Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2015
Acordam em plenário no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a organização de processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de agosto.
A norma em questão tem o seguinte teor:
«Artigo 97.º
(Advertência)
Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura.»
Invoca o requerente que tal norma foi julgada inconstitucional pelo Acórdão 379/2012 e, posteriormente, pelas Decisões Sumárias n.os 120/2013, 162/2013, 163/2013 e 514/2013, todos transitados em julgado.
2 - Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, aplicáveis por força do artigo 82.º, todos da LTC, o Primeiro-Ministro limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
3 - Elaborado o memorando pelo Presidente a que alude o artigo 63.º, n.º 1, da LTC e fixada a orientação do Tribunal, cumpre decidir.
II. Fundamentação
4 - De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição, e no artigo 82.º da LTC, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos. Para demonstrar a verificação de tais requisitos, o requerente indica cinco decisões proferidas em processos de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Com efeito, quer no Acórdão 379/2012, quer nas Decisões Sumárias n.os 120/2013, 162/2013, 163/2013 e 514/2013, o Tribunal proferiu julgamento de inconstitucionalidade da mesma norma incriminadora, constante do artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de agosto, pelo que se mostra preenchido o pressuposto da generalização do juízo, previsto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição, e 82.º, da LTC.
O Acórdão e as decisões sumárias acima mencionadas julgaram inconstitucional a norma do artigo 97.º do Código do Notariado, por violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.
5 - No essencial, é a seguinte a fundamentação do Acórdão 379/2012, para a qual remetem as quatro Decisões Sumárias invocadas pelo requerente:
«6 - A norma incriminadora impugnada, no que diz respeito à descrição do tipo objetivo e subjetivo do crime em causa não difere, no essencial, do que constava do equivalente artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 47 619, de 31 de março de 1967. Esta norma dispunha como segue:
«Artigo 107.º
(Advertência aos outorgantes)
Os outorgantes serão sempre advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsidade, se, dolosamente e em prejuízo de terceiro, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas, devendo a advertência constar da própria escritura».
Com as alterações introduzidas no Código do Notariado pelo Decreto-Lei 67/90, de 1 de março, este tipo legal de crime passou a constar do artigo 106.º do referido Código, com a seguinte redação:
«Artigo 106.º
(Advertência aos outorgantes)
Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura».
Esta redação foi transposta integralmente para o artigo 97.º do Código do Notariado em vigor, que dá corpo à norma cuja aplicação foi recusada pelo acórdão recorrido, por inconstitucionalidade decorrente de alegada violação do princípio da legalidade penal consagrado no artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição.
O Decreto-Lei 207/95, de 14 de agosto, que aprovou o atual Código do Notariado, foi emitido no uso de competência própria do Governo (prevista hoje, após a 4.ª revisão constitucional, no artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da CRP), e não ao abrigo de lei de autorização.
Ora, é exigência primária do princípio da legalidade penal que a incriminação e a pena constem de lei formal ou de decreto-lei autorizado, atendendo ao disposto no artigo 29,º, n.º 1, da CRP e também à integração na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, pelo artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da "definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos".
Em face destes dados, a conformidade constitucional da norma do artigo 97.º do Código do Notariado só permanecerá intocada se puder ser sustentado o caráter não inovador dessa norma, em confronto com as suas versões anteriores. Na verdade, tendo a primeira formulação da norma incriminatória surgido na versão originária do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 47 619, de 31 de março de 1967 - logo, um diploma anterior à Constituição de 1976 - o vício de constitucionalidade orgânica estará afastado, desde que possa ser convincentemente alegada uma linha de continuidade na evolução legislativa posterior, uma correspondência substancial do conteúdo regulador da disposição originária com o das normas resultantes das alterações posteriores. Efetivamente, é jurisprudência constante deste Tribunal que não resulta ferida a reserva relativa de competência da Assembleia da República se as normas constantes de diploma governamental, em matéria dentro dessa reserva, não criarem um regime materialmente diverso daquele que anteriormente vigorava por força de diplomas legais emanados de órgão competente (cf., por exemplo, o Acórdão 114/2008).
Começaremos por avaliar se foi esse aqui o caso.
7 - A questão já foi desenvolvidamente apreciada no Acórdão 340/2005, que, considerando não inovatório o regime do artigo 97.º do Código do Notariado, decidiu, em aplicação daquela orientação, não julgar organicamente inconstitucional a norma em causa.
O mencionado aresto começou por comparar as pequenas diferenças de redação entre o artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado e o atual artigo 97.º do mesmo diploma, no que concerne à fixação dos elementos de incriminação, tendo concluído que essas alterações «não se afiguram relevantes, parecendo resultar de mera alteração de estilo sem aptidão para consubstanciar uma modificação do conteúdo da norma que no preceito se contém».
Subscrevemos inteiramente este juízo. De facto, dessas diferenças - todas, praticamente, atinentes às formas verbais ou aos referentes terminológicos utilizados - não resulta alteridade do comportamento punido. É exatamente o mesmo, em todos os elementos constitutivos, o tipo de conduta que se incrimina.
Mas as duas normas também divergem no que diz respeito à determinação da pena aplicável à conduta nelas tipificada. Embora ambas se sirvam de uma técnica remissiva, para outra norma sancionadora, o artigo 107.º fá-lo para as "penas aplicáveis ao crime de falsidade", ao passo que o artigo 97.º prescreve que os agentes incorrem "nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público".
Em apreciação desta alteração, também do ponto de vista do seu alcance inovatório, o Acórdão 340/2005 relacionou-a pertinentemente com mudanças de sistematização e de enquadramento normativos, no âmbito do Código Penal, nos seguintes termos:
«[...] O Código Penal de 1886 (em vigor à data da edição do artigo 107.º do Código do Notariado de 1967) continha, no Título III do Livro Segundo, um Capítulo VI - "Das falsidades", onde se incriminavam as "declarações falsas" e que incluía as seguintes Secções: I - "Da falsidade de moeda, notas de bancos nacionais e de alguns títulos do Estado"; II - "Da falsificação de escritos"; III - "Da falsificação de selos, cunhos e marcas"; IV - "Disposição comum às secções antecedentes deste capítulo"; V - "Dos nomes, trajos, empregos e títulos supostos ou usurpados"; VI - "Do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública".
O Código Penal de 1982 eliminou o Capítulo antes designado por "Das falsidades" e procedeu a uma rearrumação sistemática dos crimes que nele se incluíam. Passou, então, a distinguir entre, por um lado, aqueles crimes que - tal como os de falsificação de documentos, moeda, pesos e medidas - são considerados crimes contra valores e interesses da vida em sociedade (Capítulo II do Título IV) e, por outro, aqueles que são considerados "crimes contra a realização da justiça" e como tal incluídos no Título dos "crimes contra o Estado" (Capítulo III do Título V). Entre estes últimos encontram-se, por exemplo, a falsidade de depoimento ou declarações, a que corresponde o atual artigo 359.º do Código Penal ou a falsidade de testemunho, prevista no artigo 360.º do mesmo Código, preceito para o qual a decisão recorrida, em juízo de interpretação de direito infraconstitucional que a este Tribunal não cabe sindicar, entendeu que o artigo 97.º do atual Código do Notariado remeteria.
Ora, integrada neste contexto, como tem de sê-lo, facilmente se percebe que - como nota o Ministério Público na sua alegação - a diferença que, nesta parte, se constata entre a redação do artigo 107.º do Código do Notariado de 1967 e o artigo 97.º do atual Código do Notariado - recorde-se: a substituição da remissão para o crime de "falsidade" pela remissão para o crime de "falsas declarações perante oficial público" - é "meramente consequencial das modificações sistemáticas introduzidas no Código Penal", visando simplesmente adequar aquele preceito do Código do Notariado à nova designação e arrumação sistemática do Código Penal de 1982».
Falta saber, todavia, se esta presumida "simples adequação" foi ou não efetuada em termos de salvaguardar as exigências constitucionais decorrentes do princípio da legalidade e da reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
8 - A remissão, na formulação originária, para o crime de falsidade, dado o caráter genérico da designação, já suscitava dúvida quanto à norma para que o artigo 107.º do Código do Notariado reenviava, na determinação da pena aplicável. Fazia parte do Código Penal de 1886, como se viu, um capítulo intitulado "Das falsidades". Desse capítulo constava uma secção (secção II), prevendo (artigo 216.º) o crime de "falsificação de documentos autênticos ou que fazem prova plena". O n.º 3 desta norma determinava a condenação de quem cometer falsificação «fazendo falsa declaração de qualquer facto, que os mesmos documentos têm por fim certificar e autenticar, ou que é essencial para a validade desses documentos». Integrada no mesmo capítulo, a secção VI dispunha sobre o "falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública". Dela fazia parte o artigo 242.º, prevendo o crime de "falso testemunho em inquirição não contenciosa. Falsas declarações perante a autoridade".
Esta dualidade de previsões, a do n.º 3 do artigo 216.º e a do artigo 242.º, espelhava normativamente a distinção entre falsificação (intelectual) de documentos e falsas declarações. A distinção reveste-se de extrema dificuldade, sobretudo quando, como é o caso, as falsas declarações são incorporadas em documento autêntico - cf. Helena Moniz, O crime de falsificação de documentos. Da falsificação intelectual e da falsidade em documento, Coimbra, 1993, 214. Para Maia Gonçalves (Código Penal Português, 3.ª ed., Coimbra, 1977, 380), «há falsidade intelectual quando o documento é genuíno; não foi alterado, mas, contudo, não traduz a verdade. A desconformidade há de resultar, em princípio, de uma desconformidade entre o documento e a declaração. Se o documento está de harmonia com a declaração, mas no entanto esta não está de harmonia com a realidade, não pode haver falsidade intelectual [...]». Beleza dos Santos também admitia a distinção, mas acabava por remeter para a norma (artigo 38.º, § único) reguladora do concurso aparente de infrações ("Falsificação de documentos e falsas declarações à autoridade". RLJ, ano 70.º, 257).
Em face da dificuldade da distinção, não pode dizer-se que a jurisprudência emitida na vigência do Código Penal de 1886 tenha seguido um critério uniforme de aplicação. Assim, enquanto que o Acórdão do STJ, de 8 de outubro de 1969 (BMJ, 190.º, 239) pareceu adotar um critério idêntico ao proposto por Maia Gonçalves, ao decidir que «se o documento está de harmonia com a declaração, não existe falsidade [...]», já o Acórdão de 24 de janeiro de 1968, do mesmo Supremo Tribunal (BMJ, 173.º, 179) dele se afastou, ao deixar lavrado: «Verifica-se o crime de falsificação de documento, na forma de falsificação intelectual, previsto no artigo 216.º do C. P., quando, com intenção de prejudicar, se fazem declarações falsas para serem exaradas em documento autêntico, sobre pontos que o mesmo tem por fim certificar ou autenticar».
Quanto à conexão destas previsões genéricas com o crime específico de falsas declarações em procedimento de justificação notarial, os antecedentes legislativos em nada contribuem para esclarecer a dúvida acima exposta, antes a adensam significativamente. Aquele procedimento foi criado pelo artigo 27.º da Lei 2049, de 6 de agosto de 1951, para permitir a inscrição de direitos no registo predial, por parte de quem, invocando-os, não pudesse deles fazer prova por documento bastante. Tal procedimento traduzia-se numa "declaração do proprietário, prestada sob juramento e confirmada por três testemunhas idóneas", prestada perante a entidade administrativa competente. Pelo Decreto-Lei 40 603, de 18 de maio de 1956, tal entidade passou a ser o notário. Tanto num diploma como no outro, o crime cometido por quem prestasse, neste procedimento, falsas declarações era identificado como "o crime previsto no § 5.º do artigo 238.º do Código Penal". Esta norma dispunha assim: «O testemunho falso em matéria civil será punido com prisão maior de dois a oito anos».
É com o Código de Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei 42 565, de 8 de outubro de 1959, que as falsas declarações, no procedimento de justificação notarial, passaram a ser punidas com as penas aplicáveis ao "crime de falsidade" (artigo 276.º). Por contraste com as incriminações anteriores, e pela própria formulação utilizada, é defensável o entendimento de que se quis retirar o tipo legal de crime do âmbito da secção do Código Penal que versava sobre "do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública" - a secção VI, que justamente abria com o artigo 238.º - para o situar na secção II, que tratava "da falsificação de escritos".
[...]
O Código de Registo Predial aprovado pelo Decreto-Lei 47 611, de 28 de março de 1965, remeteu a regulação desta matéria para o Código do Notariado, que veio a ser aprovado pelo Decreto-Lei 47 619, de 31 de março da 1967. Dele consta o artigo 107.º supra transcrito, o qual manteve a remissão para as penas aplicáveis ao crime de falsidade.
Com o Código do Notariado, na versão aprovada pelo Decreto-Lei 67/90, a incriminação passou, como vimos, para o artigo 106.º É com esta incriminação que surge a remissão para o "crime de falsas declarações perante oficial público", mantida na versão em vigor.
Perante esta alteração, é difícil sustentar - contrariamente ao que se deduzia da qualificação constante da acusação do Ministério Público - que a norma continuou a visar a penalização do crime de falsificação intelectual de documento, constante, após a revisão de 1982, da alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º, e hoje localizada no artigo 256.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal. Se a nova sistemática do Código Penal, nesta matéria, impunha o abandono da designação "crime de falsidade", por ter desaparecido esta categoria genérica, de forma alguma aconselhava a nova designação, se a intenção fosse deixar substancialmente tudo como dantes. Na verdade, a fórmula "crime de falsas declarações perante oficial público" está patentemente mais próxima da que designa o crime de "falsas declarações perante a autoridade", previsto e punido, anteriormente à citada revisão, no artigo 242.º, e que passou a integrar um novo capítulo, referente aos "crimes contra a realização da justiça", aí dando corpo a um segmento do artigo 402.º
[...]
Em face do exposto, tem boas razões por si a conclusão de que reveste caráter inovatório a alteração introduzida no Código do Notariado em 1990 e mantida na versão atual, o que, nesse pressuposto, acarreta, dada a inexistência de autorização legislativa, lesão ao princípio da legalidade penal, na sua dimensão formal. Na verdade, a norma constante do artigo 97.º do Código do Notariado (como já, antes dela a do artigo 107.º) só fica completa quando lida em conexão e integrada pela norma sancionadora para que remete e onde consta a moldura penal aplicável ao crime nela tipificado.
[...]
Daí que a alteração da norma para que é feita a remissão, com a consequente alteração da punição, importe inevitavelmente uma mudança substancial do alcance da norma do artigo 97.º, por confronto com o que dispunha o anterior artigo 107.º, devendo ser-lhe atribuído caráter inovatório.
Tal conclusão só não é perentória e de fundamento incontroverso porque, não obstante o entendimento acima expresso, pode subsistir alguma margem de dúvida quanto à identificação do crime para que remetia o artigo 107.º de Código do Notariado, na redação original deste diploma, como sendo o de falsificação intelectual de documento. Ora, resultando o caráter inovador ou não da atual formulação da sua comparação com a que lhe antecedeu, só uma certeza firme quanto ao alcance dos dois termos de comparação permite uma conclusão segura.
De todo o modo, embora não esteja vedado à jurisdição constitucional, neste contexto e com esta finalidade, pronunciar-se por um determinado sentido interpretativo da normação ordinária, essa pronúncia não é aqui estritamente necessária. Na verdade, todos os fatores que dificultam a identificação segura dos crimes para que remetem as sucessivas normas de incriminação (dificultando, com isso, o juízo quanto ao caráter inovatório) são outros tantos fatores que, inversamente, robustecem a conclusão de que nos encontramos perante uma violação do princípio da legalidade penal, na sua dimensão material.
É o que, de seguida, veremos.
9 - O primeiro dado a ter em conta, nesta segunda vertente da questão, é o de que, como certeiramente ajuizou o acórdão recorrido, o tipo para que o artigo 97.º remete «não corresponde à epígrafe, nem ao conteúdo, de qualquer incriminação do Código Penal ou de qualquer legislação extravagante que se conheça [...]».
O estabelecimento de correspondência entre a fórmula "crime de falsas declarações perante oficial público" e um determinado tipo legal de crime é, assim, tarefa interpretativa, que, no entanto, se depara com dificuldades e incertezas incompatíveis com o princípio da legalidade, na vertente de nulla poena sine lege certa.
[...]
A segurança jurídico-criminal e a preservação do princípio da igualdade só ficam satisfeitos quando a decisão individualizada e concreta de condenação se pode fundar numa previsão normativa definidora, de forma certa e determinada, não só dos pressupostos, mas também da medida da punição.
Não cumpre, manifestamente, esta exigência contida no princípio da legalidade criminal a remissão para a pena do crime de falsas declarações perante oficial público. Do catálogo de crimes tipificados não faz parte nenhum com esta designação. Os tipos mais próximos são os previstos nos artigos 359.º e 360.º do Código Penal. Mas não seria certo, desde logo, qual destas previsões - a que cabem molduras penais diferenciadas - estaria mais vocacionada para fixar a punição de uma conduta incriminada ao abrigo do artigo 97.º do Código do Notariado.
[...]
Como se vê, são múltiplas e inultrapassáveis as barreiras que obstam à objetiva determinabilidade, com um mínimo de certeza, da pena que cabe a uma conduta sujeita a incriminação pelo artigo 97.º do Código do Notariado. Em consequência, é de ajuizar que esta norma viola o princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da CRP.»
6 - Verificando-se haver, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, mais de três decisões deste Tribunal no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, aprovada pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de agosto, encontra-se preenchido o pressuposto da generalização do juízo de inconstitucionalidade, previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição.
Todavia, importa ter em atenção que o campo da tutela penal da autonomia intencional do Estado e da responsabilidade criminal por falsas declarações perante autoridade pública ou funcionário público no exercício de funções, ponderado nos julgamentos subjacentes ao impulso de generalização em apreço a partir dos dados dos casos vertentes, sofreu modificação superveniente relevante, na perspetiva problemática ancorada na dimensão material do princípio da legalidade penal.
A Lei 19/2013, de 21 de fevereiro, aditou ao Código Penal o artigo 348.º-A, com a epígrafe "Falsas declarações", prevendo no seu n.º 1 a punição com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal, de "quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios", cabendo, nos termos do n.º 2 do preceito, moldura penal agravada - pena de prisão até dois anos ou pena de multa - "se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico".
Como pode ler-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 75/XII, que conduziu à aprovação do diploma, a intenção do legislador foi, aqui, não apenas a de "clarificar o tipo do crime de falsa declarações, que deixa de se confinar às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente as falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos", mas, igualmente, a de dar "conteúdo normativo às múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime". Denota-se, assim, o propósito de superar a notada ausência de um crime geral de falsas declarações perante entidades públicas, suscetível de dar conteúdo material às diversas normas que remetem a punição das condutas nelas referidas para um tipo de falsas declarações (alertando para essa necessidade, cf. Paulo Dá Mesquita, "Parecer sobre tutela penal de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública", Revista do Ministério Público, n.º 134, abril/junho 2013, pp. 79-116, em especial pp. 100-101; note-se que o Autor defendeu, a par da criação de um "tipo genérico de falsas declarações", uma intervenção legislativa ao nível das normas jurídicas remissivas).
Face a estes dados, coloca-se a interrogação sobre se a remissão feita pelo artigo 97.º do Código do Notariado, ora em questão, pode encontrar correspondência nesta nova norma, que assume como epígrafe a mesma expressão ali utilizada. A resposta deve ser positiva.
Sem cuidar de saber se a conduta do outorgante em escritura de justificação notarial que preste ou confirme declarações falsas se subsume ao crime agora constante do artigo 348.º-A - questão aqui irrelevante, por estar em jogo o reenvio para as "penas aplicáveis", e não para os pressupostos da punição - resulta viável entender que a remissão operada pelo artigo 97.º do Código do Notariado, em exame, deve considerar-se feita para o novo artigo 348.º-A do Código Penal.
De facto, por um lado, trata-se do único tipo legal de crime constante do Código Penal que contém na sua epígrafe a expressão "falsas declarações", a qual passou ainda a constar da designação da secção em que o artigo se insere - "Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública" -, por força de alteração sistemática igualmente operada pela Lei 19/2013, de 21 de fevereiro. Por outro lado, dos seus elementos constitutivos faz parte a conduta que consiste em declarar falsamente à autoridade pública, mesmo que circunscrita às declarações que tenham como objeto a identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios.
Nessa medida, a partir do aditamento ao Código Penal do artigo 348.º-A, não são mais invocáveis os argumentos, em que se baseou o juízo constante do Acórdão 379/2012, no sentido de que o tipo legal de crime para que o artigo 97.º remete "não corresponde à epígrafe, nem ao conteúdo, de qualquer incriminação do Código Penal ou de qualquer legislação extravagante que se conheça [...]. O estabelecimento de correspondência entre a fórmula 'crime de falsas declarações perante oficial público' e um determinado tipo legal de crime é, assim, tarefa interpretativa, que, no entanto, se depara com dificuldades e incertezas incompatíveis com o princípio da legalidade, na vertente de nula poena sine lege certa. [...] Não cumpre, manifestamente, esta exigência contida no princípio da legalidade criminal a remissão para a pena do crime de falsas declarações. Do catálogo tipificados não faz parte nenhum com esta designação. [...] Como se vê, são múltiplas e inultrapassáveis as barreiras que obstam à objetiva determinabilidade, com um mínimo de certeza, da pena que cabe a uma conduta sujeita a incriminação pelo artigo 97.º do Código do Notariado".
7 - Ultrapassado, nas apontadas condições, o vício de inconstitucionalidade material, há que apreciar a inconstitucionalidade orgânica da norma incriminatória do artigo 97.º do Código do Notariado, vício que, caso presente, persiste independentemente da conexão remissiva que se encontre com as penas aplicáveis ao crime de falsas declarações previsto no artigo 348.º-A do Código Penal.
A questão foi tida já em atenção nos Acórdãos n.º 340/2005 e 379/2012, em que se procurou averiguar do caráter inovatório da norma, cuja não verificação, aferida por uma correspondência substancial do conteúdo regulador da disposição originária com o das normas resultantes das alterações posteriores, afastaria a inconstitucionalidade orgânica.
No primeiro daqueles arestos, o Tribunal não julgou a norma organicamente inconstitucional, por não ter considerado inovatório o seu conteúdo, não atribuindo relevância, para esse efeito, nem à alteração da numeração do artigo, nem às alterações de redação - consideradas meras alterações de estilo - nem mesmo à substituição da remissão para o crime de "falsidade" pela remissão para o crime de "falsas declarações perante oficial público", em razão de tal substituição se ter considerado "meramente consequencial das modificações sistemáticas introduzidas no Código Penal, visando simplesmente adequar aquele preceito do Código do Notariado à nova designação e arrumação sistemática do Código Penal de 1982".
No Acórdão 379/2012, parcialmente transcrito supra, pese embora não se tenha pronunciado conclusivamente sobre a questão da inconstitucionalidade orgânica, em virtude de ter considerado como fundamento decisivo do julgamento de inconstitucionalidade a violação do princípio da legalidade penal, na vertente da determinabilidade da pena aplicável à conduta, o Tribunal não deixou de se debruçar sobre o caráter inovatório da norma.
Afastando-se da conclusão vertida no Acórdão 340/2005, ainda que subscrevendo o juízo de que as diferenças de redação entre o artigo originário e o artigo atual não são relevantes no que concerne à fixação dos pressupostos da incriminação, o Tribunal salientou o relevo que decorre da divergência entre as normas em confronto no que diz respeito à determinação da pena aplicável. Apesar de, neste ponto, se revelar difícil a comparação entre a norma originária e a atual, por tanto uma como outra versão suscitarem dificuldades quanto à norma penal para a qual se reenviava, o Tribunal afirmou que "é difícil sustentar [...] que a norma continuou a visar a penalização do crime de falsificação intelectual de documento" e que "tem boas razões para si a conclusão de que reveste caráter inovatório a alteração introduzida no Código do Notariado em 1990 e mantida na versão atual, o que, nesse pressuposto, acarreta, dada a inexistência de autorização legislativa, lesão ao princípio da legalidade penal, na sua dimensão formal. Na verdade, a norma constante do artigo 97.º do Código do Notariado (como já, antes dela a do artigo 106.º) só fica completa quando lida em conexão e integrada pela norma sancionatória para que remete e onde consta a moldura penal aplicável ao crime nela tipificado. Incriminação e punição estão em 'normativa conexão' e formam uma 'unidade intencional', «já que se o delito implica uma certa e correspondente sanção, a sanção pressupõe um certo e correspondente delito» (Castanheira Neves, O princípio da legalidade criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático, Coimbra, 1988, p. 6, n. 11). Daí que a alteração da norma para que é feita a remissão, com a consequente alteração da punição, importe inevitavelmente uma mudança substancial do alcance da norma do artigo 97.º, por confronto com o que dispunha o anterior artigo 107.º, devendo ser-lhe atribuído caráter inovatório".
Cumpre reafirmar aqui essa conclusão: entre, por um lado, o regime que resulta da conjugação do artigo 107.º do Código do Notariado, na redação do Decreto-Lei 47 619, de 31 de março de 1967, com o ordenamento jurídico-penal então vigente, decorrente do Código Penal de 1886 ou de legislação extravagante e, por outro, aquele que resulta da redação conferida em 1990 ao artigo 106.º do Código do Notariado, transposta em 1995 para o artigo 97.º do mesmo Código, aqui em exame, não é viável encontrar uma identidade substancial, capaz de atribuir, a ambos os regimes, o mesmo significado jurídico-penal, designadamente no plano sancionatório. Persiste, como se apontou no Acórdão 379/2012, a mutação ínsita no diferente referente punitivo.
A consequência a retirar da qualificação do conteúdo da norma em apreço como inovador, é a de que, tendo o Código do Notariado sido aprovado por decreto-lei, emitido no uso de competência própria do Governo, e não ao abrigo da lei de autorização, foi violada a reserva relativa de competência legislativa para a "definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos", prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. De facto, conforme a jurisprudência do Tribunal Constitucional, dado que a competência para legislar sobre crimes e penas pertence exclusivamente ao Parlamento (salvo autorização do Governo), daí decorre a inevitável inconstitucionalidade orgânica da norma em apreço.
8 - Como acima se afirmou, e tendo em conta que foram proferidas, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, mais de três decisões deste Tribunal no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, aprovada pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de agosto, encontra-se preenchido o pressuposto de generalização do juízo de inconstitucionalidade, previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição.
Todavia, o Acórdão 379/2012, bem como as Decisões Sumárias n.º 120/2013, 162/2013, 163/2013 e 514/2013, que servem de fundamento ao requerimento do Ministério Público, julgaram inconstitucional a norma do artigo 97.º do Código do Notariado por inconstitucionalidade material, decorrente da violação do princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, na vertente da determinabilidade da pena aplicável.
Poder-se-á, então, questionar se, na espécie processual prevista no artigo 82.º da LTC, é admissível uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral com base em fundamentos diversos dos constantes da motivação dos acórdãos ou decisões que serviram de base ao requerimento - nomeadamente, se é admissível uma declaração de inconstitucionalidade orgânica, quando as decisões-fundamento foram de inconstitucionalidade material.
A jurisprudência do Tribunal comporta resposta afirmativa. Como se diz no Acórdão 266/87, também em processo organizado nos termos do artigo 82.º da LTC: "no campo da motivação interessa recordar, porém, o princípio contido no artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82, segundo o qual o Tribunal Constitucional, ao declarar a inconstitucionalidade de normas cuja apreciação lhe tenha sido requerida, pode fazê-lo com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada. E porque este princípio se insere na secção onde se compendiam as disposições comuns aos diversos tipos de processos de fiscalização abstrata, dúvidas não pode haver de que ele vale também para a espécie processual em particular aqui considerada. Vale isto por dizer que in casu é possível declarar a inconstitucionalidade das normas em causa em função de normas ou princípios constitucionais diversos dos constantes na motivação contida nos acórdãos que serviram de base ao pedido, o qual, aliás, cumpre assinalar, no plano da fundamentação nada acrescentou à desenvolvida naqueles arestos".
Conclui-se, pois, que não existe obstáculo a que se declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 97.º do Código do Notariado com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
III. Decisão
9 - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de agosto, por violação da alínea c), do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
Lisboa, 3 de fevereiro de 2015. - Fernando Vaz Ventura - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral (com declaração) - João Pedro Caupers - Maria José Rangel de Mesquita - Pedro Machete - Lino Rodrigues Ribeiro - João Cura Mariano (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto que junto) - Ana Guerra Martins (vencida, no essencial, pelos motivos constantes da declaração de voto do Conselheiro Cura Mariano) - Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida de acordo com a declaração junta) - Catarina Sarmento e Castro - Joaquim de Sousa Ribeiro.
Declaração de voto
Votei a decisão, mas dissenti dos argumentos que a sustentaram pelas seguintes razões.
O princípio tempus regit actum vale também para o Direito Constitucional. Por isso mesmo, a prática dos atos do Estado cuja competência e forma seja diretamente definida pela constituição rege-se pelas normas (de competência e de forma) que sejam vigentes ao tempo em que o ato é praticado. Tal tem como consequência, desde logo, que não possam conceber-se inconstitucionalidades orgânicas e formais que sejam supervenientes. Como muito bem se sabe - e sobre o assunto não existem dúvidas - a inconstitucionalidade superveniente é apenas de índole material: uma norma de direito ordinário anterior que tenha sido emitida antes da entrada em vigor da constituição só se torna (supervenientemente) inválida se contradisser substancialmente a nova ordem constitucional. O facto de essa nova ordem ter procedido a uma diferente distribuição de competências entre os órgãos do Estado, ou de ter disposto diferentemente quanto aos procedimentos formais que devem ser seguidos para a aprovação ou revelação externa do seus atos, não serve de fundamento para a invalidação daqueles últimos que tenham sido praticados ao abrigo da ordem anterior. E não serve, precisamente, porque as normas de forma e competência que regem os referidos atos são aquelas vigentes ao tempo da sua prática. Sobre esta conclusão - que sempre orientou a interpretação que se faz do disposto no n.º 2 do artigo 290.º da CRP - não subsistem, como já se disse, quaisquer dúvidas.
Inversamente, as normas de competência e de forma contidas numa certa constituição serão sempre aplicáveis a todos os atos do Estado que sejam praticados depois da sua entrada em vigor, e isto qualquer que seja a continuidade ou descontinuidade substancial que haja entre o conteúdo do «ato velho», emitido ao abrigo das regras [de forma e ou de competência] constantes da ordem pretérita, e o ato novo, emitido ao abrigo das novas regras. Como o tempo rege o ato, o critério a seguir para a determinação das regras aplicáveis à prática dos atos estaduais (que não ao seu conteúdo) é o da vigência dessas regras no momento da sua emissão. Não há outro.
Assim, se o legislador ordinário, que se rege pelas regras de forma e de competência constantes da CRP, resolver, através de ato seu, novar uma norma oriunda do ordenamento pré-constitucional, terá que o fazer de acordo com as regras vigentes ao tempo da novação. O facto de se tratar de uma novação (e não de uma inovação) normativa, será, segundo creio, para o efeito irrelevante.
No caso, decidiu o legislador ordinário, já na vigência da CRP, novar, através de ato seu, um tipo incriminador que fora definido ao abrigo da ordem constitucional anterior. Seguindo o raciocínio atrás defendido, a novação ter-se-ia sempre que fazer nos termos das normas constitucionais de competência vigentes ao momento da prática do ato; e essas eram já (diversamente do que sucedia aquando da vigência da ordem constitucional anterior) aquelas que ditavam a reserva de competência legislativa do parlamento para a definição de crimes, penas, e medidas de segurança. Tanto bastava, a meu ver, para que se chegasse no caso a um juízo de inconstitucionalidade orgânica, sem entrar em quaisquer indagações relativas à identidade ou não identidade substancial entre «norma velha» e a «norma nova». Creio que estas indagações - a terem lugar enquanto instrumento de exclusão de juízos de inconstitucionalidade orgânica - só farão sentido quando estiverem em causa normas constantes de atos praticados ao abrigo da mesma ordem constitucional, não sendo admissíveis quanto a atos praticados ao abrigo de ordens diversas, que se sucederam no tempo. - Maria Lúcia Amaral.
Declaração de voto
Discordei da generalização dos anteriores julgamentos de inconstitucionalidade pela razão que se passa a expor.
O aditamento ao Código Penal do artigo 348.º-A efetuado pela Lei 19/2013, de 21 de fevereiro, alterou o conteúdo da norma que foi objeto dos anteriores julgamentos de inconstitucionalidade cuja generalização foi pedida.
Na verdade, conforme se escreveu no primeiro dos Acórdãos que fundamenta o pedido de generalização e para o qual remeteram as subsequentes decisões sumárias: "... a norma constante do artigo 97.º do Código do Notariado (como já antes dela a do artigo 106.º) só fica completa quando lida em conexão e integrada pela norma sancionatória para que remete e onde consta a moldura penal aplicável ao crime nela tipificado. Incriminação e punição estão em "normativa conexão" e forma uma "unidade intencional", "já que o delito implica uma certa e correspondente sanção, a sanção pressupõe um certo e correspondente delito (Castanheira Neves, em O princípio da legalidade criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático, 1998, pág. 6, n.º 11). Daí que a alteração da norma para que é feita a remissão, com a consequente alteração da punição, importe inevitavelmente uma mudança substancial do alcance da norma do artigo 97.º...".
Tendo as decisões que apoiam o pedido de generalização negado a possibilidade da previsão do artigo 97.º do Código do Notariado ser considerada autonomamente, devendo sempre ser encarada em "normativa conexão" com a punição, é obrigatório considerar-se que o aditamento ao Código Penal do artigo 348.º-A efetuado pela Lei 19/2013, de 21 de fevereiro, alterou necessariamente o conteúdo da norma que foi objeto dos anteriores julgamentos de inconstitucionalidade.
Assim, apenas podendo ser objecto do juízo de generalização a norma anterior à alteração introduzida ao Código Penal pela Lei 19/2013, de acordo com jurisprudência constante e uniforme do Tribunal Constitucional, uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória e geral só se justificará quando for evidente e manifesta a sua indispensabilidade.
No que respeita aos efeitos temporais das declarações de inconstitucionalidade proferidas em sede de fiscalização abstrata sucessiva, rege o artigo 282.º, n.º 1, da Constituição, o qual estabelece, como regra, os efeitos retroativos (ex tunc) deste tipo de decisões, ou seja, os efeitos da decisão do Tribunal Constitucional retroagem à data da entrada em vigor da norma que agora se pretende declarar inconstitucional.
Daí que se mantenha o interesse na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas revogadas ou alteradas na medida em que, "por alguma específica razão relativa à aplicação da lei no tempo, seja de esperar que a norma em causa venha a aplicar-se ainda a um número significativo de casos, ou quando tal se mostre indispensável para corrigir ou eliminar efeitos por elas entretanto produzidos durante o período da respetiva vigência" (ver Acórdãos n.º 497/97, 531/00, 32/2002, 404/2003, 76/2004, 19/2007 e 497/2007, e 525/2008 em www.tribunalconstitucional.pt).
Os casos julgados estão ressalvados pelo disposto no artigo 282.º, n.º 3, da Constituição, pelo que a eficácia de uma declaração com força obrigatória geral se resumirá às eventuais condutas praticadas antes da alteração efetuada pela Lei 19/2013, de 21 de fevereiro, que sejam denunciadas em juízo e ainda não tenham sido julgados por decisão transitada.
Ora, tendo em consideração que as intervenções dos tribunais no julgamento deste tipo de crime são raras, serão meramente residuais as situações em que ainda possa ser aplicado o tipo legal de crime do artigo 97.º do Código do Notariado, antes da alteração introduzida pela Lei 19/2013, de 21 de fevereiro, não deixando de persistir ao dispor dos interessados a via da fiscalização concreta da constitucionalidade, como meio idóneo e suficiente para obviar à aplicação, no seu caso, do preceito referido.
Daí que não exista um interesse jurídico relevante na generalização dos juízos de inconstitucionalidade proferidos pelo Acórdão 379/2012 e pelas Decisões Sumárias n.º 120/2013, 162/2013, 163/2013 e 514/2013, devendo, por esse motivo, não se conhecer do pedido de generalização deduzido pelo Ministério Público.
Por esta razão pronunciei-me pela improcedência do pedido. - João Cura Mariano.
Declaração de voto
1 - Não acompanho a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de agosto. São as seguintes as razões da minha divergência: i) o pressuposto de que o acórdão parte quanto à relevância criminal da norma sindicada; ii) a abrangência da norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral; iii) a verificação dos pressupostos para a generalização do juízo de inconstitucionalidade da norma que veio a ser invalidada.
2 - Na base do juízo de inconstitucionalidade afirmado no acórdão está a conceção da norma sindicada como constituindo uma norma incriminatória.
Não acompanho. Basta atender à letra do preceito («Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura»), para se perceber que este não corresponde a um tipo incriminador. Do preceito apenas resulta um dever de "advertência", em correspondência com a sua epígrafe. Em cumprimento do dever funcional aí estabelecido, os outorgantes devem ser advertidos pelo oficial público das consequências decorrentes da prestação de declarações falsas, nomeadamente a prática de um crime (de falsas declarações), necessariamente previsto num outro local do ordenamento. A consequência de o ordenamento jurídico, num eventual momento, não conter o crime que é objeto de advertência é tão-só o esvaziamento das consequências penais desta, não, necessariamente, a sua inutilidade ou falta de sentido, designadamente ao nível da fiabilidade do ato que a convoca.
Não se ignora que as decisões que estiveram na origem do pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 97.º do Código do Notariado a conceberam como um tipo penal. No entanto, a atribuição de relevância jurídico-penal ao artigo 97.º do Código do Notariado não constitui a única interpretação possível daquele preceito legal, ou sequer a mais representativa da jurisprudência proferida na matéria. É nesse contexto que deve ser feita a fiscalização abstrata da constitucionalidade da norma em causa. Para além da discussão suscitada na jurisprudência sobre a revogação tácita, pelo artigo 402.º do Código Penal de 1982 (na sua redação originária) do artigo 22.º do Decreto-Lei 33 725, de 21 de junho de 1944 (que previa o crime genérico de falsas declarações perante autoridade pública), certo é que, pelo menos desde a revogação operada pelo artigo 53.º, alínea a), da Lei 33/99, de 18 de maio, dos artigos 22.º a 24.º do Decreto-Lei 33 725, passou a encontrar apoio legal inequívoco a consideração acolhida, tanto na doutrina como nas decisões dos tribunais, de deverem considerar-se como despidas de conteúdo normativo as remissões feitas em preceitos legais para um tipo genérico de falsas declarações (neste sentido v., por todos, Paulo Dá Mesquita, Parecer sobre a tutela penal de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública, Revista do Ministério Público, pp. 79-116).
De resto, foi precisamente para superar este vazio legislativo que recentemente, pela Lei 19/2013, de 21 de fevereiro, o legislador aditou ao Código Penal o artigo 348.º-A, com a epígrafe "falsas declarações", superando assim a ausência de um tipo penal geral de falsas declarações perante entidades públicas e dando conteúdo à remissão constante de diversas disposições legais, entre as quais o artigo 97.º do Código do Notariado.
3 - Não acompanho igualmente o acórdão no que respeita à abrangência da norma declarada inconstitucional. Sem prejuízo da irrelevância jurídico-penal do preceito ao tempo em que a ordem jurídica não contemplava a previsão de qualquer crime genérico de "falsas declarações", a verdade é que a advertência constante do artigo 97.º do Código do Notariado manteve sempre sentido útil ao nível da credibilidade que devem merecer os atos certificados por oficial público. Ora, ao declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, sem identificar a dimensão ou o critério interpretativo que constitui o pressuposto daquela declaração, o presente acórdão invalida todo o preceito legal (incluindo, portanto, a obrigação funcional de advertência), e não apenas um seu segmento (material ou ideal).
Compreende-se que a norma objeto da generalização deva corresponder à norma julgada inconstitucional nas decisões anteriores do Tribunal. O que já não se aceita é que na passagem do julgamento concreto para a apreciação abstrata da norma, o Tribunal continue condicionado pela interpretação que a mesma assumiu na sua aplicação a três (ou mais) casos concretos, ou sequer que tenha de aceitar acriticamente, como sendo a única possível, a (des)aplicação da norma que foi assumida naquelas decisões pelos tribunais recorridos. O mesmo pode ser dito relativamente à interpretação que é feita por um acórdão de uma Secção deste Tribunal, no âmbito da fiscalização concreta, que é a única base da presente generalização, para além de um conjunto de decisões sumárias que o aplicaram. Se nos recursos de constitucionalidade, o objeto de fiscalização é a norma com o sentido concreto que o tribunal recorrido lhe atribui, na fiscalização abstrata o Tribunal Constitucional não está inibido de partir de um outro entendimento da norma em questão.
Importa não perder de vista que, diferentemente da fiscalização concreta, em que o julgamento da norma não é independente da sua aplicação ao caso submetido a juízo, a fiscalização abstrata tem uma função essencialmente objetiva, compete exclusivamente ao Tribunal Constitucional e reveste força obrigatória geral.
4 - Finalmente, quanto à verificação dos pressupostos de generalização da declaração de inconstitucionalidade, a jurisprudência afirmada no presente acórdão suscita-me as seguintes interrogações:
O acórdão declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, quando o único acórdão que está na base do pedido de generalização (o Acórdão 379/2012) se fundou na sua inconstitucionalidade material.
Não se ignorando que o princípio da vinculação ao pedido não abrange a fundamentação invocada (artigo 51.º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional [LTC]), certo é que o processo previsto no artigo 82.º da LTC (processo aplicável à repetição do julgado) apresenta como pressuposto a repetição do mesmo julgamento de inconstitucionalidade o que significa a necessidade de verificação de uma estrita coincidência entre a norma, ou dimensão normativa, julgada inconstitucional, e aquela que vem a ser objeto da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Ora, no caso em análise, não resulta evidente que a norma agora declarada (organicamente) inconstitucional, coincida plenamente com a norma julgada (materialmente) inconstitucional nas decisões que serviram de fundamento ao pedido de generalização. Apesar de reportada sempre ao mesmo preceito legal (o artigo 97.º do Código do Notariado), não é seguro que o julgamento agora empreendido corresponda ao mesmo segmento (ainda que ideal) da norma que foi objeto dos julgamentos de inconstitucionalidade anteriormente afirmados pelo Tribunal. Enquanto nas decisões-fundamento a norma julgada inconstitucional se ateve à remissão para a pena do crime de falsas declarações, constante do artigo 97.º do Código do Notariado (concluindo pela indeterminabilidade da pena aplicável à conduta típica), o acórdão de generalização reporta-se ao caráter inovatório da norma no que respeita à pena aplicável (concluindo pela violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República para a definição de crimes e penas). Entre uma pena indeterminada e uma pena nova vai uma distância dificilmente ultrapassável na interpretação de uma mesma norma penal, senão mesmo alguma contradição nos seus termos.
Às dúvidas sobre a identidade do segmento normativo julgado, que permitem questionar se a presente generalização reúne o pressuposto da repetição do julgado soma-se a novidade da fundamentação trazida pela primeira vez ao acórdão de generalização o qual, reconhecendo "ultrapassado" o vício de inconstitucionalidade material verificado nas decisões-fundamento, passou a apreciar e declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, em sentido divergente do anteriormente adotado no Acórdão 340/2005.
5 - No quadro constitucional acima aludido, a generalização do juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 97.º do Código do Notariado, empreendida no presente acórdão, além de se sustentar numa argumentação que traduz mera petição de princípio, dando como adquirido aquilo que devia ser demonstrado (a relevância político-criminal da norma), representa uma confusão entre os poderes jurisdicionais do Tribunal Constitucional no âmbito da fiscalização concreta e da fiscalização abstrata, que não se aceita.
A invalidação do artigo 97.º do Código do Notariado suscita ainda uma perplexidade: no momento em que é dado conteúdo jurídico útil à advertência, com a consagração do tipo penal relativamente ao qual a pessoa é advertida (o tipo penal genérico de crime de falsas declarações, como o atualmente previsto no artigo 348.º-A do Código Penal), a mesma advertência é declarada inconstitucional. Ora, esta declaração suscita interrogações adicionais, designadamente ao nível da justificação da reação penal para a incriminação dos outorgantes pelo crime de falsas declarações perante oficial público independentemente da verificação de qualquer advertência das consequências criminais da sua conduta. A uma advertência sem sanção (criminal) deverá seguir-se uma sanção criminal sem prévia advertência? - Maria de Fátima Mata-Mouros.