Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2025
Processo 489/17.9T8AVV.G1.S1-A - Recurso para Uniformização de Jurisprudência
Relatora: Paula Leal de Carvalho
Acordam no Pleno das Secções Cíveis e da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório 1
1 - AA instaurou contra Seguradoras Unidas, S. A., e Rede Nacional de Assistência, S. A. (R.N.A, S. A.) ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia global de €39.935,83, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que: no dia 21.10.2014, sendo praticante amador de “rugby”, no decurso de um treino que estava a decorrer no recinto desportivo do “Clube de Rugby de...” (CR de…), sofreu um choque de um seu colega do clube que lhe provocou a rotura do LCA (ligamento cruzado anterior), a rotura do LCP (ligamento cruzado posterior) e rotura do PAPL do joelho esquerdo e que, em virtude deste acidente desportivo, sofreu vários prejuízos de natureza patrimonial e não patrimonial, cujo ressarcimento reclama.
2 - As RR contestaram:
- A ré R.N.A, S. A., concluindo no sentido da sua ilegitimidade para a ação com a consequente absolvição da instância ou, caso assim se não entenda, da improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido.
- A ré Seguradoras Unidas, S. A., alegando que: os danos não patrimoniais peticionados, assim como alguns dos danos patrimoniais (designadamente despesas decorrentes de deslocações de táxi, as despesas com a avaliação isocinética), encontram-se excluídos do contrato de seguro celebrado entre o CR de... e a 1.ª ré; a resultar provado que o autor sofre de alguma incapacidade para o trabalho, apenas terá direito à parte do capital seguro que couber no caso em função da percentagem da incapacidade que se vier a apurar, com o limite de €30.000,00.
3 - Notificado para o efeito, veio o autor, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, responder à matéria de exceção (quer a dilatória, quer a que se prende com o mérito da causa), mantendo, no essencial, o alegado na p.i..
4 - Procedeu-se a audiência prévia sendo que na mesma foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual se julgou improcedente a exceção de ilegitimidade invocada pela 2.ª ré. Foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, mais se tendo fixado à ação o valor de €39.935,74.
5 - Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, que decidiu nos seguintes termos:
“Pelo exposto, na procedência parcial da acção, o Tribunal decide:
- Condenar a R. Seguradoras Unidas, S. A. a pagar ao A. AA a quantia de 6.675,00 € (seis mil seiscentos e setenta e cinco euros), a que acrescem juros de mora vencidos e vincendos contados à taxa de 4 % desde a citação até integral pagamento;
- Absolver a R. Rede Nacional de Assistência, S. A. do pedido. [...]”
6 - O A., inconformado, interpôs recurso de apelação, tendo a ré Seguradora apelado subordinadamente, tendo sido, pelo Tribunal da Relação, proferido Acórdão que decidiu do seguinte modo: “julgar improcedente a apelação do autor e procedente a apelação da 1.ª ré e consequentemente confirmam a decisão recorrida na parte referente ao reembolso de despesas e à invalidez permanente (num total de € 675,00) revogando no mais a referida decisão.”
7 - Inconformado, o A. interpôs recurso de revista, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 09.01.2024 (por maioria), transitado em julgado a 25.01.2024, decidido negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.
8 - Veio então o Autor interpor o presente recurso extraordinário para o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça com vista à uniformização de jurisprudência e à revogação daquele Acórdão, nos termos dos artigos 688.º e ss do Código de Processo Civil, requerendo que se fixe jurisprudência de acordo com o acórdão fundamento de 10.10.2023, proferido no Processo 1015/20.8T8PVZ.P1.S1, tendo como consequência, relativamente aos presentes autos, a revogação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado as seguintes conclusões [realces constantes do texto original]:
“1.ª - O presente recurso é o próprio e tempestivo, nos termos do artigo 689.º, n.º 1, do Código de Processo Civil;
2.ª - Dos acórdãos recorrido e fundamento não é admissível recurso ordinário, tendo ambos transitado em julgado;
3.ª - A questão a resolver no presente recurso é a de saber se, em caso de sinistro desportivo e na interpretação do artigo 16.º, alínea d) da Lei de Seguro Desportivo - Decreto-Lei 10/2009, de 12/01, deve atender-se à situação em que o lesado efetivamente se encontra, que implica a consideração da extensão do dano e dos danos não patrimoniais - acórdão fundamento, ou se, pelo contrário, ficando encarcerado no colete da fronteira da letra da lei, como o faz o acórdão recorrido, se transforme a justiça numa mera questão aritmética, de subsunção de direitos constitucionalmente consagrados, como o sejam o direito à saúde e o direito à integridade física e psíquica, a uma percentagem sobre um valor estático;
4.ª - Requer-se, assim, o reconhecimento da oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, ambos deste Supremo Tribunal de Justiça e,
5.ª - Se julguem as questões controvertidas - extensão do dano e abrigo da indemnização por danos não patrimoniais, que deverão ser decididas de acordo com o que se decidiu no acórdão fundamento;
6.ª - Determinando-se a revogação do acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro em conformidade com o que vier a ser decidido;
7.ª - O que determinará repercussões nos valores a serem atribuídos ao recorrente, quer a título da extensão do dano - € 8.120,00, dos danos não patrimoniais - e 8.000,00 ou e 6.000,00, quantias a que acrescemos juros legais de mora;
8.ª - Sob pena de violação dos direitos constitucionalmente protegidos dos praticantes de desporto, nomeadamente o direito à saúde e o direito à integridade física, plasmados no artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil, em conjugação com o artigo 25.º, da Constituição da República Portuguesa;
9.ª - O acórdão recorrido incorre, assim, em erro de interpretação e erro de julgamento.
Pelo exposto, nestes termos e nos demais que V. Exªs saberão suprir, como sempre, Venerandos Juízes Conselheiros, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido e fixando-se jurisprudência no sentido do acórdão fundamento.”
O Recorrente juntou certidão do Acórdão fundamento, que transitou em julgado a 26.10.2023.
9 - Não foram apresentadas contra-alegações.
10 - O recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência foi admitido, liminarmente, por despacho do Exm.º Conselheiro Relator de 16.04.2024, nele se dizendo que [destaque a negrito constante do texto original]:
“[...]
Ora, em ambos os acórdãos, colocava-se a questão de saber se, em face do regime jurídico do seguro desportivo obrigatório, a indemnização estabelecida para a invalidez permanente parcial prevista nos arts 5.º e 16.º do DL n.º 10/2009, de 12 de Janeiro devia ser calculada em função de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo lesado até ao limite do capital garantido ou se devia ser calculada em função da taxa de incapacidade, independentemente dos danos sofridos.
Decidindo-se, no acórdão recorrido foi formulado, a final, o seguinte sumário:
“1 - De acordo com o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório a indemnização por invalidez permanente parcial é calculada em função do grau de incapacidade, independentemente do valor do dano efectivo (art. 16.º, alínea d) do DL n.º 10/2009 de 12.1.);
2 - A essa indemnização, assim calculada, não acresce qualquer valor a título de indemnização por danos não patrimoniais.”
No acórdão-fundamento, ou seja, no Ac. STJ de 10.10.2023 foi formulado estoutro:
“I - Cobrir os riscos implicados pelo exercício do desporto, mediante a consagração do seguro desportivo obrigatório, traduz-se numa necessidade primordial para a segurança dos praticantes.
II - Por outro lado, além de obrigatório, o seguro desportivo obrigatório é um seguro de grupo em sentido estrito, porquanto se celebra um único contrato entre o segurador e a federação desportiva - que assume a posição de tomadora do seguro - que cobre uma multiplicidade de segurados e, dentro dos seguros de grupo, é contributivo.
III - Entende-se que a referência feita no art. 16.º, al. d), da LSD, ao concreto grau de incapacidade do lesado impõe, justamente, que se atenda à situação em que o mesmo efetivamente se encontra, o que não sucede se não se levar em devida linha de conta a extensão do dano concretamente por si sofrido, assim como aos danos não patrimoniais.”
(destaques do ora relator).
Ou seja:
Como decorre, desde logo, dos respectivos sumários, as soluções do acórdão recorrido e do acórdão fundamento estão em manifesta oposição.
Por um lado, o acórdão recorrido entende que, de acordo com o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório, a indemnização por invalidez permanente parcial é calculada em função do grau de incapacidade, independentemente do valor do dano efectivo (art. 16.º, alínea d) do DL n.º 10/2009 de 12.1.): por outro, o acórdão fundamento entende, diversamente, que a referência feita no art. 16.º, al. d), da LSD ao concreto grau de incapacidade do lesado impõe que se atenda à situação em que o mesmo efectivamente se encontra, o que não sucede se não se levar em devida linha de conta a extensão do dano concretamente por ele sofrido.
Das diferentes perspectivas resultaram duas decisões opostas, dentro do mesmo quadro normativo: no acórdão recorrido, tendo em conta que o autor, praticante de rugby, ficou em resultado de acidente desportivo, afectado de uma incapacidade de 2 % e em que o limite contratado era de € 30,000, negou-se a revista interposta pelo autor do acórdão da Relação que lhe tinha atribuído ao autor a indemnização de €600 (€30.000 x 2 %); do mesmo passo, considerou-se que a este valor não podia ser adicionado qualquer valor autónomo a título de indemnização por danos não patrimoniais; no acórdão fundamento, em que a autora, praticante de equitação, ficou, em consequência de acidente, com um défice funcional permanente de 25 %, perante o dano concretamente por ela sofrido no montante de €110.000 (que incluía também o dano de natureza não patrimonial), negou-se a revista interposta pela seguradora, considerando-se que a indemnização devida era não a de €7.000 decorrente da aplicação da percentagem atribuída à incapacidade (€28.000 x 25 %) mas a correspondente ao limite máximo contratado, que, no caso, era o de € 28.000.”
11 - O Digno Magistrado do Ministério Público, através do Exm.º Sr. Procurador Geral Adjunto junto do Supremo Tribunal de Justiça, emitiu parecer, concluindo:
“Pelo exposto, somos de parecer que o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência deverá ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido, fixando-se a jurisprudência no seguinte sentido:
“Em caso de acidente desportivo e face ao disposto no artigo 16.º, alínea d) da Lei de Seguro Desportivo - Decreto-Lei 10/2009, de 12/01, a indemnização estabelecida para a invalidez permanente parcial deve ser calculada em função de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos até ao limite do capital garantido”, ao qual as partes, notificadas, não responderam.
12 - Por despacho proferido por sua Excelência o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.2024 foi determinado que o julgamento do presente recurso para uniformização de jurisprudência tenha lugar em plenário das Secções Cíveis e da Social do STJ.
13 - Colheram-se os vistos legais.
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II. Questão prévia
Da admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência
1 - Resulta, da análise conjugada dos n.os 3 e 4 do art. 692.º do CPC, que o Pleno pode entender em sentido diverso do acórdão da conferência, que decide pela verificação dos pressupostos materiais e formais da admissão do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência.
2 - O requerimento de interposição de recurso mostra-se tempestivo (art. 689.º, n.º 1, do CPC) - tendo sido apresentado no primeiro dia útil subsequente ao termo do prazo de 30 dias, simultaneamente com o pagamento da multa a que alude o art. 139.º, n.º 5, alínea a) do CPC - e foi apresentado por quem dispõe de legitimidade para o efeito (art. 631.º do CPC) e se encontra regularmente patrocinado.
Tal requerimento encontra-se devidamente instruído com alegações e conclusões, mostrando-se, do ponto de vista formal, satisfeitos os ónus de indicação dos fundamentos específicos de recorribilidade.
Encontra-se junta cópia do acórdão fundamento, de 10.10.2023, proferido no processo 1015/20.8T8PVZ.P1.S1 que é anterior ao acórdão recorrido e cujo trânsito se apresenta certificado.
Verificam-se, pois, os mencionados pressupostos de admissibilidade formal do presente recurso extraordinário.
3 - Impõe-se, seguidamente, averiguar se existe ou não contradição de julgados relevante.
De acordo com o disposto no artigo 688.º, n.º 1, do CPC, “as partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.”
Atenta a disposição legal acima mencionada, a admissão do recurso para uniformização de jurisprudência depende da verificação de três requisitos:
a) contradição do acórdão recorrido com algum acórdão anteriormente proferido pelo STJ, denominado de acórdão fundamento;
b) que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação;
c) que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito.
Como tem sido uniformemente observado pelo STJ, a questão fundamental de direito subjacente à alegada contradição deve assumir caráter fundamental para a solução do caso, devendo integrar a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto. Irrelevam, por conseguinte, as hipóteses em que a divergência invocada se traduza em mero obiter dictum ou em simples argumentos laterais, coadjuvantes ou suplementares de uma solução já alcançada por outra via jurídica, à qual os mesmos surjam anódinos, irrelevantes, indiferentes. Também a jurisprudência do STJ afirma, “de forma pacífica e reiterada, que a contradição relevante, neste âmbito, pressupõe ainda a identidade do núcleo essencial das concernentes situações fácticas.” (Acórdão do STJ de 20-11-2019, recurso para uniformização de jurisprudência 433/11.7TVPRT.P1.S2-A) 2.
Neste conspecto, caso se considere, na linha do despacho de admissão, que está em causa a mesma questão fundamental de direito, tratada como questão essencial em ambos os acórdãos, e que se verifica uma situação de oposição, não meramente implícita ou lateral, mas antes decisiva para o resultado dos litígios inerentes aos dois acórdãos em confronto, deverão os autos prosseguir para efeitos de emissão de um juízo uniformizador.
E é este o caso em apreço.
Com efeito:
Na situação objeto de apreciação pelo acórdão recorrido, discutiu-se, numa primeira linha de análise, a quantificação do capital devido pelos danos patrimoniais sofridos pelo autor em consequência de um acidente desportivo (choque de um seu colega do clube que lhe provocou rotura do LCA, rotura do LCP e rotura do PAPL do joelho esquerdo e um Défice Funcional Permanente na Integridade Físico-Psíquica de 2 pontos em 100), ocorrido no dia 21.10.2014, a coberto de um contrato de seguro de “acidentes pessoais” celebrado entre o “Clube de Rugby de...” e a ré seguradora, titulado pela apólice n.º ...33, com um capital máximo seguro de €30.000,00 em caso de morte ou de invalidez permanente absoluta.
O acórdão recorrido considerou, não sem antes deixar expressa a dissensão jurisprudencial constatada sobre a matéria, que o lesado deveria receber “um montante pré-determinado que corresponde ao capital contratado ponderado pelo grau de incapacidade fixado” e não “o rendimento perdido ou um capital para compensação do acréscimo dos esforços em resultado da incapacidade, com a limitação máxima do capital contratado.”
Analisando a norma prevista na alínea d) do art. 16.º do Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro - nos termos da qual “O contrato de seguro a que se refere o n.º 2 do artigo 5.º garante os seguintes montantes mínimos de capital: [...]; d) Invalidez permanente parcial - (euro) 25 000, ponderado pelo grau de incapacidade fixado” - o acórdão recorrido deixou expresso que “a cobertura por invalidez permanente, ao abrigo do seguro desportivo obrigatório, encontra-se configurada como prestação de capital pré-determinada em função exclusiva da natureza dessa lesão, devendo, ainda, a invalidez permanente parcial ser ponderada pelo grau de incapacidade que for fixado”, configurando um seguro de pessoas enquadrável nos arts. 175.º, n.º 2, da LCS3, constando do respetivo sumário, que traduz o entendimento perfilhado no acórdão, que: “1. De acordo com o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório a indemnização por invalidez permanente parcial é calculada em função do grau de incapacidade, independentemente do valor do dano efectivo (art. 16.º, alínea d) do DL n.º 10/2009 de 12.1.); 2. A essa indemnização, assim calculada, não acresce qualquer valor a título de indemnização por danos não patrimoniais” [sublinhados nossos, correspondendo ao objeto da contradição].
Por seu turno, no caso objeto de apreciação pelo acórdão fundamento, também estava em causa a celebração de um contrato de seguro desportivo de grupo - cujo âmbito de cobertura englobava os danos sofridos pelas pessoas seguras em consequência de acidentes ocorridos em resultado da prática equestre com um capital máximo de €28.000,00 -, em que a autora (a 10.01.2020 sofreu uma queda de cavalo, da qual resultaram lesões determinantes de Défice Funcional Permanente de Incapacidade Físico-Psíquica fixado em 25 pontos) surge como beneficiária, na qualidade de praticante desportiva, suscitando-se igualmente a aplicação do regime normativo contido no Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro.
No âmbito do apuramento do capital devido pela causação de danos patrimoniais, numa situação de invalidez permanente parcial, à luz do já mencionado art. 16.º, al. d), do Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro, considerou o acórdão fundamento que “se deve partir da fórmula de cálculo do montante da indemnização devida nos termos gerais, i.e., atendendo à dimensão do dano efetivamente sofrido, limitando-se, depois, porém, o montante concretamente obtido ao valor de € 25.000, previsto no art. 16.º, al. d), ou ao capital seguro, no caso de este ser superior àquele”, constando, em consonância, do respetivo sumário que: “1. Cobrir os riscos implicados pelo exercício do desporto, mediante a consagração do desportivo obrigatório, traduz-se numa necessidade primordial para a segurança dos praticantes. 2. Por outro lado, além de obrigatório, o seguro desportivo obrigatório é um seguro de grupo em sentido estrito, porquanto se celebra um único contrato entre o segurador e a federação desportiva - que assume a posição de tomadora do seguro - que cobre uma multiplicidade de segurados e, dentro dos seguros de grupo, é contributivo. 3. Entende-se que a referência feita no art. 16.º, al. d), da LSD, ao concreto grau de incapacidade do lesado impõe, justamente, que se atenda à situação em que o mesmo efetivamente se encontra, o que não sucede se não se levar em devida linha de conta a extensão do dano concretamente por si sofrido, assim como aos danos não patrimoniais.” [sublinhado nosso, correspondendo ao objeto da contradição].
Verifica-se, pois, nos arestos em confronto existirem duas situações litigiosas essencialmente análogas - em que os praticantes desportivos, beneficiários de seguros desportivos de grupo, reclamam, ao abrigo de tais contratos de seguro, o pagamento de danos patrimoniais inerentes a situações de invalidez permanente parcial -, acompanhadas por um entendimento divergente quanto à interpretação do art.16.º, alínea d) do Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro. Enquanto que o acórdão recorrido preconizou uma tese, que vê o seguro desportivo obrigatório como uma modalidade de seguro de prestações convencionadas, com conteúdo e montante previamente definidos, cuja determinação do capital se mostra independente da extensão do dano concretamente sofrido pelo lesado, o acórdão fundamento acolheu uma interpretação mais lata da norma sob escrutínio, ancorada na configuração do contrato de seguro como um seguro de prestações indemnizatórias, que não prescinde da ponderação dos danos efetivamente resultantes do sinistro.
Os entendimentos assim firmados apresentaram uma relevância determinante para o desfecho dos respetivos pleitos: enquanto o acórdão recorrido confirmou o acórdão da Relação que calculou o capital a atribuir ao autor, pelos danos patrimoniais sofridos, de acordo com uma percentagem calculada sobre o montante contratualizado correspondente ao grau de incapacidade fixado ao praticante de atividade desportiva, o acórdão fundamento confirmou o acórdão da Relação que fixou aquele capital em função do montante do dano concretamente por si sofrido, até ao limite do capital convencionado.
Detetam-se, ainda, nos dois arestos entendimentos de sentido contrário, com reflexo determinante no desfecho das respetivas causas, quanto à questão de saber se no cálculo do capital a suportar pela seguradora, ao abrigo 16.º, alínea d) do Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro, deverá ser contabilizado o valor correspondente à compensação dos danos não patrimoniais sofridos pelo sinistrado: enquanto que o acórdão recorrido respondeu negativamente a tal questão, o acórdão fundamento atribuiu-lhe resposta afirmativa.
É pois de concluir no sentido da existência de uma identidade fáctico-normativa entre os dois arestos em exame conducente a resultados decisórios antagónicos quanto às duas identificadas questões fundamentais de direito. E, assim sendo, encontra-se verificada a contradição jurisprudencial pressuposta pela norma constante do n.º 1 do art. 688.º do CPC
Por outro lado, não existe jurisprudência uniformizada de acordo com a qual o acórdão recorrido pudesse estar de acordo (cf. artigo 688.º, n.º 3, do CPC).
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III. Do objeto do recurso
Tendo por base as conclusões do recurso para uniformização de jurisprudência e as contradições apontadas, importa apreciar no presente recurso, as seguintes questões:
- Saber se o apuramento do montante de capital devido ao segurado, ao abrigo do contrato de seguro desportivo, por situação de invalidez permanente parcial, nos termos do art. 16.º, al. d), do Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro, é determinado em função apenas do grau de incapacidade fixado, [isto é, aplicado/multiplicado pelo montante mínimo obrigatório de capital previsto no citado art. 16.º (ou superior, se contratualmente previsto), no caso, de €30.000,00] ou, ao invés, se é determinado em função do dano efetivo sofrido pelo lesado, com o limite do capital mínimo legalmente estipulado (ou do capital convencionado, se superior);
- Saber se a cobertura do mencionado contrato de seguro abrange, ou não, a reparação dos danos não patrimoniais sofridos pelo segurado.
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IV. Fundamentação de Facto
É a seguinte a decisão da matéria de facto constante do acórdão recorrido, transitado em julgado aos 25.01.2024:
Factos Provados:
“1. O autor foi praticante amador de rugby no “CR de... - Clube de Rugby de...”, que tem a sua sede na..., em...,...
2 - No dia 21/10/2014, entre as 20 e as 22, 22h30 m, no decurso de um treino no recinto desportivo do “CR de...”, também situado em..., o autor sofreu um choque de um seu colega do clube que lhe provocou rotura do LCA, rotura do LCP e rotura do PAPL do joelho esquerdo.
3 - Em consequência do referido em 2, o autor foi submetido a intervenção cirúrgica no Hospital..., na cidade do..., em 05/11/2014, que consistiu numa Ligamentoplastia do LCA com O-T-O com STG com via astroscópica e reconstrução do PAPE do joelho esquerdo.
4 - O autor teve alta em 08/11/2014, tendo-lhe sido recomendado tratamento fisiátrico urgente, para o que as rés, ou uma delas, pelo menos, deveriam enviar um termo de responsabilidade para a entidade dirigida pelo Sr. Dr. BB, médico fisiatra.
5 - Em 16/03/2015, apesar de cumprir plano de reabilitação funcional na Fisiatria, com melhoria clínica gradual, ainda era previsível um tempo global de tratamento nunca inferior a 9 meses.
6 - Em 01/04/2015 o autor questionou a 2.ª ré sobre a necessidade de emissão do termo de responsabilidade para o médico fisiatra e sobre o pagamento da ortótese de bloqueio do arco articular, cujo custo ele suportara.
7 - A 2.ª ré respondeu em 15/04/2015 informando que havia solicitado ao Dr. BB o envio da prescrição de fisioterapia por forma a assumir directamente com este último o pagamento das sessões.
8 - Em 11/12/2014 a 2.ª ré informou o Clube de Rugby de... que, caso o autor pretendesse efectuar as sessões de fisioterapia fora da sua rede, as primeiras sessões, com o limite de 15 a 20, se encontravam autorizadas, e que no final das mesmas seria necessário novo relatório clínico com evolução clínica do autor e pedido de continuação da fisioterapia com indicação do número de sessões necessárias.
9 - Para o efeito o autor efectuou um exame de Avaliação da Força através do dinamómetro Isocinético Humac Norm, pelo qual pagou € 75,00.
10 - E, posteriormente, em 14/10/2016, efectuou um exame de Avaliação Isocinética.
11 - Realizados os referidos testes concluiu-se que o autor “manifestou um défice funcional na execução do teste para excentricidade dos Isquiotibiais no MIE (involved), por manifesta limitação estrutural/articular…”, e que “…o atleta apresenta défices patológicos (15 % 15,8 %) do Pek Torque no MIE e verifica-se uma assimetria ainda maior (19,4 %-48,2 %) na produção de trabalho muscular…O Índice de Fadiga é marcadamente elevado para os Isquiotibiais do MIE (involved);”, “Por isso…consideramos que existe um risco elevado de lesão”.
12 - O autor continuou a frequentar as sessões de fisioterapia.
13 - O autor, em consequência do sinistro sofrido, ficou a padecer de Défice Funcional Permanente na Integridade Físico-Psíquica de 2 pontos em 100.
14 - O autor andou de canadianas entre seis a oito meses.
15 - À data do acidente o autor era estudante de... na cidade...
16 - O que o obrigou a recorrer ao transporte de táxi, quer para a fisioterapia, quer para as aulas da faculdade, cujas despesas as rés foram ressarcindo.
17 - O autor, em 11/11/2015, requereu junto das rés o reembolso do montante de €2.051,93 respeitante a despesas de deslocações de táxi, avaliação isocinética, ressonância magnética articular, ortótese de bloqueio do arco articular e despesas com o Hospital...
18 - Desse valor a 2.ª ré apenas reembolsou o autor no montante de € 191,60 referente aos custos por este reembolsados com a realização da ressonância magnética articular, consultas, joelheira e Raio-X.
19 - O autor nasceu no dia.../.../1993.
20 - É...
21 - O autor, em virtude do sinistro, sofreu dores, deixou de praticar o seu desporto favorito e teve incómodos e transtornos no transporte, quer para as aulas, quer nas deslocações às sessões de fisioterapia.
22 - Para além disso sente dores provocadas por movimentos com o joelho esquerdo, dores que se agravam na mudança de estação ou de tempo.
23 - O autor ficou com uma limitação nesse mesmo joelho na medida em que realiza uma flexão de apenas um arco de 0° a 110°
24 - Em virtude da cirurgia a que foi sujeito são visíveis no joelho do autor quatro cicatrizes lineares, não hipertróficas, uma na face interna do joelho, com 2 cm; outra na face anterior, com 7 cm; outra na lateral, com 11 cm; e outra na face ántero-interna da perna, com 5 cm.
25 - E ficou ainda a padecer de ligeira amiotrofia da coxa de 1 cm.
26 - O autor sofreu desgosto e angústia em virtude do referido em 24.
27 - E ficou também muito desgostoso e triste por não poder continuar a praticar rugby, como anteriormente ao sinistro o fazia.
28 - Na data referida em 1 encontrava-se em vigor um contrato de seguro de “acidentes pessoais” celebrado entre o “Clube de Rugby de...” e a 1.ª R., titulado pela apólice n.º ...33, junto a fls. 47 a 58 e reverso, cujo teor aqui damos por reproduzido.
29 - Nos termos das Condições Particulares desse contrato, as coberturas do mesmo, entre outras, eram as seguintes:
- Morte por acidente, sendo o capital seguro por pessoa de € 30.000,00;
- Invalidez permanente por acidente, sendo o capital seguro por pessoa de € 30.000,00;
- Despesas de tratamento e de repatriamento, sendo o capital seguro por pessoa de €10.000,00.
30 - O artigo 2.º das Condições Gerais da apólice de seguro supra referida dispõe o seguinte sob a epígrafe “OBJECTO DO CONTRATO”:
“Nos termos e limites definidos nas Condições Especiais, se as houver, e Particulares da Apólice, o contrato garante, consoante as coberturas contratualizadas, o pagamento das indemnizações ou prestações devidas…” nos termos referidos em 29, “…em consequência de acidente emergente do risco Extra Profissional, única e exclusivamente, quando o Segurado/Pessoa Segura estiver no exercício de uma actividade desportiva, cultural ou recreativa: quer em competição, treino, estágio, preparação, ensaio ou actuação, quer em representação ou sob o patrocínio do Tomador de Seguro e, ainda, nas deslocações de e para os locais onde a mesma tenha lugar, desde que realizadas em grupo, em veículo do próprio Tomador do Seguro ou a este cedido ou alugado”.
31 - O n.º 2 do artigo 3.º das Condições Gerais da apólice de seguro supra referida dispõe, para além do mais, o seguinte sob a epígrafe “DEFINIÇÃO E ÂMBITO DAS COBERTURAS”, “INVALIDEZ PERMANENTE”:
“2.1 - Entende-se por Invalidez Permanente a perda anatómica ou impotência funcional de membros ou órgãos que, em consequência de lesões corporais resultantes de acidente coberto pela apólice, se encontre especificada na Tabela de Desvalorizações anexa a estas Condições Gerais e que faz parte integrante desta apólice.
2.2 - O capital seguro por Invalidez Permanente só é devido se a mesma for clinicamente constatada no decurso de dois anos a contar da data do acidente.
2.3 - Verificados os pressupostos enunciados em 2.1 e 2.2, o Segurador pagará a parte do correspondente capital determinado pela Tabela de Desvalorizações anexa a estas Condições Gerais.
2.4 - …
2.5 - As indemnizações são calculadas objectivamente, isto é, considerando apenas a percentagem de Invalidez Permanente independentemente do Segurado/Pessoa Segura poder ou não praticar a actividade desportiva a que se dedicava.
2.6 - …
2.7 - …
2.8 - …
2.9 - …
2.10 - A Incapacidade funcional parcial ou total de um membro ou órgão é equiparada à correspondente perda parcial ou total.
2.13 - Só haverá lugar a indemnização desde que a desvalorização ou soma das desvalorizações seja igual ou superior a 10 % (dez por cento), salvo convenção em contrário e mediante aplicação do sobreprémio correspondente. …”.
32 - O n.º 6 do artigo 3.º das Condições Gerais da apólice de seguro supra referida dispõe, para além do mais, o seguinte sob a epígrafe “DESPESAS DE TRATAMENTO E DE REPATRIAMENTO”:
“6.1 - Por Despesas de Tratamento entendem-se as relativas a honorários médicos e internamento hospitalar, incluindo assistência medicamentosa e de enfermagem, bem como de exames auxiliares de diagnóstico e de fisioterapia que forem necessárias em consequência do acidente.
6.2 - …
6.3 - O Segurador procederá ao reembolso, até à importância para o efeito fixada nas Condições Particulares, das despesas necessárias para o tratamento das lesões sofridas, bem como das despesas extraordinárias de repatriamento.
6.4 - No caso de ser necessário tratamento clínico regular, e durante todo o período do mesmo, consideram-se também incluídas as despesas de deslocação ao médico ou Unidade Hospitalar, quando indicados e/ou convencionados pelo Segurador e desde que o meio de transporte utilizado seja adequado à gravidade da lesão e devida e clinicamente fundamentado pelo médico assistente do Segurado/Pessoa Segurada e consequente parecer dos Serviços Técnicos e Clínicos do Segurador.
33 - O artigo 5.º das Condições Gerais da apólice de seguro supra referida dispõe, para além do mais, o seguinte sob a epígrafe “EXCLUSÕES”:
“Salvo convenção expressa em contrário nas Condições Especiais, quando as houver, e Particulares, excluem-se:
1.1 - Acidentes consequentes de acções ou omissões do Tomador do Seguro, do Segurado/Pessoa Segura ou do Beneficiário, sempre que as mesmas estejam influenciadas por consumo excessivo de álcool… e estupefacientes fora da prescrição médica, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo;
1.2 - Acidentes consequentes de acções delituosas ou seja criminosas, negligência grave, e quaisquer actos intencionais do Segurado/Pessoa Segura, praticados sobre si próprio, tal como o suicídio ou tentativa deste, incluindo actos temerários, apostas, desafios e rixas;
1.3 - Acidentes consequentes de acções delituosas ou seja criminosas, negligência grave, e quaisquer actos intencionais do Tomador de Seguro ou do Beneficiário, dirigidos contra o Segurado/Pessoa Segura, na parte do benefício que àquele respeitar, ou a quem este quiser beneficiar;
1.4 - Acidentes ou eventos que produzam unicamente efeitos psíquicos;
1.5 - Acidentes resultantes da utilização pelo Segurado/Pessoa Segura de veículos motorizados de duas ou três rodas, moto quatro (ATV) e de aeronaves não pertencentes a carreiras comerciais autorizadas;
1.6 - Acidentes derivados da prática profissional de desportos;
1.7 - Acidentes derivados da prática de desportos de Inverno, prática de ski na neve e aquático, surf, snowboard, boxe, karaté e outras artes marciais, tauromaquia, para-quedismo, parapente, asa delta, ultraleves, alpinismo, barrage/saltos em equitação, espeleologia, anooing, escalada, rappel, bungee jumping, pesca submarina, mergulho com escafandro autónomo, motonáutica, motorismo e outros desportos e actividades análogas, na sua perigosidade;
1.8 - Acidentes resultantes de cataclismos da natureza, tais como ventos ciclónicos, terramotos, maremotos e outros fenómenos análogos nos seus efeitos e ainda acção de raio;
1.9 - Acidentes resultantes de explosão ou quaisquer outros fenómenos directa ou indirectamente relacionados com a desintegração ou fusão de núcleos de átomos, bem como os efeitos da contaminação radioactiva e de exposição a campos magnéticos;
1.10 - Acidentes consequentes de greves, distúrbios laborais, tumultos, alteração de ordem pública, actos de terrorismo e sabotagem, insurreição, revolução, guerra civil, invasão e guerra contra País estrangeiro (declarada ou não) e hostilidades entre nações estrangeiras (quer haja ou não declaração de guerra) ou actos bélicos provenientes directa ou indirectamente dessas hostilidades;
1.11 - Acidentes derivados de uma doença ou estado patológico preexistente, assim como lesões que sejam consequência de intervenções cirúrgicas ou tratamentos médicos não motivados por um acidente garantido por este contrato;
1.12 - Hérnias qualquer que seja a sua natureza, lumbagos, reumatismo, varizes e suas complicações;
1.13 - Os acidentes resultantes da inobservância das disposições preventivas das leis e regulamentos em geral e em especial os concernentes à prática das diversas actividades desportivas, culturais e recreativas;
1.14 - Defeitos físicos ou doenças que possam agravar o risco de acidente ou as suas consequências;
1.15 - Transplante de membros ou órgãos, cirurgia plástica e danos em próteses pré-existentes, bem como as ortóteses;
1.16 - S.I.D.A. - Síndroma de Imunodeficiência Adquirida e suas consequências;
1.17 - As pessoas com idade inferior a 3 anos e superior a 70 anos;
1.18 - Todas as situações do foro patológico, como acidentes vasculares cerebrais e acidentes cardio-vasculares.”
34 - A cláusula 7 do “Manual de Procedimentos” junto a fls. 49 a 54 - cujo teor se dá por reproduzido - estipula o seguinte: “Não serão liquidadas despesas com veículos particulares ou táxis senão quando devidamente autorizadas pela RNA - REDE NACIONAL DE ASSISTÊNCIA”.
35 - A 2.ª ré não desenvolve a actividade seguradora, sendo que o seu objecto social é a prestação de serviços, gestão, assistência e consultadoria a pessoas e bens no ramo de qualquer sinistro. Gestão de quadros clínicos e outros. Prestação de serviços médicos e outros.
36 - A 2.ª ré é a entidade responsável pela gestão de sinistros contratada com a 1.ª ré.
37 - O exame isocinético destina-se a avaliar a função dinâmica dos músculos através da avaliação quantitativa do arco de movimento, da força e de variáveis do desempenho muscular com vista a aferir se é possível retomar a prática desportiva com segurança.
Com relevância para a boa decisão da causa não se provou:
1 - O autor efectuou as sessões de fisiatria referidas no ponto 12 do elenco de factos provados até Abril de 2017 a suas expensas, sem que as rés tenham procedido ao respectivo reembolso.
2 - Para além do referido no ponto 17 do elenco de factos provados o autor reclamou junto da 2.ª ré o pagamento de mais do que uma avaliação isocinética.
3 - Para além do referido no ponto 23 do elenco de factos provados o autor não pode dobrar o joelho.
4 - Para além do referido no ponto 27 do elenco de factos provados o autor ficou também muito desgostoso e triste por não poder continuar a praticar desporto.
5 - O autor é engenheiro civil.
6 - O autor também contactou com a 1.ª ré nos termos referidos no ponto 6 do elenco de factos provados.
7 - A 1.ª ré também respondeu ao autor nos termos referidos no ponto 7 do elenco de factos provados.
8 - A 1.ª ré também contactou o “Clube de Rugby de...” nos termos referidos no ponto 8 do elenco de factos provados.
9 - Para além do referido no ponto 13 do elenco de factos provados, o autor, em consequência do sinistro sofrido, ficou a padecer de Défice Funcional Permanente na Integridade Físico-Psíquica de 15 pontos em 100.
10 - O autor andou de canadianas entre nove a doze meses.”
***
V. Do Direito
1 - Nas alegações de recurso, o autor-recorrente vem essencialmente colocar em causa o entendimento do acórdão recorrido quanto ao critério de cálculo, ao abrigo do contrato de seguro desportivo, do montante de capital inerente a danos patrimoniais advenientes da situação de invalidez permanente parcial que lhe foi fixada, assim como quanto à compensabilidade, a tal título, dos danos não patrimoniais causados pelo sinistro.
Delimita a questão a decidir, no âmbito do presente recurso de uniformização, como se reconduzindo a “saber se, em caso de sinistro desportivo e na interpretação do artigo 16.º, alínea d) da Lei de Seguro Desportivo - Decreto-Lei 10/2009, de 12/01, deve atender-se à situação em que o lesado efetivamente se encontra, que implica a consideração da extensão do dano e dos danos não patrimoniais - acórdão fundamento, ou se, pelo contrário, ficando encarcerado no colete da fronteira da letra da lei, como o faz o acórdão recorrido, se transforme a justiça numa mera questão aritmética, de subsunção de direitos constitucionalmente consagrados, como o sejam o direito à saúde e o direito à integridade física e psíquica, a uma percentagem sobre um valor estático.”
Entende que o tratamento das questões controvertidas nos termos levados a cabo pelo acórdão fundamento se impõe, “sob pena de violação dos direitos constitucionalmente protegidos dos praticantes de desporto, nomeadamente o direito à saúde e o direito à integridade física, plasmados no artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil, em conjugação com o artigo 25.º, da Constituição da República Portuguesa.”
Remata, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e pela sua substituição por outro que atribua ao recorrente a quantia de € 8.120,00, a título de danos patrimoniais4 e de uma quantia compreendida entre €8.000,00 e €6.000,00, a título de danos não patrimoniais, montantes aos quais faz acrescer os respetivos juros de mora.
O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto, junto deste Supremo Tribunal de Justiça, emitiu douto parecer no sentido da seguinte uniformização de jurisprudência:
“Em caso de acidente desportivo e face ao disposto no artigo 16.º, alínea d) da Lei de Seguro Desportivo - Decreto-Lei 10/2009, de 12/01, a indemnização estabelecida para a invalidez permanente parcial deve ser calculada em função de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos até ao limite do capital garantido.”
2 - Visa-se, com o presente recurso, obter uma resposta uniformizadora acerca do âmbito da prestação a cargo da seguradora, ao abrigo do contrato de seguro desportivo obrigatório, devida por invalidez permanente parcial do lesado praticante de atividade desportiva, nos termos do preceituado pelo art. 16.º, al. d), do Regime Jurídico do Seguro Desportivo Obrigatório, estabelecido pelo Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro (doravante RJSDO), o aplicável ao caso 5. Concretamente, saber se, em caso de invalidez permanente parcial, a que se reporta o citado art. 16.º, al. d), o capital devido deve ser calculado apenas em função do grau de incapacidade fixado, multiplicando-o pelo capital mínimo obrigatório previsto em tal diploma para as situações de invalidez permanente absoluta, independentemente do dano efetivo (patrimonial e não patrimonial), ou, ao invés, se deverá ser tido em conta o dano efetivo, com o limite máximo previsto no mencionado preceito para as situações de invalidez permanente absoluta.
2.1 - Em tal diploma (que sucedeu ao Decreto-Lei 146/93, de 26.04 e Portaria 757/93, de 26.08) estabelece-se o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório (art. 1.º), de celebração obrigatória, sendo por ele abrangidos os agentes desportivos (como tal se considerando, nomeadamente, os praticantes desportivos federados, árbitros, juízes e cronometristas, treinadores de desporto e dirigentes desportivos), os praticantes de atividades em infra-estruturas desportivas abertas ao público e os participantes em provas ou manifestações desportivas. A responsabilidade pela celebração do contrato de seguro compete às federações desportivas, às entidades que explorem infra-estruturas desportivas abertas ao público e às entidades que organizem provas ou manifestações desportivas (arts. 2.º e 7.º), nele se prevendo também o seguro do praticante no regime de alto rendimento (arts. 11.º e 17.º). O incumprimento da celebração de tal seguro determina a responsabilidade das entidades que o deveriam celebrar nos mesmos termos em que responderia o segurador, caso o seguro tivesse sido efetuado (art. 20.º) e a prática de contraordenação muito grave (art. 21.º).
Trata-se, ainda, de um seguro de grupo (arts. 8.º a 10.º, 11.º, n.º 2, e 20.º do RJSDO) e contributivo (arts. 9.º, n.os 2 e 3 do RJSDO, e 77.º, n.º 2, do RJCS), cujo prémio deve ser pago pelo tomador (art. 8.º, n.º 2, do RJCS). Como sublinha Francisco Rodrigues Rocha, “tratando-se de seguro de grupo contributivo são, em princípio, aplicáveis, consoante o conteúdo, do contrato concretamente celebrado e no que não for contrariado pelo regime especial do RJSDO, as regras constantes dos artigos 86.º a 90.º do RJCS. Ao seguro a cuja contratação estão obrigadas as entidades acima referidas, devem “aderir” os agentes desportivos. Em benefício destes é o seguro desportivo contratado.” 6
Quanto à cobertura conferida pelo mencionado seguro, relevam os arts. 5.º e 16.º, concretamente a alínea d) deste último, do mencionado diploma, a que está em escrutínio no presente acórdão 7, preceitos esses que dispõem:
- No art. 5.º, sob a epígrafe Coberturas mínimas, que: “1 - O seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respectiva actividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respectivas deslocações, dentro e fora do território português. 2 - As coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo são as seguintes: a) Pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva; b) Pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento. 3 - O seguro desportivo dos praticantes abrangidos pelo regime de alto rendimento tem coberturas e valores mínimos diferenciados, nos termos do disposto no artigo 11.º”
- No art. 16.º, sob a epígrafe Coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo, que: “O contrato de seguro a que se refere o n.º 2 do artigo 5.º garante os seguintes montantes mínimos de capital: a) Morte - (euro) 25 000; b) despesas de funeral - (euro) 2000; c) Invalidez permanente absoluta - (euro) 25.000; d) Invalidez permanente parcial - (euro) 25 000 ponderado pelo grau de incapacidade fixado; e) despesas de tratamento e repatriamento - (euro) 4000.” [sublinhado nosso, correspondendo à norma ora em causa].
É de esclarecer que, nos termos do art. 18.º, “[a]s coberturas mínimas obrigatórias dos seguros são automaticamente actualizadas em Janeiro de cada ano, de acordo com o índice de preços ao consumidor verificado no ano anterior e publicado pelo Instituto Nacional de Estatística, I.P”, sendo que, no caso ora em apreço, o montante mínimo de cobertura acordado era o de €30.000,00 (não estando em causa que seja o mesmo inferior ao legalmente previsto no art. 16.º, atualizado nos termos do citado art. 18.º).
Releva também o art. 6.º, sob a epígrafe Exclusões, de harmonia com o qual: “As apólices de seguro desportivo não podem conter exclusões que, interpretadas individualmente ou consideradas no seu conjunto, sejam contrárias à natureza da actividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objecto do contrato de seguro”.
Por fim, há que ter presente o que consta do preâmbulo do citado Decreto-Lei 10/2009:
“A Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, Lei 5/2007, de 16 de Janeiro, prevê no seu artigo 42.º a instituição de um sistema de seguros, nomeadamente um seguro obrigatório para todos os agentes desportivos, um seguro para instalações desportivas e um seguro para manifestações desportivas.
Também o artigo 43.º do mesmo diploma, referindo-se às obrigações das entidades prestadoras de serviços desportivos, estabelece a existência obrigatória de seguros relativos a acidentes ou doenças decorrentes da prática desportiva.
O desporto, até por definição, é uma actividade predominantemente física, exercitada com carácter competitivo. Cobrir os riscos, através da instituição do seguro obrigatório, é uma necessidade absoluta para a segurança dos praticantes.
Para alcançar tal desiderato, no desenvolvimento da Lei 1/90, de 13 de Janeiro, Lei de Bases do Sistema Desportivo, foi publicado o Decreto-Lei 146/93, de 26 de Abril, diploma pelo qual se instituiu o regime jurídico do seguro desportivo, enquanto seguro obrigatório.
Com os seguros obrigatórios atende-se a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efectivamente, a usufruir da cobertura. É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo de as vítimas não obterem o ressarcimento.
A doutrina vem apontando um conjunto de riscos susceptíveis de serem abrangidos pelo seguro desportivo, nomeadamente os riscos sobre a integridade física dos praticantes, os riscos sobre a integridade física dos espectadores ou terceiros, os riscos a que estão expostos os recursos humanos afectos ao evento desportivo e, bem assim, os riscos inerentes à deslocação para o local onde se realiza o evento desportivo.
Por outro lado, o risco coberto pelo seguro desportivo encontra-se perfeitamente balizado materialmente, isto é, apenas abrange os riscos para a saúde decorrentes da prática de uma modalidade desportiva. Correspondentemente, excluem-se do seguro os riscos derivados da prática de modalidades desportivas diversas.
De igual forma, a cobertura obrigatória apenas abrange o acidente, ou seja, não inclui toda a lesão derivada da prática desportiva, como sejam os processos degenerativos progressivos que não tenham a sua causa num evento fortuito, externo, violento e súbito.
Embora o quadro legal ainda em vigor tenha presente estas características, a experiência entretanto colhida, a par da reforma iniciada com a entrada em vigor da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto, aconselham à revisão do sistema em vigor, de forma a ultrapassar, por um lado, as críticas aos limites quantitativos das reparações em dinheiro e, por outro, com o seguro de vida garantido aos atletas de alto rendimento.
[...]
Desta forma, o presente decreto-lei estabelece a obrigatoriedade do seguro desportivo para os agentes desportivos, para os praticantes de actividades desportivas em infra-estruturas desportivas abertas ao público e para os participantes em provas ou manifestações desportivas.
[...]
Assume igualmente relevância a proibição de as apólices de seguro desportivo não conterem exclusões que, interpretadas individualmente ou consideradas no seu conjunto, sejam contrárias à natureza da actividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objecto do contrato de seguro.
[...]
Procede-se também à revisão das coberturas mínimas quer para o seguro desportivo quer para o seguro do praticante de alto rendimento, prevendo-se a sua actualização automática.
[...]”
2.2 - O acórdão do STJ de 07-11-20198 deu conta da evolução legislativa que a institucionalização de tal seguro conheceu no nosso ordenamento jurídico nos seguintes moldes:
“[...], alguns anos depois de o Decreto-Lei 205/83, de 21-05, ter autorizado o então Ministro da Qualidade de Vida a celebrar com o Instituto de Seguros de Portugal, ou com uma companhia de seguros por este indicada, um contrato instituindo o seguro do desportista amador sem carácter de obrigatoriedade, sobreveio o Decreto-Lei 162/87, de 08/04, a revogar aquele diploma e a tornar obrigatório, nos termos do seu artigo 1.º, o seguro desportivo para todas as pessoas que, como amadores, se inscrevessem nas federações ou associações desportivas para efeitos de participação desportiva, salvo nos casos de modalidades que o não justificassem. E, segundo o respetivo artigo 2.º, o seguro do desportista amador deveria ser concretizado mediante contrato a celebrar entre o Instituto Nacional do Fomento do Desporto e o Instituto de Seguros de Portugal ou entidade seguradora por este indicada.
Seguidamente, a Lei 1/90, de 13-01, designada por “Lei de Bases do Sistema Desportivo”, veio estabelecer o quadro geral do sistema desportivo, cujo artigo 16.º, sob a epígrafe seguro desportivo e segurança social, assegurava “a institucionalização de um sistema de seguro obrigatório dos praticantes desportivos enquadrados na prática desportiva formal” com o objetivo de cobrir os particulares riscos a que estão sujeitos, protegendo em termos especiais o praticante desportivo de alta competição (n.º 1), mas abrangendo também, outras categorias de agentes desportivos cuja atividade comportasse situações especiais de risco (n.º 2).
No desenvolvimento desse regime jurídico, foi promulgado o Decreto-Lei 146/93, de 26-04, que, revogando o Decreto-Lei 162/87, de 08/04, veio regular o seguro desportivo obrigatório.
No âmbito deste diploma, foi definido como objeto daquele contrato a cobertura dos “riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva, incluindo os decorrentes de transporte e viagens em qualquer parte do mundo” (artigo 1.º, n.º 2), consagrando-se a obrigatoriedade do seguro desportivo “para todos os agentes desportivos inscritos em federações dotadas de utilidade pública desportiva, nomeadamente os praticantes desportivos profissionais e não profissionais” (artigo 2.º, alínea a). Para tal efeito, foi delineado o quadro normativo do seguro de grupo, a celebrar pelas federações desportivas, aberto à adesão dos agentes desportivos nelas inscritos (artigos 3.º e 5.º).
A par disso, os artigos 7.º, 8.º e 9.º do mencionado diploma dispunham, respetivamente, sobre o seguro de praticante profissional, o seguro do praticante de alta competição e o seguro de provas desportivas.
Quanto aos riscos cobertos pelo seguro de grupo, o artigo 4.º do referido diploma dispunha que:
1 - As coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo são as seguintes:
a) Pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva;
b) Pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento.
2 - As coberturas, riscos e valores do seguro podem ser diferenciados, relativamente aos praticantes desportivos, em função da sua inserção ou não inserção no percurso da alta competição.
A fixação dos capitais mínimos obrigatórios, nas suas várias modalidades, foi relegada para sede de portaria (artigo 12.º), o que veio a ser concretizado pelas Portarias n.º 757/93, de 26-08, e n.º 392/98, de 11-07, esta com introdução de medidas especiais de apoio aos praticantes não profissionais de alta competição.
Assim, no que aqui interessa, a Portaria 757/93 veio estabelecer, no seu n.º 1.º, que:
As federações dotadas de utilidade pública desportiva devem, obrigatoriamente, celebrar um seguro desportivo de grupo com os seguintes montantes mínimos de capital por praticante ou agente desportivo não profissional nelas inscritos:
Morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva - 3.000.000$. Para menores de 14 anos o capital por morte reduz-se ao valor das despesas de repatriamento e funeral, até ao limite de 300.000$;
Pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento - 500.000$.
E o n.º 5.º da referida Portaria conferia às partes a permissão de estabelecerem livremente a introdução de franquias e o respectivo valor.”
A Lei 30/2004, de 21-06 (Lei de Bases do Desporto) e a Lei 5/2007, de 16/01 (Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto) - que revogou o primeiro diploma e se encontra atualmente em vigor - mantiveram a obrigatoriedade do seguro pelos riscos inerentes à prática desportiva.
Estipula o art. 42.º do último diploma que “1 - É garantida a institucionalização de um sistema de seguro obrigatório dos agentes desportivos inscritos nas federações desportivas, o qual, com o objectivo de cobrir os particulares riscos a que estão sujeitos, protege em termos especiais o praticante desportivo de alto rendimento. 2 - Tendo em vista garantir a protecção dos praticantes não compreendidos no número anterior, é assegurada a institucionalização de um sistema de seguro obrigatório para: a) Infra-estruturas desportivas abertas ao público; b) Provas ou manifestações desportivas. 3 - A lei define as modalidades e os riscos cobertos pelos seguros obrigatórios referidos nos números anteriores.”
Neste conspecto, foi aprovado o Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro, cujo regime suscita a nossa análise e que já acima deixámos transcrito.
2.3 - As questões em apreço, a saber:
- se o apuramento do montante de capital devido ao segurado, por situação de invalidez permanente parcial, nos termos do art. 16.º, al. d), do Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro, é determinado em função apenas do grau de incapacidade fixado, ou, ao invés, se é determinado em função do dano efetivo sofrido pelo lesado, com o limite do capital mínimo legalmente estipulado (ou do capital convencionado, se superior) e
- se a cobertura do mencionado contrato de seguro abrange, ou não, a reparação dos danos não patrimoniais sofridos pelo segurado,
estão intimamente relacionadas, pelo que serão tratadas em conjunto, sem prejuízo porém do que adicionalmente se dirá, no ponto V.7 do presente acórdão quanto ao dano não patrimonial.
A respeito da interpretação do citado art. 16.º, al. d), que prevê o montante mínimo de capital devido a título de invalidez permanente parcial [“d) Invalidez permanente parcial - (euro) 25 000, ponderado pelo grau de incapacidade fixado” 9], têm-se firmado duas correntes no seio da jurisprudência do STJ, com refrações ao nível da jurisprudência dos Tribunais da Relação.
Segundo uma das correntes, defendida pelo acórdão recorrido, a atribuição patrimonial devida ao segurado em caso de invalidez permanente parcial, ao abrigo do contrato de seguro desportivo, deve ser apurada mediante cálculo aritmético em função do grau de incapacidade fixado, tendo por referência o montante mínimo de capital previsto no art. 16.º, ou superior, se contratualmente previsto, com exclusão, pois, do dano efetivo.
Outra corrente, da qual é representativa o acórdão fundamento, defende que o apuramento do montante de capital devido ao segurado é determinado, não apenas pela extensão da incapacidade decorrente do sinistro, mas igualmente pela extensão do dano efetivo, tendo porém como limite o valor de capital previsto no citado art. 16.º ou do capital seguro, se superior.
2.3.1 - Os argumentos alinhados pela primeira corrente, no sentido do acórdão recorrido, poderão, de forma tópica, elencar-se do seguinte modo:
i) a natureza do contrato de seguro desportivo obrigatório por acidentes pessoais que, tal como é configurado em sede de coberturas mínimas no artigo 16.º do RJSDO, prevê, para a invalidez permanente, total ou parcial, uma prestação de capital pré-determinada, sem qualquer consideração pelo valor do dano efetivo, constituindo um contrato de seguro de pessoas, visando a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física do beneficiário, enquadrável nos art. 175.º, n.os 1 e 2, e 210.º do Decreto-Lei 72/2009, de 16.0410 e, assim, podendo garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano;
ii) o artigo 5.º, n.º 2, al. a), do RJSDO, tal como o artigo 4.º, n.º 1, al. a), do antecedente Decreto-Lei 146/93, de 26-04, estabelece a cobertura mínima abrangida pelo seguro desportivo para o pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva, o que não equivale, juridicamente, ao pagamento de indemnização propriamente dita em função do dano efetivo ainda que limitada àquele capital;
iii) atender ao valor do dano efetivo poderá eclipsar a diferenciação da atribuição patrimonial devida por invalidez permanente absoluta e a devida por invalidez permanente parcial e, no âmbito desta, da que for devida em função dos graus de incapacidade fixados, diferenciação essa, de cariz objetivo, que se encontra patente no artigo 16.º, als. c) e d) do RJSDO, podendo o portador de uma invalidez permanente parcial inferior vir a receber um capital superior ao portador de uma invalidez permanente parcial superior ou até mesmo, um capital igual ao portador de uma invalidez permanente absoluta;
iv) visando-se cobrir o risco de lesões corporais determinativas de invalidez permanente inerentes a acidente em atividades desportivas, acidente esse não associado à prática de ilícito civil no domínio da responsabilidade extracontratual - bastando a ocorrência do sinistro -, não se mostra imperioso que a prestação devida pelo segurador seja aferível pelo dano efetivo ou esteja limitada a este, segundo o princípio indemnizatório consagrado no artigo 128.º da LCS para o contrato de seguro de danos.
v) quanto aos danos não patrimoniais, a solução contrária levaria à incongruente tese de que a reparação de danos não patrimoniais apenas teria lugar em casos de menor gravidade, em que a invalidez permanente apresenta um valor percentual mais baixo, na medida em que o valor do capital disponível para tal indemnização diminuiria à medida que fosse subindo o grau de desvalorização funcional permanente.
FRANCISCO RODRIGUES ROCHA sistematizou os argumentos que têm sido avançados pela jurisprudência para suportar tal entendimento do seguinte modo:
“(i) o artigo 5.º do RJSDO não contemplaria danos não patrimoniais; (ii) as prestações de seguro em causa - designadamente aquelas em que, à falta doutras nos artigos 5.º/1 e 16.º do RJSDO, os danos não patrimoniais caberiam, i. e. as coberturas por invalidez - , seriam predeterminadas independentemente do montante do dano, de maneira que o seu cômputo não seria para o efeito tido em conta; (iii) se trataria de um seguro de pessoas, não de responsabilidade civil, de modo que não seriam de convocar as regras do cálculo de danos destes últimos, podendo até nem sequer estar associada ao sinistro uma situação de responsabilidade civil; (iv) não especificando a lei, ficaria às partes a liberdade de modulação do conteúdo da relação contratual como é regra, nos termos do artigo 405.º do CC; (v) em face do princípio do artigo 405.º/1 do CC, o intérprete apenas deveria concluir pela existência de prescrição legal limitativa quando fosse clara e manifesta. Por isso também, a não previsão numa apólice da indemnização de danos não patrimoniais nos seguros desportivos não contenderia com norma imperativa; (vi) não haveria ambiguidade quando as apólices, ao definirem invalidez permanente, não aludissem a danos não patrimoniais e quando, ao estabelecerem o método de cálculo das prestações a pagar, avançassem um critério puramente aritmético. A opinião contrária levaria à incongruente solução de que o contrato apenas cobrisse a reparação de danos não patrimoniais de menor gravidade em que a invalidez permanente fosse de valor percentual mais baixo, pois o valor do capital disponível diminuiria à medida que subisse o grau de desvalorização; (viii) o RJSDO contém regras próprias para cálculo da prestação do segurador, de modo que não poderiam aplicar-se outras, como a de indemnização devida por incapacidade permanente resultante de acidente de viação.” 11
2.3.2 - Por sua vez, os defensores da segunda tese, plasmada no acórdão fundamento, ancoram o seu entendimento:
i) na ratio dos seguros obrigatórios, cuja criação se liga a um imperativo de solidariedade e de reparação equitativa dos danos decorrentes de uma atividade tipicamente perigosa, uma necessidade social que o legislador entendeu fundamental; assim como,
ii) na necessidade de interpretar a norma prevista no art. 16.º, al. d), do RJSDO de modo conforme à Constituição, uma vez que estão em causa direitos fundamentais constitucionalmente protegidos dos praticantes de desporto, designadamente, o direito à saúde, bem como o direito à integridade física e psíquica (artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil, em conjugação com o art. 25.º, n.º 1, da CRP).
E, recorrendo ainda a FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, o mesmo sistematizou a argumentação, também transcrita no acórdão fundamento, que tem sido avançada pela jurisprudência no sentido do mencionado entendimento, do seguinte modo: “(i) o propósito do RJSDO, manifestado no seu preâmbulo e articulado, foi o de proteger os desportistas quanto a todo o tipo de danos, de modo a que o artigo 5.º/2/a) do RJSDO contemplaria também danos morais emergentes do sinistro; (ii) o preâmbulo do RJSDO refere-se expressamente ao “ressarcimento”, de modo que as prestações a cargo do segurador teriam, neste seguro, a natureza de indemnização; (iii) o legislador no artigo 5.º/2 e 16.º do RJSDO, tendo podido fazê-lo - como fez com respeito à cobertura pelo FGA no artigo 49.º do RSORCA ou nos artigos 23.º e ss. e 47.º e ss. da LAT - , não distinguiu entre danos patrimoniais e não patrimoniais, de modo que não deveria também o intérprete fazê-lo; (iv) da incapacidade não resultam apenas danos patrimoniais; (v) os danos não patrimoniais são indemnizáveis nos termos gerais da responsabilidade civil (artigo 496.º/1 do CC); (vi) o seguro em causa é de pessoas, referente aos riscos relativos à integridade física e da sua lesão, designadamente em caso de incapacidade, decorrem danos patrimoniais como também não patrimoniais, cobertos por este seguro; (vii) quando a lei fala de “capital”, “inclui todos os tipos de danos ou, dito doutro modo, não exclui os danos não patrimoniais”; (viii) o artigo 16.º/ d) do RJSDO, ao estabelecer €25.000 como soma segura, fixa apenas o limite da prestação do segurador, não impondo o cálculo em percentagem da incapacidade, o qual, em consonância com o propósito da instituição deste seguro obrigatório, deveria ser feito nos termos gerais, em função da extensão dos danos, sejam ou não patrimoniais, e não da incapacidade de que decorre o dano. Caso contrário seria incompreensível a fixação do mesmo capital de €25.000 pela invalidez permanente absoluta; (ix) a expressão “cobertura de danos corporais pelas pessoas seguras” contida nas apólices de seguro desportivo, sem exclusão expressa dos morais, abrangê-los-á, como consequência natural dos primeiros; além do mais, nada prevendo a apólice sobre o tipo de danos a ressarcir, valerá a regra in dubio contra stipulatorem; (x) uma cláusula que impeça o ressarcimento de danos não patrimoniais será nula por força do artigo 6.º do RJSDO; (xi) a forma de cálculo da indemnização por dano corporal estaria subtraída à autonomia privada, por força do art, 6.º/1/d) do DL n.º 352/2007; (xii) as cláusulas por que se estipule serem as indemnizações por lesões corporais calculadas sem ser tida em conta a atividade profissional da pessoa segura seriam nulas por força dos arts. 6.º do RJSDO e 294.º do CC.” 12
3 - No que toca à jurisprudência:
3.1 - No sentido do acórdão recorrido - de que o capital devido ao segurado por situação de invalidez permanente parcial é determinado em função apenas do grau de incapacidade fixado (multiplicando-o pelo montante de capital legalmente previsto, ou superior, se contratualmente estipulado), sem consideração do dano efetivo - pronunciaram-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça:
- Acórdão de 08-09-2016, Revista n.º 1311/11.5TJVNF.G1.S1 13:
“[...]
III - A interpretação do clausulado contratual integrado por cláusulas contratuais gerais deve primeiramente ter em conta as regras interpretativas gerais (art. 10.º do DL n.º 446/85, de 25-10), devendo, pois, o intérprete começar por averiguar se o declaratário conhecia a vontade real do declarante e o sentido que o mesmo pretendeu exprimir através da declaração (segundo a regra “falsa demonstratio non nocet”); na hipótese de o declaratário não a conhecer, o sentido decisivo da declaração negocial será aquele que for apreendido por um declaratário medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real; sendo o contrato de seguro um negócio formal, a declaração prevalente terá que ter, na letra da apólice, um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 1 do art. 238.º do CC).
IV - Caso a aplicação das regras referidas em III permita, ainda assim, determinar mais do que um sentido a uma cláusula contratual geral, prevalecerá o sentido que lhes atribuiria um contraente indeterminado normal e, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente (n.os 1 e 2 do art. 11.º do DL n.º 446/85, de 25-10, segundo o brocado “ambiguitas contra stipolutarum”), o que constitui um afloramento do princípio da protecção do contraente mais débil, desta feita assente na concepção de que o risco assumido pelo predisponente dessas cláusulas deve reverter contra este se nelas fizer uso de disposições desprovidas de clareza e de inteligibilidade.
V - A imposição da contratação do seguro desportivo obrigatório (art. 2.º do DL n.º 146/93, de 26-04) radica na necessidade de garantir que os praticantes desportivos e outros agentes por ele abrangidos disporão de recursos financeiros para custear as despesas em que incorram com tratamentos ocasionados por lesões decorrentes do desporto ou assegurar-lhes o pagamento de um valor em caso de óbito ou invalidez permanente. Trata-se de um seguro que visa acautelar a responsabilidade objectiva inerente à actividade desportiva.
VI - Resultando da interpretação do clausulado de um contrato de seguro de acidentes pessoais ocasionados pela prática desportiva que a determinação do quantitativo da atribuição patrimonial devida à pessoa segura se acha estritamente correlacionada com o grau de invalidez de que aquela ficou a padecer em consequência do sinistro, é forçoso considerar que, para a determinação da importância a liquidar pela recorrida, não deve o intérprete ater-se nos critérios usualmente empregues na jurisprudência para fixar a indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da incapacidade permanente, tanto mais que não nos encontramos no domínio da obrigação a responsabilidade civil por factos ilícitos (n.º 1 do art. 483.º e art. 562.º, ambos do CC) e que essa atribuição patrimonial é uma mera decorrência do funcionamento desse contrato, desprovida de natureza indemnizatória e impassível de autonomização face à prestação de suportação de risco a cargo da seguradora.
VII - Situando-se a incapacidade de que o recorrente passou a sofrer em consequência do sinistro em 15 % e posto que, nos termos clausulados, a atribuição da totalidade do capital seguro dependia da verificação de uma invalidez permanente de grau igual ou superior a 66 %, é da mais elementar justiça que a atribuição patrimonial a cargo da recorrida diste significativamente da integralidade do capital seguro, inexistindo motivos para censurar a fixação do seu quantitativo em termos proporcionais.
VIII - Tendo o seguro referido em VI sido celebrado por uma associação de futebol e não por um ente federativo, o DL n.º 146/93 não lhe é, sem mais, irrestritamente aplicável, sendo certo que, em todo o caso, a circunstância de o seguro desportivo obrigatório ficar aquém da previsão do seu art. 4.º não determina a nulidade da cláusula ou do contrato de seguro em que ela se insira mas antes a responsabilização da tomadora do seguro firmado nessas condições nos precisos termos em que a seguradora responderia se esse ajuste houvesse respeitado os ditames desse preceito (art. 10.º desse diploma).
IX - O propósito legislativo subjacente à criação do seguro desportivo obrigatório não implica que sejam, nesse âmbito, compensáveis os danos não patrimoniais sofridos pelo segurado, o que, aliás, não é reconhecido no art. 4.º do DL n.º 146/93.
X - Respeitando a franquia constante do contrato de seguro referido em VI aos sinistros que apenas dêem lugar ao pagamento de despesas de tratamento e repatriamento, é de considerar que a redução da atribuição patrimonial que a mesma opera não tem aplicação quando esteja em causa a fixação do quantitativo devido pela seguradora em função do grau de invalidez.”
É de referir que, neste caso, o regime jurídico aplicável foi o contido no Decreto-Lei 146/93, de 26 de abril, mas a argumentação poderá ser transposta para o regime atualmente vigente.
- Acórdão de 06-04-2017, Revista n.º 335/10.4TTOAZ.P1.S1 14:
“I - Se para fundar a responsabilidade das seguradoras demandadas o autor invocou na petição inicial um contrato de seguro em regime de co-seguro que vincula todas elas, não fazendo a mínima alusão a um outro contrato de seguro, com âmbito de cobertura diferente, que houvesse sido celebrado apenas com uma delas, e não tendo alterado validamente a causa de pedir no decurso da acção, não pode em sede de recurso invocar como fundamento dos seus pedidos a apólice deste último contrato.
II - No cálculo da indemnização devida por incapacidade permanente resultante dum acidente desportivo será de atender às normas constantes da apólice de seguro de grupo que fora celebrado entre a Associação de Futebol de CC e as seguradoras demandadas, ao abrigo do DL n.º 146/93, de 26/4, diploma que veio estabelecer os termos da reparação dos acidentes sofridos por um atleta amador no exercício da actividade desportiva, e regulamentado pela Portaria 757/93 de 26 de Agosto, quanto à fixação dos capitais mínimos obrigatórios para o seguro desportivo, nas suas várias modalidades.”
Neste caso, estava previsto, nas condições particulares do contrato, para além do mais, que “[s]e o grau de invalidez permanente for [...] inferior a 66 %, será paga à Pessoa Segura uma indemnização na proporção do respectivo grau de invalidez permanente” e “[s]e o grau de invalidez permanente for igual ou superior a 66 %, será considerado exclusivamente para efeitos de indemnização um grau de invalidez de 100 %, sendo pago à Pessoa Segura a totalidade do capital seguro previsto para a respectiva cobertura”, tendo a Relação considerado que o valor a arbitrar a título de invalidez permanente se devia encontrar procedendo a um cálculo aritmético que fizesse equivaler a IPP de 66 % à totalidade do capital garantido.
Foi neste contexto factual que o STJ, no mencionado acórdão, sem expressamente se pronunciar sobre a questão decidenda no âmbito do presente RUJ, deixou escrito: “Argumenta ainda que no artigo 37.º da sua petição inicial refere a fórmula de cálculo da indemnização devida por incapacidade permanente resultante dum acidente e que é proposta pela Relação de Coimbra no seu acórdão de 04 de Abril de 1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XX, tomo II, pág. 23. Mas esta argumentação também improcede, pois trata-se de doutrina aplicável em sede de acidente de viação, onde a questão da reparação da incapacidade permanente se coloca em termos muito diferentes. Na verdade, estando-se perante um acidente ocorrido no âmbito da prática desportiva como atleta amador, cuja reparação está definida no DL n.º 146/93, de 26 de Abril, regulamentado pela Portaria 757/93 de 26 de Agosto, quanto à fixação dos capitais mínimos obrigatórios para o seguro desportivo, nas suas várias modalidades, não pode deixar de se aplicar as regras constantes do contrato de seguro titulado pela apólice de n.º ... que foi celebrado, ao abrigo destes diplomas legais, entre a Associação de Futebol de CC e as seguradoras DD, II, S. A., actual GG, EE-…, e a FF, e que prevê regras próprias para se proceder ao cálculo da indemnização que corresponde a uma incapacidade permanente resultante de um tal acidente. Por isso a mencionada doutrina não pode ser transposta para o presente caso, pelo que improcede esta questão.”
- Acórdão de 07-11-2019, Revista n.º 654/16.6T8ABT.E1.S1 15:
“I - O contrato de seguro desportivo obrigatório regulado no DL n.º 10/2009, de 12-01, pelo menos nas vertentes de cobertura do risco por morte e por invalidez permanente, absoluta ou parcial, assume a natureza de um contrato de seguro de acidentes pessoais inerentes a atividade desportiva.
II - Nessa base, tal contrato pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória, conforme o preconizado no n.º 2 do art. 175.º da Lei do Contrato de Seguro (LCS) aprovada pelo DL n.º 72/2008, de 16-04.
III - Assim, as coberturas dos montantes mínimos de capital devido por morte ou por invalidez permanente, absoluta ou parcial, estabelecidas, respetivamente, nas als. a), c) e d) do art. 16.º do DL n.º 10/2009, devem ser configuradas como prestações de capital predeterminadas em função exclusiva da natureza dessas lesões e do grau de incapacidade fixado no caso de invalidez permanente parcial, independentemente do valor do dano efetivo.
IV - Nesses casos, atender ao valor do dano efetivo, incluindo dos danos não patrimoniais, poderá eclipsar a diferenciação da atribuição patrimonial devida por invalidez permanente absoluta e a devida por invalidez permanente parcial e, no quadro desta, a que for devida em função dos graus de incapacidade fixados, diferenciação essa, de cariz objetivo, que se encontra bem patente no art. 16.º, als. c) e d) do DL n.º 10/2009.
V - Não se afigura, por isso, que as exclusões previstas no art. 6.º desse diploma devam ter um alcance tal que conduzam à obliteração dessa diferenciação legal.
[...]”
Na jurisprudência dos Tribunais da Relação, nesse mesmo sentido, pronunciaram-se diversos arestos16, a saber: RP de 07-04-2016, Processo 335/10.4TTOAZ.P1; RP de 12-10-2020, Processo 6075/15.0T8VNG.P1; RG de 08-07-2020, Processo 489/17.9T8AVV.G1; RP de 24-10-2023, Processo 106/14.9TBARC.P1.
Ainda, especificamente no sentido de que os danos não patrimoniais não deverão ser considerados na determinação do capital devido ao segurado, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça nos Acórdãos acima mencionados.
E na jurisprudência dos Tribunais da Relação, para além dos arestos também já acima citados, pronunciaram-se ainda os seguintes Acórdãos17: RL de 12-05-2016, Processo 660/13.2TVLSB.L1-2; RE de 11-04-2019, Processo 654/16.6T8ABT.E1; RL de 25-03-2021, Processo 2490/15.8T8CSC.L1-2.
3.2 - Por sua vez, no sentido do acórdão fundamento - de que o capital devido ao segurado em caso de invalidez permanente parcial é determinado em função do valor do dano efetivo sofrido pelo lesado, apresentando como limite o capital mínimo legalmente estipulado (ou o capital convencionado, se superior) - pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça:
- No Acórdão de 09-05-2019, Revista n.º 1751/14.8TBVCD.P1.S1 18:
“I - A alínea d) do art. 16.º do DL n.º 10/2009, de 12-12, ao estabelecer como montante mínimo de capital para o caso de invalidez permanente parcial “25000 euros, ponderado pelo grau de incapacidade fixado”, deve interpretar-se no sentido de que determina, tão-só, o montante máximo de capital devido pela seguradora.
II - A compensação devida ao segurado deverá atender aos danos não patrimoniais decorrentes de um acidente pessoal inerente à actividade desportiva.
III - As cláusulas constantes das condições gerais ou das condições particulares de uma apólice de seguro desportivo obrigatório por que se estipule que as indemnizações por lesões corporais serão calculadas sem ser tomada em linha de conta a actividade profissional da pessoa segura são nulas por aplicação conjugada do art. 6.º do DL n.º 10/2009, de 12-01, e do art. 294.º do CC.”
Na jurisprudência dos Tribunais da Relação, nesse mesmo sentido, pronunciou-se o Acórdão da RG de 03-10-2019, Processo 225/17.0T8CBC.G1 19;
E, no sentido da atendibilidade dos danos não patrimoniais (com o mencionado limite máximo), pronunciaram-se os seguintes Acórdãos do STJ:
- de 09-05-2019, Revista n.º 1751/14.8TBVCD.P1.S1, já acima mencionado e transcrito o respetivo sumário;
- de 04-10-2018, Revista n.º 4575/15.1T8BRG.G1.S1 20:
“I - O acidente sofrido pelo autor quando jogava futebol nas instalações da 1.ª ré está coberto pelo contrato de seguro celebrado com a 2.ª ré, cujo objecto abrange a actividade desportiva explorada pela tomadora do seguro nas infra-estruturas públicas - art. 5.º do DL n.º 1/2009, de 12-01.
II - O valor de € 12 500 mostra-se adequado a compensar os seguintes danos não patrimoniais, em consequência da rotura do tendão de Aquiles: o autor teve dores e traumatismos psíquicos, a saber, sujeição a exames e tratamentos, a internamento hospitalar, a imobilização em casa com a perna engessada, a prejuízo estético, a perda de capacidade e a perda de alegria de viver.
III - O valor de € 12 713,33 mostra-se adequado a indemnizar os seguintes danos patrimoniais: (i) o autor ficou com défice funcional de 3 pontos; (ii) as sequelas são impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual ou de outra na área de preparação técnico-profissional; (iii) exigem esforços acrescidos em tarefas não laborais; (iv) atenta a sua idade, o autor tem período previsível de vida de cerca de 36 anos; (v) suportou os valores de € 106,18 em medicação, € 60, em consulta de ortopedia, € 8,36 em relatórios clínicos e de alta, € 160,18 em consulta de ortopedia e medicação e € 150 em relatório de avaliação da incapacidade.”
- de 20-06-2017, Revista n.º 343/10.5TBVLN.G2.S1 21:
“I - Os danos sofridos pelo autor encontram-se incluídos no âmbito de cobertura do contrato de seguro celebrado entre a seguradora e o 2.º réu.
II - A posição da recorrente da exclusão do seguro dos danos sofridos pelo autor não é correcta, não só porque contraria os termos da cobertura do seguro imposta pelo DL n.º 10/2009, de 12-01, mas, também, porque dos próprios termos do contrato celebrado pelas partes, a sua responsabilidade não poderá ser excluída, estando, antes, claramente aí incluída.”
- de 29-09-2011, Revista n.º 165/06.8TBGVA.C1.S1 22 que, num caso de acidente desportivo (basquetebol) ocorrido no âmbito do RJSDO então constante do Decreto-Lei 146/93 e de que resultou uma incapacidade permanente geral de 2 %, considerou ser adequado “o montante indemnizatório de € 5000, a título de danos não patrimoniais.”
Na jurisprudência dos Tribunais da Relação, pronunciaram-se, nesse mesmo sentido, os seguintes Acórdãos 23: RC de 08-09-2009, Processo 165/06.8TBGVA.C1 (este no âmbito do antecedente Decreto-Lei 146/93); RL de 09-07-2014, Processo 1118/2002.L1-2 (este no âmbito do antecedente Decreto-Lei 146/93); RG de 08-10-2015, Processo 1449/11.9TJVNF.G1 (este no âmbito do antecedente Decreto-Lei 146/93); RE de 22-10-2015, Processo 42/11.0TBFZZ.E1 (este no âmbito do antecedente Decreto-Lei 146/93); RG de 01-02-2018, Processo 4575/15.1T8BRG.G1; RG de 03-10-2019, Processo 225/17.0T8CBC.G1; RG de 28-11-2019, Processo 2541/17.1T8BCL.G1; RG de 14-05-2020, Processo 641/11.0TBCMN.G1; RE de 30-01-2020, Processo n~8818/17.9T8STB.E1.
4 - Feita a mencionada resenha cumpre apreciar e tomar posição.
Será a prestação garantida pelo art. 16.º, al. d), do Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro, uma prestação que, atendendo ao grau de incapacidade fixado, tem como parâmetro de cálculo um valor predeterminado ou, ao invés, o efetivo montante do dano?
4.1 - A fixação do sentido e alcance da norma em análise depende necessariamente do resultado da atividade interpretativa desenvolvida a seu respeito.
Para tanto, há que lançar mãos dos fatores hermenêuticos previstos no art. 9.º do CC24, apelando aos elementos gramatical, teleológico (consistente no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), sistemático (que compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo em que se integra a norma interpretanda) e histórico (que abrange elementos relativos à história do preceito, desde logo a história evolutiva do regime em causa) 25. De acordo com o comando previsto no art. 9.º do CC, há que partir da letra da lei - do seu enunciado linguístico - para perscrutar o pensamento (espírito) que lhe está subjacente, funcionando o elemento gramatical simultaneamente como limite, uma vez que não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei o pensamento legislativo “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2 do art. 9.º do CC) 26.
4.2 - No caso, o elemento gramatical da lei, aponta, a nosso ver, e de modo muito incisivo, no sentido da interpretação acolhida no acórdão recorrido, ajustando-se, quanto a nós de forma clara, ao entendimento de que a atribuição patrimonial da seguradora deverá ser calculada tendo por referência um coeficiente numérico - que materializa a ponderação do grau de incapacidade fixado - multiplicado pelo valor do capital garantido pela apólice a que se reporta o art. 16.º (€25.000,00, atualizável nos termos do art. 18.º, ou superior, se convencionalmente acordado).
Com efeito:
Está em causa o sentido a atribuir ao segmento “ponderado pelo grau de incapacidade fixado” a que se reporta a alínea d) do citado art. 16.º
Podemos dizer que, entre outros sentidos que não relevam ao caso, grau é “uma unidade de medida” 27, ou “cada uma das partes em que se divide uma escala” 28, ou, em medicina, “a gravidade relativa da lesão” 29.
O grau de incapacidade, em sentido corrente ou no que a ele, habitualmente, se associa, designadamente pelo cidadão normal, medianamente instruído e sagaz, é a medida da falta de capacidade, medida essa representada por uma expressão numérica.
E é também o que resulta da utilização, pelo art. 16.º do RJCSD, do conceito de “invalidez”, o qual nos remete para o conceito previsto no Decreto-Lei 187/2007, de 10.05 30, diploma que define e regulamenta o regime jurídico de proteção nas eventualidades de invalidez e velhice do regime geral de segurança social, em que tal terminologia é utilizada, nele se ponderando os graus de incapacidade em função de um determinado coeficiente numérico, conforme infra melhor se explicitará.
Por fim, se tivesse sido outro o entendimento do legislador, certamente que outra seria a redação da norma, designadamente dizendo-se que na invalidez permanente parcial a atribuição do capital seria feita em função da ponderação do dano efetivo, sendo certo que dano efetivo e incapacidade são realidades distintas, sendo aquele mais amplo do que esta.
Em suma, afigura-se-nos que o elemento literal - “grau de incapacidade fixado” previsto no art. 16.º, al. d) - não pode deixar de estar associado aos mencionados conceitos de invalidez /incapacidade e a uma representação numérica (grau), numa escala de 0 a 100 (sendo que 100 corresponde à invalidez absoluta), determinando tal preceito que a ponderação seja feita tendo em conta esse coeficiente/grau de incapacidade e, não, outros fatores relativos ao dano efetivo, traduzindo uma ponderação proporcional e objetiva, em função desse concreto grau de incapacidade aplicado ao montante máximo de capital garantido em caso de invalidez absoluta (que é igual ao da morte).
No sentido da interpretação que preconizamos pronuncia-se FRANCISCO RODRIGUES ROCHA 31 ao dizer que “[a] lei é também clara no sentido de que o cálculo do pagamento do capital de €25.000, no caso de invalidez permanente parcial, é feito não em função do efectivo dano, mas do “grau de incapacidade fixado” (artigo 6.º d) do RJSDO), ou seja, por valor predeterminado não dependente do efectivo montante do dano (artigo 175.º/2 do RJCS). À mesma conclusão chegamos em caso de morte ou invalidez permanente absoluta: os capitais são, em ambos os casos, de €25.000 e em nenhum deles se manda ter em conta o montante efectivo do dano: não é necessário o cálculo em função do grau de incapacidade pelo simples facto de estarmos perante eventos que esgotam o capital seguro”.
E, ainda de acordo com elemento literal, acompanhamos também o Acórdão do STJ de 07.11.2019 32, já acima mencionado, quando diz que é “[d]e salientar que o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei 10/2009, de 12-01, tal como o artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do antecedente Decreto-Lei 146/93, de 26-04, estabelece a cobertura mínima abrangida pelo seguro desportivo para o pagamento de um capital (sublinhado nosso) por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva, o que se afigura não equivaler, juridicamente, a pagamento de indemnização propriamente dita em função do dano efetivo ainda que limitada àquele capital” 33.
4.2 - Quanto à específica teleologia do contrato de seguro em apreço, sublinha Ana Brilha “preocupação universal das sucessivas Leis de Bases do Desporto, a institucionalização de um sistema de seguro obrigatório visa cobrir os riscos a que estão sujeitos os praticantes desportivos e os demais agentes desportivos procurando garantir a existência de meios financeiros para que aqueles possam fazer face às despesas em que tenham de incorrer com tratamentos ou facultando o pagamento de um valor relativo a morte ou invalidez permanente, total ou parcial.” 34
Segundo o que dispõe o art. 5.º, n.º 1, do RJSDO, “o seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respectiva actividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respectivas deslocações, dentro e fora do território português.”
Inserindo-se no âmbito não vida, a doutrina não é unânime relativamente à qualificação do seguro desportivo: enquanto ANA BRILHA o configura como um misto de seguro de pessoas e de bens - uma vez que visa cobrir danos provocados por eventos que afetam a vida, a saúde ou a integridade física dos agentes desportivos, mas igualmente os riscos derivados de qualquer evento que provoque danos no património do segurado (como é o caso da cobertura de despesas de tratamento e internamento do agente desportivo35) -, PAULO CARDOSO DE MOURA, perspetiva-o como um seguro pessoal ou sobre pessoas. 36 Como sublinha este autor, “os seguros pessoais, também designados como seguros sobre pessoas, têm como objectivo cobrir os riscos que incidam sobre a integridade física ou corporal das pessoas, sendo fundamentalmente seguros de capitais, o que significa que a indemnização não é calculada em função do dano concreto.” 37
FRANCISCO RODRIGUES ROCHA salienta que se trata “de um seguro próximo do de acidentes de trabalho, de tal modo que o artigo 13.º da versão originária do RJSDO previa em relação àquele a sua natureza complementar. Todavia, com ele não se confunde: um agente desportivo (artigo 7.º do RJSDO) não tem de estar ligado ao tomador do seguro desportivo - v. g. uma federação - por um contrato de trabalho e, consequentemente coberto pelo correspondente seguro de acidentes; o mesmo vale para um praticante desportivo no regime de alto rendimento.” 38 39
E, segundo o mesmo autor, que alinha pela tese defendida pelo acórdão recorrido, o seguro desportivo assume uma natureza mista ou híbrida, compreendendo, quanto ao capital devido por morte ou invalidez permanente, absoluta ou parcial, de prestações de valor predeterminado, não dependentes do montante efetivo do dano, características dos seguros de capitais e abrangido pelos arts. 175.º e 210.º da LCS, e prestações indemnizatórias, características dos seguros de danos (no caso de despesas de funeral, de tratamento e repatriamento) 40.
A nosso ver, o elemento teleológico da norma compagina-se com uma e outra tese. Cremos que a justificação social da lei41 que criou um seguro desportivo, a que acima já se fez referência - e que diretamente se prende com a garantia de meios financeiros ao lesado, através do mecanismo de socialização do risco - admite a liquidação por parte da seguradora de um capital seguro calculado por qualquer uma das formas.
Com efeito, não acompanhamos o argumento, que se encontra subjacente ao acórdão fundamento, de que o elemento teleológico impõe uma interpretação da norma em causa no sentido de que o apuramento do montante de capital devido ao segurado seja determinado pela extensão do dano. E isto porque a interpretação contrária - de que o cálculo daquele montante tem como parâmetro referencial o montante de capital estabelecido para o caso de invalidez permanente parcial - não deixa o lesado numa situação de ausência de tutela. Esta é conferida em função, e de modo proporcional, ao concreto grau de incapacidade tendo como referência o capital máximo previsto para uma situação de invalidez absoluta, ou seja, de incapacidade absoluta, de 100 % (ou morte), não deixando o beneficiário totalmente desprotegido, correspondendo a medida da proteção, de forma objetiva e proporcional, à medida da sua incapacidade tendo como referência o limite do capital máximo que o legislador entendeu ser o devido para os casos de maior gravidade (morte ou invalidez permanente absoluta).
4.3 - Já quanto ao elemento sistemático, assume ele, a par do elemento gramatical, um caráter decisivo na obtenção de um resultado interpretativo útil nesta sede.
Como destaca Oliveira Ascensão, a interpretação deve ter em conta “a unidade do sistema jurídico” (art. 9/1 do Código Civil). Repetidamente acentuámos já que toda a fonte se integra numa ordem, que a regra é modo de expressão dessa ordem global. Por isso a interpretação duma fonte não se faz isoladamente, quiçá atendendo a um texto como se fosse válido fora do tempo e do espaço. Resulta pelo contrário da inserção desse texto num contexto dado.” 42
Ora, o âmbito das relações que se estabelecem entre as normas, perfilam-se as relações de conexão. Com efeito, “nenhum preceito pode ser interpretado isoladamente do contexto. É natural que cada trecho duma lei surja como um momento do desenrolar lógico dum plano; não se presume colocado casualmente dentro daquele conjunto. Cada número dum artigo só é compreensível se o situarmos perante todo o texto do artigo, cada artigo perante os que o antecedem ou imediatamente o seguem. Atender ao contexto é situar uma disposição.” 43
PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA salientam o contributo dos “lugares paralelos”, que compreendem as disposições reguladoras de problemas ou institutos afins dos disciplinados pela norma cujo sentido se pretende fixar, afirmando que “sempre que aquelas disposições sejam mais claras e explícitas do que esta norma, nada impede que as utilizemos como elemento de interpretação, pois é de presumir que o legislador seja uma pessoa coerente, que para problemas afins ou análogos, consagre disciplinas afins ou análogas também” 44.
A utilização do termo “invalidez” nas alíneas c) e d) do artigo 16.º do RJCSD não pode, pois, ser interpretada sem ter presente o conceito de invalidez previsto no já acima citado Decreto-Lei 187/2007, de 10.05, que, como vimos, define e regulamenta o regime jurídico de proteção nas eventualidades de invalidez e velhice do regime geral de segurança social, em que tal terminologia é utilizada, e nos termos do qual:
- “Integra a eventualidade invalidez toda a situação incapacitante de causa não profissional determinante de incapacidade física, sensorial ou mental permanente para o trabalho”, considerando-se como “situação incapacitante de causa profissional a que resulta de acidente de trabalho ou de doença profissional (art. 2.º, n.os 1 e 3) e sendo a situação de invalidez “certificada pelo sistema de verificação de incapacidades em função da incapacidade permanente para o trabalho apresentada pelo beneficiário, nos termos definidos por lei” (art. 17.º, n.º 2).
- A invalidez permanente absoluta ocorre quando se verifica uma situação de “incapacidade permanente e definitiva para toda e qualquer profissão ou trabalho em que o beneficiário não apresente capacidades de ganho remanescentes”, nem se presuma que venha a recuperar, até à idade legal de acesso à pensão de velhice, a capacidade de obter quaisquer meios de subsistência (art. 15.º), correspondendo, pois, a um grau de incapacidade de 100 %. E a invalidez permanente relativa [que corresponde à “invalidez permanente parcial” na terminologia do art. 16.º, al. d), do RJCSD] ocorre quando o beneficiário “em consequência de incapacidade permanente, não possa auferir na sua profissão mais de um terço da remuneração correspondente ao seu exercício normal” (art. 14.º, n.º 1).
Ou seja, serve o referido para daí se concluir que os graus de incapacidade que integram o conceito de invalidez são expressos por um determinado coeficiente numérico, fazendo-se a ponderação em função dos mesmos.
Por outro lado, a fixação do sentido interpretativo do segmento “ponderado pelo grau de incapacidade” da alínea d) do artigo 16.º do RJCSD não pode deixar de ter em conta o que, como tal e com esse sentido, é utilizado em legislação conexa ou com alguma proximidade ao RJCSD, tendo em conta a unidade e harmonia da ordem jurídica e da sua terminologia.
Reportamo-nos, concretamente, ao regime jurídico em matéria de reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho, aprovado pela Lei 98/2009, de 04.09 (regime geral), que sucedeu à Lei 100/97, de 13.09 e, esta, à Lei 2127, de 03.08.65, e aos regimes específicos de acidentes de trabalho dos praticantes desportivos profissionais, então constante da Lei 27/2011, de 16.06 (bem como da Lei 48/2023, de 22.08, que lhe sucedeu), e dos trabalhadores independentes constante do Decreto-Lei 159/99, de 11.05.
Em todos eles, tal como nos regimes que os antecederam, visa-se o risco do exercício de uma determinada atividade, em todos foi instituído um regime de seguro obrigatório e, no que ora importa, em todos eles a reparação assenta num determinado grau de incapacidade numericamente expresso e avaliado de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades (TNI) respetiva (aprovada pelo Decreto-Lei 352/2007, de 2007, de 23.10, Anexo I, diploma que também aprovou a Tabela Indicativa para a Avaliação da Incapacidade em Direito Civil - Anexo II). Como decorre do art. 21.º da citada Lei 98/2009, embora reportada aos acidentes de trabalho: “1 - O grau de incapacidade resultante do acidente define-se, em todos os casos, por coeficientes expressos em percentagens e determinados em função da natureza e da gravidade da lesão, do estado geral do sinistrado, da sua idade e profissão, bem como da maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível e das demais circunstâncias que possam influir na sua capacidade de trabalho ou de ganho. 2 - O grau de incapacidade é expresso pela unidade quando se verifique disfunção total com incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho. [...].3 - O coeficiente de incapacidade é fixado por aplicação das regras definidas na tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais, em vigor à data do acidente. [...]”.
E, também de acordo com a avaliação do dano em direito civil este é, nos termos da respetiva Tabela (Anexo II ao Decreto-Lei 352/2007), graduado por pontos, ou seja, traduzindo uma representação numérica da incapacidade.
4.4 - Acresce que, neste conspecto, e como fez notar o acórdão do STJ de 07-11-2019 45, a interpretação da norma em causa nos moldes defendidos pelo acórdão fundamento redundaria na anulação da diferenciação legalmente estabelecida entre a atribuição patrimonial devida pela seguradora em situação de invalidez permanente absoluta e a devida em caso de invalidez permanente parcial e, no quadro desta, entre as exigíveis em função dos diversos graus de incapacidade fixados.
Com efeito, a adoção de tal entendimento permite que um lesado que apresente uma invalidez permanente absoluta venha a receber da seguradora um capital igual a outro lesado que apresente um grau de invalidez permanente substancialmente mais baixo, determinativo, de forma típica, de um dano patrimonial efetivo inferior.
A interpretação normativa propugnada pelo acórdão fundamento para além de, em nossa perspetiva, desconsiderar a imprescindível unidade do sistema jurídico, poderá bulir com o princípio da igualdade na aplicação do direito, que, como sublinha Gomes Canotilho 46, é uma das dimensões básicas do princípio da igualdade constitucionalmente garantido (art. 13.º da CRP). Tal entendimento, segundo cremos, não dá cumprimento à exigência de obtenção de uma igualdade material, tratando de forma igual - através da concessão de valores de capital equivalentes - situações de incapacidade permanente desiguais.
5 - O recorrente argumenta que a solução defendida pelo acórdão recorrido viola “os direitos constitucionalmente protegidos dos praticantes de desporto, nomeadamente o direito à saúde e o direito à integridade física, plasmados no artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil, em conjugação com o artigo 25.º, da Constituição da República Portuguesa.”
Anote-se que o princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição “é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição” (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 426);
Ainda que se defenda - não é o nosso caso, como se procurou demonstrar - que a utilização dos vários elementos interpretativos não permite uma obtenção de um sentido inequívoco a respeito do alcance da norma do art. 16.º, al. d), do RJSDO, e se advogue que, nesta situação, o princípio da interpretação conforme a Constituição deverá assumir relevância autónoma, entendemos que a posição sustentada pelo acórdão recorrido neste particular não se revela contrária ao texto ou ao programa do art. 25.º, n.º 1, da CRP.
Sendo insofismável que o direito à integridade física vale contra o Estado, repercutindo-se no plano da legislação, a interpretação normativa que ora se propugna salvaguarda o núcleo irredutível do direito em causa (art. 18.º, n.º 2, da CRP) porque não implica que o praticante desportivo que enfrente uma situação de invalidez permanente parcial fique sem tutela patrimonial. O modo de cálculo de tal tutela, nos termos descritos, ao abstrair-se do quantum do dano efetivamente sofrido, não poderá ser configurado como uma restrição desproporcional ou arbitrária do direito à integridade física do lesado desportivo, tendo em conta que se funda num critério materialmente fundado - supra explicitado - e que a lógica da cobertura em causa escapa ao princípio indemnizatório da ressarcibilidade integral do dano. Isto acontece, de resto, com todos os casos em que, no âmbito do contrato de seguro de pessoas, sejam garantidas prestações de valor predeterminado, não dependentes do efetivo montante do dano, tal como admitido no n.º 2 do art. 175.º do RGCS.
A este propósito, é também de chamar novamente à colação o regime jurídico em matéria de reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho, aprovado pela Lei 98/2009, de 04.09, em que, conforme o seu art. 23.º, para além da reparação em espécie (contemplando as prestações necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e da sua recuperação para a vida ativa) 47, se prevê também a reparação em dinheiro (“indemnização” pelas incapacidades temporárias e “pensão anual e vitalícia” ou correspondente “capital de remição”, pelas incapacidades permanentes), esta, porém, limitada ao dano patrimonial decorrente da perda da capacidade de ganho, calculada mediante a aplicação do coeficiente de desvalorização/grau de incapacidade à remuneração anual do sinistrado, com abstração de outras componentes que poderão integrar o dano efetivo, mormente o habitualmente designado dano biológico e os danos não patrimoniais, como decorre dos arts. 19.º, 20.º, 21.º, 23.º, alínea b) e 48.º da citada Lei.
E só assim não será nos casos em que, conforme o seu art. 18.º, n.º 1, o acidente de trabalho haja sido provocado pelo empregador (ou demais entidades referidas no preceito) ou resultar de falta de observação, pelos mesmos, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, situações em que “a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais”, isto é, caindo no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito prevista no domínio do Código Civil 48 e na qual não se enquadra o regime previsto no RJSDO.
Igualmente o regime jurídico da reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho dos praticantes desportivos profissionais então constante da Lei 27/2011, de 16.06 (bem como da Lei 48/2023, de 22.08, que lhe sucedeu), prescindem, no cálculo da reparação, da consideração do dano efetivo, atendendo apenas a fórmulas aritméticas tendo por base o grau/percentagem de incapacidade.
E assim também no âmbito do seguro obrigatório de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes, regulamentado pelo Decreto-Lei 159/99, de 11.05.
Em suma, serve o referido para salientar, por um lado, que o uso da expressão, “ponderação pelo grau de incapacidade fixado”, se prende, nos regimes jurídicos apontados, com um concreto coeficiente (numérico) de incapacidade, não se afigurando que outra deva ser a interpretação da expressão no contexto do art. 16.º, al. d), do RJSDO, sob pena de perda da unidade e harmonia da ordem jurídica e da interpretação da terminologia e conceitos legalmente utilizados.
E serve também para demonstrar que a não atendibilidade, pelo art. 16.º, al. d), do RJSDO, de outras componentes do dano que não o grau de incapacidade em que se traduz a invalidez parcial (na terminologia do citado preceito) não constitui regime estranho à ordem jurídica, vigorando igualmente em sede da reparação devida por acidentes de trabalho. Não se pode, igualmente, deixar de notar a alguma afinidade da reparação existente entre os sinistros sofridos pelo praticante desportivo amador e os acidentes de trabalho, designadamente o acidente de trabalho sofrido pelo praticante desportivo profissional.
É certo que a proteção é maior no que respeita aos trabalhadores abrangidos pelo regime legal dos acidentes de trabalho (quer dos trabalhadores em geral, quer dos praticantes desportivos profissionais), diferença que assenta na ratio subjacente ao regime mencionado [dispensando-nos de aprofundar a sua teleologia, a diversidade dos regimes resulta essencialmente da circunstância de o acidente de trabalho ter por base uma relação de trabalho entre o tomador do seguro/ “empregador” e o “trabalhador” beneficiário 49].
Mas, quer no contrato de seguro desportivo, quer no contrato de seguro de acidentes de trabalho, o legislador entendeu ser de conferir a proteção dos danos decorrentes do sinistro tendo em conta o “grau de incapacidade”.
E, em ambos os casos o legislador abstraiu do dano efetivo, ainda que partindo de bases de cálculo distintas: no RJCSD tendo por base um capital previamente definido (no montante que teve por adequado), e, nos regimes dos acidentes de trabalho, tendo por base a remuneração do trabalhador (e uma dilatação no tempo da reparação por via do estabelecimento de uma pensão vitalícia ou, em substituição, de um capital de remição - cf. arts. 48.º, n.º 3, al. alínea c) e 75.º da Lei 98/2009 50).
Por fim, pelas mesmas razões, também entendemos que a interpretação em causa não provoca o esvaziamento do objeto do contrato de seguro, vedada pelo art. 6.º do RJSDO, sendo a reparação pela incapacidade maior ou menor em consonância, e de modo objetivamente proporcional, ao grau dessa incapacidade e tendo como referência, em ambos os casos, a situação mais grave, de invalidez permanente absoluta (e morte) 51.
6 - Cremos, em suma, que a revelação do sentido da norma constante da alínea d) do art. 16.º do RJSDO, a partir dos elementos de interpretação - especialmente dos seus elementos gramatical e sistemático - aponta para que a atribuição patrimonial a cargo da seguradora seja contabilizada através de um cálculo, de cariz objetivo e desprovido de natureza indemnizatória.
Note-se ainda que, no âmbito do seguro desportivo obrigatório em apreço, a atribuição do capital não depende de o dano ter sido causado por facto ilícito e culposo de outrem, bastando, para acionar o seguro, que tenha ocorrido um acidente pessoal inerente aos riscos decorrentes da prática da atividade desportiva (cf. art. 5.º, n.º 1, do RJSDO).
O direito ao capital seguro não assenta, pois, na responsabilidade civil extracontratual, de onde decorra a ressarcibilidade do dano efetivo, mas sim na responsabilidade contratual emergente do contrato de seguro (obrigatório), nos moldes neste previstos (sem prejuízo de as entidades obrigadas à contratação do seguro responderem nos moldes previstos no RJCSD em caso de incumprimento dessa contratação - art. 20.º).
A este propósito, são pertinentes as seguintes considerações de Francisco Rodrigues Rocha 52:
“[...] no seguro desportivo não é a responsabilidade que é coberta, que pode nem existir. [...]. Contribui, ainda, ao entendimento a que nos opomos a confusão frequente entre responsabilidade civil e seguro. [...]. O problema reside, sim, em transpor-se, sem mais, para o seguro uma regra da responsabilidade civil. O seguro é um contrato, com base no qual, verificado o sinistro, se constitui na esfera do segurador um dever de “realizar a prestação convencionada (artigo 1.º do RJCS), que é um dever primário de prestar, não secundário de indemnizar. [...].
É por fim importante para compreender a tese contrária, ter em conta a dimensão sinépica do problema. Se o virmos doutro prisma, notamos que os tribunais portugueses procedem, na verdade, a correcções. Em causa está, as mais das vezes, a cobertura do risco de invalidez permanente parcial - em geral variável mas via de regra abaixo de 15 % [...]. A forma de cálculo da prestação segura pela referida invalidez leva a que os lesados percebam um montante relativamente parco, em comparação com o que receberiam caso fosse a prestação da seguradora de jaez indemnizatório. [...]. É verdade que os mínimos legais são, passe a redundância, mínimos, baixos, mas há, todavia, limites para sua correcção. As apólices acolhem e baseiam-se na solução legal. A fonte da injustiça reside, portanto, não na prática seguradora, mas na lei e, consequentemente, no legislador.” [realce a negrito da nossa autoria]
Assim também no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 07.11.2019 (Proc. 654/16) já acima citado, em que se diz: “[p]oderá discutir-se, de jure condendo, se não seria mais adequado ou justo atender ao dano efetivo como fator complementar na fixação da prestação devida, mas o certo é que este fator não foi erigido como critério legal, nem era imperioso que o fosse, tanto mais que o contrato de seguro de pessoas pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano, como se preconiza no artigo 175.º, n.º 2, da LCS.”
Por outro lado, a exclusão da reparação do dano efetivo não é exclusivo do RJSDO. E, tendo em conta a alguma similitude entre os regimes dos acidentes de trabalho dos trabalhadores em geral e dos acidentes de trabalho do praticante desportivo profissional, afigura-se-nos que a não atendibilidade do dano efetivo é a interpretação que melhor se coaduna com a unidade e harmonia do sistema jurídico.
Na verdade, dificilmente se compreenderia que, no âmbito de um acidente de trabalho sofrido por um trabalhador ou, mormente, de um acidente de trabalho desportivo sofrido por desportista profissional, não seja contemplado o dano efetivo (incluindo o dano não patrimonial), mas o seja em acidente desportivo sofrido por desportista amador. Frise-se que, com todo o respeito por entendimento diferente, o eventualmente baixo montante do capital devido em caso de acidente de que resulte uma invalidez permanente parcial, de pequeno grau, não se nos afigura, pelos motivos já expostos, que constitua, à revelia do RJSDO, motivo fundado ou suficiente para diferente interpretação. O baixo montante do capital a receber decorre, como já referido, da menor incapacidade, aliado ao capital mínimo obrigatório previsto no seu art. 16.º para os casos mais graves, sendo-lhe proporcional. Não parece, pois, aceitável que um beneficiário, com uma invalidez permanente parcial menor, pudesse vir a receber, por via da atendibilidade de outros fatores que não o concreto grau de incapacidade, um capital igual ou próximo do capital máximo legalmente previsto àquele que o beneficiário com uma invalidez absoluta, de 100 %, tem direito (sem atendibilidade, pois, de qualquer outro fator que não uma incapacidade de 100 %). E, concretamente no que aos danos não patrimoniais se reporta, que um beneficiário com um grau de incapacidade inferior, possa ser “ressarcido” pelos danos não patrimoniais até ao limite do capital previsto no art. 16.º, mas um beneficiário com uma invalidez permanente absoluta, em que certamente tais danos serão superiores, não o possa ser na medida em que viu atingido o limite máximo desse capital.
Cremos também não ser de acolher o argumento da tese sufragada no acórdão fundamento de que o RJSDO, mormente o citado art. 5.º 53, não faz a distinção ou restrição quanto à natureza dos danos. A atendibilidade do dano consubstanciado apenas no grau/percentagem de invalidez permanente (absoluta e parcial) nos termos que já apontámos, é feita pela conjugação desse art. 5.º com o art. 16.º, preceito este que expressamente estipula as garantias mínimas previstas que são objeto do contrato de seguro a que o n.º 2 do art. 5.º se reporta.
Acresce que se do preâmbulo do Decreto-Lei 10/2009 não resulta a inatendibilidade do dano efetivo, dele também não resulta que este deva ser tido em conta. O que dele decorre é que, visando embora “cobrir os riscos através da instituição do seguro obrigatório”, tal cobertura tem, contudo e apenas, a extensão que o diploma fixou no seu texto, concretamente a prevista no seu art. 16.º, do qual resulta, nos termos já apontados, a exclusão da ponderação do dano efetivo.
Aliás, a própria expressão “dano” não é sequer utilizada seja no texto do Decreto-Lei 10/2009, seja no seu preâmbulo, antes se aludindo apenas aos “riscos” da atividade, à previsão do pagamento de “um capital” [nos montantes fixados nos termos do art. 16.º, als. a), c) e d)] para cobertura dos “riscos de acidentes pessoais”, ao “grau de incapacidade fixado” e a uma ponderação de acordo com esse grau. E, por outro lado, os conceitos de dano e de “capital” não são confundíveis.
O cálculo do capital devido em caso de invalidez parcial deverá, pois, ser unicamente parametrizado pelo montante mínimo de capital previsto no art. 16.º (ou superior, se contratualmente previsto), ponderado o grau de incapacidade fixado ao lesado, sendo-lhe espúria a contabilização do valor do dano patrimonial e não patrimonial efetivo sofrido.
Em suma, acompanhamos o entendimento do Acórdão recorrido e do citado Acórdão do STJ de 07.11.2019 (Processo 654/16) de acordo com o qual a obrigação do pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva a que se reportam os arts. 5.º, n.os 1 e 2, e 16.º, als. a), c) e d), do RJSDO emerge de «um “contrato de seguro de pessoas” que, nos termos conjugados dos artigos 175.º, n.º 1, e 210.º da Lei do Contrato de Seguro (LCS), aprovado pelo Decreto-Lei 72/2008, de 16-04, cobre o risco da verificação de lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, ou morte da pessoa segura, por causa súbita, externa e imprevisível. E, conforme se dispõe o n.º 2 do indicado artigo 175.º, tal contrato pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória.»
7 - Especificamente quanto à questão da atendibilidade, ou não, dos danos não patrimoniais e da fixação de uma compensação pelos mesmos, agora autonomizada para efeitos de decisão no presente recurso, foi a mesma e, como se viu, objeto de ampla dissensão jurisprudencial:
No sentido da sua atendibilidade, o acórdão fundamento, na linha do que já havia sido defendido pelo mencionado acórdão do STJ de 09-05-201954, sustentou que a lei não distingue entre o dano patrimonial e o dano não patrimonial e que, reconduzindo-se o seguro desportivo a um seguro de acidentes pessoais, os danos corporais são nesta sede considerados como danos não patrimoniais. Acrescentou o acórdão fundamento que, sendo o contrato de seguro omisso sobre o tipo de danos a ressarcir, deve prevalecer o sentido mais favorável ao aderente (in dubio contra proferentem ou contra stipulatorem), mais transcrevendo, em abono, a síntese feita por Francisco Rodrigues da Rocha e que já acima deixámos consignada (no ponto V.2.3.2. do presente acórdão).
Decorre porém do que já acima deixámos exposto, para onde se remete, que a reparação dos danos não patrimoniais não está, ao que cremos, abrangida pela cobertura do contrato de seguro conferida pelos arts. 5.º, n.º 2, e 16.º do RJSDO, apenas se relembrando e salientando, em jeito de síntese:
- que, na linha do acórdão recorrido e dos acórdãos do STJ de 08-09-201655 e de 07-11-2019 56, já mencionados, com o que se concorda, o entendimento contrário (sufragado pelo acórdão fundamento) importaria a criação de uma situação de antinomia normativa, que concede ao lesado uma compensação por danos não patrimoniais inversamente proporcional ao grau de invalidez sofrido - compensação essa que acaba por não ter lugar nos casos, mais graves e em que presumivelmente mais acentuados são os danos não patrimoniais sofridos, em que o lesado padece de um grau de invalidez de 100 %;
- que os elementos literal e sistemático de interpretação normativa opõem-se à atendibilidade dos danos não patrimoniais, acompanhando-se FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, que acolhe a orientação perfilhada pelo acórdão recorrido com base na seguinte linha fundamentadora: “o seguro desportivo é, repete-se de pessoas, na modalidade de acidentes pessoais, de maneira que tanto pode compreender, como é o caso, prestações de carácter predeterminado, independentes do valor do dano, quanto indemnizatórias (artigo 175.º/2 do RJCS). A conclusão sobre se sejam de um ou de outro tipo passa pela interpretação das declarações negociais, neste caso balizada pela lei, uma vez que se trata de um seguro obrigatório. Ora, a lei é clara no sentido de que a cobertura por morte e invalidez permanente inclui “o pagamento de um capital” (artigo 5.º/2/a)), não de uma indemnização, diversamente do que sucede com as “despesas” de funeral, tratamento e repatriamento (artigos 5.º/2b) e 16.ºe)). O significado da palavra “capital”, no direito dos seguros, pode ser ambíguo: no RJSDO ela é também usada com o significado de soma segura, mas no artigo 5.º/2 trata-se claramente de prestação de valor predeterminado, também dita de capital, porque antecedida da palavra “pagamento” seguida do artigo indefinido “um”, forma sob a qual raramente aparece com o sentido de forma segura” 57;
- que, ainda que o legislador, nos arts. 5.º, n.º 2, e 16.º do RJSDO, não haja feito expressa referência aos danos patrimoniais e não patrimoniais (não tendo aliás feito qualquer referência à expressão “dano”), a exclusão destes decorre do art. 16.º (com o qual deve ser conjugado o citado art. 5.º, n.º 2);
- que o direito ao capital previsto no art. 16.º assenta na responsabilidade contratual, decorrente do contrato de seguro, e não em responsabilidade extracontratual por facto ilícito, escapando ao princípio indemnizatório da ressarcibilidade integral do dano;
- que no regime de reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho, em que, como já referido acima e para cujas considerações se remete, os danos não patrimoniais, certamente também gerados pelo acidente de trabalho e pela incapacidade permanente dele decorrente, não são ressarcíveis, exceto no quadro de situação enquadrável no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, por facto ilícito (na qual se enquadra a situação prevista no art. 18.º da Lei 98/2009);
- que a não atendibilidade dos danos não patrimoniais não esvazia o conteúdo da proteção prevista no RJSDO (cf. art. 6.º do mesmo), a qual é conferida de modo proporcional ao grau de incapacidade em função do capital máximo previsto para a situação mais grave (incapacidade permanente absoluta), podendo o entendimento contrário bulir com o principio da igualdade constitucionalmente garantido (art. 13.º da CRP), tratando de forma igual - através da concessão de valores de capital equivalentes, designadamente por virtude da atendibilidade dos danos não patrimoniais - situações de incapacidade permanente desiguais, mormente das que mais gravosas se mostrem, excluindo-os até nos casos de incapacidade/invalidez permanente absoluta (em que é atingido o capital máximo legalmente previsto) e em que mais se justificariam.
O entendimento propugnado no acórdão recorrido é, assim, o que mais congruente se afirma com uma interpretação normativa adequadamente valorizadora do princípio da unidade e harmonia do sistema jurídico e do princípio da igualdade, não provocando, como já referido, um esvaziamento do objeto do contrato de seguro proscrito pela norma do art. 6.º do RJSDO, sendo o capital devido, em caso de invalidez permanente parcial, objetivamente proporcional ao grau de incapacidade, nem a violação dos direitos à saúde e à integridade física, consagrados nos arts. 25.º, n.º 1, da CRP e 70.º, n.º 1, do Cód. Civil.
Há, pois e também como já dito, que acompanhar o acórdão do STJ de 07-11-201958 na seguinte asserção: “Poderá discutir-se, de jure condendo, se não seria mais adequado ou justo atender ao dano efetivo como fator complementar na fixação da prestação devida, mas o certo é que este fator não foi erigido como critério legal, nem era imperioso que o fosse, tanto mais que o contrato de seguro de pessoas pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano, como se preconiza no artigo 175.º, n.º 2, da LCS.”
8 - Assim, e em face do que ficou exposto, é de uniformizar a jurisprudência no seguinte sentido:
“1 - O apuramento do capital devido ao segurado, ao abrigo do contrato de seguro desportivo, por situação de invalidez permanente parcial, nos termos do art. 16.º, alínea d), do Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro - determinado em função do grau de incapacidade fixado e tendo como parâmetro o montante mínimo de capital previsto no citado art. 16.º, atualizado nos termos do art. 18.º (ou superior, se contratualmente acordado) -, resulta da multiplicação da percentagem do grau de incapacidade fixado pelo montante desse capital, independentemente do valor do dano efetivo sofrido pelo lesado.
2 - O valor destinado a compensar os danos não patrimoniais sofridos pelo segurado não é considerado na determinação de tal capital.”
9 - Revertendo ao caso concreto, tendo o acórdão recorrido decidido em consonância com a posição adotada pela uniformização efetuada (precedente ponto 8), deverá o mesmo ser confirmado na sua integralidade [tendo o A. sofrido uma invalidez permanente de 2 pontos (numa escala de 100) e sendo de €30.000,00 o capital máximo previsto para a situação de invalidez permanente absoluta, é de €600,00 o capital devido ao Autor/Recorrente em consequência do sinistro sofrido, tal como decidido no Acórdão recorrido].
***
VI. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes que constituem o Pleno das Secções Cíveis e Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Confirmar o Acórdão recorrido;
b) Estabelecer a seguinte uniformização de jurisprudência:
“1. O apuramento do capital devido ao segurado, ao abrigo do contrato de seguro desportivo, por situação de invalidez permanente parcial, nos termos do art. 16.º, alínea d), do Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro - determinado em função do grau de incapacidade fixado e tendo como parâmetro o montante mínimo de capital previsto no citado art. 16.º, atualizado nos termos do art. 18.º (ou superior, se contratualmente acordado) -, resulta da multiplicação da percentagem do grau de incapacidade fixado pelo montante desse capital, independentemente do valor do dano efetivo sofrido pelo lesado.
2 - A cobertura do contrato de seguro mencionado no ponto 1 não abrange a reparação dos danos não patrimoniais sofridos pelo segurado.
Custas do presente recurso pelo recorrente.
Notifique e, após trânsito em julgado, remeta certidão do acórdão para publicação na 1.ª série do Diário da República.
1 Observa-se, na redação da autoria da ora relatora, a ortografia constante do novo Acordo Ortográfico.
2 Pronunciando-se no sentido exposto, vejam-se, a título meramente exemplificativo, os seguintes acórdãos do STJ para uniformização de jurisprudência: de 19-09-2019, Proc. n.º 28438/16.4T8LSB.L1.S1-A; de 12-09-2019, Proc. n.º 2146/16.4T8LRA.C2.S1-A; de 19-03-2019, Proc. n.º 6233/10.4TBCSC.L2.S1-A; de 28-03-2019, Proc. n.º 60/13.4TBCUB.E1.S1-A; de 29-01-2019, Proc. n.º 2303/01.8TVLSB.L2.S1-A; e de 10-01-2019, Proc. n.º 1522/13.9TBGMR.G1.S2-A.
3 Abreviatura de Lei do Contrato de Seguro aprovada pelo DL 72/2008, de 16.04.
4 E não, como refere, “danos não patrimoniais”, o que decorre de lapso manifesto como se constata do confronto com o acórdão ora recorrido e respetivas alegações de revista.
5 De referir que a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho sofridos por praticantes desportivos profissionais rege-se pelo regime jurídico constante da Lei 48/2023, de 22.08, que sucedeu à Lei 27/2011, de 16.06.
6 Francisco Rodrigues Rocha, “Seguro desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais? Sports insurance. Non-financial losses cover?”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, p. 296.
7 De referir que, no caso, não está em causa o regime dos arts. 11.º e 17.º, relativos ao seguro do praticante desportivo de alto rendimento.
8 Processo 654/16.6T8ABT.E1.S1, disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c2fc90ada0263e22802584ab005d6442
9 Atualizável nos termos já indicados.
10 Que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro, adiante designado por LCS (Lei do Contrato de Seguro).
11 Francisco Rodrigues Rocha, “Seguro desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais? Sports insurance. Non-financial losses cover?”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, pp. 306-307.
12 Francisco Rodrigues Rocha, “Seguro desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais? Sports insurance. Non-financial losses cover?”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, pp. 305-306.
13 Com texto integral disponível em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/86F72EF448890B838025802C003C4B79
14 Com texto integral disponível em:
http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3572ffe2b8215652802581000031d8df?OpenDocument
15 Com texto integral disponível em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c2fc90ada0263e22802584ab005d6442
16 Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
17 Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
18 Com texto integral disponível em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/38772505767ab0c3802583f5005910ba?OpenDocument
19 Disponível em www.dgsi.pt.
20 Com texto integral disponível em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/86F72EF448890B838025802C003C4B79
21 Com texto integral disponível em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/2FAD0A9BBC6FE3308025814600553BFB
22 Não publicado.
23 Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
24 Abreviatura de Código Civil.
25 João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1996, pp. 181-184.
26 João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1996, pp. 188-189.
27 Infopédia - Dicionários Porto Editora, In https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/grau.
28 In https://dicionario.priberam.org/grau.
29 In https://dicionario.acad-ciencias.pt/pesquisa/?word=grau.
30 Objeto de alterações posteriores, que ora não relevam.
31 “Seguro desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais?”, em Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano LXI, 2020, Número 2, p. 308.
32 Processo 654/16.6T8ABT.E1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c2fc90ada0263e22802584ab005d6442
33 Sublinhado constante do texto do acórdão.
34 Ana Brilha, “O novo regime do seguro desportivo - Verdadeira inovação”, Desporto & Direito - Revista Jurídica do Desporto, ano VI, n.º 17, janeiro/abril de 2009, Coimbra, Coimbra Editora, p. 293.
35 Ana Brilha, “O novo regime do seguro desportivo - Verdadeira inovação”, Desporto & Direito - Revista Jurídica do Desporto, ano VI, n.º 17, janeiro/abril de 2009, Coimbra, Coimbra Editora, p. 294.
36 Paulo Cardoso de Moura, “Seguros obrigatórios nas actividades desportivas e de lazer”, Desporto & Direito - Revista Jurídica do Desporto, ano III, n.º 8, janeiro/abril de 2006, Coimbra, Coimbra Editora, p. 226.
37 Paulo Cardoso de Moura, “Seguros obrigatórios nas actividades desportivas e de lazer”, Desporto & Direito - Revista Jurídica do Desporto, ano III, n.º 8, janeiro/abril de 2006, Coimbra, Coimbra Editora, p. 226.
38 Francisco Rodrigues Rocha, “Seguro desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais? Sports insurance. Non-financial losses cover?”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, p. 298.
39 O citado art. 13.º, relativo ao seguro do praticante profissional, dispunha que “O seguro desportivo em favor do praticante profissional tem natureza complementar relativamente ao seguro de acidentes de trabalho”, preceito esse que foi revogado pela Lei 27/2011, de 16.06, que aprovou o regime relativo à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho dos praticantes desportivos profissionais e revogou a anterior Lei 8/2003, de 12 de Maio.
40 Francisco Rodrigues Rocha, “Seguro desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais? Sports insurance. Non-financial losses cover?”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, p. 303.
41 A expressão é de José de Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, 13.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2020.p. 414.
42 José de Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, 13.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2020, p. 409.
43 José de Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, 13.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2020, p. 410.
44 Noções Fundamentais de Direito Civil, Volume I, 6.ª Edição revista e ampliada (reimpressão), Coimbra, 1973, p. 166.
45 Processo 654/16.6T8ABT.E1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c2fc90ada0263e22802584ab005d6442
46 J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.º edição, Coimbra, Almedina, p. 426.
47 No RJSDO prevê-se, na alínea e) do art. 16.º, o pagamento das despesas de tratamento e repatriamento até limite dele constante, atualizável nos termos do art. 18.º
48 E já assim era no domínio da Lei 2127, de 03.08.65 (cf. Bases IX, XVI e XVII) e da Lei 100/97, de 13.09 (cf. arts. 10.º, 17.º e 18.º), diplomas que precederam a Lei 98/2009.
49 Por regra um contrato de trabalho, mas sem prejuízo das demais situações equiparadas previstas na citada Lei 98/2009 (cf. art. 3.º, n.º 3).
50 Assim contemplando, parcialmente, a perda do rendimento futuro.
51 E, isso, sem prejuízo das garantias previstas nas als. b) e e) do art. 16.º do RJSDO, relativas a despesas de funeral, de tratamento e de repatriamento.
52 In “Seguro Desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais?”, ob. cit., pp. 311 a 314.
53 O qual, relembrando, dispõe que: “1. O seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respectiva actividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respectivas deslocações, dentro e fora do território português. 2. As coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo são as seguintes: a) Pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva; [...]”
54 Processo 1751/14.8TBVCD.P1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/38772505767ab0c3802583f5005910ba?OpenDocument
55 Processo 1311/11.5TJVNF.G1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/86f72ef448890b838025802c003c4b79?OpenDocument
56 Processo 654/16.6T8ABT.E1.S1, consultável em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c2fc90ada0263e22802584ab005d6442?OpenDocument
57 Francisco Rodrigues Rocha, “Seguro desportivo. Cobertura de danos não patrimoniais? Sports insurance. Non-financial losses cover?”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, pp. 307-308.
58 Processo 654/16.6T8ABT.E1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c2fc90ada0263e22802584ab005d6442
Lisboa, 19.03.2025. - Paula Leal de Carvalho (relatora) - Henrique Antunes - Anabela Luna de Carvalho - Orlando Nascimento - Cristina Coelho - Rui Machado e Moura - Carlos Portela - Arlindo Oliveira - António Pires Robalo - Mário Belo Morgado - Júlio Gomes - Maria da Graça Trigo - Graça Amaral - Maria Olinda Garcia - António Oliveira Abreu - António Moura de Magalhães - José Maria Ferreira Lopes - António Barateiro Martins - Fernando Baptista - Luís Espírito Santo - Ana Paula Lobo - Domingos Morais - Jorge Leal - José Eduardo Miranda Santos Sapateiro - Emidio Santos - Nelson Borges Carneiro - Luis Fernando dos Santos Correia de Mendonça - Maria do Rosário Gonçalves - Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno, vencida pelos motivos do acórdão fundamento - Maria Teresa Albuquerque, votei vencida consoante posição do acórdão fundamento - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - vencida, conforme posição do acórdão de 9 de Maio 2019 (proc. 1751/14.8TBVCD.P1.S1) - Mara Clara Sottomayor, vencida de acordo com declaração que junto - Fátima Gomes, vencida conforme posição do acórdão fundamento - Maria João Vaz Tomé, vencida conforme declaração de voto - Nuno Manuel Pinto Oliveira - vencido, pelas razões deduzidas na fundamentação do acórdão de 9 de Maio de 2019 - processo 1751/14, de que fui relator - Ricardo Costa - votei vencido, subscrevendo as declarações de voto das conselheiras Maria Clara Sottomayor e Maria João Vaz Tomé, na linha do acórdão fundamento.
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Processo 489/17.9T8AVV.G1.S1-A - Recurso para Uniformização de Jurisprudência
Declaração de voto
Vencida quanto ao segmento uniformizador e quanto à decisão do acórdão recorrido, que teria revogado.
Tendo já aposto ao acórdão recorrido, como Adjunta, um voto de vencida, continuo a manter posição coincidente com a do acórdão fundamento, pelos seguintes motivos:
1 - Relativamente ao contrato de seguro desportivo obrigatório, defendo que se trata de um contrato de natureza híbrida que contém regras dos seguros de pessoas e dos seguros indemnizatórios, figuras mistas que aliás são admitidas pelo artigo 175.º, n.º 2, da LCS, quando afirma no n.º 2, que «O contrato se seguro de pessoas pode garantir prestações de valor predeterminado mão dependente do efetivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória». É de destacar, a este propósito, que é o próprio Preâmbulo da Lei que refere a expressão“ressarcimento” («É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo de as vítimas não obterem o ressarcimento»), atribuindo-lhe uma função indemnizatória e que o contrato de seguro dos autos, conforme ilustra a matéria de facto (factos provados n.os 30 e 31), nos artigos 2.º e 3.º, n.º 2.5 das Condições Gerais da apólice de seguro utiliza a expressão “pagamento das indemnizações” e “indemnizações”, não sendo portanto correto, na minha perspetiva, excluir a dimensão indemnizatória das quantias a pagar pela seguradora ao lesado, a título de incapacidade ou invalidez permanente parcial ou total, como sustenta o presente Acórdão Uniformizador.
2 - Em reforço desta tese, não posso deixar de referir o diploma das cláusulas contratuais gerais (DL n.º 446/85, de 25-10) que estabelece uma regra de interpretação das cláusulas ambíguas, de acordo com o sentido mais favorável ao aderente (artigo 11.º, n.º 2, do DL n.º 446/85, 25-10). É o próprio legislador que reconhece que os aderentes beneficiam de uma liberdade contratual meramente formal e não têm poder de negociar previamente as cláusulas do contrato que são fixadas unilateralmente pelo predisponente (in casu, a seguradora), estipulando por isso um conjunto de normas de proteção a favor da parte mais fraca. Ora, no presente caso, o contrato de seguro foi celebrado de acordo com a técnica das cláusulas contratuais gerais, beneficiando o segurado, em relação a cláusulas ambíguas, do sentido mais favorável aos seus interesses, que claramente será o da natureza indemnizatória das prestações a pagar pela seguradora centradas no dano efetivo, seja patrimonial, seja não patrimonial.
3 - Relativamente ao sentido normativo do artigo 16.º, al. d), do DL n.º 10/2009, de 12 de janeiro, faço uma leitura oposta à do Acórdão que fez vencimento, pois entendo que nada na letra da lei e na finalidade da norma - a tutela dos praticantes de desporto amador - impõem que o cálculo do montante a atribuir ao lesado, em cumprimento do contrato de seguro desportivo obrigatório, se faça de acordo com um modelo estritamente matemático apenas baseado na multiplicação do grau de incapacidade pelo capital mínimo obrigatório, assim excluindo todo e qualquer juízo de apreciação casuística do julgador. Em sentido contrário, a letra da lei aponta para um juízo de ponderação, referindo que em caso de invalidez permanente parcial o capital é de “25000 euros, ponderado pelo grau de incapacidade fixado”. A expressão “ponderado” remete para um juízo casuístico do julgador e não para um critério matemático (este, não é ponderado, mas calculado), como entendeu o Acórdão que fez vencimento. Assim, em caso de invalidez parcial, julgo mais conforme ao texto da lei, aos interesses que a lei visa proteger e aos valores cimeiros da ordem jurídica (os direitos à saúde, à liberdade e à integridade pessoal) que o capital a pagar ao segurado seja determinado em função do valor do dano efetivo sofrido, apresentando como limite o capital mínimo legalmente estipulado (ou o capital convencionado, se superior) e que sejam abrangidos os danos não patrimoniais, desde logo porque nada na letra da lei nem nas cláusulas do contrato exclui a compensação deste tipo de danos.
4 - As distorções alegadamente geradas pela tese do acórdão fundamento, referidas no presente Acórdão uniformizador, segundo as quais a indemnização de acordo com o dano efetivo permitiria a equiparação de realidades desiguais, potenciando que pessoas com uma incapacidade baixa ou média acabassem por receber o mesmo que uma pessoa com uma incapacidade mais alta, resultam tão-só da opção legislativa de fixar o montante do capital num valor manifestamente insuficiente para obter a reparação dos lesados com incapacidades mais altas, ficando também afetada a aplicação da tese matemática. É que este argumento é reversível e também a tese do presente AUJ gera distorções. O capital máximo de 25.000 euros é atribuído pela lei a quem tem uma invalidez permanente total ou absoluta, situações de verificação muito rara. Na alínea d) do artigo 16.º, a lei refere as incapacidades parciais, sendo que, de acordo com a tese que fez vencimento, só receberia o valor de 25.000 quem tivesse 100 % de incapacidade, situação equivalente à invalidez permanente absoluta e que, portanto, não estará abrangida por esta alínea, mas pela alínea c) do artigo 16.º Todos os outros lesados, mesmo aqueles com incapacidades de 80 % ou 90 % receberiam menos do que 25.000 euros como resultado do critério matemático. Em casos mais frequentes, suponhamos uma incapacidade entre 30 % a 50 %, os lesados receberão, aplicando o critério matemático em relação a um capital de 25.000 euros, um montante de 7.500,00 euros a 12.500,00 euros, sem que seja admissível qualquer ponderação pelo juiz dos factos do caso. Será justo, e corresponderá à finalidade da lei, que este grupo de pessoas receba apenas estes valores para realizar uma aparente coerência ou “igualdade” em relação a quem tem uma incapacidade total? Julgo a este propósito que o Acórdão que fez vencimento fala impropriamente de igualdade, pois nunca haverá igualdade na indignidade, nem a igualdade pode ser um nivelamento por baixo que acaba por prejudicar todos os lesados. Não se pode esquecer que no desporto amador estamos, em regra, perante lesados jovens, que podem ser menores de idade, e que qualquer sequela sofrida pode trazer repercussões para a vida toda.
5 - Acresce que nada justifica a exclusão da compensação por danos não patrimoniais, que sempre poderia ser graduada, de acordo com o prudente arbítrio do juiz, de forma proporcional ao capital mínimo obrigatório. Imaginemos um jovem estudante que na sequência de acidente desportivo apresenta um grau de incapacidade baixo, mas que ficou com uma cicatriz no rosto. Não poderá ser reparado por este dano estético que afetará a sua auto-estima para o resto da vida? Em que é que o princípio da igualdade pode servir de justificação para a exclusão de qualquer compensação por este dano?
6 - Reportando-me ao caso concreto - um jovem de 21 anos que ficou com uma limitação física no joelho, foi sujeito a uma intervenção cirúrgica, teve de andar de canadianas entre 6 a 8 meses, perdendo a sua liberdade de locomoção numa idade em que ela é tão importante, sofreu dores e ficou com quatro cicatrizes lineares no joelho, sentido tristeza e angústia (factos provados n.os 2, 14, 22 a 26) - pergunto: que dimensão do princípio da igualdade ou que preceito legislativo ou cláusula contratual impedem uma compensação, proporcional ao capital obrigatório, por estes danos não patrimoniais? Considero que nenhuma norma o impõe. O artigo 5.º do Decreto-Lei 10/2009, de 12 de janeiro, deixa margem ao intérprete para incluir na cobertura por invalidez permanente parcial uma compensação pelos danos não patrimoniais. Se o legislador, tendo podido fazê-lo, como fez noutros locais, não estipulou esta exclusão, nem distinguiu os danos patrimoniais dos danos não patrimoniais, não deve ser o intérprete fazê-lo. Aliás, a fronteira entre danos patrimoniais e não patrimoniais é ténue, não sendo os dois conceitos compartimentos estanques.
7 - Afigura-se-me, assim, que a interpretação normativa aplicada pelo acórdão recorrido, que exclui toda e qualquer compensação por danos não patrimoniais ou sequer a possibilidade de ponderação destes danos, não decorre da lei e restringe indevidamente a liberdade do julgador nesta matéria, violando normas e princípios constitucionais (artigo 70, n.º 1, do Código Civil e artigos 1.º, 25.º, 26.º e 18.º, n.º 2, todos da CRP).
8 - Teria, pois, estabelecido o seguinte segmento uniformizador:
- A alínea d) do artigo 16.º do DL n.º 10/2009, de 12 de janeiro, ao estabelecer como montante mínimo de capital para o caso de invalidez permanente parcial “25000 euros, ponderado pelo grau de incapacidade fixado”, deve interpretar-se no sentido de que determina, tão-só, o montante máximo de capital devido pela seguradora.
- A prestação devida ao segurado em caso de invalidez permanente parcial é determinada em função do valor do dano efetivo sofrido pelo lesado, apresentando como limite o capital mínimo legalmente estipulado (ou o capital convencionado, se superior), cabendo ao julgador fazer uma apreciação casuística de acordo com os factos de cada caso, surgindo o grau de incapacidade como um fator a ser objeto de ponderação.
- A compensação devida ao segurado deverá atender aos danos não patrimoniais causados por um sinistro desportivo.
Maria Clara Sottomayor
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Processo 489/17.9T8AVV.G1.S1-A
Declaração de voto de vencida
Com o devido respeito, votei vencida pelas razões mencionadas no acórdão-fundamento.
1 - Os acórdãos-fundamento e recorrido divergiram sobre o sentido a atribuir às expressões usadas pelo legislador nas normas interpretandas. O texto da lei não não se revelou suficiente para colocar os Tribunais de acordo.
2 - Creio, todavia, que a letra da lei indica que a norma deve valer com o sentido de que a atribuição patrimonial do segurador deve ser calculada com base na medida ou gravidade relativa da incapacidade [e não, necessariamente, de um coeficiente numérico - que materializa a ponderação do grau de incapacidade fixado - multiplicado pelo valor do capital garantido pela apólice a que se reporta o art. 16.º do DL n.º 10/2009, de 12 de janeiro (€25.000,00, atualizável nos termos do art. 18.º, ou superior, se convencionalmente acordado) - doravante LSD]. A letra da lei (“grau de incapacidade fixado”) não tem forçosamente de estar associada a uma representação numérica (grau). Aliás, o preâmbulo da LSD refere-se a “ressarcimento”, como que conferindo às prestações do segurador natureza indemnizatória, e o termo “ponderado”, utilizado no art.16.º, al. d), da LSD, não é sinónimo de “calculado”.
3 - Sendo o elemento gramatical de algum modo desvalorizado pelo legislador no art. 9.º, n.º 1, do CC (“a interpretação não deve cingir-se à letra da lei”), há que procurar conhecer a razão de ser da lei, i.e., o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. É este elemento que permite a ponderação dos interesses que a norma visa satisfazer e, assim, recortar os casos que ela deve regular.
4 - Estão em causa o imperativo de solidariedade decorrente da necessidade social de reparação equitativa dos danos causados no exercício de uma atividade tipicamente perigosa; a proteção dos desportistas perante a ocorrência de todo o tipo de danos; a consideração de que da incapacidade não resultam tão somente danos patrimoniais; a ponderação de que nos arts. 5.º, n.º 2, e 16.º, al. d), da LSD, o legislador não distinguiu entre danos patrimoniais e não patrimoniais: “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”; a apreciação de que o seguro desportivo se traduz também num seguro de acidentes pessoais, em que os danos corporais são qualificados como não patrimoniais; o pensamento de que o art. 16.º, al. d), da LSD, ao estabelecer o valor de € 25.000 como soma segura, fixa apenas o limite da prestação do segurador, não impondo o cálculo em percentagem da incapacidade, o qual, de acordo com a finalidade deste seguro obrigatório, deve ser feito nos termos gerais, em função da extensão dos danos sofridos, patrimoniais ou não patrimoniais, e não da incapacidade.
5 - Cobrir os riscos implicados pelo exercício do desporto, mediante a consagração do seguro desportivo obrigatório, afigura-se fundamental para garantir a segurança dos praticantes. O fim de “cobrir os riscos, prevenindo o perigo de as vítimas não obterem ressarcimento” privilegia o critério da extensão do dano em detrimento daquele da extensão da incapacidade na fixação do capital devido ao segurado.
6 - Pode dizer-se que o que se conhece dos objetivos da lei - a ratio legis - deve prevalecer sobre todas as dúvidas de interpretação, desde que se respeite a teoria da alusão, consagrada no art. 9.º, n.º 2, do CC. Por isso, o dano efetivo (patrimonial e não patrimonial) deve caber no sentido normativo dos arts. 5.º, n.º 2, e 16.º, al. d), da LSD, com a virtualidade de eventualmente o expandir, num sistema jurídico aberto e dinâmico. Aliás, mais facilmente se alcançará a justiça material reclamada. Por outro lado, na interpretação não deve descurar-se o impacto do resultado social da decisão.
7 - Penso, pois, que o elemento teleológico do seguro desportivo obrigatório se harmoniza melhor com a posição acolhida no acórdão-fundamento. Não podendo ser alheio à extensão do dano concretamente sofrido pelo lesado, o art. 16.º, al. d), da LSD, estabelece a necessidade de ponderar o grau de incapacidade. A referência feita no art. 16.º, al. d), da LSD, ao grau concreto de incapacidade do lesado impõe, justamente, que se atenda à situação em que o mesmo efetivamente se encontra, o que não sucede se não se tiver em conta a extensão do dano por si concretamente sofrido. O objetivo intencionado pela lei - i.e., reparar danos socialmente relevantes - não se realiza mediante a aplicação de um critério dependente de meros cálculos matemáticos, que prescinda da apreciação do dano efetivamente sofrido pelo beneficiário.
8 - Nesse mesmo sentido depõe também a natureza jurídica do contrato de seguro desportivo enquanto “figura híbrida”, apresentando simultaneamente traços de seguro de capitais e de seguro de danos.
9 - Por seu turno, o elemento sistemático, fundado no princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica (“a unidade do sistema jurídico”: art. 9.º, n.º 1, do CC), compreende, inter alia, o lugar sistemático que compete à norma intepretanda no ordenamento global. Daí a necessidade de interpretar as normas dos arts. 5.º, n.º 2, e 16.º, al. d), da LSD, em conformidade com a CRP, uma vez que estão em causa direitos fundamentais constitucionalmente protegidos dos praticantes de desporto, designadamente, os direitos à saúde e à integridade física e psíquica (art. 70.º, n.º 1, do CC, conjugado com o art. 25.º, n.º 1, da CRP). Esses direitos de personalidade de conteúdo não patrimonial revestem-se de especial relevância, importando a sua lesão danos não patrimoniais que não podem ser ignorados. De resto, deve sempre preferir-se o sentido da lei que se mostre mais conforme à CRP.
10 - Nestes termos, parece-me que o capital devido ao segurado em caso de invalidez permanente parcial é determinado em função do valor do dano efetivo sofrido pelo lesado, apresentando como limite o capital mínimo legalmente previsto (ou o capital convencionado, se superior). Assim, o art. 16.º, al. d), da LSD, ao estabelecer como montante mínimo de capital para o caso de invalidez permanente parcial “25000 euros, ponderado pelo grau de incapacidade fixado”, deve ser interpretado no sentido de que fixa apenas o montante máximo de capital devido pelo segurador. A atribuição patrimonial devida ao segurado deve igualmente compensar aos danos não patrimoniais.
11 - Em jeito de conclusão:
- acolheria o segmento uniformizador preconizado pelo Ex.mo Senhor Procurador Geral Adjunto, junto do Supremo Tribunal de Justiça: “Em caso de acidente desportivo e face ao disposto no artigo 16.º, alínea d) da Lei de Seguro Desportivo - Decreto-Lei 10/2009, de 12/01, a indemnização estabelecida para a invalidez permanente parcial deve ser calculada em função de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos até ao limite do capital garantido.”; - e revogaria o acórdão recorrido.
Maria João Vaz Tomé
119032402