Constituição), afigura-se que tal possibilidade terá sempre como limite as competências constitucionalmente cometidas a outros tribunais. Ora, no caso em apreço, a aplicação de sanções de natureza penal parece estar reservada pelo artigo 213.º, n.º 1, da Constituição aos tribunais judiciais, como tribunais comuns em matéria criminal.
8 - No caso de o infractor ser juiz, salvo tratando-se de juiz do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas, o artigo 5.º, n.º 2, do decreto qualifica o incumprimento culposo, para efeitos disciplinares, como grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional.
Ora, nos termos do artigo 94.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aos casos de «grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais», correspondem as sanções disciplinares de suspensão de exercício e de inactividade.
Poderá resultar daqui diferente tratamento - consequente apenas da opção em abranger, debaixo da mesma disciplina, cargos e situações que, pela sua especificidade, aí parece não caberem - relativamente aos restantes titulares de cargos públicos, os quais pelo mesmo incumprimento culposo, estão sujeitos à aplicação de sanções bem mais pesadas.
9 - Finalmente, sendo negado ao titular de cargos públicos sujeitos à jurisdição do Tribunal Constitucional a garantia de recurso das decisões punitivas, a norma constante do artigo 8.º, n.º 1, poderá violar o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional vem, com efeito, reconhecendo de forma uniforme que o direito fundamental de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, previsto no referido artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, abrange a garantia do duplo grau de jurisdição quanto às decisões relativas a quaisquer direitos fundamentais.
Em conclusão, o Presidente da República requer «a apreciação da constitucionalidade dos artigos 5.º, n.º 2, e 8.º, n.os 1, 2 e 3, do decreto 185/VI acima identificado, face às dúvidas colocadas sobre a sua conformidade com os princípios da igualdade e do Estado de direito democrático (artigos 13.º e 2.º da Constituição), com a reserva de juiz (artigo 205.º, n.º 1, da Constituição), e ainda com o disposto nos artigos 214.º, n.º 3, 225.º, n.º 3 - com referência ao artigo 213.º, n.º 1 -, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República».
3 - Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 54.º da Lei do Tribunal Constitucional, veio oferecer o merecimento dos autos, juntando ainda os exemplares do Diário da Assembleia da República relativos ao processo legislativo do decreto 185/VI.
II - Fundamentação
a) A regularidade formal do decreto 185/VI
4 - Importa, em primeiro lugar, averiguar se o processo de formação do decreto 185/VI foi regular, tendo em vista que a Assembleia da República não apurou a existência de maioria absoluta ao votar na generalidade o decreto 174/VI. Pode, com efeito, perguntar-se se a Assembleia da República não deveria ter confirmado, primeiro, por maioria absoluta, o vetado decreto 174/VI, só depois podendo aprovar as alterações do mesmo, de que resultou o decreto 185/VI. Caso se entenda que o n.º 2 do artigo 139.º da Constituição proíbe a introdução de alterações em novo decreto, sem prévia confirmação do decreto vetado, teria havido por isso violação da norma constitucional. A consequência seria a inconstitucionalidade formal de todas as normas do diploma, que conviria apreciar, quanto a todas as normas que são objecto do processo, antes de passar às questões de inconstitucionalidade material suscitadas relativamente a cada uma dessas normas. E caso se entendesse que, nessa hipótese, o decreto 185/VI seria não apenas inconstitucional, mas inexistente, poderia questionar-se a competência do Tribunal Constitucional para o apreciar, o que seria uma questão prévia, a resolver igualmente em primeiro lugar. Caso se entenda que não houve violação do n.º 2 do artigo 139.º, torna-se desnecessário apurar se a consequência sancionatória da violação é a inconstitucionalidade formal ou a inexistência, deixando de ser posta a referida questão de competência.
5 - Esta questão da regularidade formal do processo de formação do decreto 185/VI não foi suscitada pelo Presidente da República, o que não seria, aliás, obstáculo à sua apreciação pelo Tribunal (cf. o n.º 5 do artigo 51.º da Lei 28/82). Mas foi-o perante a Assembleia da República, pelo seu Presidente, depois de terminada a discussão na generalidade do decreto 174/VI, no âmbito da nova apreciação do mesmo, solicitada na mensagem fundamentada do Presidente da República que acompanhou o veto do diploma (e que foi publicada no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 22 de Setembro de 1994, p. 1100). O Presidente da Assembleia da República viu-se então «confrontado com uma dúvida jurídica», em face da informação dos serviços jurídicos da Assembleia de que «não é habitual a votação na generalidade versar sobre a confirmação do diploma vetado», visto que, «tendo sido apresentadas propostas de alteração, não seria necessária, nos termos regimentais e constitucionais, uma confirmação do decreto com 116 votos favoráveis» (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 23 de Novembro de 1994, p. 521). No seguimento da discussão desta dúvida, o Presidente da Assembleia declarou seguir a interpretação contrária à sua, mas «correspondente à generalidade da doutrina aqui firmada. Nesses termos, «concluiu», procederemos à votação, na generalidade, deste decreto, para, por maioria simples, apurar a vontade da Câmara e, de seguida, passarmos à discussão na especialidade». O sentido da votação foi, portanto, nas anteriores palavras do deputado Guilherme Silva, que declarou exprimir o entendimento da bancada do PSD, «não para confirmar o decreto mas para passarmos à sua discussão na especialidade» (ibidem).
O decreto «foi aprovado com votos a favor do PSD e votos contra do PS, do PCP, do CDS-PP, de Os Verdes e dos Deputados independentes João Corregedor da Fonseca e Mário Tomé» (ibidem). Seguiu-se a discussão na especialidade, em que a única proposta de alteração aprovada foi a da eliminação do n.º 2 do artigo 3.º do decreto 174/VI - apresentada pelo PCP, e coincidente com proposta idêntica do PSD, que ficou prejudicada -, o qual dispunha:
Art. 3.º ...
2 - O titular de cargo público no estado civil de casado apresenta os elementos referidos nas alíneas a), b) e c) do número anterior quando sejam próprios e quando, sendo comuns, deles detenha a administração.
A aprovação desta alteração foi por unanimidade e na votação final global do decreto 174/VI com as alterações já aprovadas foi o mesmo «aprovado, com votos a favor do PSD e votos contra do PS, do PCP, do CDS-PP e de Os Verdes» (ibidem, p. 527). O novo decreto resultante foi enviado ao Presidente da República com o n.º 185/VI.
Temos, assim, por certo que o decreto 185/VI foi votado sem apuramento de maioria absoluta e sem confirmação, como um novo decreto, como tal foi também processado, voltou à Comissão competente para efeito de redacção final (artigo 169.º, n.º 5, do Regulamento da Assembleia da República), cujo texto foi publicado com o novo n.º 185/VI no Diário da Assembleia da República (2.ª série-A, de 9 de Dezembro de 1994) e foi enviado ao Presidente da República para promulgação, nos termos do n.º 2 do artigo 170.º do Regimento, e não para promulgação no prazo de oito dias a contar da sua recepção, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, como aconteceria se tivesse havido confirmação.
6 - Comparando o conteúdo dos dois decretos, verifica-se que a eliminação do n.º 2 do artigo 3.º é uma alteração substancial, que visou aparentemente aceitar uma das críticas do Presidente da República na sua mensagem sobre o decreto 174/VI, nomeadamente quando dizia que «do conteúdo de algumas das suas normas se pode concluir que passará a ser maior a possibilidade de fugir à exigência de declaração dos reais rendimentos e património dos titulares de cargos públicos - o que é susceptível de pôr em causa, na pratica, a utilidade e eficácia de tal declaração» (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 22 de Setembro de 1994, p. 1100). Ora o n.º 2 do artigo 3.º foi precisamente criticado na discussão parlamentar por proporcionar um meio de ocultar os reais rendimentos e património dos declarantes, tendo o seu texto sido votado em Comissão só com os votos dos deputados do PSD, que inicialmente também se opuseram à sua avocação pelo Plenário na votação na especialidade [v. o Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 14 de Julho de 1994, p. 942-(32) (votação do projecto de lei 330/VI); Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 14 de Julho de 1994, p. 520 (deputado António Filipe) e p. 2982 (deputado José Vera Jardim); cf. ainda o Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 23 de Novembro de 1994, p. 520 (deputado Narana Coissoró) e p. 523 (Deputado António Filipe)]. É, assim, de admitir que esta disposição era visada na mensagem do Presidente da República e que a maioria parlamentar concordou com esse fundamento da mensagem.
7 - Tendo sido estes os factos do processo legislativo, deverá dizer-se que não houve violação do artigo 139.º, n.º 2, da Constituição.
A interpretação que a Assembleia da República seguiu, em conformidade com a sua prática, corresponde à doutrina anteriormente defendida por este Tribunal no Acórdão 320/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13, I, pp. 7 e seguintes), perante dúvida então suscitada, e não repetida agora, do Presidente da República. Tem sido também defendida, antes e depois daquele acórdão, por Jorge Miranda (cf. por último, Fontes, Órgãos e Actos do Estado, 1990, pp. 438 e seguintes) e por Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. por último, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., 1993, nota IX ao artigo 139.º), entre outros. O argumento principal do Acórdão 320/89 é o seguinte:
Por maiores que sejam as diferenças entre a reapreciação de decretos vetados (conforme eles tenham sido vetados nos termos do artigo 139.º, n.º 1, ou no quadro dos artigos 278.º e 279.º), o facto é que, em qualquer caso, se abrem três possibilidades à Assembleia da República (ou seja, à maioria interessada no decreto): ou tentar confirmar o decreto com a maioria qualificada constitucionalmente exigida, ou conformar-se com o veto (não insistindo na confirmação ou arriscando a não obtenção desta), ou, finalmente, reformular o decreto, tentando afastar os motivos que fundamentaram o veto.
Não existe nenhuma justificação para encerrar a Assembleia da República (ou a maioria parlamentar, no dilema de confirmar o decreto pela maioria constitucionalmente exigida ou vê-lo rejeitado, se a não conseguir reunir. Justifica-se por isso a aplicação analógica do princípio constante do artigo 279.º, quanto à possibilidade de reformulação (p. 48).
Pode mesmo acontecer, acrescente-se, que o Presidente da República concorde com a oportunidade, ou mesmo necessidade, de legislar sobre a matéria, divergindo, porém, em maior ou menor medida, quanto ao conteúdo do diploma. Mesmo que a maioria parlamentar estivesse disposta a reformular o diploma de acordo com as objecções do Presidente da República, estaria impedida de fazê-lo se, por qualquer motivo, não obtivesse a maioria qualificada exigível para a confirmação. E, não poderia tão-pouco ser renovado na mesma sessão legislativa (n.º 3 do artigo 170.º do Regimento da Assembleia da República). Ainda que se duvidasse que este regime legal fosse imposto pela Constituição (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. nota IX ao artigo 170.º, in fine, parecem ter dúvidas), sempre estariam subvertidos os critérios de formação democrática da vontade legislativa nomeadamente previstos na Constituição, sem razão plausível. A solução de «reabertura do processo legislativo» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ibidem) é, assim, a que menos restringe a competência legislativa da Assembleia sem prejudicar as competências do Presidente da República (v. quanto ao último ponto, o referido acórdão, pp. 42 e 48-49). É, também, a que mais respeita a liberdade política da maioria parlamentar na gestão da sua divergência com o Presidente da República, suscitado pelo veto, e que não lhe impõe o ónus injustificado de alargar a maioria quando estiver disposta a aceitar as razões do veto.
Reconhece-se que esta interpretação permite que a maioria da Assembleia reformule o decreto, sem atender a todas, ou a nenhumas, objecções do Presidente da República. Abstraindo da hipótese de uma alteração das circunstâncias que possa ter retirado a base a todas ou a algumas das objecções, a reformulação ainda pode ter o sentido útil de adiar o conflito institucional para mais tarde, sobretudo se houver razões para pensar que um segundo veto pode então ser evitado, ou pode ser substituído pela fiscalização preventiva da constitucionalidade, e tal parecer politicamente preferível. Não deixam estas razões de ser ainda atendíveis, dado que o Presidente da República recupera então perante o novo decreto os seus poderes normais de vetar ou de requerer a fiscalização preventiva. Só haveria «fraude à Constituição» (a expressão é do conselheiro Nunes de Almeida, na declaração de voto no citado Acórdão 320/89) se o «novo decreto» não tivesse qualquer novidade normativa em relação ao que foi vetado, tornando ineficaz o veto, mas então seria também, por isso mesmo, inconstitucional (ou até inexistente, para alguns), violando o n.º 2 ou o n.º 3 do artigo 139.º, que nessa hipótese não dispensam a maioria qualificada de confirmação.
8 - Estas razões, no essencial, justificam também a possibilidade de reformulação especialmente prevista no n.º 3 do artigo 279.º para a hipótese de veto por inconstitucionalidade. Também aí pode a maioria parlamentar aceitar a razão do veto, expurgando pura e simplesmente a norma inconstitucional ou deixando caducar o projecto ou proposta de lei, opor-se através da confirmação por maioria qualificada ou enveredar pela terceira via da reformulação. Só que a razão da inconstitucionalidade tem compreensivelmente mais força, porque confirmada por acórdão do Tribunal Constitucional e, por isso, não só a confirmação apenas tem o efeito de permitir a promulgação, que não é obrigatória, como também a reformulação não dispensa o expurgo [cf. sobre o último ponto, o Acórdão 334/94, in Diário da República, 2.ª série, de 30 de Agosto de 1994, pp. 8996-(10) e seguintes], pelo que não pode deixar de dar inteira satisfação à razão do veto. Não é porque o expurgo de norma inconstitucional pode implicar alterações na redacção ou na substância de outras normas que se admite no n.º 3 do artigo 279.º a reformulação. Se fosse esse o fundamento, só seriam permitidas as alterações implicadas pelo expurgo. Ora, no novo diploma, não só todas as alterações são permitidas como todas as suas normas, mesmo as imodificadas, podem ser sujeitas a apreciação preventiva da constitucionalidade, precisamente porque se quer permitir um novo diploma. Justifica-se, portanto, a analogia a partir do artigo 279.º para preencher a lacuna do artigo 139.º
9 - Finalmente, não se pode dizer que a solução adoptada fomente um conflito institucional entre o Presidente da República e o Parlamento, quando ela vem permitir um meio de o sanar por acordo entre ambos os órgãos (de outro modo dificultado), nem que assim se inicie um círculo vicioso. O círculo só seria vicioso se o decreto apresentado como novo não contivesse qualquer novidade normativa, mas, como então haveria violação da Constituição, a sanção jurídica da violação logo quebraria o círculo ainda que com eventuais custos políticos. Se as alterações não forem aparentes, mas reais, mas ainda assim insuficientes para afastar as razões do veto, então não será de prever que a maioria parlamentar inicie uma rota de colisão, a não ser que esteja segura da não inconstitucionalidade do diploma e da própria capacidade de o confirmar, ou que pretenda indirectamente transferir o conflito político para o plano jurídico, esperando uma decisão do Tribunal Constitucional na segunda volta... Em qualquer caso, sempre se quebraria o círculo.
10 - É claro que o Regimento da Assembleia da República não pode ser invocado contra a Constituição. Há antes que interpretá-lo em conformidade com a Constituição, o que já foi feito no Acórdão 320/89, relativamente aos artigos 165.º e 166.º, da redacção então vigente, de teor idêntico ao dos artigos 169.º e 170.º, actualmente em vigor. Há que fazer a «conjugação» das duas disposições (como disse o deputado Narana Coissoró na discussão: Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 23 de Novembro de 1994, p. 522), entendendo-se que o n.º 3 do artigo 169.º («a votação na generalidade versa sobre a confirmação do decreto da Assembleia da República») se refere às hipóteses expressamente reguladas no artigo 139.º da Constituição e nos n.os 1 e 3 do artigo 170.º, deixando em aberto, tal como a letra da Constituição, a possibilidade da aprovação na generalidade de um novo decreto, se forem introduzidas alterações. No n.º 2 do artigo 170.º reconhece-se, porém, que, se a Assembleia introduzir alterações, o decreto é «novo», sendo enviado ao Presidente da República «para promulgação» nos termos gerais do n.º 1 do artigo 139.º e não nos do n.º 2 do mesmo artigo e do n.º 1 do artigo 170.º («para promulgação no prazo de oito dias») relativos a decretos confirmados. É que o decreto não se considera como confirmado, mesmo que tenha havido uma votação de confirmação na generalidade, a partir do momento em que forem aprovadas alterações.
11 - Demonstrado que o processo legislativo do Decreto 185/VI foi regular e que não houve violação do n.º 2 do artigo 139.º da Constituição, é certo que não há, por isso, inconstitucionalidade formal do decreto, independentemente das questões conceptuais e de competência do Tribunal conexas com a violação e de que o Tribunal tratou no Acórdão 320/89.
b) A questão da inconstitucionalidade material do n.º 2 do artigo 5.º
12 - Dispõe o artigo 5.º, n.os 1 e 2, do decreto 185/VI, relativo ao incumprimento dos deveres por parte dos titulares de cargos públicos previstos no artigo 2.º e de apresentação da declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais, nos termos do artigo 3.º, e da apresentação da nova declaração pelas mesmas pessoas, nos termos do artigo 4.º:
Artigo 5.º
Incumprimento
1 - Em caso de não apresentação das declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º, a entidade competente para o seu depósito notificará o titular do cargo a que se aplica a presente lei para a apresentar no prazo de 30 dias consecutivos, sob pena de, em caso de incumprimento culposo, salvo quanto ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro, incorrer em declaração de perda do mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos, ou, quando se trate da situação prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 4.º, incorrer em inibição por período de 1 a 5 anos para o exercício de cargo que obrigue à referida declaração e que não corresponda ao exercício de funções como magistrado de carreira.
2 - No entanto, no caso de o infractor ser juiz, a notificação é efectuada sob cominação de o incumprimento culposo ser qualificado, para efeitos disciplinares, como grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional, salvo tratando-se de juiz do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas, aos quais se aplica o regime geral.
As dúvidas suscitadas pelo Presidente da República quanto ao n.º 2 têm a ver com a qualificação como infracção disciplinar, quando praticada por juiz, do mesmo facto ilícito que, quando praticado por qualquer outro destinatário da norma nos termos do n.º 1, seria de qualificar, segundo pressupõe o Presidente da República, como infracção penal. Em consequência do n.º 2 do artigo 5.º, «verdadeiras sanções de natureza penal» seriam configuradas como sanções de natureza disciplinar. Haveria assim uma «degradação de sanções de natureza penal em sanções de natureza disciplinar em função apenas das pessoas a quem se irão aplicar». Tal implicaria:
A violação do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), na sua dimensão de Estado de justiça;
A subtracção aos tribunais de competência para reprimir infracções penais, e, por isso, «sempre seria violado o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição - reserva de juiz», a não serem configuradas como sanções disciplinares as sanções das infracções qualificadas no n.º 2 do artigo 5.º
Acresce que tanto a diferente qualificação do mesmo facto ilícito como a diferente natureza de sanções, uma e outra coisa em função apenas das qualidades das pessoas, violariam o princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da Constituição).
Além disso, através da qualificação como infracção disciplinar de «grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais», tornam-se aplicáveis as sanções disciplinares de suspensão de exercício e de inactividade (artigo 94.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais), em vez das «sanções bem mais pesadas» de perda de mandato, demissão ou destituição judicial, ou de inibição por período de 1 a 5 anos para o exercício de cargo, pelo que seria de novo violado o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).
13 - Importa saber, antes de mais, se o incumprimento culposo dos deveres de apresentação de declaração dos artigos 3.º e 4.º do decreto é uma infracção penal e se as penas correspondentes são de direito penal. Todas as dúvidas suscitadas acerca da constitucionalidade do artigo 5.º, n.º 2, partem implicitamente do pressuposto de que há um conceito constitucional de direito penal que impõe um regime jurídico uniforme, quer de direito substantivo, quer processual, das respectivas infracções. Com efeito, todas elas, excepto a última dúvida sobre a igualdade de «peso» das sanções, abstraindo da sua natureza, dependem logicamente: primeiro, da tese de que há limites constitucionais à qualificação da referida infracção como disciplinar e ao regime de correspondente sanção como sanção disciplinar, limites que só podem derivar de um conceito material de direito penal; segundo, da tese de que quer as infracções quer as sanções previstas no n.º 1 do artigo 5.º têm natureza penal. E mesmo o «peso» dessas sanções do n.º 1 do artigo 5.º, em que se baseia o último argumento a favor da violação do princípio da igualdade, acaba por ser afastado pela natureza penal, e não apenas disciplinar, das sanções.
14 - Haverá sanções que pelas características que integram a sua natureza ou essência são penais, correspondentes a infracções que também são essencialmente penais, e que a Constituição impõe que sejam reconhecidas como tais? O Presidente da República aponta no n.º 2 do seu requerimento três características essenciais do direito penal, que caracterizariam as normas do artigo 5.º:
O «carácter de reprovação que implicitamente possuem» as sanções, que têm nessa medida carácter repressivo e não preventivo;
«Os fundamentos ético-jurídicos em que se baseiam», isto é, em relação com a reprovação que exprimem, a culpa referida ao facto, que é a base, critério ou fundamento de um juízo ético de reprovação, reconhecido pelo direito, o que pressupõe a violação de normas éticas e não meramente jurídicas; isto é, seguindo uma caracterização corrente, de normas que consagram interesses ou valores universais, que não são apenas funcionais de uma instituição particular;
A sanção tem como efeito «a privação ou restrição de direitos fundamentais, como sejam os direitos de participação na vida pública e de acesso a cargos públicos, constantes dos artigos 48.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, da Constituição».
Estas características, assim interpretadas, servem, segundo alguns (como, por exemplo, Maurach-Zipf, Strafrecht, Allgemeiner Teil, I, 10.ª ed., 1983, pp. 8 e seguintes), de critério material de distinção entre o direito penal e o direito disciplinar. Este último teria carácter preventivo, visando a protecção dos interesses particulares de certa instituição, ou grupo social - e não a defesa de valores éticos ou de interesses gerais da sociedade -, com base na perigosidade do agente para aqueles interesses particulares revelada no seu comportamento, ou na necessidade preventiva, para os membros de instituições ou grupos, da sua punição, e tendo as suas sanções como efeito a privação ou modificação das posições ou direitos dos indivíduos dentro das instituições ou grupos em causa, por cujos órgãos de poder seriam em primeira linha aplicadas. Tal problemática esteve presente na discussão no interior da jurisprudência portuguesa, sobre se a pena de demissão do cargo político que o titular exerça e a medida de inibição para o exercício de qualquer outro cargo da mesma natureza, previsto no n.º 1 do artigo 3.º da Lei 4/83, de 2 de Abril, a lei que o decreto 185/VI visa substituir, eram sanções disciplinares (assim, o Acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Janeiro de 1987, Colectânea de Jurisprudência, 12-I, pp. 152 e seguintes) ou penais [assim, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 17 de Dezembro de 1986, ibid., 13-V, p. 179, de 4 de Fevereiro de 1987, ibid., 12-I, pp. 164 e seguintes, e de 18 de Fevereiro de 1987, ibid., 12-I, pp. 168 e seguintes, e do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Julho de 1987 (processo 38997), Boletim do Ministério da Justiça, n.º 369, pp. 333 e seguintes, de 8 de Julho de 1987 (processo 39001), ibid., p. 339, de 28 de Julho de 1987 (processo 39060), ibid., p. 398, de 28 de Julho de 1987 (processo 39123), ibid., p. 414, de 7 de Outubro de 1987, ibid., 370, pp. 282 e seguintes, de 11 de Novembro de 1987 (processo 39183), ibid., 371, pp. 219 e seguintes, de 25 de Novembro de 1987 (processo 39140), ibid., 371, pp. 236 e seguintes, de 25 de Novembro de 1987 (processo 39189), ibid., 371, pp. 240 e seguintes, de 25 de Novembro de 1987 (processo 39227), ibid., 371, pp. 272 e seguintes, e de 16 de Dezembro de 1987 (processo 39182), ibid., 372, pp. 291 e seguintes].
15 - Seja como for, cumpre reconhecer que a Constituição acolhe a distinção entre o direito penal e o direito disciplinar, nomeadamente quanto à diferente configuração do princípio da jurisdicionalidade, uma vez que da Constituição resulta que no direito disciplinar inexiste a concentração de competência jurisdicional, que se verifica em matéria crime nos tribunais comuns (artigo 213.º, n.º 1). E não se pode dizer que a Constituição reconhece simplesmente um conceito histórico de direito disciplinar, quando é certo que faz exigências ao direito disciplinar desconhecidas da Constituição de 1933.
Na verdade, a Constituição consagrou uma evolução legislativa anterior, através da qual o direito disciplinar se autonomizou do direito penal. Tanto o direito disciplinar dos funcionários públicos como o dos militares derivou historicamente do direito penal especial destas classes ou estados de pessoas (cf. Maurach-Zipf, ibid., Stratenwerth, Strafrecht, Allgemeiner Teil, I, 3.ª ed., 1981, p. 445, Jakobs, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2.ª ed., 1991, pp. 56 e seguintes). A evolução histórica do direito disciplinar caracteriza-se precisamente por um movimento liberalizador, por um lado, de descriminalização, reservando ao direito penal apenas aquelas faltas que põem em perigo a defesa da sociedade no seu conjunto e não apenas a funcionalidade de uma instituição particular e, por outro lado, de «desestatização», no sentido de que não há um superior dever de fidelidade de certos «estados» de cidadãos, pelo que o comportamento fora da instituição só pode relevar disciplinarmente se afectar a confiança indispensável ao exercício do cargo. Considerações semelhantes, algo atenuadas, valem para as sanções disciplinares das associações de profissionais livres em profissões cujo exercício depende de título ou autorização pública (advogados, solicitadores, médicos, revisores de contas, etc.).
Mas a tendência para a progressiva autonomização do direito disciplinar relativamente ao direito penal é contrabalançada pelo progressivo alargamento das garantias do direito penal ao direito disciplinar. Marcos históricos desta última evolução são, por exemplo, a inclusão do «regime geral de punição das infracções disciplinares» na alínea d) do artigo 168.º da Constituição, na 1.ª revisão constitucional, e o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no caso König de 28 de Junho de 1978 (Cour européenne des Droits de l'Homme, série B, n.º 25, pp. 42 e seguintes), que considerou que a sanção disciplinar de inibição do exercício da profissão de médico estava sujeita às garantias jurisdicionais e processuais do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, jurisprudência logo confirmada, quanto à suspensão do exercício da mesma profissão, nos casos Le Compte (Acórdãos de 23 de Junho de 1981, Cour européenne des Droits de l'Homme, série A, n.º 48, p. 21, e de 10 de Fevereiro de 1983, ibid., série A, n.º 58, p. 15).
Assim, a Constituição reconhece expressamente a autonomia do direito disciplinar, a sua diversidade institucional e a pluralidade de competências sancionatórias que o caracterizam [cf. os artigos 168.º, n.º 1, alínea d), e 282.º, n.º 3, quanto ao direito disciplinar geral, 160.º, n.º 1, 163.º, n.º 1, alíneas b) e c), 182.º, n.º 3, alínea b), quanto à disciplina dos deputados, 27.º, n.º 3, alínea c), e 167.º, alínea d), quanto ao direito disciplinar militar, 219.º, quanto ao direito disciplinar dos juízes, 220.º, n.º 3, quanto ao dos funcionários de justiça, 221.º, n.º 4, quanto ao do Ministério Público, 269.º, n.º 3, e 271.º, n.º 1, quanto ao dos funcionários e agentes administrativos).
Mas é de acentuar que nas disposições de carácter geral a Constituição preocupa-se em estender ao direito disciplinar as garantias do direito penal. O princípio da legalidade, em matéria de fontes de direito, é aplicável de forma atenuada, na medida em que não abrange a definição integral das infracções, nem da conexão entre estas e as correspondentes sanções. Não obstante, o regime geral de punição das infracções disciplinares é da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 168.º, n.º 1, alínea d)] e a disciplina das Forças Armadas é da reserva absoluta da mesma competência [artigo 167.º, alínea d)]. E o princípio da retroactividade da norma mais favorável, no confronto com o do respeito pelo caso julgado na hipótese do n.º 2 do artigo 282.º, é regulado uniformemente em matéria penal e disciplinar.
16 - Em face da evolução histórica e do regime constitucional, as diferenças entre o direito penal e o direito disciplinar não têm sobretudo a ver com a natureza das respectivas infracções nem com os fins das sanções correspondentes [acentuando a identidade, v., neste aspecto, Beleza dos Santos, Ensaio sobre a Introdução ao Direito Criminal, 1968, p. 113, e, em geral, sobre a complementaridade dos dois ramos de direito, cf. Stratenwerth, ob. cit., ibid.; Hassemer (co-autor), Kommentar zum Strafgesetzbuch, I, 1990, pp. 103 e seguintes; Roxin, Strafrecht, Allgemeiner Teil, I, 1992, p. 235]. Tanto o direito penal como o disciplinar têm como fins a repressão da culpa e a prevenção de infracções futuras. A delimitação do ilícito em cada ramo de direito não depende só da natureza dos interesse, mas também da gravidade e da direcção das ofensas. Os interesses da Administração Pública também são penalmente protegidos - a funcionalidade da Administração é especialmente visada em certos crimes, como na usurpação de funções (artigo 400.º do Código Penal) e na corrupção passiva para acto ilícito (artigo 422.º do Código Penal) -, embora só contra certas formas mais graves de ofensa. Não pode haver punição disciplinar sem culpa, porque o princípio constitucional de culpa tem a ver com a existência de punição e não com o ramo de direito em que se pune. A mesma privação ou limitação de direitos pode ser o efeito quer de sanções penais quer de sanções disciplinares. Assim, a demissão, a suspensão de cargo, a interdição de exercício de profissão ou actividade, a incapacidade eleitoral e a incapacidade para ser eleito são penas acessórias no Código Penal (artigos 66.º a 69.º) e poderiam ser penas principais [como eram no Código anterior as penas especiais para os empregados públicos - demissão, suspensão e censura (artigo 57.º) - e as penas de suspensão dos direitos políticos (artigos 60.º e 61.º)]. A Constituição prevê sanções disciplinares que envolvem a privação de direitos fundamentais, como é caso excepcional da prisão disciplinar imposta aos militares [artigo 27.º, n.º 3, alínea c)] e de perda do mandato de deputado [artigos 163.º, n.º 1, alíneas b) e c)].
As características apontadas por alguma doutrina e pelo Presidente da República como específicas do direito penal encontram-se, todas elas, no direito disciplinar.
17 - Não quer isto dizer que a Constituição não proíba «a degradação de sanções de natureza penal em sanções de natureza disciplinar». A especificidade do direito penal é reconhecida na Constituição através de três princípios que ou são exclusivos do direito penal ou têm nele uma configuração única. São eles os princípios da legalidade [artigos 29.º e 168.º, n.º 1, alínea c)], da jurisdicionalidade (artigos 27.º, n.os 2 a 4, 28.º, 29.º, 31.º, 32.º e 213.º, n.º 1) e da necessidade (para a defesa dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) ou da máxima restrição (compatível com aquela defesa) das penas e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.os 2 e 3).
O princípio da legalidade visa garantir no direito penal um grau superior de previsibilidade (tipicidade) e de restrição (reserva de lei, proibição de integração, irretroactividade in pejorem partem) da aplicação das suas sanções e de objectividade no julgamento e garantia de direitos do arguido e restrição no seu sacrifício (in dubio pro reo) no processo penal. O fundamento comum destes desvios às regras gerais em matéria de fontes de direito, de aplicação do direito e de processo jurisdicional, que tornam o direito penal um ramo de direito com extremas garantias formais, é o princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança: por serem as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não seja certa a sua necessidade, a qual deve ser controlada por exigências de especial responsabilização política do legislador e de especial cuidado na preparação da decisão do juiz. A Constituição configura assim o direito penal como o direito sancionatório mais grave, a que devem corresponder as mais graves infracções e as mais graves sanções, e que tem específicas garantias formais na sua efectivação.
As especificidades formais que o princípio da legalidade e o princípio da jurisdicionalidade dão ao direito penal são assim essenciais ao seu conceito constitucional. Mas também pode haver inconstitucional degradação do direito penal: assim, por exemplo, se uma infracção, com a gravidade do homicídio, não fosse punida como crime, ou se a prisão fosse imposta como pena disciplinar fora do direito disciplinar militar. No primeiro caso, seria violado o direito à vida (artigo 24.º da Constituição) que vincula o legislador a sancionar penalmente as formas incompatíveis da sua ofensa (artigo 18.º, n.º 1). Por esta via está o legislador penal obrigado a defender as valorações ético-jurídicas fundamentais da Constituição. No segundo caso, o princípio da necessidade ou da máxima restrição das penas e medidas de segurança (artigo 18.º) reserva ao direito penal as sanções privativas da liberdade (artigo 27.º, n.º 2), com a única excepção do n.º 3 do artigo 27.º
A infracção prevista no n.º 2 do artigo 5.º do decreto 185/VI é o incumprimento culposo por um juiz, que não seja do Tribunal Constitucional nem do Tribunal de Contas, da obrigação da apresentação, no prazo de 30 dias consecutivos à notificação do Tribunal Constitucional para o fazer, das declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º A cominação da pena e feita por remissão, através de qualificação do incumprimento culposo como infracção disciplinar de grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional, que é falta disciplinar a que são aplicáveis as penas disciplinares de suspensão do exercício de 20 a 240 dias e de inactividade não inferior a um ano nem superior a dois (artigos 94.º e 90.º da Lei 28/85, de 30 de Julho - Estatuto dos Magistrados Judiciais).
Estará o legislador ordinário obrigado a qualificar o facto como crime? Responde-se decisivamente que não. Trata-se de uma desobediência por omissão que pode assumir a forma negligente, como é de regra nas infracções disciplinares, e expressamente dispõe o Estatuto dos Magistrados Judiciais (artigo 82.º), ao contrário do que é a regra em direito penal (artigo 13.º do Código Penal). Que a infracção do n.º 1 do artigo 3.º da Lei 4/83 - correspondente à do n.º 1 do artigo 5.º, mas que não abrangia outros juízes além dos do Tribunal Constitucional - abrange a mera negligencia foi, aliás, a interpretação que prevaleceu no Supremo Tribunal de Justiça (cf. os citados Acórdãos de 8 de Julho de 1987 - processo 39001 -, de 11 de Novembro de 1987 e de 25 de Novembro de 1987 - processo 39140 - e ainda o Acórdão de 7 de Abril de 1986, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 376, pp. 343 e seguintes; anteriormente, segundo o citado Acórdão de 8 de Julho de 1987 - processo 38997 - a infracção só admitiria a forma dolosa e segundo o acórdão da mesma data no processo 39001, admitiria, além do dolo, também negligencia grave), isto não obstante considerar sujeita à jurisdição dos tribunais comuns (note-se que a Lei 4/83 não contém preceito correspondente ao n.º 2 do artigo 5.º do decreto 185/VI) aquela infracção como crime. Ora o legislador não qualifica em geral a desobediência negligente como crime, mas apenas a dolosa (artigo 388.º do Código Penal), e não estava certamente obrigado pela Constituição a criminalizar a desobediência negligente. Não existe tal obrigação sequer quanto ao crime doloso de desobediência, não previsto em vários direitos estrangeiros (como o francês, o alemão, o austríaco, por exemplo), que têm um quadro constitucional semelhante ao nosso. É certo que se trata aqui de uma desobediência de conteúdo específico e que não está, por isso, sujeita às objecções levantadas pela norma penal em branco que preveja a desobediência em geral, deixando a determinação da infracção para a ordem - que não tem força de lei - especificamente desobedecida (cf. na doutrina portuguesa, desde Levy Maria Jordão, Comentário ao Código Penal, I, 1853, p. 212, à Comissão da Revisão do Código Penal, Código Penal. Actas e Projecto, 1993, p. 408). Mas o ilícito da não declaração obrigatória de riqueza e rendimentos não existiu entre nós até 1983, sem inconstitucionalidade por omissão, e continua a não existir, ou a existir sem sanção penal, em muitos sistemas constitucionais (cf. o relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 17 de Fevereiro de 1993, pp. 576 e seguintes).
Nesta perspectiva, a norma do n.º 2 do artigo 5.º não é uma norma penal, nem tão-pouco uma norma penal degradada. Torna-se, por isso, desnecessário determinar se se inclui no conceito constitucional de direito disciplinar, ou se é uma norma disciplinar do direito constitucional material, etc. Deixa, em qualquer caso, de ser problemática a sua não submissão ao regime constitucional do direito penal, nomeadamente do ponto de vista jurisdicional, por a sua aplicação não ser da competência dos tribunais judiciais.
E, por maioria de razão, tal não submissão também não é problemática para quem, numa outra perspectiva, parta do entendimento de que as infracções em causa, por sua própria natureza, se apresentam como pertencentes ao tipo disciplinar, desde logo porque a obrigação de entrega das declarações de património e rendimentos assume um carácter meramente preventivo relativamente à eventual prática de actos, esses, sim, eticamente reprováveis, e porque, não se destinando tais declarações, na óptica da lei, ao conhecimento público, a punição da sua falta de entrega não visa tanto proteger os interesses da sociedade, em geral, ou dos cidadãos, no seu conjunto, como assegurar a boa imagem e reputação perante a opinião pública do grupo particular em que se integram os declarantes. Nesta mesma perspectiva, e no quadro sistemático da presente lei, o legislador ordinário não só não estava obrigado a qualificar o facto como crime, como se afigura mesmo mais que problemático que o pudesse, sequer, fazer.
Não há, portanto, violação dos artigos 2.º e 205.º, n.º 1, da Constituição, visto que tal violação, como se demonstrou (supra n.º 4), depende da qualificação como penal, ou da natureza penal, da norma do n.º 2 do artigo 5.º
18 - Mas não violará o n.º 2 do artigo 5.º o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição), na medida em que qualifica como infracção disciplinar a mesma infracção que no n.º 1 do mesmo artigo, quando praticada por outras pessoas, é - segundo pressupõe o requerente - um crime, e ainda na medida em que impõe uma pena disciplinar, onde o n.º 1 impõe - sempre segundo o requerente - sanções penais?
Uma vez que a única diferença material entre a infracção do n.º 2 e a do n.º 1 é a qualidade das pessoas, o carácter criminal da conduta só poderia advir das sanções previstas em cada um dos dois números. Ora há duas diferenças fundamentais entre as sanções previstas em cada número:
1) Ao passo que no n.º 2 as sanções são, por remissão, a suspensão do exercício e a inactividade, no n.º 1 a sanção é a perda de mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos, ou, quando se trate da não apresentação de nova declaração no prazo de 60 dias a contar da cessação de funções que tiverem determinado a apresentação da precedente (primeira parte do n.º 1 do artigo 4.º), a inibição por período de 1 a 5 anos para o exercício do cargo que obrigue à referida declaração e que não corresponda ao exercício de funções como magistrado de carreira;
2) Enquanto as sanções do n.º 2 são aplicadas pela entidade que detém poder disciplinar, as do n.º 1 são aplicadas pelo Tribunal Constitucional, excepto quando se trate de gestores públicos, ou de administradores em representação do Estado ou de pessoa colectiva pública de empresas de capitais públicos ou de economia mista [alínea a) do artigo 2.º], porque então a competência é dos tribunais administrativos.
Com ressalva dos problemas constitucionais que a inibição para o exercício do cargo suscita e o Tribunal adiante abordará, cumpre reconhecer que, na perpectiva do legislador do decreto 185/VI, tão-pouco as sanções do n.º 1 têm carácter criminal. Ao retirar a competência para aplicar aos tribunais judiciais, contrariando a jurisprudência que se tinha firmado nesse sentido no domínio da Lei 4/83, o legislador terá optado por uma interpretação não penal das normas do n.º 1 (aliás, a não criminalização da conduta foi defendida pelo deputado Fernando Condesso, do PSD, relator do citado relatório da Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, lugar citado, pp. 385 e 387). Com efeito, acerca do n.º 1 do artigo 8.º podem repetir-se, a favor e contra a sua natureza penal, os mesmos argumentos aduzidos acerca do n.º 2.
Não sendo, na perspectiva do decreto 185/VI, quer o n.º 2, quer o n.º 1 do artigo 5.º, normas de direito penal (sem ser necessário precisar a qualificação), não se verifica a diferença de qualificação segundo a qualidade das pessoas como pressuposto da inquirida violação do princípio da igualdade.
19 - Mas não haverá violação do princípio da igualdade por outro pressuposto, nomeadamente, por as sanções cominadas para os titulares de cargos abrangidos pelo n.º 1 do artigo 5.º - a perda de mandato, demissão ou destituição judicial e a inibição para o exercício do cargo - serem «bem mais pesadas» do que as sanções cominadas para os juízes (com as sabidas excepções) do n.º 2 do mesmo artigo - suspensão de exercício e inactividade?
O argumento pressupõe, implicitamente, que a pena equivalente à demissão (ou perda de mandato, ou destituição) de cargo político seria a demissão do juiz. O pressuposto é insustentável. A demissão de um cargo político - ou a inibição para o seu exercício -, que é uma pena temporária, é bem menos grave do que a demissão de magistrado judicial, que é uma pena permanente, que implica a perda do estatuto de magistrado e dos correspondentes direitos, embora não implique a perda do direito à aposentação, nem impossibilite o magistrado de ser nomeado para cargos públicos ou outros que possam ser exercidos sem que o seu titular reúna as particulares condições de dignidade e confiança exigidas pelo cargo de que foi demitido (artigo 107.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais). A questão da gravidade relativa das sanções em causa foi discutida na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça acerca da aplicabilidade da lei da amnistia (Lei 18/86, de 11 de Junho) à infracção do artigo 3.º da Lei 4/83, tendo-se firmado a doutrina de que a demissão de cargo político era «menos grave mesmo do que as penas disciplinares de inactividade e aposentação compulsiva» (Acórdão de 25 de Novembro de 1987 - processo 39140, loc. cit., p. 238), sendo uma «figura que, se terá algum parentesco com outras preexistentes, será com a sanção disciplinar de suspensão» (Acórdão de 25 de Novembro de 1987 - processo 39227, loc. cit., p. 274).
Deve, pois, concluir-se que a diferença de sanções entre as hipóteses do n.º 1 e as do n.º 2 do artigo 5.º do decreto 185/VI se justifica pela natureza dos respectivos cargos - nomeadamente por os juízes serem nomeados vitaliciamente - e não implica uma diferença de gravidade relativa entre sanções, nem «eo ipso» uma violação do princípio da igualdade.
20 - O Presidente da República questiona ainda se a exclusão do âmbito do n.º 2 do artigo 5.º dos magistrados de carreira que exerçam funções no Tribunal Constitucional e no Tribunal de Contas não viola o princípio da igualdade.
A diferença fundamental reside não entre os «juízes dos restantes tribunais» e outros «juristas» do Tribunal Constitucional (cf. o artigo 224.º, n.º 2, da Constituição e o artigo 13.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro), ou entre os juízes «providos a título definitivo» ou «em comissão permanente de serviço» do Tribunal de Contas (artigo 38.º da Lei 86/89, de 8 de Setembro), mas entre «todos» os juízes do Tribunal de Contas. Com efeito, enquanto os juízes do Tribunal Constitucional são designados por seis anos (artigo 224.º, n.º 3, da Constituição), portanto, temporariamente, os juízes do Tribunal de Contas são providos ou designados de modo definitivo ou permanente, como os restantes juízes. A demissão dos juízes do Tribunal de Contas representa, pelas razões que se expuseram no número anterior, uma sanção bem mais grave do que as sanções disciplinares de suspensão de exercício de 20 a 240 dias ou de inactividade não inferior a um ano nem superior a dois, aplicáveis aos restantes juízes.
Deve, assim, considerar-se inconstitucional, por violação do artigo 13.º e 18.º, n.º 2 da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 5.º do decreto 185/VI, na parte em que se refere aos juízes do Tribunal de Contas.
21 - O Presidente da República levanta ainda a questão da possível ofensa do princípio da igualdade por o juiz Presidente e os juízes vogais do Supremo Tribunal Militar não estarem excluídos do âmbito do n.º 2 do artigo 5.º e sujeitos, como os do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, à jurisdição do Tribunal Constitucional.
O Supremo Tribunal Militar é composto por presidente, sete vogais militares, dois vogais relatores e, se necessário, um ou mais adjuntos (artigo 271.º do Código de Justiça Militar). O presidente é um general do Exército ou da Força Aérea ou ainda um oficial general da Armada com o posto de vice-almirante ou contra-almirante, no activo ou na reserva (artigo 273.º do Código). Os vogais militares são oficiais generais, no activo ou na reserva, sendo três do Exército, dois da Armada e um da Força Aérea (artigo 274.º do Código). O Presidente e os vogais militares exercem funções em comissão de serviço por dois anos, podendo ser reconduzidos (artigo 275.º, n.º 2, do Código).
O Presidente e os vogais militares do Supremo Tribunal Militar são juízes militares e seria inadequado atribuir-lhes no contexto do decreto 185/VI um estatuto diferente do dos restantes juízes militares. Ora o estatuto dos restantes juízes militares dos tribunais militares revela que são oficiais dos quadros permanentes do ramo das Forças Armadas a que pertence o tribunal, na situação de activo, os quais exercem as suas funções de juízes enquanto militares, isto é, as suas funções de juízes são parte integrante das suas funções militares.
E bem se compreende que assim seja, já que os tribunais militares, nos termos estabelecidos na Constituição, têm a sua competência confinada ao julgamento dos crimes essencialmente militares. Mas, assim sendo, não parece razoável admitir que o decreto 185/VI tenha querido incluir quer os juízes militares dos tribunais militares de instância, quer os juízes militares do Supremo Tribunal Militar, entre os juízes a que se refere, até porque, como vimos, estes tribunais não têm competência para apreciar questões directamente relacionadas com interesses patrimoniais do Estado ou para, em nome do povo, dirimir conflitos entre interesses privados com uma dimensão patrimonial, pelo que falecem as razões que podem ter conduzido a incluir os juízes entre as entidades obrigadas a apresentar as declarações.
Entende, portanto, o Tribunal - diversamente do relator - que o n.º 2 do artigo 5.º deve interpretar-se no sentido de que não abrange os juízes militares dos tribunais militares.
c) A questão da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1
22 - Dispõe o artigo 8.º, n.º 1, do decreto 185/VI:
Artigo 8.º
Competência para a aplicação de sanções
1 - Compete ao Tribunal Constitucional aplicar as sanções referidas no artigo 5.º quando se trate de titulares de cargos referidos nas alíneas a) a l) do artigo 2.º.
As alíneas a) a l) do artigo 2.º abrangem todos os titulares de cargos abrangidos pelo decreto 185/VI, com excepção dos referidos na alínea m), que são os gestores públicos e os administradores em representação do Estado ou de pessoa colectiva pública de empresas de capitais públicos ou de economia mista, dos quais trata o n.º 2 do artigo 8.º Outra excepção, essa não referida no n.º 1 é a dos juízes, referidos pela alínea e) do artigo 2.º, e de que trata o n.º 3 do artigo 8.º, salvo tratando-se de juízes do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas, aos quais se aplica o regime do n.º 1.
23 - O Presidente da República questiona a constitucionalidade material do n.º 1 do artigo 8.º:
a) Por violação do artigo 213.º, n.º 1, ao atribuir ao Tribunal Constitucional uma competência para aplicar sanções penais, que está reservada aos tribunais judiciais;
b) Por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, por os titulares dos cargos políticos sujeitos à jurisdição do Tribunal Constitucional não terem garantia de recurso das decisões punitivas (violação do artigo 20.º, n.º 1), ao contrário dos que vêem as suas causas julgadas em primeira instância pelos tribunais administrativos, ou pelas entidades que sobre eles tenham poder disciplinar (violação do artigo 13.º);
c) Por violação do artigo 13.º, ao colocar os juízes de carreira que exercem funções no Tribunal Constitucional e no Tribunal de Contas numa situação diferente da dos restantes juízes de carreira, que não estão sujeitos à competência disciplinar do Tribunal Constitucional.
24 - Antes, porém, de apreciar estes pontos, importa averiguar se o n.º 1 do artigo 8.º, independentemente do seu conteúdo, é, desde logo, inconstitucional por atribuir uma competência ao Tribunal Constitucional sem revestir a forma de lei orgânica, violando assim o artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea c), da Constituição. Segundo o n.º 2 do artigo 169.º, reveste a forma de lei orgânica o acto de legislar sobre organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional, previsto na alínea c) do artigo 167.º como sendo da exclusiva competência da Assembleia da República. Abrange a legislação sobre processo a legislação sobre competência? A letra da lei é equívoca, porque a palavra «processo» tanto pode ser interpretada num sentido lato (interpretação declarativa lata) que abrange a competência, como num sentido restrito (interpretação declarativa restritiva) que a exclui. Assim, por exemplo, nas alíneas c) e d) do artigo 168.º pode entender-se que a palavra «processo» está usada em sentido restrito, porque a «competência dos tribunais» está prevista na alínea q) do mesmo artigo. Mas seria equivalente no resultado (a reserva relativa da competência da Assembleia da República) uma interpretação declarativa lata da palavra «processo» naquelas alíneas, fazendo então a alínea q) uma generalização a todos os processos judiciais do regime da competência dos tribunais que já é estabelecido quanto a alguns desses processos nas alíneas c) e d). A favor desta segunda interpretação pode invocar-se que a expressão «legislação do processo» e semelhantes («tais como legislar sobre a matéria de processo», do artigo 168.º, ou «código de processo») abrangem geralmente as normas de competências dos tribunais, o que é também lógico, porque a competência do tribunal é um pressuposto processual. Assim, os Códigos de Processo Civil e de Processo Penal incluem tradicionalmente a matéria de competência dos tribunais.
No caso da expressão do artigo 167.º «legislar sobre organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional» há um argumento histórico no sentido da interpretação declarativa lata. O legislador constituinte de 1989, que introduziu a forma de lei orgânica com o n.º 2 do artigo 169.º, não pôde deixar de ter presente, ao exigir essa forma para a «lei sobre organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional», que a existente lei com essa designação - a Lei 28/82, de 15 de Novembro - incluía um capítulo sobre a competência do Tribunal Constitucional (capítulo I do título II, artigos 6.º a 11.º). Deduz-se, portanto, que terá querido exigir a forma orgânica para qualquer futura alteração ou aditamento de qualquer parte dessa lei ou para a sua substituição integral, incluindo as normas sob competência. É certo que uma vontade histórica não se obtém por dedução, mas pode presumir-se, na falta de indicação em contrário.
Argumentos decisivos são os lógicos e sistemáticos. Sendo o processo um meio necessário para o exercício de competência, é ilógico comandar o fim, atribuindo a competência, se não existirem os meios, isto é, o processo, assim como é ilógico atribuir o poder para criar competência sem atribuir o poder para criar o meio processual que torna possível o exercício da competência. Seria impor deveres que não podem ser cumpridos e conferir poderes que não podem ser realizados. Seria, em suma, vontade legislativa que não pretende eficácia. Basta atentar nas contradições sistemáticas e nos impasses práticos resultantes. Se a nova competência do artigo 8.º, n.º 1, fosse atribuída ao Tribunal Constitucional por uma simples lei, e não fossem criadas as normas de processo correspondentes através da maioria qualificada e da forma dos n.os 4 e 5 do artigo 271.º da Constituição, ficaria o n.º 1 do artigo 8.º sem eficácia. Em caso de veto do Presidente da República, abria-se um conflito institucional indesejável: o Presidente da República, que estaria obrigado a promulgar a simples lei, se fosse confirmada pela maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções (artigo 139.º, n.º 2), poderia, através do veto da lei orgânica do processo correspondente, inviabilizar de novo a anterior confirmação, por a confirmação da lei orgânica passar a exigir a maioria qualificada de dois terços dos deputados presentes (artigo 139.º, n.º 3).
A não inclusão da competência na matéria do processo implicaria outra contradição axiológica: ao passo que a Constituição, quanto aos restantes tribunais, considera mais importante - e, portanto, merecedora de restrições formais - a matéria de competência do que a matéria de processo, pelo que só a primeira é relativamente reservada à competência legislativa da Assembleia da República [artigo 168.º, alínea q)], quanto ao Tribunal Constitucional, a matéria de processo estaria reservada absolutamente àquela competência legislativa [artigo 167.º, alínea c)], e ainda por cima sujeita a lei orgânica (artigo 169.º, n.º 2), enquanto a matéria de competência só lhe estaria relativamente reservada, sem excluir uma autorização legislativa ao Governo [artigo 168.º, alínea q)]. Criar-se-ia assim a possibilidade de novos conflitos institucionais: o Governo, depois de autorizado, poderia criar novas competências do Tribunal Constitucional, que seriam ineficazes se não fossem viabilizadas por lei orgânica, etc.
Ora, a correcta ponderação axiológica é a que valoriza a atribuição de competência jurisdicional acima da regulação do processo, porque esta é instrumental relativamente àquela. Razão têm, pois, Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando interpretam a alínea c) do artigo 167.º dizendo que, «por maioria de razão, deve considerar-se aqui incluída também a definição da sua competência, para além da constitucionalmente fixada (cf. artigo 225.º, n.º 3)» (ob. cit., p. 664). Por este fundamento, já no domínio da revisão constitucional de 1982 se devia entender que a alínea e) do n.º 2 do artigo 213.º remetia para a alínea h) do artigo 167.º [correspondente, sem alterações, à actual alínea c)] e não para a alínea q) do artigo 168.º A exigência de lei orgânica na revisão de 1989 só veio acentuar a improcedência da interpretação contrária.
Não se diga que não é permitido alargar por analogia (e o argumento por maioria de razão pode considerar-se como argumento analógico) as hipóteses de lei orgânica, ou de reserva absoluta de competência legislativa, previstas na Constituição. Mesmo que se admitisse um princípio da tipicidade na matéria, ou que se considerasse a reserva absoluta como excepcional, isso não afectaria a validade de argumentos por maioria ou identidade de razão, e de raciocínios por analogia, para interpretar, apenas proibiria a integração de lacunas e, portanto, o uso desses ou outros argumentos, para as integrar. Ora, quando se diz que no artigo 167.º a matéria de «processo» inclui a de competência, está-se a tomar em sentido amplo uma expressão «matéria de processo» que tem vários significados e em que a interpretação não faz mais do que «declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo». Fala-se então de interpretação extensiva, a qual se destina a «corrigir uma formulação estrita de mais». O legislador, exprimindo o seu pensamento, introduz um elemento que designa espécie, quando queria aludir ao género. A interpretação extensiva «supõe que há desconformidade entre a letra e o pensamento da lei», pelo que «há-de ter por efeito operar uma rectificação do sentido verbal» (transcrevem-se as expressões usadas por Francesco Ferrara, traduzido por Manuel de Andrade em Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, Interpretação e Integração das Leis, 2.ª ed., 1963, pp. 147, 150, 148 e 149, e que definem a terminologia tradicional). Só deixa de haver interpretação quando o pensamento legislativo «não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil). Só para lá da interpretação há lacunas a integrar.
Ora os argumentos por maioria de razão e, em geral, por analogia são indispensáveis tanto para interpretar como para integrar. Como instrumentos da interpretação, são eles que permitem incluir num conceito as classes de casos de inclusão duvidosa, por pertencerem à periferia (Begriffshof na linguagem de Heck) e não ao núcleo (Begriffskern) do conceito, o que se faz por valerem para aqueles as mesmas razões que fundamentam o regime legal dos casos nucleares (de cuja abrangência pelo conceito não se duvida), e isto, precisamente, por argumentos analógicos de identidade ou maioria de razão. Foi assim que se incluiu a classe em questão das normas sobre competência na legislação sobre matéria de processo. Assim se faz usualmente em direito quando se interpreta. No caso em crise o resultado da interpretação cabe num dos sentidos possíveis das palavras da lei, segundo as regras da linguagem, pelo que o resultado da interpretação não implica a rectificação dessas palavras: a interpretação é, pois, declarativa.
Assente que o conceito de matéria de processo do Tribunal Constitucional na alínea c) do artigo 167.º abrange a competência, seria necessário que o n.º 1 do artigo 8.º do decreto 185/VI, que atribui uma competência ao Tribunal, revestisse a forma de lei orgânica. Ora, dos trabalhos preparatórios resulta, como se viu (supra, n.º 5), que este decreto foi votado sem o formalismo próprio da lei orgânica. O n.º 1 do artigo 8.º é, portanto, inconstitucional, por violação do artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea c), da Constituição.
Tendo concluído pela inconstitucionalidade formal do n.º 1 do artigo 8.º por violação do artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea c), da Constituição torna-se desnecessário averiguar de outros fundamentos de inconstitucionalidade, desta vez material.
d) A questão da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 2
25 - Dispõe o n.º 2 do artigo 8.º do decreto 185/VI:
Artigo 8.º
Competência para a aplicação de sanções
...
2 - Em relação aos titulares de cargos referidos na alínea m) do artigo 2.º, a competência é dos tribunais administrativos.
O Presidente da República questiona a constitucionalidade do n.º 2 do artigo 8.º por dois fundamentos:
a) Violação do artigo 214.º, n.º 3, da Constituição, pela atribuição de competência para a aplicação destas sanções aos tribunais administrativos, se se atentar «na natureza penal das sanções e na circunstância de o incumprimento culposo resultar da prática (por acção ou omissão) de factos totalmente estranhos ao exercício de funções, mesmo até após o termo do exercício»;
b) Por violação do artigo 13.º, por não se descortinar fundamento material bastante para «subtrair a apreciação destes casos à entidade que sobre aqueles gestores e administradores detém poder disciplinar (claramente abrangidos nos poderes de tutela), pela mesma ordem de razões - profissionalidade, estatuto profissional próprio e carreira - que terão levado o legislador a prever tal solução para os juízes.
26 - O argumento para afirmar a violação do artigo 214.º, n.º 3, que atribui aos tribunais administrativos o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídico-administrativas, parte da natureza penal da sanção, pelo que a decisão sobre a sua aplicação nunca poderia dirimir um litígio emergente das relações jurídico-administrativas.
Ressalva-se novamente a questão da constitucionalidade da sanção de inibição para o exercício do cargo, de que se tratará adiante. Quanto à sanção de destituição judicial de cargo, é também concebida não como uma sanção penal, mas como uma sanção de tipo disciplinar, que deriva ou emerge da relação jurídica que está na base do exercício das funções. Quanto a ela, não há, pois, violação do artigo 214.º, n.º 3, da Constituição.
Por outro lado, a subtracção dos casos dos gestores e administradores à competência da autoridade que sobre eles exerce poder de tutela e a sua sujeição à competência dos tribunais administrativos não viola o princípio da igualdade por diferença da atribuição da mesma competência, para os juízes, à entidade que detém poder disciplinar, ou seja, ao Conselho Superior da Magistratura para os juízes dos tribunais judiciais (artigos 219.º, n.º 1, da Constituição e 111.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais), ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais para os juízes de jurisdição administrativa e fiscal (artigos 219.º, n.º 2, da Constituição e 98.º do Decreto-Lei 129/84 de 27 de Abril). Com efeito, os tribunais administrativos oferecem garantias de imparcialidade que não existem nos órgãos administrativos da tutela mas que de certo modo se encontram nos conselhos superiores e outros órgãos com competência disciplinar em relação aos juízes de outros tribunais (artigo 219.º, n.º 3, da Constituição). Ora, a similitude de garantias é mais relevante nesta matéria (cf. o n.º 3 do artigo 219.º da Constituição) do que quaisquer semelhanças que possa haver entre os órgãos de tutela administrativa e os órgãos disciplinares dos juízes. Não há, por consequência, violação do princípio da igualdade.
27 - Importa averiguar agora da constitucionalidade do n.º 2 do artigo 8.º, no que respeita à atribuição de competência para aplicar a sanção de inibição para o exercício do cargo, prevista no n.º 1 do artigo 5.º Com efeito, a «inibição por período de 1 a 5 anos para o exercício do cargo a que se aplica a presente lei» implica a inelegibilidade do agente incumpridor para qualquer dos cargos electivos previstos no artigo 2.º (Presidente da República, deputado à Assembleia da República, deputado da Assembleia Legislativa Regional, deputado ao Parlamento Europeu, presidentes e vereadores de câmaras municipais). Em geral, deverá entender-se que as disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, proíbem a criação, excepto como sanção de direito penal, das sanções de inibição para o exercício de cargo público.
Desde logo, quanto aos cargos electivos, como se disse no Acórdão 602/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 14, 1989, p. 561), a capacidade eleitoral passiva é apenas um aspecto do direito político fundamental de sufrágio, activo e passivo, que deriva do princípio democrático (cf. os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 10.º, 49.º e 50.º, n.os 2 e 3, da Constituição). O princípio democrático vale universalmente para todos os cidadãos (artigo 12.º), pelo que o direito de sufrágio está histórica e essencialmente ligado ao princípio do sufrágio universal: todos os cidadãos têm, em princípio, igual direito a participar na formação da vontade geral (cf. o artigo 6.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791 e o artigo 21.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem). O direito de sufrágio passivo é verdadeiro direito subjectivo público fundamental: o Estado deverá, nomeadamente, garantir o direito à candidatura segundo os princípios do sufrágio universal, livre e pessoal e o direito à manutenção e exercício, sem prejuízo pessoal, do mandato. Dada a homogeneidade tendencial entre o direito de sufrágio activo e passivo, há uma obrigação do Estado de estender o âmbito pessoal do exercício do direito em toda a medida jurídica e realmente possível.
Não se diga que o n.º 3 do artigo 50.º permite expressamente as restrições ao acesso a cargos electivos necessários para garantir a isenção e independência de exercício dos respectivos cargos. Segundo o preceito, a isenção e a independência são relativas ao exercício do cargo. Trata-se do específico cargo e, portanto, terão de verificar-se específicos interesses e relações do cidadão que não garantem isenção e imparcialidade na gestão ou representação dos interesses que incumbe ao titular do cargo electivo. É uma incompatibilidade que tem o regime de uma inelegibilidade. O artigo 50.º, n.º 3, não autoriza, portanto, uma inelegibilidade para todos os cargos electivos previstos na Constituição. Qualquer outra causa de inelegibilidade terá, em face do artigo 50.º, n.º 3, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, de estar expressamente prevista na Constituição. Ora, a Constituição expressamente prevê no n.º 4 do artigo 30.º a possibilidade de perda de direitos políticos como pena acessória e, por identidade de razão, a possibilidade dessa perda como pena principal. Não prevê nem, portanto, permite outras causas de perda de direitos políticos.
Isto vale para a inibição para o exercício de cargo público que não seja electivo, igualmente previsto no n.º 1 do artigo 50.º, que é uma dimensão essencial do direito geral de participação na vida pública (artigo 48.º, n.º 1). Está também aqui em jogo uma dimensão essencial do princípio democrático (artigo 2.º).
Ora, deve considerar-se que a perda genérica do acesso a cargo público só pode estatuir-se por previsão expressa na Constituição, salvo como pena criminal. A inibição para o exercício de cargo público tem como efeito a negação de uma parte constitutiva do estatuto de cidadão, a capacidade para o acesso e exercício de cargos públicos num Estado de direito democrático, e de uma forma genérica. Assemelha-se, deste ponto de vista, como privação parcial da liberdade, à prisão, que priva o cidadão da sua liberdade, como capacidade genérica do exercício de direitos, e que a Constituição proíbe, em princípio, que seja cominada por lei fora do direito penal (cf. o artigo 27.º, n.º 2, da Constituição). Este argumento vale, assim, mesmo para quem não partilhe a interpretação restritiva da parte final do n.º 3 do artigo 50.º, que atrás se expôs.
Temos, portanto, que a norma do artigo 8.º, n.º 2, na parte em que atribui aos tribunais administrativos competência para aplicar a sanção da inibição para o exercício de cargo público, viola as disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, da Constituição.
e) A questão da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 3
28 - Dispõe o n.º 3 do artigo 8.º:
Artigo 8.º
Competência para a aplicação de sanções
...
3 - Em relação aos juízes, a competência é da entidade que detém poder disciplinar, salvo tratando-se de juízes do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas, aos quais se aplica o regime do n.º 1.
O Presidente da República questiona o constitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º quanto aos juízes em geral, supondo o carácter penal das sanções a aplicar, por violação do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição e ainda, quanto aos juiz Presidente e juízes vogais do Supremo Tribunal Militar, por não estarem submetidos à jurisdição do Tribunal Constitucional, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).
Já atrás se apreciaram estes fundamentos. As sanções a aplicar não têm carácter penal (supra n.os 14 a 17). Os juízes militares dos tribunais militares não estão abrangidos pela norma do artigo 5.º, n.º 1 (supra, n.º 21). Falecem, pois, estes dois fundamentos de inconstitucionalidade.
Importa, contudo, averiguar outros fundamentos (artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82).
29 - Demonstrado atrás (supra, n.º 24) que a atribuição ao Tribunal Constitucional de uma competência não directamente prevista na Constituição por uma lei que não revista a forma de lei orgânica viola o artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea c), há que concluir pela inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º do decreto 185/VI na medida em que atribui ao Tribunal Constitucional competência para aplicar as sanções previstas no n.º 1 do artigo 5.º aos juízes do Tribunal de Contas.
Quanto à competência do Tribunal Constitucional para aplicar sanções qualificadas como disciplinares aos seus próprios juízes, ela já resulta do artigo 25.º da Lei 28/82, pelo que o n.º 3 do artigo 8.º não é inconstitucional nessa medida. É-o, porém, consequencialmente, na medida em que atribui tal competência relativamente à medida de inibição para o exercício de cargo público, por violação das disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, da Constituição, conforme se fundamentou anteriormente (supra, n.º 27).
III - Conclusão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das referidas normas por violação do artigo 139.º, n.º 2, da Constituição;
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 5.º, na parte em que se refere aos juízes do Tribunal de Contas, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 13.º da Constituição;
c) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 5.º, na parte em que se refere aos juízes que não exercem funções no Tribunal de Contas, interpretada tal norma no sentido de que ela não abrange os juízes militares dos tribunais militares;
d) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 8.º, por violação do artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea c), da Constituição;
e) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 8.º, na parte em que atribui competência aos tribunais administrativos para aplicar a sanção de inibição para o exercício de cargo, prevista no n.º 1 do artigo 5.º, por violação das disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, da Constituição;
f) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 8.º na parte restante;
g) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º, na parte em que atribui ao Tribunal Constitucional competência para aplicar as sanções, previstas no n.º 1 do artigo 5.º, aos juízes do Tribunal de Contas, por violação do artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea c), da Constituição;
h) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º, na parte em que atribui ao Tribunal Constitucional competência para aplicar a medida de inibição para o exercício do cargo, prevista no n.º 1 do artigo 5.º, aos juízes do mesmo Tribunal, por violação das disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, da Constituição;
i) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º na parte restante.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 1995. - José de Sousa e Brito [com declaração de voto quanto à interpretação fixada na alínea a)] - Bravo Serra [vencido quanto à decisão constante das alíneas b), d), e), g) e h), conforme declaração de voto junta] - Antero Alves Monteiro Dinis [vencido relativamente às decisões das alíneas a), c), f) e i), conforme declaração de voto junta] - Fernando Alves Correia [vencido quanto às decisões das alíneas b), d), e), g) e h), pelas razões constantes da declaração de voto do primitivo relator, Exmo. Conselheiro Bravo Serra] - Maria Fernanda dos Santos Martins da Palma Pereira [vencida quanto às decisões constantes das alíneas a), c), f) e i), nos termos da declaração de voto junta] - Maria Assunção Esteves [vencida quanto às alíneas b), d), e) e h) pelo essencial das razões da declaração de voto do Exmo. Sr. Conselheiro Bravo Serra] - Luís Nunes de Almeida [vencido quanto à alínea a), nos termos da declaração de voto junta] - Alberto Tavares da Costa [vencido quanto às alíneas c), f) e i), nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Monteiro Dinis, quanto a esta parte] - Guilherme da Fonseca [vencido quanto às alíneas c), f) e i), nos termos da declaração de voto junta] - Vítor Nunes de Almeida [vencido quanto à decisão constante das alíneas b), d), e), g) e h), pelos fundamentos constantes da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Bravo Serra] - Messias Bento [vencido quanto às alíneas b), d), e), g) e h), pelo essencial das razões da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Bravo Serra, primitivo relator] - Armindo Ribeiro Mendes [vencido quanto às alíneas a) e c), nos termos da declaração de voto junta] - José Manuel Cardoso da Costa [com a declaração de voto junta, relativa às alíneas d), e) e h), da decisão].
Declaração de voto
Não posso concordar com a interpretação segundo a qual o n.º 2 do artigo 5.º do decreto 185/VI não abrange os juízes militares dos tribunais militares. Estes juízes integram tribunais que são órgãos de soberania, que administram a justiça em nome do povo tal como outros tribunais descritos no artigo 211.º da Constituição (cf. artigo 205.º). Respondem disciplinarmente, como todos os juízes, pelo artigo 219.º da Constituição. E estão sujeitos à competência disciplinar do Supremo Tribunal Militar, em última instância, que é também a primeira e única para os próprios juízes militares do Supremo Tribunal Militar, como se deduz do artigo 240.º, n.º 3, do Código de Justiça Militar (interpretada sistematicamente, em vista dos artigos 218.º, n.º 2, e 219.º, n.º 3, da Constituição, por um lado, e 239.º do Código de Justiça Militar, por outro). Todos eles exercem funções em comissão de serviço por dois anos, podendo ser reconduzidos (cf. artigo 237.º - juízes militares dos tribunais militares de instância - e 275.º, n.º 2 - Presidente e vogais do Supremo Tribunal Militar.) Não são, portanto, juízes ocasionais, ou eventuais, mas sim juízes em comissão de serviço duradoura, e nada justifica que não estejam igualmente obrigados a apresentar declaração sobre o rendimento, património e cargos sociais.
Fora da extensão do conceito de «juízes» do n.º 2 do artigo 5.º ficam apenas os referidos juízes ocasionais, como são os substitutos de juízes [artigo 88.º, n.º 1, alínea b), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais - Lei 38/87, de 23 de Dezembro] e os juízes sociais (cf. o artigo 201.º, n.º 2, da Constituição e o Decreto-Lei 156/78, de 30 de Junho).
José de Sousa e Brito.
Declaração de voto
Não acompanhei o acórdão, de que a presente declaração faz parte integrante, no que respeita ao respectivo conteúdo decisório ínsito nas alíneas b), d), e), g) e h), cumprindo, brevitatis causa, expor as razões da minha discordância.
Assim:
1 - Quanto à detectada inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 5.º do decreto 185/VI da Assembleia da República - segundo a tese que fez vencimento, aquela norma, ao excluir os juízes do Tribunal de Contas da previsão da aplicação da sanção, qualificada disciplinarmente como grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional - sanção essa estabelecida para os juízes dos tribunais das outras ordens judiciárias e que poderá acarretar para estes a imposição de pena de suspensão de exercício de 20 a 240 dias ou de inactividade não inferior a um ano nem superior a dois -, sujeitando, pois, os primeiros ao regime geral - o que implicará a possibilidade de lhes ser aplicada a pena de demissão -, violará o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, dado que esta última sanção «é bem mais grave» do que aqueloutras que resultam da qualificação dada pelo preceito em apreço. Antes do mais, a meu ver, torna-se necessário sublinhar que, como decorre do artigo 38.º, n.º 1, da Lei 86/89, de 8 de Setembro, os juízes do Tribunal de Contas que tenham vínculo à função publica podem ser nomeados em comissão permanente de serviço, o que vale por dizer que, uma vez nomeados, conquanto percam o concreto lugar funcional no qual anteriormente exerciam, nem por isso deixam de conservar aquele vínculo, o que implica que, igualmente, não deixam de fazer parte da carreira a que pertenciam.
Ora, relativamente a juízes nomeados nessas condições, torna-se claro que, caso lhes venha a ser aplicável a sanção prevista no regime geral pelo incumprimento do dever de apresentação da declaração previsto no artigo 3.º do decreto, isto é, a pena de demissão, esta só incidirá sobre o cargo de juiz do Tribunal de Contas, não tendo repercussão na carreira a que pertençam, à qual, obviamente, podem regressar.
Diferentes são, porém, as situações dos juízes daquele Tribunal que não tenham vínculo à função pública ou, tendo-o, não optaram por nomeação em comissão permanente de serviço, antes tendo preferido serem nomeados a título definitivo.
Daí que seja cabido perguntar se, concernentemente a estes juízes - e só a eles -, não terá razão de ser a descortinada enfermidade da norma sob apreciação em confronto com a Constituição.
Entende o subscritor da presente declaração que esses juízes, nomeados a título definitivo, hão-de estar incluídos na designação de juiz a que se reporta o primeiro troço do n.º 2 do artigo 5.º do decreto (e que, simpliciter, se poderá tomar no sentido de «juiz de carreira», o que equivale a dizer que a expressão «juiz ... do Tribunal de Contas», utilizada na parte final dessa norma, só deve abranger aqueles juízes que, mantendo vínculo à função pública, foram nomeados para esse Tribunal em comissão permanente de serviço.
Só assim, na verdade, de um ponto de vista sistemático e coerente, se explica que o legislador parlamentar tivesse consagrado, no tocante à aplicação do regime geral, uma equiparação entre os juízes do Tribunal de Contas e do Tribunal Constitucional.
Significa isto, na minha interpretação, que os juízes do Tribunal de Contas nomeados em comissão permanente de serviço vêm, afinal, a sofrer de idêntico tratamento ao conferido aos juízes dos outros tribunais que desempenham funções no Tribunal Constitucional e que, quanto aos juízes nomeados a título definitivo naquele primeiro Tribunal, também eles têm tratamento semelhante aos «juízes de carreira». De onde, perante essa interpretação, se não divisar desigualdade de tratamento passível de ser inserida como infracção ao princípio postulado pelo artigo 13.º da Constituição.
2 - Quanto à descortinada violação do n.º 2 do artigo 169.º, com referência à alínea c) do artigo 167.º, um e outro da Constituição, por parte do n.º 1 do artigo 8.º do decreto e do n.º 3 do mesmo artigo 8.º, na parte em que atribui ao Tribunal Constitucional competência para aplicar as sanções previstas no n.º 1 do artigo 5.º aos juízes do Tribunal de Contas - o Tribunal, no vertente aresto, entendeu, por maioria, que, por uma interpretação declarativa, o conceito do vocábulo «processo» usado na alínea c) do artigo 167.º da Constituição, haveria de abarcar a própria competência do Tribunal Constitucional.
Penso, todavia, que, pese embora o devido respeito pelos argumentos avançados para suportar uma tal conclusão, ela não é de seguir.
Efectivamente, na minha óptica, o legislador constituinte, aquando da revisão do diploma básico operada em 1989, tinha desde logo dar por assente, pois que, quanto a este ponto, isso era inquestionável, que as competências fundamentais ou, se se quiser, essenciais, do Tribunal Constitucional estavam, elas mesmas, já fixadas na própria Constituição (através dos artigos 213.º, 278.º, 280.º, 281.º e 283.º na versão decorrente da revisão de 1982 e, na presente versão, dos artigos 225.º, 278.º, 280.º e 283.º).
Uma tal fixação impunha, como é límpido, que esse núcleo essencial de atribuição de funções a um órgão revestido de uma importância tal como a detida pelo Tribunal Constitucional, haveria de congregar, para a respectiva definição, um alargado consenso de uma significativa maioria parlamentar, como é a exigida para se poder levar a cabo uma revisão constitucional, pois que só durante uma tal fase - a da revisão - poderiam ser tocados os poderes cognitivos que se incluam no aludido núcleo.
Por outro lado, e porque aquela atribuição, despojada das regras processuais necessárias ao seu desenvolvimento e efectivação, poderia, na prática, redundar numa atribuição dificilmente exequível, é perfeitamente compreensível que o legislador constituinte de 1989, ao gizar a figura das leis orgânicas, para as quais fez exigência de maiores requisitos, quer para a sua votação na especialidade, quer para a votação final global (cf. n.os 4 e 5 do artigo 171.º da Constituição), entendesse que aquelas regras haveriam de constar dessa categoria de leis, justamente com o propósito de impedir que, mercê de uma mera maioria simples e conjuntural do Parlamento, pudessem alcançar-se desígnios de «diminuição» ou, no limite, de despojamento da competência nuclear do Tribunal Constitucional, que desejou ver-lhe consignada e quis que por ele fosse levada a efeito.
Claro que a própria Constituição não arredou a possibilidade de ao Tribunal Constitucional virem, por lei, a ser atribuídas outras competências [cf. alínea e) do n.º 2 do artigo 213.º da versão de 1982 e n.º 3 do artigo 225.º da actual versão]. Só que, na minha perspectiva, não se incluindo essas funções naquele já referido núcleo, não se justificaria, de todo, que o respectivo processo legislativo visando essa atribuição fosse rodeado das cautelas e cuidados inerentes ao processo de feitura das leis orgânicas, este sim justificado, como acima se disse, para salvaguardar a eficácia do desenvolvimento da competência nuclear do citado órgão de administração de justiça.
Daí que tenha para mim que o termo «processo» utilizado na alínea c) do artigo 167.º da Constituição não comporte o sentido de competência. Sequentemente, no meu modo de ver, poderá a Assembleia da República, por simples lei (não se impondo, pois, que revista a forma de lei orgânica), determinar, ao abrigo do n.º 3 do artigo 225.º e da alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º, ambos da lei fundamental, a atribuição de outras funções ao Tribunal Constitucional, não se me deparando, em consequência, que, in casu e quanto às normas ora em questão, haja ferimento do n.º 2 do artigo 169.º, por referência à alínea c) do artigo 167.º Aliás, estranha-se até a circunstância de este Tribunal ter já tomado decisões relativas a determinados casos regulados pelas Leis n.os 64/93, de 26 de Agosto (regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos), e 72/93, de 3 de Novembro (lei do financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais), leis que, inequivocamente, não revestiram a forma de leis orgânicas nem como tal foram sujeitas ao cabido processo de formação, e que cometeram a este órgão de administração de justiça as funções de proceder à análise, fiscalização e sancionamento das declarações dos titulares de cargos políticos (artigo 10.º, n.º 2, da Lei 64/93) e à apreciação das contas dos partidos e aplicação de sanções aos mesmos pelo incumprimento das normas reguladoras do respectivo financiamento (artigos 13.º e 14.º da Lei 72/93).
Aquela tomada de decisões representou, assim, a aceitação, por parte do Tribunal Constitucional, da competência que lhe foi deferida pelas citadas leis e que, anteriormente, o não era minimamente. E, o que é certo é que, não obstante, como se disse, tais diplomas não revestirem a forma de leis orgânicas, nem por isso o Tribunal, então, se declarou incompetente com base na circunstância de os normativos atribuidores de competência padecerem de vício de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea d), um e outro da lei fundamental.
A actual postura da maioria que fez vencimento no acórdão representa, desta sorte, uma verdadeira incongruência com as decisões anteriores aqui indicadas.
3 - Quanto à pronúncia de inconstitucionalidade da norma do artigo 8.º, n.º 2, do decreto, na parte em que atribui aos tribunais administrativos competência para aplicar a sanção de inibição para o exercício do cargo e a que se reporta o n.º 1 do artigo 5.º do mesmo decreto, e da norma do citado artigo 8.º, n.º 3, na parte em que atribui ao Tribunal Constitucional competência para aplicar aquela sanção aos respectivos juízes. - Os titulares de cargos públicos, cuja enunciação consta das várias alíneas do artigo 2.º do decreto, são pessoas que ou são titulares de órgãos de soberania, ou são pessoas cujos cargos ou exercício de funções depende da confiança política de quem os nomeia ou designa, actuando, em consequência, tendo em vista, nomeadamente, a prossecução de interesses de ordem «política».
Ora, não sendo, nem podendo ser, a Constituição indiferente à circunstância de as instituições relevantes do Estado de direito democrático que consagrou e, bem assim, de o desempenho de funções por parte dos respectivos membros, suportes ou titulares, deverem ser apresentados e pautados de forma transparente e com a máxima lisura - e como tal tidos pelos cidadãos e pela própria comunidade (cf. relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias publicado no já citado Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 21, de 17 de Fevereiro de 1993) -, é perfeitamente compreensível que se erija em dever apontado a quem desempenha esses cargos e que, ao fim e ao resto, são o suporte humano visível e imediatamente apreensível da realidade de tais instituições, a pública demonstração dos seus interesses económicos aquando do início do desempenho e, igualmente, no momento da cessação de funções.
Esse dever impõe-se, assim, do ponto de vista deontológico-político, como consequência dos interesses de fidúcia e transparência políticas que devem ser inerentes ao poder democrático.
Este corte de considerações é, de todo o modo, também aplicável à sanção consagrada para as situações a que se reporta a primeira parte do n.º 1 do artigo 4.º do decreto 185/VI.
Contudo, não pode passar em claro que esta última sanção é aplicável a quem, tendo cessado o desempenho de um dos cargos mencionados nas alíneas b) a d) e f) a m) do artigo 2.º, não apresenta a declaração de rendimentos, património e cargos sociais, impedindo-o, por um período de um a cinco anos, de exercer as funções correspondentes aos cargos previstos naquele artigo, à excepção do consignado na alínea e).
Este efeito, sem dúvida privativo dos direitos do sancionado a, por si, tomar parte da vida política e na direcção dos assuntos públicos do País e de aceder a cargos públicos (e que não é desencadeado por intermédio de uma actividade administrativa por isso que a aplicação da sanção é da competência, ou do Tribunal Constitucional, ou dos tribunais administrativos), é, ainda, uma consequência do incumprimento do dever «político» da apresentação da declaração de rendimentos, património e cargos sociais, revelando-se proporcionado a um tal incumprimento um sancionamento que, ao fim e ao resto, reside na não futura designação para cargos de «natureza ou confiança política» (atente-se em que não impede o futuro desempenho do cargo de juiz) por um período que um órgão independente e imparcial, como é um tribunal, vai adequar ao condicionalismo objectivo e subjectivo rodeador daquele incumprimento entre limites que, em abstracto, não são de perspectivar como exagerados, sendo que a finalidade da apresentação da declaração tem, claramente, a ver com o propósito de, no exercício dos cargos públicos, se imporem comportamentos garantísticos da isenção e independência aos quais, como resulta do que se disse já, a Constituição não pode ser alheia. A isto adito que não é para mim problemático que o legislador constituinte alguma vez tivesse tido a intenção de, relativamente aos titulares de cargos electivos ou de cargos públicos que denotaram uma actuação incompatível com uma fidúcia política decorrente de uma apresentação transparente, proibir que fossem tomadas medidas legais visando impedir a futura acessão a cargos idênticos por banda de titulares que assim procederam.
Isso seria, no mínimo, um desacautelamento do valor democrático da transparência que, seguramente, aquele legislador não quis nem quererá.
A sanção sub specie afigura-se, deste modo, como limitada àquilo que é o necessário à salvaguarda dos assinalados valores de isenção e independência, não descortinando, em face do contexto em que discorri, qualquer ofensa de regras ou princípios constitucionais por parte das normas neste ponto tratadas.
Bravo Serra.
Declaração de voto
1 - Dissenti do acórdão nas soluções por ele adoptadas relativamente às matérias constantes das alíneas a), c), f) e i), da respectiva decisão, votando vencido quanto a tais questões com base na fundamentação que a seguir, de modo sumário, se deixa exposta.
2 - Numa linha de entendimento iniciada no Acórdão 320/89, Diário da República, 1.ª série, de 4 de Abril de 1989, e continuada no Acórdão 13/95, Diário da República, 2.ª série, de 9 de Fevereiro de 1995, através de declarações de voto ali apresentadas, continuo a entender que, na sequência do veto oposto nos termos do artigo 139.º, n.º 1, da Constituição, a Assembleia da República fica constitucionalmente obrigada, por força da regra do n.º 2 do mesmo preceito, a confirmar o respectivo decreto por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções, no caso de o pretender manter, ainda que com alterações de maior ou menor relevância formal ou substancial.
E, assim sendo, sustentei que todas as normas do decreto 185/VI, por deficiência procedimental, padeciam de inconstitucionalidade formal decorrente de ofensa ao disposto no artigo 139.º, n.º 2, da Constituição.
3 - Do mesmo modo, não acompanhei o acórdão quando interpretou a norma do artigo 5.º, n.º 2, do decreto 185/VI, em termos de não abranger os juízes militares dos tribunais militares.
E não acompanhei por ter por seguro que aquele diploma ao elencar os juízes entre os titulares dos cargos públicos para efeitos da aplicação do seu regime, procurou abranger no seu âmbito de incidência, sem excepções, os juízes de todas as categorias de tribunais que, como órgãos de soberania, se acham previstos no texto constitucional.
Com efeito, não se observa qualquer específica razão para os juízes militares dos tribunais militares ficarem isentos do cumprimento dos deveres de apresentação das declarações impostas a todos os demais juízes, não se apresentando como procedentes e juridicamente sustentáveis as razões que serviram de base ao entendimento em contrário perfilhado no acórdão.
E, assim sendo, ao lado dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça e dos tribunais judiciais de 1.ª e 2.ª instâncias (nos quais se compreendem os juízes dos tribunais marítimos), do Supremo Tribunal Administrativo e dos demais tribunais administrativos e fiscais, do Tribunal de Contas e do Tribunal Constitucional, hão-de incluir-se os juízes dos tribunais militares (artigos 211.º, 212.º, 214.º, 216.º, 224.º e 215.º da Constituição).
Os tribunais militares - tribunais militares de instância e Supremo Tribunal Militar - dispõem de uma composição não homogénea, já que são integrados por juízes militares e juízes não militares, isto é, juízes de direito com a denominação de juízes auditores nos tribunais militares de instância e vogais relatores no Supremo Tribunal Militar (artigos 232.º, 233.º, 246.º, 271.º e 277.º do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 141/77, de 9 de Abril, com a redacção dada pelo Decreto-Lei 285/78, de 8 de Setembro).
Ora, os juízes militares dos tribunais militares - oficiais dos quadros permanentes do ramo das Forças Armadas a que pertence o tribunal de instância, na situação de activo, ou, no caso do Supremo Tribunal Militar, oficiais generais, no activo ou na reserva - exercem o respectivo cargo público em regime de comissão de serviço por dois anos, dispondo enquanto tal das garantias que lhes são constitucionalmente asseguradas.
Mesmo quando se aceite a solução adoptada no acórdão no sentido de que as funções jurisdicionais «são parte integrante das suas funções militares», o que não se tem por adquirido, ainda assim não se descortina fundamento bastante e adequado, face ao quadro normativo que rege a sua actividade enquanto juízes militares, para justificar aquele entendimento, que conduziu, em direitas contas, à rejeição aos juízes militares do estatuto de juízes titulares de um cargo público, com a consequente degradação da sua actividade ao nível de um mero serviço militar despojado da autonomia que caracteriza a função jurisdicional.
E por tudo isto votei no sentido de a norma em causa abarcar também os juízes militares dos tribunais militares, os quais haveriam, de harmonia, aliás, com o expresso entendimento manifestado no pedido - relativamente aos juízes do Supremo Tribunal Militar -, de ser objecto de apreciação e de pronúncia por parte deste Tribunal.
4 - O acórdão pronunciou-se pela inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 8.º do decreto, do n.º 2 do mesmo artigo, na parte em que atribui competência aos tribunais administrativos para aplicar a sanção de inibição para o exercício de cargo, prevista no n.º 1 do artigo 5.º, aos gestores públicos e aos administradores em representação do Estado ou de pessoa colectiva pública de empresas de capitais públicos ou de economia mista, e ainda do n.º 3 do mesmo preceito, na parte em que atribui competência ao Tribunal Constitucional para aplicar as sanções e a medida de inibição para o exercício de cargo previstas no n.º 1 do artigo 5.º aos juízes do Tribunal de Contas.
Ora, como consequência da quase integral inutilização das regras de competência previstas naquele preceito, o quadro normativo remanescente, relativamente aos titulares de cargos públicos enumerados no artigo 2.º do decreto, ficou circunscrito aos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, dos tribunais judiciais de 1.ª e 2.ª instâncias, do Supremo Tribunal Administrativo e dos demais tribunais administrativos e fiscais [alínea e)] e aos gestores públicos e aos administradores em representação do Estado ou de pessoa colectiva pública de empresa de capitais públicos ou de economia mista [alínea m)], estes apenas na parte respeitante às sanções previstas na primeira parte do n.º 1 do artigo 5.º
Manifestei por isso o entendimento de que, face aos objectivos proclamados na Assembleia da República como propósito essencial do diploma em apreciação, e ficando este despojado do seu núcleo estatuidor essencial - assim, com efeito, não podia deixar de se considerar a exclusão do seu âmbito de todos os titulares dos cargos políticos ali compreendidos -, justificava-se uma pronúncia de inconstitucionalidade consequencial reportada às normas remanescentes do decreto em causa.
Antero Alves Monteiro Dinis.
Declaração de voto
I - A questão da inconstitucionalidade formal de todas as normas do decreto, por violação do artigo 139.º, n.º 2, da Constituição
Votei a inconstitucionalidade formal do decreto 185/VI da Assembleia da República, por entender que viola o artigo 139.º, n.º 2, da Constituição.
Existindo veto político, a Constituição impõe a confirmação do diploma vetado por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções. Só a introdução de alterações substanciais justifica a abertura de um novo processo legislativo. Mudanças formais (como, por exemplo, meros aperfeiçoamentos de redacção ou sistematização) não dispensam o mecanismo da confirmação.
A exigência de confirmação do diploma vetado, quando não sofra alterações substanciais, é uma decorrência da separação de poderes e da articulação entre os poderes do Presidente da República e da Assembleia da República, tal como é configurada constitucionalmente.
A possibilidade de, através de alterações, se impedir ad perpetuam o encerramento de um processo legislativo e se permitir o exercício reiterado do veto político contraria os fins constitucionais dos institutos do veto político e da confirmação e seria fonte de graves conflitos entre órgãos de soberania.
Ao admitir-se, porém, que a Assembleia da República altere substancialmente o decreto vetado, dispensando-se então a confirmação, está a reconhecer-se, apenas, que a sua competência em determinada matéria não é precludida pelo veto presidencial. A Assembleia da República poderá, evidentemente, acatar o veto, excluindo as soluções censuradas pelo Presidente da República [cf. o Acórdão 320/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., t. I, 1989, pp. 7 e seguintes; Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, 1990, pp. 438 e 439, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., 1993, p. 600].
O «acatamento do veto», de que depende a dispensa de confirmação, não obrigará a Assembleia da República a adoptar, positivamente, quaisquer soluções sugeridas pelo Presidente da República. Mas deverá traduzir-se, necessariamente, na superação de todas as críticas que fundamentaram o veto, através da aprovação de normas materialmente inovatórias ou da simples eliminação das normas censuradas.
No caso em apreço, o «novo decreto» da Assembleia da República não elide todas as críticas que fundamentaram o veto do Presidente da República. Na verdade, o veto fundamentou-se em três críticas, facilmente identificáveis na mensagem dirigida pelo Presidente da República à Assembleia da República (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 22 de Setembro de 1994):
a) «[...] do conteúdo de algumas [...] normas [do diploma] [...] pode concluir-se que passará a ser maior a possibilidade de fugir à exigência de declaração dos reais rendimentos e património dos titulares dos cargos públicos»;
b) «[...] o decreto [...] parece não assegurar cabalmente a possibilidade de controlo público daqueles rendimentos e património»;
c) «[...] o decreto [...] parece estar em contradição com recentes medidas legislativas aprovadas pelo Governo e pela Assembleia da República, que visam reforçar os mecanismos de prevenção, fiscalização e combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira».
Ora, o decreto em questão apenas introduziu uma alteração substancial ao decreto vetado (elimina o n.º 2 do artigo 3.º). Deste modo, é elidida apenas a primeira das três críticas que fundamentaram o veto [cf., supra, alínea a)] mas não as restantes.
Assim se compreende que o Presidente da República haja requerido a este Tribunal a fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição, «sem prejuízo» das reservas anteriormente formuladas e mantidas «na sua maior parte». Subsistindo o regime censurado, não está em causa, substancialmente, um novo decreto, que exima a Assembleia da República da confirmação prevista no n.º 2 do artigo 139.º da Constituição. Relativamente a este decreto continuam a valer as razões determinantes do veto do Presidente da República.
Por conseguinte, considero que o diploma está globalmente ferido de inconstitucionalidade formal.
II - A questão da inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 5.º, n.º 2, na parte em que se refere aos juízes, qualificando o incumprimento culposo dos deveres de declaração previstos no artigo 3.º, para efeitos disciplinares, como grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional.
A questão de constitucionalidade que o artigo 5.º, n.º 2, do decreto 185/VI suscita resulta da qualificação como mero pressuposto de sanções disciplinares da violação culposa dos deveres de declaração previstos no artigo 3.º do mesmo decreto. Tal qualificação pode contender com a reserva da função jurisdicional (artigo 205.º, n.os 1 e 2, da Constituição) e com o princípio da igualdade (artigo 13.º). Isso sucederá se se concluir que o ilícito em causa é de natureza penal ou, pelo menos, de natureza não disciplinar (reclamando, em ambos os casos, as garantias inerentes à jurisdicionalidade) e que foi ilegitimamente degradado em ilícito disciplinar quando praticado por juízes (que não sejam do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas).
O Tribunal pronunciou-se pela não inconstitucionalidade material do artigo 5.º, n.º 2, fazendo as seguintes considerações:
a) As infracções em causa não consubstanciam um ilícito penal, na perspectiva do legislador, quer sejam praticadas por juízes de carreira nas suas funções naturais, quer sejam praticadas por quaisquer outros titulares de cargos políticos ou públicos;
b) Tais infracções não deverão sequer ser qualificadas como crimes e, consequentemente, não poderão ser pressuposto de sanções penais, por força dos próprios limites materiais do direito penal consagrados na Constituição (por este motivo será inconstitucional a sanção de inibição para o exercício de cargo, decretada no n.º 1 do artigo 5.º);
c) Uma vez afastada a qualificação como ilícito penal da violação dos deveres de declaração do artigo 5.º, n.º 1, do decreto 185/VI, não se colocaria qualquer escolho à sua remissão para o ilícito disciplinar - o Tribunal não teria, assim, de averiguar a natureza material do ilícito nem de questionar noutra perspectiva a violação da reserva da função jurisdicional.
A minha divergência com o Tribunal inicia-se na alínea c) da lógica argumentativa utilizada.
Entendo que as infracções previstas no artigo 5.º, n.os 1 e 2, não são penais (quer do ponto de vista do ser legal quer na perspectiva do dever ser constitucional), por força dos próprios limites materiais do direito penal derivados dos artigos 1.º, 13.º e 18.º, n.º 2, da Constituição. Não haverá, neste caso, qualquer obrigação de criminalizar e, pelo contrário, a criminalização não será admissível constitucionalmente.
Manifesta-se, assim, a necessidade de não contaminar o direito penal, como última ratio da política social do Estado de direito democrático, com os interesses conjunturais no reforço da imagem de luta contra a corrupção. Segundo esta lógica, também a desobediência, a que as infracções em causa se assemelham, não pode ser incriminada senão restritivamente, por força do princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
Penso ainda que a criminalização não pode visar apenas assegurar as garantias processuais dos respectivos agentes ou uma superior protecção dos titulares dos interesses lesados (independentemente do seu valor). A criminalização deve basear-se na gravidade objectiva do ilícito (lesão de bens jurídicos essenciais) e no seu relevo ético (prévio).
Todavia, considero que a qualificação como ilícito disciplinar da violação dos deveres de declaração prescritos para os juízes, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, só se justificaria se tal violação se projectasse directamente no funcionamento dos tribunais a que eles pertençam. Ora, a violação daqueles deveres representa, diferentemente, um perigo para a confiança da comunidade, no seu todo, nos tribunais, enquanto órgãos de soberania (artigo 205.º, n.º 1, da Constituição). Não está em causa o incumprimento de deveres inerentes ao exercício das funções dos juízes, por mais amplamente que elas sejam entendidas. Trata-se, portanto, de um ilícito atípico de direito público, que não se inclui na experiência histórica mais próxima do direito disciplinar (recebido pela Constituição).
É precisamente neste ponto que me afasto da orientação seguida pelo Tribunal, já que considero essencial questionar as consequências da não inclusão destas infracções no ilícito disciplinar. Entendo que é indispensável discutir se a reserva da função jurisdicional se aplica neste caso, apesar de tal ilícito não ser penal.
A meu ver, a atribuição a órgãos disciplinares da competência para julgar um ilícito público de natureza externa e não interna, como o disciplinar, subverte os critérios e a lógica responsabilizadora daquele ilícito (em que não está em causa o incumprimento de deveres funcionais). Através da recondução destas infracções ao ilícito disciplinar, afastam-se as garantias de defesa dos agentes e da própria sociedade que reclama a aplicação das sanções.
Deste modo, a reserva da função jurisdicional é autonomamente exigida pela necessidade de contraditório entre a sociedade e infractor, não dependendo da qualificação das infracções como crimes.
Esta afirmação não é desmentida pelo facto de a reserva não cobrir outras formas de direito sancionatório público acolhidas pela Constituição, como o direito de mera ordenação social. Na realidade, o direito de mera ordenação social (a que, aliás, são conferidas algumas garantias do processo criminal - artigo 32.º, n.º 8, da Constituição) tem uma génese histórica determinada, associada ao seu primitivo carácter de ilícito penal administrativo e bagatela penal, e foi acolhido constitucionalmente nesse pressuposto. Não se pode inferir da sua existência (que corresponde ao reconhecimento excepcional de competência para aplicar sanções públicas às autoridades administrativas, em primeira instância) uma possibilidade geral de atribuir a órgãos não jurisdicionais a competência para aplicar sanções públicas atípicas.
Finalmente, não aderi à interpretação do Tribunal segundo a qual os juízes militares dos Tribunais Militares não estariam abrangidos pelo n.º 2 do artigo 5.º do decreto 185/VI. Considero que o tipo de ilícito em causa, consubstanciando uma relação de confiança e de credibilidade entre a sociedade e os titulares dos cargos públicos enquadra os juízes militares.
Na realidade, não são razões decisivas a favor de uma interpretação restritiva nem o facto de as funções desses juízes serem parte integrante das suas funções militares nem o facto de as competências dos tribunais militares estarem confinadas, em regra (cf. o artigo 215.º da Constituição), ao julgamento de crimes essencialmente militares.
A especialidade do estatuto e das funções de tais juízes não significa que as matérias que são objecto da sua competência não se refiram a conflitos sobre a lesão de bens essenciais da sociedade e que, por esse motivo, tais funções não tenham de se fundamentar na mesma relação de confiança e de credibilidade com a sociedade em que deve assentar o exercício de funções pelos restantes juízes.
Assim, mesmo que se considere que a intenção legislativa foi qualificar o ilícito em causa como disciplinar (ou pelo menos não penal), não se pode concluir que tal intenção contraria a inclusão dos juízes militares. Na realidade, a ratio legis é a referida protecção jurídica da confiança e da credibilidade dos titulares dos cargos públicos da qual não se excluem, de modo algum, os juízes militares.
III - A questão da inconstitucionalidade material das normas constantes do artigo 8.º, n.os 2 e 3
Votei vencida quanto à decisão de não inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 8.º, n.º 2, na medida em que entendo que ela viola o artigo 214.º da Constituição. O ilícito em causa (que não é, seguramente, disciplinar) protege uma relação de confiança dos cidadãos nos titulares de cargos públicos e não se caracteriza como relação jurídica administrativa: não são afectados os interesses específicos da Administração Pública, mas, como se disse, os interesses gerais da sociedade.
Votei vencida relativamente à decisão de não inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 8.º, n.º 3, uma vez que tal norma atribui à entidade que detém o poder disciplinar a competência para aplicar as sanções, pelas razões que me levam a negar que as correspondentes infracções possuam natureza disciplinar.
Maria Fernanda Palma.
Declaração de voto
Votei vencido, quanto a alínea a) das conclusões, por entender que ocorre inconstitucionalidade formal ou procedimental de todas as normas impugnadas do decreto 185/VI, sobre o «controlo público de rendimentos e património aos titulares de cargos públicos», por não ter sido dado cumprimento ao preceituado no artigo 139.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que exige o voto da maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções para a confirmação dos diplomas vetados pelo Presidente da República.
As razões deste entendimento encontram-se expressas na declaração de voto que juntei ao acórdão tirado no processo 521/94, respeitante à fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto 183/VI, atinente às alterações à Lei de Imprensa, e reiteram a posição por mim já anteriormente assumida na declaração de voto que juntei ao Acórdão 320/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., pp. 29 e seguintes).
Luís Nunes de Almeida.
Declaração de voto
1 - Votei vencido quanto às alíneas c), f) e i), por entender que o vício de inconstitucionalidade material se devia alargar a todo o conteúdo das normas dos artigos 5.º, n.º 2, e 8.º, n.os 2 e 3, do decreto 185/VI da Assembleia da República sobre o «controlo público dos rendimentos e património dos titulares de cargos públicos», doravante só decreto, não se confinando a inconstitucionalidade das mesmas normas apenas às «partes» que constam das alíneas b), e), g) e h) da decisão.
É que, contrariamente à perspectiva adoptada pelo acórdão, partindo da distinção entre o direito penal e o direito disciplinar, para terminar pela conclusão de que «a norma do n.º 2 do artigo 5.º não é uma norma penal, nem tão-pouco uma norma penal degradada», entendo que a infracção aí prevista, e que é também a infracção prevista no n.º 1, se deve qualificar como infracção criminal ou, no mínimo, de natureza criminal. Daí a violação dos artigos 2.º, 205.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, da Constituição, ou seja, a violação do princípio do Estado de direito democrático, na sua dimensão de Estado de justiça, e do princípio da reserva de juiz, tal-qualmente se posicionou o requerente.
Este o tronco comum do entendimento que acho preferível - desde logo, por ser coerente, diversamente do que acontece com a tese do acórdão, perfilhando uma diferente qualificação das sanções (perda de mandato, demissão ou destituição judicial, por uma banda, e inibição para o exercício de cargo público, de outra banda) - e que suporta com a mesma base o juízo de inconstitucionalidade material das citadas normas do decreto.
2 - Com o decreto em causa pretendeu o legislador substituir a vigente Lei 4/83, de 2 de Abril, sobre a mesma matéria do controlo público da riqueza dos titulares de cargos públicos - cargos políticos, na linguagem daquela lei - e, na aparência, o que se modificou foi o modo de sancionar o incumprimento dos deveres por parte daqueles titulares, previstos nos artigos 3.º (apresentação da declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais) e 4.º (apresentação da não declaração pelas mesmas pessoas).
É que, enquanto o artigo 3.º daquela lei prevê a aplicação da «pena de demissão do cargo político que o titular exerça e a medida de inibição para o exercício de qualquer outro cargo da mesma natureza pelo período de 1 a 5 anos» (n.º 1), acrescendo a responsabilidade disciplinar cominada no n.º 2 do mesmo preceito, se «o infractor exercer profissionalmente funções públicas de natureza não política», o artigo 5.º do decreto estabelece as medidas de «declaração de perda do mandato, demissão ou destituição judicial» e «inibição por período de 1 a 5 anos» para o exercício de cargo público (n.º 1) e a responsabilização disciplinar, «no caso de o infractor ser juiz», salvo «tratando de juiz do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas, aos quais se aplica o regime geral» (n.º 2).
Mas, na substância das coisas e no que aqui importa, a modificação é só aparente.
Na verdade, a entender, como entendo, que a infracção prevista no artigo 3.º da Lei 4/83 - e é a expressão aí utilizada - é uma infracção criminal, como foi perfilhado predominantemente pelos tribunais de Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça (jurisprudência de que dá notícia abundante o acórdão e que nunca foi questionada sob o prisma da desconformidade com a Constituição), não vejo que se possam colher do decreto indícios que levem a uma descaracterização do incumprimento dos deveres a que estão submetidos os titulares de cargos públicos.
Pelo contrário, parece até que a descaracterização briga com o incumprimento, tal como ele é agora modelado no decreto.
Na verdade, enquanto no regime vigente da Lei 4/83 a iniciativa pessoal da apresentação das declarações é do interessado e não há qualquer intervenção dos serviços (artigo 5.º da lei e 14.º do Decreto Regulamentar 74/83, de 6 de Outubro), sendo infracção «a não apresentação culposa» das declarações, na óptica do decreto, a falta de apresentação só se consuma como «incumprimento culposo» depois de o interessado ser notificado pela «entidade competente para o seu depósito» para «a apresentar no prazo de 30 dias consecutivos».
Daqui decorre uma típica desobediência a uma notificação, sempre culposa, uma «desobediência de conteúdo específico», tal-qualmente refere o acórdão, perfeitamente assimilável ao crime de desobediência previsto no artigo 388.º do Código Penal, mesmo a entender, como entende o acórdão, que «o legislador não qualifica em geral a desobediência negligente como crime, mas apenas a dolosa». Efectivamente, se o destinatário do dever não o cumpre - e pode não cumprir por negligência, como actualmente é um sentido possível da Lei 4/83 -, não se compreende, no quadro normativo do decreto, que mantenha a situação de incumprimento depois de notificado oficialmente para cumprir o dever (e, por isso, com o decreto não se pode falar em actuação negligente, mas sempre em actuação dolosa).
Quer dizer: o legislador do decreto caracterizou mais gravemente o «incumprimento culposo», por via da solução da notificação do interessado subsequente ao incumprimento originário (e daí a norma do n.º 3 do artigo 5.º do decreto, impondo que «as secretarias administrativas das entidades em que se integrem os titulares de cargos a que se aplica a presente lei, comunicarão ao Tribunal Constitucional a data do início e cessação de funções».
Se é assim, não pode falar-se em descaracterização do incumprimento. Pelo contrário, ele foi mais fortemente caracterizado, cabendo no tipo legal do crime de desobediência tal-qualmente acontece para as falsas declarações, pois o artigo 6.º do decreto, diversamente da Lei 4/83, prevê a punição «pelo crime de falsas declarações, nos termos da lei»). E até pode chamar-se à colação o crime de responsabilidade de titular de cargo político previsto no artigo 25.º da Lei 34/87, de 16 de Julho, a respeito da recusa de cooperação, pois também aqui se pode, no fundo, ver na atitude do destinatário da notificação uma recusa de cooperação.
Compreende-se, aliás, que assim seja, que releve o plano criminal, atentos os valores que o direito criminal quer proteger com as sanções criminais. A partir desses especiais valores e atento o seu especial modo de protecção chega-se ao ilícito criminal de justiça (cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, pp. 10 e seguintes) e não custa admitir, à semelhança, pelo menos, do que se passa com a vigente Lei 4/83, que cabe perfeitamente o «incumprimento culposo» tipificado no decreto na caracterização daquele ilícito.
É esse o sentido do legislador do decreto que no artigo 1.º garante o «acesso ao conteúdo» das declarações «visando-se reforçar a transparência no exercício daqueles cargos (os cargos públicos) e o prestígio das instituições», propósitos que não se encontram enunciados na Lei 4/83.
Como se lê no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 1987, «quando o político omite a declaração ou a afasta da realidade, está, desde logo, a diminuir se não a destruir o bem destrutível que é a confiança dos governados na correcção dos governantes; ele está a fugir já da necessária transparência na sua situação económico-financeira; só com isso, está a dificultar o controlo da sua riqueza» (Boletim, n.º 371, p. 220).
Ora, tais valores, que não podem desligar-se do quadro constitucional do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da lei fundamental, e da democracia política que lhe subjaz, assumem uma dignidade bastante para serem tratados tais como os especiais valores que o direito criminal de justiça (neste se compreendendo os crimes de responsabilidade previstos especialmente na Lei 34/87) visa proteger. E, desde logo, a constatação de que, se a desobediência, no elenco dos crimes contra a autoridade pública, merece assento no Código Penal como tipo legal de crime especialmente previsto, não se vê porque uma «desobediência de conteúdo específico», envolvendo o incumprimento de uma ordem emanada do Tribunal Constitucional não deva merecer idêntico tratamento como infracção criminal. Há, pois, aqui uma antijuricidade com relevância criminal, que se vai exprimir na infracção tipificada na Lei 4/83 e que passa para o decreto, até com valor reforçado.
Não é obstáculo a esta conclusão o tipo de medidas sancionatórias previstas no decreto, aí se acrescentando, a par da demissão e da inibição para o exercício de cargo público estabelecidas na Lei 4/83, a perda de mandato e a destituição judicial, pois, como reconhece o acórdão, o Código Penal prevê a pena de demissão e a «interdição da profissão ou actividades» (artigos 66.º e 69.º), entre as penas acessórias, mas «poderiam ser penas principais» (linguagem do acórdão), sendo que se não revela atingido o limite constitucional das penas que vem consagrado no artigo 30.º da lei fundamental e é respeitada a reserva de competência legislativa fixada no artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da mesma lei. Além de que a perda do mandato e a destituição judicial se configuram como medidas expulsivas, assimilando-se, como tais, à demissão, dependendo apenas a aplicação de qualquer delas da natureza do cargo público ocupado pelo infractor («consoante os casos» - diz o n.º 1 do artigo 5.º do decreto).
Não se diga também que a inclusão dos juízes [alínea e) do artigo 2.º do decreto] diversamente do que acontece com a Lei 4/83, entre os «titulares de cargos públicos», para os submeter à mesma disciplina desses titulares, poderia oferecer dificuldades, pois os juízes não gozam de impunidade, quando infractores, no plano da responsabilidade criminal (artigo 218.º da Constituição). Ponto é que se respeite o foro competente para apurar tal responsabilidade. Além de que, à face da Lei 4/83, os juízes do Tribunal Constitucional - «membros do Tribunal Constitucional», nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea g) - estão já sujeitos, sendo infractores, à pena de demissão e à medida de inibição, pelo menos, e nunca ninguém fez reparo algum a esta solução.
O que importa, como já ficou dito, é a caracterização da infracção criada pelo decreto - e não pode falar-se em inovação substancial de sentido diverso relativamente à Lei 4/83 -, tudo apontando para uma ilicitude com relevância criminal. A fonte da valoração jurídica que, neste caso do controlo da riqueza de titulares de cargos públicos, aponta para a ilicitude criminal e para a correspondente sanção criminal vai buscar-se ao próprio desígnio legislativo que se contém no artigo 1.º do decreto, criando-se o tipo legal de infracção do artigo 5.º, n.º 1, e assim se visando «assegurar o controlo da situação financeira do político, a fim de garantir, ante a opinião pública, o bom nome dele e de evitar futuras imoralidades» (nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Novembro de 1987, Boletim, n.º 371, p. 240).
Como se lê na mensagem do Presidente da República citada no acórdão:
O carácter exemplar e a função pedagógica das condutas dos titulares de cargos públicos são, nesta matéria, uma exigência da credibilidade política e um dos elementos fundamentais da relação de confiança que se deve estabelecer entre os cidadãos e os seus representantes legítimos;
4 - De igual modo, não se pode extrair nenhum argumento válido da circunstância de o legislador do decreto (artigo 8.º) atribuir a competência para a aplicação das sanções previstas no artigo 5.º ao Tribunal Constitucional, aos tribunais administrativos e aos órgãos de disciplina (relativamente aos juízes), com o que se veria uma descaracterização da ilicitude criminal apontada.
É que não é a partir das regras de competência que se chega àquela fonte de valoração jurídica, antes é a qualificação do facto ilícito e a sua expressão de antijuridicidade que se vai reflectir na opção dessas regras, ferindo-as eventualmente de invalidade.
A criminalização derivada da gravidade objectiva do ilícito, com a lesão de bens jurídicos essenciais ligados ao valor da transparência da vida pública, constituindo um dos pilares do Estado de direito democrático, e eticamente fundada, como é o caso presente, é que vai brigar com as regras legais de competência para aplicação de sanções criminais.
5 - De tudo o resumidamente exposto, e ponderando o tronco comum da criminalização do «incumprimento culposo» e das sanções para ele cominadas, temos que as normas do n.º 2 do artigo 5.º e dos n.os 1, 2 e 3 do artigo 8.º são materialmente inconstitucionais, porque ferem o princípio da reserva da função jurisdicional ou da reserva do juiz:
Quando se desgradua o ilícito, que é criminal, em ilícito disciplinar, em relação aos juízes infractores (n.º 2 do artigo 5.º);
Quando se atribui a competência ao Tribunal Constitucional, aos tribunais administrativos e aos órgãos de disciplina, em relação aos juízes, para aplicação de medidas que são sanções criminais (n.os 1, 2 e 3 do artigo 8.º).
Guilherme da Fonseca.
Declaração de voto
1 - Votei vencido relativamente às decisões constantes das alíneas a) e c) do acórdão.
Brevemente indicarei os fundamentos do meu voto dissidente nestes pontos.
2 - Entendi que todo o decreto 185/VI (e, portanto, as normas objecto das dúvidas de constitucionalidade suscitadas pelo Presidente da República no presente processo de fiscalização preventiva de constitucionalidade) estava afectado de vício procedimental que acarretava a respectiva inconstitucionalidade, por violação do artigo 139.º, n.º 2, da Constituição. As razões de tal juízo constam da primeira parte da declaração de voto que juntei ao Acórdão 13/95 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 34, de 9 de Fevereiro de 1995, pp. 1564-1565), visto que, no processo em que foi proferido esse acórdão, se procedeu igualmente à fiscalização preventiva de constitucionalidade de um decreto da Assembleia da República, o decreto 183/VI em que ocorrera situação perfeitamente idêntica: tendo havido um veto do Presidente da República, emitido nos termos do artigo 139.º, n.º 1, da Constituição, a Assembleia reformulou o anterior decreto vetado, alterando apenas um preceito, sem previamente o ter confirmado nos termos do artigo 139.º, n.º 2, da Constituição. Dada a identidade de situações, impõe-se, por razões de economia, remeter para o que consta da identificada declaração de voto.
Entre a situação apreciada pelo referido Acórdão 13/95 e a presente pode encontrar-se uma única diferença, a qual, porém, carece de qualquer relevo para implicar a modificação da posição por mim assumida naquele processo: e que, no decreto 183/VI, a alteração introduzida revestiu-se de carácter pontual e de pormenor, dificilmente se podendo dizer que o órgão parlamentar se preocupou com o teor do veto político do Presidente da República ou que tinha procurado ir ao encontro de alguma das suas críticas, ao passo que, no presente caso, a modificação revestiu-se de evidente relevância, como se demonstra no texto do acórdão.
A diferença detectada não põe em causa, porém, a afirmação feita nessa declaração de voto - na esteira da declaração de voto do conselheiro Luís Nunes de Almeida - de que a tese maioritária do Tribunal, acolhida desde o Acórdão 320/89 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., t. 1, pp. 29 e seguintes), propicia uma fraude à Constituição. Remete-se, para a demonstração de tal afirmação, para a citada declaração de voto por mim subscrita.
3 - Considerei também - contra a opinião que fez vencimento - que o decreto 185/VI pretendeu igualmente abranger os juízes dos tribunais militares, nomeadamente os juízes militares do Supremo Tribunal Militar, como se pressupõe no pedido do Presidente da República (bem como os restantes juízes dos outros tribunais militares, acrescento).
A tese maioritária, porém, chegou à conclusão surpreendente de que a melhor interpretação do decreto em causa, em especial dos seus artigos 5.º e 8.º, indiciava o propósito de o legislador não ter querido impor aos juízes militares o dever de apresentação das declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º do mesmo diploma. A teleologia do decreto apontaria, assim, para a exclusão dos mesmos juízes militares do âmbito de aplicação deste. Do estatuto dos juízes dos tribunais militares de instância - que têm de ser oficiais no activo - resultaria que as suas «funções de juízes enquanto militares, isto é, as suas funções de juízes só parte integrante das suas funções militares», o que acarretaria, segundo a tese vencedora, a sua exclusão de um regime pensado para os juízes comuns. Ainda segundo a mesma tese, como os tribunais militares têm a sua competência confinada ao julgamento dos crimes militares, não têm «competência para apreciar questões directamente relacionadas com interesses patrimoniais de Estado ou para, em nome do povo, dirimir conflitos entre interesses privados com uma dimensão patrimonial», pelo que faleceriam as razões que pudessem ter conduzido o legislador a incluir os juízes militares entre as entidades obrigadas a apresentar as declarações.
4 - Parece-me que é, no mínimo, temerária tal afirmação peremptória, constante do acórdão.
Face ao articulado do decreto 185/VI, o intérprete há-de presumir que o legislador «consagrou as soluções mais adequadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Ora, nos termos do artigo 2.º do decreto 185/VI são titulares de cargos públicos, para os efeitos do diploma, entre outros, «os juízes» [alínea e)]. O artigo 4.º, n.º 3, estabelece que, em relação aos juízes, a declaração a que se refere o artigo 3.º é actualizada de quatro anos. Só ficam excluídos do dever de actualização periódica os juízes «cujo mandato esteja temporalmente determinado». No artigo 5.º, n.º 2, quando o infractor, no caso de não apresentação das declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º, for um juiz, a notificação, feita pela entidade competente para o depósito, para a entrega dessa declaração em prazo subsequente à omissão, determinado na lei, «é efectuada sob cominação de o incumprimento culposo ser qualificado, para efeitos disciplinares, como grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional, salvo tratando-se de juiz do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas, aos quais se aplica o regime geral». Por último, o artigo 8.º, n.º 3, estatui que, em relação aos juízes, «a competência é da entidade que detém poder disciplinar, salvo tratando-se de juízes do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas, aos quais se aplica o regime do n.º 1».
Da interpretação sistemática deste conjunto de disposições resulta para mim claro que o legislador pretendeu abranger todos os juízes dos tribunais estaduais consagrados constitucionalmente: juízes dos tribunais judiciais (onde se incluem os juízes dos tribunais marítimos), dos tribunais administrativos e fiscais, do Tribunal de Contas, dos tribunais militares e do Tribunal Constitucional (artigos 211.º e 225.º da Constituição). De facto, só os juízes destes tribunais podem ser qualificados como titulares de cargos públicos, sendo certo que exercem esses cargos com permanência, sem limite de tempo ou por períodos determinados.
Não são manifestamente abrangidos pelo decreto 185/VI os árbitros (juízes de tribunais arbitrais - cf. artigos 211.º, n.º 2, da Constituição e 6.º e seguintes da Lei 31/86, de 29 de Agosto), nem, claro, os jurados, os juízes sociais e os assessores técnicos que podem esporadicamente intervir na administração da justiça (artigo 210.º da Constituição; quanto aos jurados, v. o disposto no Decreto-Lei 387-A/87, de 29 de Dezembro; quanto aos juízes sociais, v. o Decreto-Lei 156/78, de 30 de Junho, e a Lei 7/79, de 9 de Fevereiro). De facto, no caso dos tribunais arbitrais voluntários, estes não são órgãos estaduais, não dispondo de competência própria, sendo os árbitros leigos escolhidos normalmente por convenção das partes ou segundo regras estabelecidas na lei. No caso dos jurados, juízes sociais e assessores técnicos, estamos perante pessoas que colaboram com a justiça estadual de forma acidental, quer enquanto leigos representantes da comunidade capazes de proceder a uma «especial ponderação dos valores sociais ofendidos» (caso dos jurados e dos juízes sociais), quer enquanto pessoas tecnicamente qualificadas que auxiliam os tribunais estaduais no julgamento de certas matérias (v., por exemplo, o disposto no artigo 649.º do Código de Processo Civil; ou, no que toca aos tribunais marítimos, o disposto no artigo 2.º, n.º 2, da Lei 35/86, de 4 de Setembro). Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, as três matérias reguladas no artigo 210.º da Constituição, sendo embora distintas, têm um «ponto comum: a participação de cidadãos alheios à magistratura judicial na função jurisdicional, incluindo na função de julgar» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 802 e 803).
Como é evidente, estes leigos não exercem funções com carácter permanente (não se considera o caso de eventuais árbitros de tribunais arbitrais permanentes, figura sem relevo prático em Portugal) e, o que é determinante, não são titulares de cargos públicos na função jurisdicional, pelo que não lhes pode ser aplicável o disposto no decreto 185/VI, se vier a tornar-se lei.
5 - Os tribunais militares, previstos no artigo 215.º da Constituição, são compostos por juízes militares e, ainda por juízes togados (juízes auditores nos tribunais militares de instância; vogais relatores no Supremo Tribunal Militar - artigos 270.º e 271.º do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 141/77, de 9 de Abril; o último destes artigos tem a redacção introduzida pelo Decreto-Lei 285/78, de 11 de Setembro). Nos termos constitucionais, incumbe aos tribunais militares uma função essencialmente repressiva (artigo 205.º, n.º 2, da Constituição), na medida que lhes compete julgar os crimes essencialmente militares ou outros crimes dolosos equiparáveis àqueles que, por motivo relevante, a lei lhes venha a confiar. Além disso, a lei pode atribuir-lhes competência para aplicação de medidas disciplinares (artigo 215.º da Constituição).
Ora, segundo a tese que fez vencimento, só os juízes togados estariam obrigados a entregar as declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º do decreto 185/VI. Os juízes militares estariam isentos de tais deveres, na medida em que se sustenta estarem excluídos do âmbito de aplicação do próprio diploma.
Todavia, os juízes militares, oficiais dos quadros permanentes do ramo das forças armadas a que pertence o tribunal de instância, na situação de activo, ou, no caso do Supremo Tribunal Militar, oficiais generais, no activo ou na reserva, são juízes nomeados por períodos de tempo determinado (dois anos - cf. artigos 235.º, 237.º, 273.º, 274.º e 275.º do Código de Justiça Militar), desempenhando indiscutivelmente um cargo público. O Presidente do Supremo Tribunal Militar é mesmo nomeado pelo Presidente da República, sob proposta do Conselho Superior de Defesa Nacional, por iniciativa do Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas [artigo 29.º, n.º 2, alínea a), da Lei de Defesa Nacional, Lei 29/82, de 11 de Dezembro].
O decreto 185/VI, ao incluir os juízes dos tribunais estaduais entre os titulares de cargos políticos sujeitos ao dever de apresentação de declarações de património e rendimentos, não operou qualquer delimitação entre as diferentes espécies de juízes, em termos de excluir algumas delas do âmbito do diploma. Criou, todavia, um regime geral para o comum dos juízes e um regime excepcional, no que toca às consequências da omissão definitiva do dever de apresentação das declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º e no que toca à entidade com competência sancionatória, aplicável apenas quanto aos juízes de dois tribunais (o Tribunal Constitucional e o Tribunal de Contas).
Face ao que acaba de dizer-se, não se compreende o fundamento último da tese maioritária ao pretender introduzir, no propósito do legislador, uma distinção de regime entre juízes dos tribunais militares, consoante sejam militares de carreira ou juízes oriundos dos tribunais judiciais. Não se vê, de facto, que o estatuto militar brigue com o exercício ad tempus de funções judicativas pelos militares que integram os tribunais militares e ainda se encontrem no activo ou se encontrem já na reserva. Por outro lado, dificilmente se poderá sustentar que a lei está pensada para tutelar o prestígio social e aumentar as garantias de isenção apenas dos juízes que têm de apreciar questões directamente relacionadas com interesses patrimoniais do Estado ou para, em nome do povo, dirimir conflitos entre interesses privados com uma dimensão patrimonial. Com tal critério, dificilmente se poderia compreender que juízes com competência numa jurisdição especializada em questões de constitucionalidade - como é o caso dos juízes do Tribunal Constitucional - devessem estar sujeitos aos deveres previstos nos artigos 3.º e 4.º do decreto 185/VI.
A solução interpretativa da maioria que fez vencimento acaba, em última análise, por degradar injustificadamente o estatuto dos juízes militares, equiparando-os, na prática, a assessores técnicos dos «verdadeiros juízes», que são os togados. Mas, como é evidente, nada autoriza tal solução face ao estatuto unitário dos juízes dos tribunais militares.
6 - Do que fica resulta para mim como claro que os juízes dos tribunais militares, sejam eles juízes militares, sejam, antes, juízes togados (juízes auditores ou, no Supremo Tribunal Militar, vogais relatores), estão sujeitos aos deveres de entrega das declarações previstas no decreto como os restantes juízes dos tribunais judiciais, administrativos e fiscais, ficando igualmente sujeitos, em caso de incumprimento, culposo, ao poder disciplinar da entidade que detém esse poder (artigos 8.º, n.º 3, do decreto e 219.º, n.º 3, da Constituição).
7 - Tratando-se de juízes togados, a entidade com poder disciplinar sobre estes é o Conselho Superior da Magistratura (artigo 219.º, n.º 1, da Constituição). A solução do decreto em matéria de competência nada tem de censurável, como se demonstrou no acórdão (cf. artigos 247.º e 279.º, n.º 2, do Código de Justiça Militar).
Relativamente aos juízes militares do Supremo Tribunal Militar, o Código de Justiça Militar é omisso quanto ao respectivo regime disciplinar. Os juízes militares dos tribunais militares de instância não podem ser sancionados disciplinarmente durante o exercício das suas funções judicativas por actos praticados fora do exercício de funções (o artigo 239.º, n.º 2, do Código de Justiça Militar estatui que, sendo um juiz militar arguido de infracção disciplinar fora do exercício das suas funções, o respectivo procedimento disciplinar é «interrompido» até ao termo da sua comissão).
A verdade é que o Código de Justiça Militar não regula a questão da responsabilidade disciplinar dos juízes militares por infracções disciplinares cometidas no exercício das respectivas funções, sendo à primeira vista tentador afirmar que a aparente lacuna deverá ser preenchida pela aplicação do Regulamento de Disciplina Militar (aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril).
Não cabe agora apreciar a compatibilidade constitucional de tal solução em termos gerais.
8 - Restritamente e no que toca à apreciação do decreto 185/VI, tenho para mim como inadmissível que a referida responsabilidade disciplinar pudesse ser atribuída à hierarquia do ramo das Forças Armadas a que pertencesse o respectivo juiz militar. É que, na verdade, a competência disciplinar sobre os juízes só deve constitucionalmente caber a um tribunal, em regra àquele a que pertence o presumido infractor (solução que a lei ordinária consagra quer quanto ao Tribunal Constitucional, quer quanto ao Tribunal de Contas: cf. artigos 25.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, quanto ao primeiro, e 41.º da Lei do Tribunal de Contas, Lei 86/89, de 8 de Setembro, quanto ao segundo) ou, então, a um órgão constitucionalmente autónomo (caso do Conselho Superior de Magistratura no que toca aos tribunais judiciais; caso do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, relativamente aos tribunais dessa ordem - artigo 219.º, n.os 1 e 2, da Constituição). Acresce que, no que toca à competência para a aplicação de medidas disciplinares militares, a Constituição permite à lei ordinária que atribua tal competência directamente aos tribunais militares (artigo 215.º, n.º 3), solução que aqui haveria de ser consagrada por maioria de razão.
Por isso, entendi que sofre de inconstitucionalidade o artigo 8.º, n.º 3, do decreto 185/VI, no segmento em que, segundo a melhor interpretação, atribui à hierarquia militar, nos termos do Regulamento de Disciplina Militar, competência para sancionar os juízes militares que não tenham cumprido definitivamente os deveres previstos nos artigos 3.º, 4.º e 5.º do diploma, por violação do princípio constitucional de igualdade (artigo 13.º da Constituição), na medida em que cria uma solução diversa, com menores garantias de imparcialidade, sem haver fundamento material justificador da mesma.
Igualmente, e por se tratar de cargos exercidos por períodos determinados de tempo, entendo que o regime do decreto 185/VI, na parte aplicável a todos os juízes dos tribunais militares, é inconstitucional quanto à sanção cominada, visto que lhes deveria ter sido imposto, também a eles, o regime de demissão, aplicável aos juízes do Tribunal Constitucional (mas não aos juízes do Tribunal de Contas, dado o juízo de inconstitucionalidade a que se chegou no acórdão, nessa parte também por mim subscrito). Há, assim, manifesta violação do princípio da igualdade.
Por último, sempre se dirá que das omissões inconstitucionais do legislador não pode retirar-se, claro, a conclusão de que este pretendeu não abranger os juízes dos tribunais militares ...
Armindo Ribeiro Mendes.
Declaração de voto
1 - Também votei a alínea d) da decisão - tal como, de resto, a generalidade das demais, sem prejuízo de um ou outro ponto, na especialidade, da fundamentação delas, e correspondente desenvolvimento argumentativo, que, merecendo-me embora alguma dúvida (ou até distanciamento), não justificaria em todo o caso o destaque de uma declaração de voto.
Quanto à matéria da mencionada alínea d), porém, cumpre-me dizer que o meu voto decorre, fundamentalmente, da circunstância de ter já assumido explicitamente noutra sede (Sumários de Direito Constitucional II, Faculdade de Direito de Coimbra, anos lectivos de 1983-1984 e seguintes) o entendimento de que na alínea c) [antes, alínea h)] do artigo 167.º da Constituição se inclui também a definição da «competência» do Tribunal Constitucional. Advertido agora, de novo, para o problema, esse entendimento já não se me apresenta como tão linear - sendo que, nomeadamente, parte da argumentação que em seu abono se invoca no acórdão não se me afigura especialmente probante. Seja como for, tendo vindo a ser aquela a minha posição, desde logo não devia alterá-la nesta outra sede e neste momento (em que a questão se pôs pela primeira vez ao Tribunal); ao que acresce, de resto, que, no puro plano doutrinário, o que me fica é, não propriamente a convicção contrária, mas antes um estado de dúvida.
2 - Votei vencido quanto às alíneas e) e h) da decisão, pelo essencial das razões aduzidas a esse respeito na declaração de voto do Exmo. Conselheiro Bravo Serra, que assim acompanho, nessa parte. Apenas me permitirei acrescentar que, a meu ver, para tais razões bem se encontrará fundamento constitucional explícito, seja directo ou indirecto, na parte final do artigo 50.º, n.º 3, da lei fundamental - norma da qual se faz, no acórdão, uma interpretação que julgo excessiva -, em conjugação, se se quiser (e muito provavelmente), com a referência do artigo 120.º, n.º 2, da Constituição.
José Manuel Cardoso da Costa.