Assento 1/93
Recurso extraordinário n.º 4/92
(Acórdão de 26 de Novembro de 1991, nos autos de reclamação n.º 86/91)
I - 1 - O digno representante do Ministério Público junto deste Tribunal vem interpor recurso extraordinário do acórdão em epígrafe que manteve a recusa do visto às nomeações de Ana Paula Ferreira Lopes Marçalo e Maria Eduarda da Conceição Luís Vaz Elvas como técnicos superiores de 2.ª classe da Procuradoria-Geral da Repúbica, pedindo a prolação de assento, por o mesmo estar em oposição com a decisão n.º 3207/91, proferida em sessão diária de visto quanto à mesma questão de direito no domínio da mesma legislação.
2 - Após a admissão liminar do recurso, o recorrente junta parecer nos termos do artigo 9.º, n.º 2, da Lei 8/82, onde, após douta e desenvolvida argumentação - que ora se dá por reproduzida para todos os efeitos legais -, propõe que o plenário geral delibere do seguinte modo:
a) Declarar existente in casu o caso julgado e declarar que a intervenção deste Tribunal, 1.ª Secção, quer pelo acórdão produzido em sede de subsecção quer no acórdão em sede do plenário da 1.ª Secção, não tinha idoneidade jurídica para produzir quaisquer efeitos no caso sub judice.
b) A não ser entendido deste modo, dando por inverificada a questão prévia sucitada, deve lavrar-se assento do seguinte teor:
A eventual ilegalidade da deliberação autorizadora da contratação de interessados como estagiários para vagas não constantes da lista anexa do aviso de abertura do concurso implica mera anulabilidade que, sanada pela sua não impugnação judicial oportuna, não pode inquinar as respectivas nomeações para os respectivos lugares do quadro.
Concluindo, e consequentemente, considera que devem ser visadas as nomeações em causa.
II - Corridos os vistos legais (artigo 10.º, n.º 1, da Lei 8/82, de 26 de Maio), cumpre decidir:
1 - A aludida questão prévia traduz-se, em síntese, no facto de o acórdão recorrido ter recusado o visto às nomeações sindicando a admissão das interessadas ao respectivo estágio, quando dois anos antes - no Acordão n.º 8/90, lavrado nos processos de visto n.os 135581 a 135583, ambos de 1989 - o Tribunal tinha negado a conhecer da legalidade de tal admissão, feita por requisição, por entender que estava isenta de visto, nos termos do artigo 13.º da Lei 86/89, de 8 de Setembro.
O referido aresto tem o seguinte teor:
Acordam os juízes do Tribunal de Contas em devolver estes processos por terem deixado de estar submetidos a visto, nos termos do artigo 13.º da Lei 86/89, de 8 de Setembro, uma vez que não se trata de ingresso numa carreira, mas tão-somente num estágio que é condição desse ingresso e só então será oportuna a fiscalização deste Tribunal.
Como expressamente diz o artigo 497.º do Código de Processo Civil, a excepção de caso julgado tem por fim evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.
Portanto, só há caso julgado quando o pedido em causa já foi submetido à cognição do Tribunal e este proferiu decisão sobre ela (hoc sensu o Acórdão da Relação de Coimbra de 5 de Maio de 1976, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 259, p. 270).
No caso concreto, resulta de forma clara e inequívoca da letra do transcrito aresto que este não apreciou a legalidade ou a ilegalidade da realidade fáctica que lhe estava subjacente e daí que não tenha concedido nem recusado o visto pretendido. Limitou-se a devolver o processo por entender que este não estava sujeito à fiscalização do Tribunal, diferindo esta para o momento do ingresso das interessadas na carreira. Assim, só nestes precisos limites e termos existe caso julgado, e não quanto à legalidade ou ilegalidade dos factos sub judice, que não foram conhecidas ou apreciadas pelo Tribunal aquando da prolação do acórdão em análise - v. nesse sentido o artigo 673.º do Código de Processo Civil.
Nada obstava, portanto, que, em decisões posteriores, se conhecesse e decidisse sobre se a mesma realidade estava ou não ferida de ilegalidade: o próprio acórdão abre caminho nesse sentido.
Em face do que explanado fica, impõe-se concluir, como se conclui e decide, pela improcedência da alegada excepção peremptória do caso julgado arguido como existente no Acórdão 8/90.
2 - E por isso que não está previsto o recurso extraordinário para o Plenário só com base na eventual existência de excepção de caso julgado, impõe-se agora conhecer e decidir a questão principal suscitada pelo digno representante do Ministério Público, ora recorrente.
Pretende este que a subsequente alteração do prazo de validade do concurso, no sentido de abranger também as vagas que ocorressem nesse período - e não apenas aquela para que foi inicialmente aberto -, a ser ilegal, implicaria apenas e só mera anulabilidade da requisição das interessadas publicada no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Novembro de 1989, sanada pela decurso do respectivo prazo de impugnação.
Assim, não aceita que no acórdão recorrido «se haja conhecido de tal ilegalidade», para recusar o visto às nomeações subsequentes àquele estágio, ao contrário do sucedido na decisão n.º 3207/91, de 19 de Agosto de 1991, que se transcreve:
Em sessão diária decide-se conceder o visto aos provimentos, uma vez que a eventual ilegalidade da deliberação autorizadora da contratação dos interessados 2.º e 3.º classificados como estagiários para vagas não constantes do aviso de abertura do concurso implica mera anulabilidade que, sanada pela sua não impugnação judicial oportuna (artigo 89.º do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março), não pode inquinar as subsequentes nomeações para os respectivos lugares do quadro.
3 - A fixação de jurisprudência por meio de assento encontra-se prevista no artigo 6.º da Lei 8/82, de 26 de Maio, que dispõe:
Se no domínio da mesma legislação o Tribunal de Contas proferir duas decisões que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, sejam opostas, pode a Administração, pelo membro do Governo competente, ou o Ministério Público, requerer que o Tribunal fixe jurisprudência, por meio de assento.
Por seu turno, conforme jurisprudência uniforme deste Tribunal, a oposição de decisões que há-de viabilizar a prolação do assento pressupõe que ambas as decisões:
a) Respeitem a mesma questão fundamental de direito;
b) Assentem sobre soluções opostas de situações de facto idênticas;
c) Sejam proferidas no domínio da mesma legislação;
d) Sejam proferidas em processos diferentes ou incidentes diferentes do mesmo processo.
Acresce ainda a necessidade do trânsito em julgado, que se presume, da decisão anterior invocada como fundamento do recurso (cf. Assento 1/87, Diário da República, 1.ª série, de 26 de Março de 1987; Assento 4/87, Diário da República, 1.ª série, de 17 de Novembro de 1987).
4 - Importa, antes do mais, recortar a factualidade sobre que recaiu cada uma das decisões ditas em oposição para se aferir se nestas se verificam todos os pressupostos para a prolação de assento.
Decisão n.º 3207/91:
a) Por aviso publicado no Diário da República, 3.ª série, de 10 de Agosto de 1989, foi aberto concurso para admissão a estágio de um lugar de arquitecto (técnico superior) da Câmara Municipal do Seixal;
b) Por deliberação camarária de 31 de Janeiro de 1990 foram admitidos a estágio os candidatos classificados em 1.º, 2.º e 3.º lugares, não tendo os respectivos contratos sido remetidos a visto deste Tribunal;
c) Após o estágio, a lista classificativa dos três candidatos foi homologada por deliberação de 24 de Abril de 1991 e publicada no Diário da República, 3.ª série, de 1 de Junho de 1991;
d) A nomeação subsequente dos interessados foi feita por deliberação camarária de 5 de Junho de 1991;
e) Por deliberação camarária de 17 de Julho de 1991, publicada no Diário da República, 3.ª série, de 13 de Agosto de 1991, foi ratificada «em obediência ao princípio do aproveitamento dos actos jurídicos a deliberação da Câmara de 31 de Janeiro de 1990, cujo objecto constitui na nomeação de três candidatos para lugares de técnico superior estagiário (arquitecto)»;
f) Em 18 de Setembro de 1991 foi concedido o visto às nomeações referidas na alínhea d).
Acórdão de 26 de Novembro de 1991 (autos de reclamação n.º 86/91):
a) Por aviso publicado no Diário da República, 2.ª série, de 27 de Setembro de 1988, foi aberto concurso (referência n.º 74) para uma vaga de estagiário (técnico superior) na Procuradoria-Geral da República, fixando-se no seu n.º 1 um prazo de validade de dois anos;
b) Por aviso publicado no Diário da República, 2.ª série, de 11 de Janeiro de 1989, na sequência de despacho do Ministro da Justiça de 19 de Dezembro de 1988, foi alterado o n.º 1 daquele aviso de abertura, que passou a ter a seguinte redacção:
Prazo de validade - os concursos são válidos pelo prazo de dois anos, contados da data da publicação da respectiva lista de classificação final, para preenchimento das vagas existentes e para as que venham a ocorrer até ao termo do seu prazo de validade.
c) Por despacho ministerial de 20 de Setembro de 1989 foram admitidas ao estágio, em regime de requisição, as três primeiras candidatas, cujos processos, remetidos a este Tribunal, foram devolvidos pelo Acórdão 8/90, de 9 de Janeiro de 1990, por não estarem sujeitos a visto;
d) Publicitada a lista de classificação final do estágio em 7 de Dezembro de 1990, por despacho ministerial de 29 de Janeiro de 1991 foram os três estagiários nomeados técnicos superiores de 2.ª classe;
e) Este tribunal concedeu o visto à nomeação da 1.ª classificada em 14 de Fevereiro de 1991 e em 12 de Março de 1991, pelo Acórdão 116/91, recusou o visto às outras duas nomeações;
f) Esta recusa de visto foi mantida pelo Acórdão do plenário da 1.ª Secção de 26 de Novembro de 1991, nos autos de reclamação n.º 86/91, o qual é objecto do presente recurso.
Compaginada a factualidade exposta com o teor das respectivas decisões, verifica-se que em ambas as situações se verificam os seguintes traços essenciais comuns:
a) As admissões ao estágio em ambos os concursos não foram objecto de visto deste Tribunal, no primeiro caso (decisão n.º 3207/91), porque os respectivos provimentos não lhe foram remetidos para o efeito; no segundo (autos de reclamação n.º 86/91), porque, tendo sido remetidos, o Tribunal não conheceu da respectiva legalidade por os achar isentos de fiscalização prévia;
b) Ambos os avisos do concurso previam apenas um lugar de estagiário a admitir, tendo-se, contudo, admitido três estagiários;
c) Em ambos os concursos, após o prazo de apresentação de candidaturas, houve actos administrativos subsequentes tendentes a regularizar aquela anomalia: «ratificação» da admissão a estágio de três candidatos e «rectificação» do aviso de abertura a permitir a admissão dos três candidatos;
d) Em ambos os casos a nomeação dos três interessados para os lugares do quadro ocorreu após o decurso do prazo máximo de recurso contencioso das respectivas admissões [um ano - artigo 28.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei 267/85, de 16 de Julho].
Posto isto, impõe-se concluir que as decisões em confronto foram proferidas em processos diferentes e deram soluções opostas a situações de facto idênticas no domínio da mesma legislação, tendo a primeira transitado em julgado.
5 - Resta aquilatar se ambas as decisões respeitam à mesma questão fundamental de direito.
A este respeito convém salientar que, embora a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tenha enveredado pela tese de que a contradição de julgados deve ser expressa - cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Março de 1984, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 335, p. 248 - ao nível do Tribunal de Contas tal exigência não tem justificação legal, na medida em que a Lei 8/82 perfilhou soluções próprias, conforme resulta, nomeadamente, dos seus artigos 6.º e 8.º: v. neste sentido o Acórdão do Tribunal de Contas de 16 de Dezembro de 1992, lavrado no recurso extraordinário n.º 5/92.
E escreveu-se neste acórdão:
Efectivamente, estas disposições (os artigos 6.º e 8.º da Lei 8/82) estabelecem que a contradição pode ocorrer tanto entre decisões que concedam como as que neguem o visto, ainda que proferidas em sessão diária, e a verdade é que o legislador da Lei 8/82 não ignorava que então as decisões da concessão não eram, de facto, fundamentadas, nem tinham que o ser, designadamente as proferidas em sessão diária - conforme os artigos 54.º e seguintes, máxime o artigo 57.º do Regimento do Conselho Superior de Administração Financeira do Estado, aprovado pelo Decreto 1831, de 17 de Agosto de 1915.
Por isso não pode deixar de entender-se que releva a mera contradição implícita.
É, pois, nesta óptica que devem ser analisadas as decisões em confronto. Vejamos.
A já transcrita decisão n.º 3207/91 - quer objectiva quer subjectivamente valorada - deve interpretar-se no sentido de considerar legal - ainda que de forma tácita - a alteração introduzida no aviso de abertura do concurso e de consagrar - de forma expressa - que a eventual ilegalidade constitui mera anulabilidade sanada pelo decurso do prazo do respectivo recurso e, como tal, não podia inquinar as subsequentes nomeações para o quadro.
Com efeito, se cotejarmos tal decisão com o voto de vencido do mesmo autor lavrado no acórdão recorrido, verifica-se que neste expressamente se defende a legalidade da citada alteração, no aviso de abertura de concurso, fundamentando-a de forma douta e desenvolvida.
Este voto de vencido está em perfeita consonância com a citada decisão, explicitando-a e fundamentando-a em termos cujo desenvolvimento seria inconciliável com os de uma decisão que, como esta, foi tomada em sessão diária de visto, em que a celeridade é fundamental para a apreciação de todos os processos duvidados.
De notar que no n.º 5 do mesmo voto de vencido a que nos vimos referindo se explicita:
Mas ainda que tal alteração fosse ilegal [...] o que não se aceita, mesmo assim os provimentos em apreço assentam num bloco de legalidade. [O sublinhado é nosso.]
Por seu turno, o acórdão recorrido perfilha a tese da impossibilidade da alteração do número de vagas constantes do aviso de abertura do concurso «quando se encontrava já esgotado o prazo para apreentação de candidaturas», por não ser já susceptível de ser conhecida «em tempo útil pelos candidatos potenciais, com violação do disposto na alínea a) do artigo 4.º e no artigo 20.º do Decreto-Lei 44/84».
Nestes termos, pode concluir-se que a mesma questão fundamental de direito - legalidade ou ilegalidade da alteração do número de vagas constantes do aviso de abertura do concurso - foi objecto de soluções opostas: considerada legal na decisão n.º 3207/91 e ilegal no acórdão recorrido.
Mas a oposição de julgados ainda se pode constatar, embora também de forma implícita, noutra vertente.
Com efeito, a decisão n.º 3207/91 entendeu que a eventual ilegalidade da admissão a estágio dos 2.º e 3.º candidatos ao respectivo concurso, quando do respectivo aviso de abertura só constava um lugar vago, constituía mera anulabilidade sanada pelo decurso do prazo do respectivo recurso e, como tal, não podia inquinar as subsequentes nomeações para o quadro.
Embora não expressamente invocada, a norma aplicada ao caso foi a do artigo 89.º, n.º 3, do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março.
Por sua vez, nos autos de reclamação n.º 86/91, onde foi lavrado o acórdão recorrido, não obstante o reclamante, na respectiva petição, não ter alegado este fundamento para a procedência da reapreciação, o digno representante do Ministério Público no seu parecer, a fl. 18 v., sustentou a legalidade das nomeações a que havia sido recusado o visto, além do mais, porque das respectivas requisições para o ingresso no estágio não foi interposto recurso contencioso, ficando sanada a «eventual ilegalidade decorrente da alteração do despacho de abertura do concurso».
Porém, o texto do acórdão recorrido não afronta directamente esta questão, o que, à primeira vista, parece implicar uma omissão de pronúncia a gerar nulidade da sentença arguível nos termos do artigo 668.º do Código de Processo Civil, que não pela via deste recurso extraordinário.
Mas só aparentemente se pode concluir neste sentido.
Com efeito, no n.º 5 do já citado voto de vencido lavrado no acórdão a que se reporta o presente recurso, clara e expressamente se refere à sanação do vício da anulabilidade pelo decurso do prazo para o recurso e à consequente concessão do visto.
E embora o voto de vencido lavrado num acórdão não faça parte integrante da decisão propriamente dita, ele complementa-a e, na medida em que tem de ser sucintamente fundamentado - n.º 1 do artigo 713.º do Código de Processo Civil -, explicita a ou as diferentes vertentes jurídicas em que a matéria de facto pode ser valorada.
No caso concreto, o desenvolvimento dado à matéria em causa no voto de vencido permite extrair a ilação que o Tribunal foi confrontado com a questão que havia sido suscitada pelo Ministério Público e que, decidindo a manutenção da ilegalidade das nomeações para o quadro, conheceu da legalidade de todo o procedimento administrativo que a elas conduziu desde a abertura do concurso, recusando a tese do douto voto de vencido.
É certo que estamos novamente perante um julgado implícito, mas, uma vez que - como se disse - os princípios válidos no direito processual civil para a verificação de oposição de julgados têm de sofrer as compressões e os desvios impostos pela lei processual especial que regula o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência no Tribunal de Contas - a citada Lei 8/82 -, decide-se que está verificada a oposição de julgados relativamente à mesma questão fundamental de direito, prosseguindo-se no objecto do recurso.
6 - Analisemos agora o fundo da questão.
Importa, em primeiro lugar, decidir se é ou não legal o despacho segundo o qual se verificou uma subsequente alteração do prazo de validade do concurso no sentido de abranger também as vagas que ocorressem nesse período, e não apenas aquela para que foi inicialmente aberto.
Necessário se torna averiguar, para o efeito, se existe ou não discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis - cf. Freitas do Amaral in Direito Administrativo, vol. III, p. 303.
Com efeito - como escreveu Marcelo Caetano, in Manual de Direito Administrativo, vol. III, p. 514 -, «para que o acto administrativo seja um valor jurídico positivo tem de estar conforme com as normas legais que regulam a sua produção, porque é a comunicação do valor da lei que o torna válido. Daí resulta que, havendo divergência entre o acto e essas normas, o valor legal não se comunica ao acto, o qual existe mas não é válido».
Nesta sede, o douto acórdão recorrido - ao considerar ilegal tal acto por violação do disposto na alínea a) do artigo 4.º e no artigo 20.º, ambos do Decreto-Lei 44/84, de 3 de Fevereiro - decidiu, a nosso ver, acertadamente.
Na verdade, sempre que qualquer alteração a um aviso de abertura de concurso seja susceptível de afectar as legítimas expectativas e os interesses dos eventualmente interessados no concurso, ela só será legalmente possível se a lei expressamente a permitir como acontece quanto às alterações do prazo de validade (Decreto-Lei 238/85, de 8 de Julho, Decreto-Lei 446/88, de 9 de Dezembro, artigo 20.º, n.º 5, do Decreto-Lei 498/88, de 30 de Dezembro), da composição do júri (artigo 15.º, n.º 1, do Decreto-Lei 44/84, de 3 de Fevereiro, artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 498/88) e do prazo de apresentação das candidaturas (artigo 21.º, n.º 3, do Decreto-Lei 44/84, artigo 18.º, n.º 3, do Decreto-Lei 498/88).
Caso contrário - isto é, se a lei expressamente não admite a alteração do aviso de abertura do concurso -, qualquer modificação subsequente lesiva de interesses de potenciais candidatos deve considerar-se ilegal por contrariar o princípio da igualdade de condições e de oportunidades para todos os candidatos fixado na alínea a) do artigo 4.º do Decreto-Lei 44/84 e, posteriormente, no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 498/88.
Uma vez que a lei não prevê expressamente a possibilidade de alteração do número de vagas na pendência de um concurso, a alteração havida nesse sentido é ilegal.
Vejamos, em seguida, quais as consequências dessa ilegalidade ou, explicitando melhor, se, por ser ilegal, o acto em apreço está ferido de nulidade ou é simplesmente anulável.
Resulta do artigo 89.º do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março e, actualmente, também do artigo 135.º do Código de Procedimento Administrativo que, de entre as duas formas de invalidade, a anulabilidade constitui a regra, só excepcionalmente ocorrendo a nulidade.
Como escreve Sérvulo Correia, in Noções de Direito Administrativo, vol. I, p. 356, «a opção pela anulabilidade como regra geral representa um importante privilégio face à Administração Pública, que complementa o da executoriedade e da presunção de legalidade dos seus actos. O legislador prefere que, regra geral, as ilegalidades cometidas pela Administração não prejudiquem a produção dos efeitos jurídicos pretendidos».
O regime impõe-se por razões de segurança e certeza jurídicas. «Não se poderia admitir que, dado o regime da nulidade - designadamente a possibilidade de ser declarada a todo o momento, por qualquer tribunal ou por qualquer autoridade -, pairasse indefinidamente a dúvida sobre se os actos da Administração são legais ou ilegais, são válidos ou inválidos» (apud Freitas do Amaral, in Direito Administrativo, vol. III, p. 330.)
Como escreve o mesmo autor in Código de Procedimento Administrativo Anotado, p. 209, «caso constituísse a regra, o regime de nulidade, por demasiado violento, manteria a pairar sobre os actos suspeitos de invalidade o perigo de, a qualquer momento, virem a ser considerados sem efeito».
O caso sub judice, não se subsumindo à noção de acto nulo consagrada no n.º 1 do artigo 133.º do Código de Procedimento Administrativo nem figurando no elenco de medidas constantes do n.º 1 do artigo 88.º do Decreto-Lei 100/84 - que se considerava aplicável por analogia aos actos de todos os órgãos da Administração Pública -, enferma de vício de ilegalidade que consubstancia mera anulabilidade.
O que significa que, «não sendo impugnada a sua validade dentro do prazo de recurso, não pode mais invocar-se a invalidade, por ataque directo ou em defesa, o que equivale à eliminação do vício, à conversão do acto viciado em acto são e ao desamparo dos direitos subjectivos ofendidos, uma vez que se verificou a caducidade do direito de acção que lhes respeita» - apud Marcelo Caetano, ob. cit., p. 518; no mesmo sentido v. Sérvulo Correia, ob. cit., p. 356, Mário Esteves de Oliveira, in Direito Administrativo, vol. I, pp. 543 e 544, e Freitas do Amaral, in Direito Administrativo, vol. III, p. 327; é, aliás, o que se dispõe no n.º 3 do artigo 89.º do citado Decreto-Lei 100/84.
Assim, «o decurso do prazo para interposição do recurso contencioso sem que se haja verificado a impugnação do acto tem por consequência a sanação dos vícios que determinam a ilegalidade do mesmo, que deixam de poder ser jurisdicionalmente apreciados» - Código de Procedimento Administrativo Anotado, de Freitas do Amaral e outros, p. 216.
7 - Em face do exposto e sem necessidade de mais considerações, os juízes do Tribunal de Contas, em sessão plenária, acordam:
a) Em pôr fim à apontada divergência de julgados, firmando o seguinte assento:
A ilegalidade da admissão a estágio da carreira técnica superior que implique anulabilidade, sanada pelo decurso do prazo do respectivo recurso contencioso, não pode fundamentar a recusa do visto à subsequente nomeação para a categoria base da carreira.
b) Em, consequentemente, conceder o visto às nomeações de Ana Paula Ferreira Lopes Marçalo e de Maria Eduarda da Conceição Luís Vaz Elvas para os cargos de técnicas superiores de 2.ª classe do quadro da Procuradoria-Geral da República.
Não são devidos emolumentos pelo presente recurso, embora sejam devidos os inerentes aos vistos concedidos.
Comunicações necessárias.
Cumpra-se o disposto no artigo 11.º da Lei 8/82, de 26 de Maio.
Lisboa, 24 de Março de 1993. - António Luciano Pacheco de Sousa Franco - João Manuel Fernandes Neto (relator) - José Manuel Peixe Pelica (vencido conforme declaração junta) - Alfredo José de Sousa (vencido conforme declaração de voto anexa) - José Faustino de Sousa (votou o acórdão mas não assina por não estar presente) - Júlio Carlos Lacerda de Castro Lopo - José Alfredo Mexia Simões Manaia - José Alves Cardoso - António Joaquim Carvalho - Manuel Raminhos Alves de Melo - João Pinto Ribeiro - Manuel António Maduro (vencido por entender que não se configura no caso uma situação de oposição de julgados. Por isso votei no sentido de que o recurso se se tornasse findo - artigo 767.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) - João Augusto de Moura Ribeiro Coelho - Ernesto Luís Rosa Laurentino da Cunha (vencido por entender que não se verifica contradição de julgados) - Alfredo Jaime Menéres Correia Barbosa (vencido por entender não existir no caso oposição de julgados, pelo que o recurso deveria ter sido dado por findo) - Arlindo Ferreira Lopes de Almeida - Maria Adelina de Sá Carvalho (vencida por entender inexistir, neste caso, oposição de julgados, fundamento para que se devesse ter dado por findo o presente recurso) - José António Mesquita - Fernando José de Carvalho Sousa (vencido por entender que não há oposição entre as decisões que se pretendem em conflito. O recurso deveria, pois, ter-se considerado findo, nos termos da legislação processual civil subsidiariamente aplicável). - Fui presente, José Manuel da Silva Pereira Bártolo.
Declaração de voto
O artigo 6.º da Lei 8/82, de 26 de Maio, exige como requisitos de prolação de um assento:
a) Duas decisões (uma das quais até pode ser proferida em sessão diária de visto) respeitantes à mesma questão fundamental de direito;
b) Proferidas no domínio da mesma legislação;
c) Com oposições de julgados.
Desses requisitos se alcança ser necessário existirem nas decisões em apreciação situações de facto idênticas e que para tais situações se tenham adoptado soluções jurídicas contraditórias.
Ora no caso concreto ocorreram os sucedâneos abaixo descritos.
A decisão n.º 3207/91, proferida em sessão diária de visto, concedeu o visto à nomeação de três técnicos superiores de 2.ª classe para a Câmara Municipal do Seixal.
Essas nomeações ocorreram na sequência de um estágio, para o qual haviam sido admitidos três candidatos, apesar de o aviso de abertura do concurso apenas referir a existência de uma vaga.
O visto foi atribuído com o fundamento seguinte: mesmo na perspectiva de a deliberação da admissão ao estágio desses candidatos ter um cariz ilegal, sempre a anulabilidade respectiva se encontraria sanada pela sua não suscitação tempestiva.
No acórdão proferido nos autos de reclamação n.º 86/91, por outro lado, foi entendido que era de recusar o visto à nomeação de três interessados, após realização de prévio estágio, com base na circunstância seguinte: tendo o concurso para estágio sido aberto por aviso inserto no Diário da República para uma vaga, mais tarde, por rectificação, foi tal concurso declarado válido por dois anos e alargado para as vagas existentes e para as que viessem a ocorrer naquele prazo.
Serão estas decisões opostas no sentido de terem aplicado de maneira diferente regras de direito, apesar de se tratar de situações de facto idênticas?
Não se entende assim.
Na realidade a primeira decisão, quer na dimensão explícita quer na dimensão implícita (v. g. em tal sentido Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 57 e segs.), não contradiz a segunda, dado que, em síntese: a primeira atribuiu o visto apenas porque entendeu que, mesmo na eventualidade de o acto da admissão de três candidatos ao estágio, aberto apenas para um lugar, ser ilegal, tal ilegalidade estava sanada por não suscitada em termos; a segunda recusou o visto porque considerou ilegal a alteração no número de vagas inserto num aviso de abertura de um concurso de admissão e estágio, depois de esgotado o prazo para apresentação das candidaturas, e reconheceu tal circunstância como inquinadora da legalidade das nomeações definitivas desses estagiários.
São desta forma premissas factuais diferentes geradoras da aplicabilidade de normas diferenciadas.
Por tudo isso recusava a prolação do assento e mantinha, pelos motivos constantes do Acórdão 86/91, a recusa de visto. - José Manuel Peixe Pelica.
Declaração de voto
1 - Concordando embora com a doutrina do assento, que desde sempre tenho defendido - a verificação de conformidade dos actos e contratos «com as leis em vigor», que, segundo o artigo 12.º, n.º 1, da Lei 86/89, de 8 de Setembro, é o conteúdo da fiscalização prévia, não pode deixar de passar pelo regime geral das nulidades e anulabilidades pelo menos dos actos destacáveis, definitivos e executórios, dos actos e contratos fiscalizados -, rejeitaria o presente recurso por inexistir oposição de julgados sobre a mesma «questão fundamental de direito» nas duas decisões em causa.
2 - A decisão n.º 3207/91 entendeu que a eventual ilegalidade da admissão a estágio dos 2.º e 3.º candidatos ao respectivo concurso, quando do respectivo aviso de abertura só constava um lugar vago, constituía «mera anulabilidade» sanada pelo decurso do prazo do respectivo recurso e como tal não podia inquinar as subsequentes nomeações para o quadro.
A norma aplicada no caso, embora não expressamente invocada, foi a do artigo 89.º, n.º 3, do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março.
Como foi afrontada esta questão - irrelevância da ilegalidade da admissão a estágio na apreciação da legalidade nas subsequentes nomeações para o quadro - e qual a solução jurídica que mereceu no acórdão recorrido?
Nos autos de reclamação n.º 86/91, onde este acórdão foi proferido, o representante do Ministério Público no seu parecer sustentou a legalidade das nomeações a que havia sido recusado o visto, além do mais, porque das respectivas requisições para ingresso no estágio (despacho de 20 de Setembro de 1989, Diário da República, 2.ª série, de 3 de Novembro de 1989) não foi interposto recurso contencioso, ficando sanada a «eventual ilegalidade decorrente da alteração do despacho de abertura do concurso».
Todavia, o reclamante na respectiva petição não alega este fundamento para a procedência da reapreciação.
Talvez por isso o acórdão ora recorrido não se tenha debruçado nem explícita nem implicitamente sobre ele.
Com efeito este aresto persistiu na tese da impossibilidade de alteração do número de vagas constantes do aviso de abertura do concurso «quando se encontrava já esgotado o prazo para a apresentação de candidaturas», por não ser já susceptível de ser conhecida «em tempo útil pelos candidatos potenciais, em violação do disposto na alínea a) do artigo 4.º e no artigo 20.º do Decreto-Lei 44/84».
3 - Esta e apenas esta foi a questão de direito decidida no acórdão recorrido que levou a manutenção da recusa de visto às duas nomeações.
Na verdade não se curou de saber se aquela ilegalidade afectou as admissões do estágio dos dois candidatos «excedentários» face à única vaga constante do aviso de abertura do concurso, se a mesma integra ou não mera anulabilidade dessas admissões e se, integrando, se reflecte ou não na legalidade das subsequentes nomeações para o quadro.
Pelo contrário, afirma-se sem mais que tal ilegalidade afecta directamente estas nomeações, conhecendo-se por isso da legalidade de todo o procedimento administrativo que a eles conduziu, desde o momento da abertura do concurso.
É assim manifesto que o acórdão ora recorrido não decidiu de modo oposto «a questão fundamental de direito» apontada na decisão n.º 3207/91 pela simples razão de que sobre ela se não debruçou.
Impõe-se por isso concluir pela inexistência da oposição de julgados sobre a questão jurídica resolvida na decisão n.º 3207/91, uma vez que não foi afrontada no acórdão proferido nos autos de reclamação n.º 86/91.
4 - E não se diga que o facto de tal questão ter sido abordada expressamente no único voto de vencido exarado neste último acórdão é bastante para afirmar a oposição dos julgados.
Uma coisa é a decisão implícita de certa questão, outra, inteiramente diferente, é a omissão de decisão sobre uma questão directa ou indirectamente suscitada no julgamento da causa.
O que houve no acórdão ora recorrido foi omissão de pronúncia sobre a questão suscitada no parecer do Ministério Público da sanação da ilegalidade da admissão a estágio das interessadas que fundamentou a recusa do visto à subsequente nomeação para o quadro.
A concluir-se pela existência de oposição de julgados, ela só pode ser entre a decisão n.º 3207/91 e o único voto de vencido exarado nos autos de reclamação n.º 86/91.
Voto de vencido que nem sequer decidiu a mesma questão jurídica da decisão n.º 3207/91!
É que nele afirmou-se sempre e apenas a legalidade da alteração subsequente do aviso do concurso quanto ao prazo de validade e consequentemente a legalidade da admissão ao estágio das interessadas e das nomeações submetidas a visto.
Isto porque tal alteração não diminuiu os direitos e interesses legalmente protegidos dos candidatos admitidos ao concurso; pelo contrário, alargou-os.
As expectativas dos eventuais interessados (quem?, quantos?) que oportunamente não se tenham candidatado não se podem considerar lesadas com tal alteração, sendo por isso insusceptíveis de tutela jurídica.
Aberto um concurso, todos os potenciais candidatos estão em igualdade de circunstâncias independentemente do número de vagas a prover. - Alfredo José de Sousa.