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Acórdão 114/2008, de 10 de Abril

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, enquanto pune como desobediência qualificada quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva a título de sanção acessória

Texto do documento

Acórdão 114/2008

Processo 316/07

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório. - 1 - O Ministério Público acusou Artur Marcos Ferreira e Costa, em processo sumário, perante o Tribunal de Comarca de Matosinhos (Juízos Criminais), imputando-lhe a prática de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada e do n.º 2 do artigo 348.º do Código Penal (desobediência qualificada).

O arguido veio a ser absolvido, por sentença de 10 de Janeiro de 2007, apesar de se ter considerado provado que, no dia 3 de Janeiro de 2007, conduzira um motociclo na via pública, não sendo portador de licença de condução, dado que a tinha entregue, na véspera, na Direcção-Geral de Viação, a fim de cumprir a sanção de 30 dias de inibição de conduzir que lhe tinha sido imposta no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 352349158.

A sentença absolutória tem a seguinte fundamentação:

«É imputado ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência qualificada p. e p. pelos artigos. 138º do Código Estrada e 348º n.º 2, do CP.

Antes de entrar na subsunção dos factos ao Direito cumpre apreciar uma questão prévia que, a proceder, impedirá que o Tribunal entre na apreciação do mérito. E essa questão é a da existência de eventual inconstitucionalidade da norma vertida no artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada.

Isto a propósito das diferenças de redacção (numa norma que se pode considerar verdadeiramente penal) dos artigos. 139º, nº.4 dos DL 2/98, de 03/01 e DL 265-A/2001, de 28/09 e 138º, n.º 2, do DL 44/2005, de 23/02.

Como é consabido, a definição de determinadas acções ou omissões como matéria penal é matéria de competência reservada da Assembleia da República, pelo que quando o Governo pretende tipificar determinados comportamentos como ilícitos criminais só o pode fazer mediante lei de autorização legislativa - lei de autorização legislativa que obrigatoriamente especificará o objecto da autorização, consubstanciando uma relação de conformidade entre a lei autorizante e o decreto-lei autorizado. Quando assim não sucede, isto é, quando existe decreto-lei a tipificar comportamentos como crimes sem que sejam precedidos de leis de autorização legislativa então poder-se-á estar perante uma hipótese de inconstitucionalidade orgânica.

No dizer do Tribunal Constitucional, nestas hipóteses a lei de autorização legislativa representa o parâmetro superior.

No caso concreto a legislação aplicável é a emergente do novo Código da Estrada, ou seja, o regime emergente do DL 44/2005. A lei de autorização legislativa subjacente a este diploma nada refere no que respeita à (re) tipificação ou alteração do tipo inscrito no artigo 138º, n.º 2 do Código da Estrada actualmente em vigor em relação às anteriores (supra-referidas) versões do diploma em causa. Ou seja, da leitura comparada do artigo 138º, n.º 2, nas versões actual e anterior, verifica-se que a redacção de ambas não é exactamente igual, pelo que se verificou uma alteração nos elementos descritivos do tipo subjacente. Ora, a lei de Autorização Legislativa n.º 53/2004, de 04/11, não autorizou o Governo a tipificar quaisquer condutas como ilícitos penais (ex-novo, portanto) ou sequer a alterar nos seus elementos um tipo já existente.

Por isso, a necessidade de clara tipificação nestas matérias em lei de autorização legislativa não se compadece com o arbítrio de interpretação do parâmetro inferior que representa o decreto-lei autorizado. A reserva exclusiva parlamentar nestas matérias reclama que a lei autorizante seja absolutamente clara e apertada.

O que significa, pois, nesta nossa interpretação, que jamais houve autorização legislativa para alterar o artigo 138º, n.º 2, do Código da Estrada, no que respeita aos elementos nele agora enunciados, pelo que esta norma deve ser tida como organicamente inconstitucional, devendo ser recusada a aplicação do artigo 138º, n.º 2, do Código da Estrada.

Com a recusa de aplicação da referida norma, com o sentido apontado, falece em absoluto o objecto da acusação, pelo que o arguido deve ser absolvido do crime pelo qual vem acusado.»

2 - O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro.

Apresentou oportunamente alegações, acolhendo-se às razões do acórdão 574/2006 deste Tribunal, em que se decidiu no sentido da inconstitucionalidade orgânica da mesma norma, e conclui nos termos seguintes:

«Na falta de prévia autorização parlamentar para legislar sobre matéria constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da Constituição, não podia o Governo emitir, tal como o fez, a norma do artigo 138.º, n.º 2 do Código da Estrada na redacção resultante do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, pelo que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da decisão recorrida.»

O recorrido não alegou.

II - Fundamentos. - 3 - Invocando a autorização legislativa concedida pela Lei 53/2004, de 4 de Novembro, e o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, veio dar nova redacção a vários preceitos do Código da Estrada (artigo 1.º). Entre as matérias que foram objecto de alteração avulta o regime de sancionamento dos ilícitos estradais. Neste capítulo, se insere o artigo 138.º que, na nova redacção, passou a dispor (sublinhada a disposição sobre que incide a controvérsia):

«Artigo 138.º

Sanção acessória

1 - As contra-ordenações graves e muito graves são sancionáveis com coima e com sanção acessória.

2 - Quem praticar qualquer acto estando inibido ou proibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva que aplique uma sanção acessória é punido por crime de desobediência qualificada.

3 - A duração mínima e máxima das sanções acessórias aplicáveis a outras contra-ordenações rodoviárias é fixada nos diplomas que as prevêem.

4 - As sanções acessórias são cumpridas em dias seguidos.»

Na redacção imediatamente anterior do Código da Estrada, esta matéria estava regulada no artigo 139.º, que tinha a seguinte redacção (também sublinhada a norma em que se punia a condução de veículos automóveis no período de cumprimento da sanção acessória):

«Artigo 139.º

Inibição de conduzir

1 - As contra-ordenações graves e muito graves são sancionadas com coima e com sanção acessória de inibição de conduzir.

2 - A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às contra ordenações graves ou muito graves, respectivamente.

3 - A sanção de inibição de conduzir é cumprida em dias seguidos e refere-se a todos os veículos a motor.

4 - Quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva é punido por desobediência qualificada.»

Cotejando os preceitos transcritos, verifica-se que, além da diferente numeração, e da alteração da epígrafe do preceito, existem as seguintes diferenças entre os textos legais em comparação:

i) Onde anteriormente se dizia: «Quem conduzir veículo a motor ...», agora diz-se: «Quem praticar qualquer acto»;

ii) Onde se dizia: «...estando inibido de o fazer», passou a dizer-se: «...estando inibido ou proibido de o faz».

Mantém-se a estatuição: a conduta tipificada era e continua a ser punida como crime de desobediência qualificada.

O legislador pretendeu abranger na punição da desobediência qualificada prevista no n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada não só o agente que conduza estando inibido de o fazer por força de decisão administrativa ou judicial, como sanção acessória de contra-ordenação (anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada), mas também a conduta do indivíduo que viole, no domínio rodoviário, as proibições ou interdições que resultem da imposição de pena acessória por sentença criminal (artigo 353.º do Código Penal). Unificou-se a punição criminal de condutas que se traduzam em desrespeito de decisões judiciais ou administrativas que imponham ao agente proibições ou inibições de conduzir ou outras condutas no domínio da circulação rodoviária, seja qual for a natureza da infracção (crime ou contra-ordenação) cuja prática pelo agente levou a essa proibição de agir ou a natureza da decisão que a impôs (decisão judicial ou administrativa).

Nesta interpretação, o n.º 2 do artigo 138.º, na nova redacção, numa parte (dimensão ou segmento ideal) sobrepõe-se e noutra é inovador, relativamente ao anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada. Seguramente que se limita a manter o regime anterior na parte em que sanciona o desrespeito pelo cumprimento da inibição de conduzir veículo a motor resultante da imposição de sanção acessória pela prática de contra-ordenações, porque essa conduta, já punida nos mesmos termos na redacção anterior do Código, cabe na expressão "qualquer acto". E é inovador na parte em que transpõe para o Código da Estrada o desrespeito por proibições atinentes à circulação rodoviária, impostas a título de pena acessória ou medida de segurança por sentença criminal, subtraindo-a do domínio geral da punição do não cumprimento das obrigações impostas por sentença criminal.

4 - Foi com esta interpretação que o acórdão 574/2006 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 13 de Dezembro) confirmou o juízo de inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência legislativa constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, formulado pela sentença que nesse processo estava em reapreciação.

Com efeito, na Lei 53/2004 não se vislumbra autorização ao Governo para, como se diz na sentença agora em apreciação, proceder à «(re)tipificação ou alteração do tipo inscrito no artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada actualmente em vigor», ou seja, para alterar o que constava da anterior versão do mesmo Código no domínio da definição de crimes e penas criminais, como seria necessário para que o Governo pudesse legislar nesta matéria, face à reserva relativa de competência legislativa estabelecida pela alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.

Todavia, não pode interpretar-se esse acórdão, em que se decidiu «confirmar o juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da decisão recorrida», como comportando um juízo de inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, em toda a sua extensão normativa.

Na verdade, o que o despacho então recorrido recusara aplicar, por organicamente inconstitucional, fora 'a norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na redacção resultante do Decreto-Lei 44/2005, na interpretação segundo a qual comete um crime de desobediência qualificada todo aquele que conduzir um veículo automóvel estando proibido de o fazer por força de pena acessória aplicada por sentença criminal transitada em julgado'. Estava, pois, em causa o desrespeito da proibição de conduzir veículos automóveis imposta como pena acessória por uma anterior sentença criminal. E essa é, por contraposição ao anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada, uma das 'zonas de não sobreposição'. Este alcance restrito do julgamento do referido acórdão ressalta da seguinte passagem:

«A nova norma, ainda que com zonas de sobreposição, abrange hipóteses distintas e implica ponderações diferentes, nomeadamente no que respeita à variação relativa da gravidade da ilicitude dos vários comportamentos tipificados, com consequências para os comportamentos que agora são abrangidos. Com efeito, o n.º 4 do artigo 139º do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, previa a punição por desobediência qualificada para quem conduzisse veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, ao passo que o n.º 2 do artigo 138º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, prevê a mesma punição quer para quem praticar qualquer acto, quer esteja inibido quer esteja proibido de o fazer. Independentemente de saber se, noutras hipóteses em que não existisse [existisse?] uma exacta coincidência de factualidade típica, ainda assim por razões de ilicitude material se teria de reconhecer o carácter inovatório da norma em causa, o certo é que, no presente caso, o agente violou a proibição de condução de veículo a motor decorrente da sanção acessória aplicada por sentença transitada em julgado que o condenou por crime rodoviário. Como se verifica, não existe total coincidência entre a factualidade típica constante das duas normas incriminadoras».

5 - Sucede que a situação agora em apreciação é diversa.

Imputou-se ao arguido e considerou-se provada a condução de um ciclomotor na via pública no período de cumprimento de sanção acessória de inibição de conduzir imposta por decisão administrativa em processo de contra-ordenação. Consequentemente, a dimensão ou o segmento normativo do n.º 2 do artigo 138.º relevante não coincide com aquele que se julgou inconstitucional no acórdão 574/2006. A situação respeita à violação da inibição de conduzir imposta como sanção acessória por contra-ordenação estradal, conduta que já estava prevista na redacção anterior do Código da Estrada como constituindo crime de desobediência qualificada, ou seja, o segmento normativo do n.º 2 do artigo 138.º em causa no presente recurso corresponde a uma «zona de sobreposição» total com o n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada na versão anterior àquela a que o Decreto-Lei 44/2005 deu corpo.

Assim, reconduzindo o objecto do recurso à dimensão normativa relevante, como é próprio do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, importa saber se é organicamente inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na redacção emergente do Decreto-Lei 44/2005, enquanto pune como crime de desobediência qualificada quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, como sanção acessória de contra-ordenação.

6 - Há dois aspectos essenciais que podem afirmar-se sem maior demonstração, uma vez que as considerações que a sentença recorrida faz a este propósito não são postas em dúvida por qualquer dos sujeitos processuais e se subscrevem, a saber:

- A Lei 53/2004 não conferiu credencial ao Governo para legislar em matéria de definição de crimes ou penas criminais, porque dela não consta qualquer referência a esta matéria, como o Tribunal já considerou no acórdão 574/2006 e se reitera;

- A norma que qualifica determinada conduta como fazendo incorrer o agente em crime de desobediência qualificada (a disposição legal a que se refere o n.º 2 do artigo 348.º do Código Penal) consubstancia ainda a definição de crime, pelo que a sua emissão está abrangida pela reserva parlamentar a que se refere o artigo 165º, n.º 1, alínea c), da Constituição (cf. Acórdão 256/2002, publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Julho de 2002).

Estamos, portanto perante uma norma que pertence ao domínio de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e que foi inserida em acto legislativo da autoria do Governo sem que exista credencial parlamentar específica.

7. - Todavia, nem por assim ser tem de concluir-se necessariamente pela inconstitucionalidade orgânica.

Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes afirmou, em jurisprudência que remonta à Comissão Constitucional, que o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de inconstitucionalidade orgânica. Força é que se demonstre que as normas postas sob observação não criaram um regime jurídico materialmente diverso daquele que até essa nova normação vigorava, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente (cf. os acórdãos n.os 502/97, 589/99, 377/02, 414/02, 450/02, 416/03, 340/05 estes tirados em Secção e publicados no Diário da República, 2.ª série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de Fevereiro de 2002, de 17 de Dezembro de 2002, de 12 de Dezembro de 2002, de 6 de Abril de 2004 e de 29 de Julho de 2005, bem como o acórdão 123/04 (Plenário) publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 30 de Março de 2004. Cf. ainda, aliás com posição discordante, a indicação de Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, págs. 234/235).

Para tanto, para que essa intromissão formal em domínios de reserva relativa de competência parlamentar seja irrelevante, é necessário que se possa concluir pelo carácter não inovatório da normação suspeita. Não bastará a mera verificação da identidade textual dos dispositivos legais em sucessão, tendo também de ponderar-se os demais elementos de interpretação da lei, pois o mesmo texto, reproduzido em novo contexto, pode adquirir diverso conteúdo normativo.

Mas, adquirida a certeza do carácter materialmente não inovatório da norma editada pelo Governo, na perspectiva da distribuição constitucional de competências legislativas tutelada pela inconstitucionalidade orgânica, não se vê razão para a invalidade da norma. A opção política e a volição legislativa primária do parlamento materializadas em determinado acto legislativo da Assembleia da República ou parlamentarmente autorizado mantêm-se intocadas no ordenamento jurídico, apesar da recompilação no novo acto legislativo do Governo.

A este propósito mantém-se válida a exposição que o acórdão 299/92, Diário da República, 2.ª série, de 14 de Dezembro de 1992, faz dos contornos da jurisprudência do Tribunal:

«(...)

Com efeito, numa primeira fase, o Tribunal Constitucional apenas julgou inconstitucionais as normas que, versando sobre matéria integrada na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, fossem inovatórias.

Uma tal visão das coisas decorria do entendimento já perfilhado pela Comissão Constitucional (cf. Pareceres n.os 2/79, 31/79, 24/80, 29/80, 3/82, 12/82 e 17/82, publicados nos volumes que coligiram os pareceres daquela Comissão, respectivamente 7.º vol., p. 189, 10.º vol., p. 59, 13.º vol., pp. 129 e 249, 18.º vol., p. 141, e 19.º vol., pp. 113 e 253) e reiterado pelo Tribunal Constitucional, entre outros, nos seus Acórdãos n.os 1/84 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Abril de 1984), 56/84 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 9 de Agosto de 1984), 142/85 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de Setembro de 1985), 212/86 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 4 de Julho de 1986), 254/86 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Novembro de 1986), 67/87 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 16 de Abril de 1987) e 423/87 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Novembro de 1987), segundo o qual não originaria inconstitucionalidade orgânica a produção pelo Governo de decretos-leis não autorizados em matérias reservadas à competência legislativa da Assembleia da República, desde que o Governo se limitasse a compilar e reproduzir a legislação vigente. Nestes casos, em que o Governo se limitava a reproduzir o texto de disposições em vigor, em nada alterando, acrescentando ou retirando ao que antes já estava legislado, tudo se passaria como se o legislador governamental se tivesse mantida inactivo em tal matéria, abstendo-se de legislar.

Desenvolvendo e precisando os contornos de tal entendimento, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 77/88 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 29 de Abril de 1988), introduziu uma nuance na formulação daquele entendimento, ao sublinhar, num enfoque mais sensível a argumentos de ordem sistemática, a relevância da «vocação global» do diploma onde as normas reproduzidas se inserem para efeitos do juízo de constitucionalidade. Ai se escreve que, «se é inegável que num conjunto não despiciendo de disposições do diploma em apreço o legislador governamental se limitou a reproduzir e 'sistematizar' direito vigente, não é menos certo que o que sobreleva nessa intervenção legislativa é, por um lado, o seu propósito de modificar pontos de fundamental relevância no regime jurídico em causa e, por outro lado, o seu significado e alcance global.

[...]

Ora, nestas condições, não faz sentido aplicar na espécie a orientação jurisprudencial atrás citada e restringir o juízo de inconstitucionalidade apenas às normas desse diploma efectivamente modificadoras do regime legal anterior: a verdade é que se está perante uma intervenção global, e de fundo, do legislador governamental em matéria que entra por inteiro na reserva parlamentar».

Esta argumentação viria a ser retomada nos Acórdãos n.os 111/88 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Setembro de 1988), 8/89 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 13 de Abril de 1989), 407/89 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 14 de Setembro de 1989) e 414/89 (publicado na 1.ª série do jornal oficial de 3 de Julho de 1989) e, mais recentemente, nos Acórdãos n.os 372/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de Novembro de 1991) e 373/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 6 de Novembro de 1991) embora neste último caso com dois votos de vencido ...".

Ora, como se deixou dito, os factos imputados ao arguido, ora recorrido, eram punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada na versão deste Código anterior àquela em que se insere a norma a que agora foi subsumida essa conduta. E continuam a ser punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 2 do artigo 138.º na nova versão do Código, nos mesmos exactos termos. A diferente numeração e a alteração da epígrafe do preceito é mera consequência da reordenação dos demais preceitos do Código, não traduzindo diversa valoração quanto ao bem jurídico protegido ou quanto ao contexto dos elementos relevantes para a punição desta conduta. Nesta parte, continua a tutelar-se penalmente, agora como antes, o cumprimento das decisões que imponham sanções acessórias de inibição de conduzir pela prática de contra-ordenações em matéria de circulação rodoviária. Não houve aqui intervenção materialmente constitutiva do Governo. Estão, assim, reunidas as condições para que, à luz da referida jurisprudência do Tribunal e tendo em consideração que estamos no âmbito de um processo de fiscalização concreta, a intromissão legislativa formal não autorizada do Governo no domínio da reserva relativa da competência da Assembleia da República não gere inconstitucionalidade orgânica.

Nestas circunstâncias, o Tribunal Constitucional não considera violado o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição pela norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na parte (dimensão ou segmento ideal) em que pune como desobediência qualificada quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva a título de sanção acessória pela prática de contra-ordenações, pelo que o recurso merece provimento.

III - Decisão. - Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada, enquanto pune como desobediência qualificada quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva a título de sanção acessória pela prática de contra-ordenações;

b) Ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade;

c) Sem custas.

Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008. - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Gil Galvão.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1668307.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1988-04-28 - Acórdão 77/88 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DE TODAS AS NORMAS DO DECRETO LEI NUMERO NUMERO 436/83, DE 19 DE DEZEMBRO, COM EXCEPÇÃO DOS ARTIGOS 6 E 7, NUMEROS 1 E 2, LIMITA OS EFEITOS DA INCONSTITUCIONALIDADE, EM TERMOS DE SALVAGUARDAR, A EFICÁCIA DAS PORTARIAS ENTRETANTO EMITIDAS AO ABRIGO DO ARTIGO 2 DO DECRETO LEI NUMERO 436/83, NOMEADAMENTE DA PORTARIA 347-A/87, DE 31 DE OUTUBRO, E DE SALVAGUARDAR, BEM ASSIM, O RESULTADO DAS AVALIAÇÕES FISCAIS EXTRAORDINÁRIAS REALIZADAS ATE A DATA DA P (...)

  • Tem documento Em vigor 2002-07-08 - Acórdão 256/2002 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas da parte final do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 8.º, do artigo 10.º, da alínea a) do artigo 11.º e do n.º 3 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 205/97, de 12 de Agosto (regulamenta o estatuto legal do Defensor do Contribuinte) - (Proc.º 580/98).

  • Tem documento Em vigor 2004-11-04 - Lei 53/2004 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio.

  • Tem documento Em vigor 2005-02-23 - Decreto-Lei 44/2005 - Ministério da Administração Interna

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio e posteriormente alterado. Republicado na íntegra com todas as alterações.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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