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Acórdão 126/2022, de 24 de Março

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Sumário

Decide, com referência às contas da campanha eleitoral para a eleição dos deputados para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, realizada em 16 de outubro de 2016, julgar improcedente o recurso interposto pelo Partido da Terra (MPT), mantendo a coima aplicada pela Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP)

Texto do documento

Acórdão 126/2022

Sumário: Decide, com referência às contas da campanha eleitoral para a eleição dos deputados para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, realizada em 16 de outubro de 2016, julgar improcedente o recurso interposto pelo Partido da Terra (MPT), mantendo a coima aplicada pela Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP).

Processo 247/2020

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Por decisão de 03 de setembro de 2018, a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (doravante, «ECFP») julgou prestadas, com irregularidades, as contas apresentadas pelo Partido da Terra (MPT) relativas à campanha para a eleição, realizada em 16 de outubro de 2016, dos deputados para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores [artigos 27.º, n.º 4, da Lei 19/2003, de 20 de Junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, doravante, «LFP») e 43.º, n.º 1, da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de Janeiro (Lei da Organização e Funcionamento da ECFP, doravante, «LEC»)].

2 - Desta decisão não foi interposto recurso.

3 - Na sequência da decisão relativa à prestação das contas, a ECFP levantou um auto de notícia e instaurou processo contraordenacional contra o MPT pela prática das irregularidades verificadas naquela decisão.

4 - No âmbito do procedimento contraordenacional instaurado contra o MPT (Processo 42/2019), por decisão de 05 de dezembro de 2019, a ECFP aplicou uma coima no valor de (euro)4.686,00, equivalente a 11 (onze) SMN de 2008, pela prática da contraordenação prevista e sancionada pelo artigo 31.º, n.os 1 e 2, da LFP.

5 - Inconformado, o arguido recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 23.º e 46.º, n.º 2, da LEC, e do artigo 9.º, alínea e), da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, doravante, «LTC»), invocando, no essencial, os argumentos que a seguir se sintetizam:

a) nulidade da notificação do recorrente nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 30.º, n.º 5, da LEC e 26.º, n.º 3, da LFP, por não ter sido realizada na pessoa dos seus legais representantes ou de qualquer empregado que se encontrasse na sede do Partido, dada a ocupação ilícita do espaço por terceiros no período compreendido entre 10/02/2018 e 26/09/2019, impedindo os representantes legitimados de responderem ao teor do Relatório da ECFP e regularizarem as contas apresentadas, com a consequente anulação do processado posterior;

b) nulidade da decisão recorrida por não conter a descrição de factos suficientes para configurar a prática de qualquer infração contraordenacional, nem o relato dos factos relevantes para o preenchimento dos elementos típicos, objetivos e subjetivos, da contraordenação imputada, em violação do disposto no artigo 58.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral das Contraordenações, doravante, «RGCO»);

c) se tivesse sido regularmente notificado nos termos e para os efeitos referidos em a), o recorrente teria, oportunamente, fornecido os elementos necessários para regularizar as contas, pelo que os factos que lhe são imputados configuram meros lapsos plenamente justificados, não sendo configuráveis como prática da contraordenação prevista e sancionada pelo artigo 31.º, n.os 1 e 2, da LFP, o que determina a sua absolvição;

d) o artigo 31.º da LFP, ao utilizar um conceito indeterminado - «devidamente» -, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da legalidade, na vertente da tipicidade;

e) caso improcedam as nulidades invocadas e se mantenha a condenação do arguido, em face do reduzido grau de ilicitude e culpa, justifica-se a aplicação de uma mera admoestação.

6 - Recebido o requerimento de recurso, a ECFP, ao abrigo do artigo 46.º, n.º 5, da LEC, sustentou a decisão recorrida e determinou a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional.

7 - O Tribunal Constitucional admitiu o recurso e ordenou a abertura de vista ao Ministério Público, nos termos do n.º 1 do artigo 103.º-A da LTC.

8 - O Ministério Público emitiu parecer sobre o recurso, pronunciando-se pela sua improcedência.

9 - Notificado de tal parecer, o arguido reproduziu os argumentos invocados em sede de recurso e sublinhou a perturbação causada pela ocupação ilegítima da sede no funcionamento do Partido.

II - Fundamentação

A. Considerações gerais sobre o novo regime de fiscalização das contas dos partidos e das campanhas eleitorais

10 - A Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, veio alterar a LFP e a LEC, introduzindo mudanças significativas no regime de apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e no regime de aplicação das respetivas coimas.

Tendo em conta que, à data de entrada em vigor dessa Lei - 20 de abril de 2018 (cf. o seu artigo 10.º) -, os presentes autos aguardavam julgamento respeitante à legalidade e regularidade das contas, tal regime é-lhes aplicável, nos termos da norma transitória do artigo 7.º da mesma Lei.

B. Questões prévias

B.1. Nulidades relativas à notificação do Relatório da ECFP e de irregularidades suscetíveis de serem supridas que tenham sido identificadas no âmbito da apreciação das contas

11 - O recorrente vem invocar nulidades relativas à notificação do Relatório da ECFP e à notificação de irregularidades suscetíveis de serem supridas que tenham sido identificadas no âmbito da apreciação das contas, as quais, segundo entende, afetam todo o processado subsequente.

As nulidades invocadas decorrem, segundo o recorrente, da nulidade da notificação nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 30.º, n.º 5, da LEC e 26.º, n.º 3, da LFP, por não ter sido realizada na pessoa dos seus legais representantes ou de qualquer empregado que se encontrasse na sede do Partido, em virtude de esta, no período compreendido entre 10/02/2018 e 26/09/2019, ter estado tomada por terceiros, que se autoproclamavam titulares dos órgãos nacionais do Partido, impedindo os representantes legitimados de responderem ao teor do Relatório da ECFP e regularizarem as contas apresentadas.

Antes de mais, deve notar-se que as referidas disposições legais respeitam ao julgamento das contas anuais dos partidos políticos e não das contas das campanhas eleitorais, o que bastaria para concluir que as formalidades nelas previstas não foram preteridas, visto não terem aplicação no caso. No entanto, como aqueles diplomas contêm normas de conteúdo equivalente às invocadas pelo recorrente que se aplicam às contas das campanhas eleitorais, nomeadamente as normas dos artigos 41.º, n.º 2, da LEC e 27.º, n.º 6, da LFP, justificam-se, ainda assim, algumas considerações sobre as questões suscitadas.

11.1 - Em primeiro lugar, cumpre recordar que as notificações em causa correspondem a formalidades previstas no quadro do procedimento administrativo que antecedeu a decisão da ECFP de 3 de setembro de 2018 relativa legalidade e regularidade das contas apresentadas. Considerando que a data da entrada em vigor da mencionada Lei Orgânica 1/2018 - 20 de abril de 2018 (artigo 10.º) - é anterior àquela decisão, o respetivo regime é-lhe aplicável, nos termos da norma transitória do artigo 7.º daquela Lei Orgânica.

Conforme desenvolvido nos pontos 9 a 16 do Acórdão 421/2020 (acessível, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), a decisão da ECFP que verifica as irregularidades é a decisão administrativa final de uma subfase declarativa do controlo das contas (cf., em especial, o ponto 14 do citado aresto). Com efeito, na análise que é feita do regime reformulado em 2018, sublinha-se naquele Acórdão (cf. o respetivo ponto 9):

«A alteração mais significativa tem que ver com a competência para apreciar a regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais e aplicar as respetivas coimas, que até essa data pertencia ao Tribunal Constitucional e passou a ser atribuída à ECFP (artigos 9.º, n.º 1, alínea d), da LEC, e 24.º, n.º 1, da LFP).

Nos termos do novo regime legal, caberá ao Tribunal Constitucional apreciar, em sede de recurso de plena jurisdição, em plenário, as decisões daquela Entidade em matéria de regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, incluindo as decisões de aplicação de coimas (artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 103.º-A da LTC, 23.º, n.º 1, da LFP e 23.º, n.º 1, da LEC).

No plano processual, porém, o novo regime manteve a pluralidade de fases e dimensões materiais objeto de pronúncia, todas comportadas no mesmo processo. Excluindo agora o caso particular de incumprimento puro e simples do dever de entrega das contas discriminadas da campanha eleitoral, é a seguinte a dinâmica processual do processo de prestação de contas.

Continua a existir uma fase inicial, que tem por objeto (e escopo) a apreciação das contas dos partidos e das campanhas eleitorais, que os partidos ou as candidaturas devem enviar à ECFP, para esse efeito, no prazo fixado (artigos 27.º, n.os 1 e 4, 35.º, n.º 1, e 43.º, n.os 1 a 3, da LEC), findo a qual a ECFP decide do cumprimento da obrigação de prestação de contas e da existência ou não de irregularidades nas mesmas (artigos 35.º a 45.º da LEC).

De acordo com a modelação resultante dos artigos 35.º a 44.º, a intervenção da ECFP nesta fase inicial esgota-se na identificação («discriminação», na letra da lei) das irregularidades detetadas nas contas (dos partidos ou das campanhas), sem lhes fixar qualquer tipo de efeito ou consequência jurídica. Por isso se referiu, no Acórdão 405/2009, que a mesma «se poderia designar, por oposição àquela que se lhe segue para apuramento da responsabilidade contraordenacional, por fase declarativa ou de simples apreciação» (que melhor se designaria por subfase declarativa).

Verificando-se a existência de irregularidades na prestação de contas, abre-se uma segunda subfase que tem por objeto o apuramento da responsabilidade contraordenacional dos mandatários financeiros e dos partidos e a definição das respetivas consequências jurídicas (subfase condenatória).

Estará então encerrada a fase administrativa do processo de prestação de contas, da competência da ECFP, como se disse.»

A autonomia da decisão da ECFP sobre a legalidade e regularidade das contas, enquanto ato administrativo, implica o reconhecimento da força jurídica para a definição unilateral e estável das relações jurídicas administrativas visadas, com a ressalva dos casos de nulidade. Significa isto, que as ilegalidades de tal decisão, desde que não sejam determinantes da respetiva nulidade - o que obviamente não sucede com a irregularidade de notificações intraprocedimentais como aquelas que são referidas pelo recorrente nos presentes autos (cf. o artigo 161.º, n.º 2, a contrario, do Código do Procedimento Administrativo - apenas podem relevar e ser conhecidas no âmbito da impugnação contenciosa da decisão final que o lesado eventualmente venha a deduzir).

In casu, porém, o recorrente não recorreu para este Tribunal da decisão final do procedimento em que alegadamente terão sido cometidas as ilegalidades que invoca (cf. supra o ponto 2.). Consequentemente, tal matéria já não pode ser conhecida nem integra o objeto do recurso interposto da decisão da ECFP de lhe aplicar a coima no valor de (euro)4.686, 00, pela prática da contraordenação prevista e sancionada pelo artigo 31.º, n.os 1 e 2, da LFP.

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

11.2 - Sem prejuízo do que antecede, sempre se dirá que o Partido foi notificado, ao abrigo do disposto no artigo 41.º, n.º 2, da LEC, para se pronunciar, querendo, no prazo de 10 dias, sobre a matéria constante do Relatório da ECFP e prestar os esclarecimentos que tivesse por convenientes (cf. fls. 63 e 64 do PA). De resto, o próprio recorrente, apesar de mencionar separadamente duas notificações - uma para efeitos do artigo 30.º, n.º 5, da LEC e outra para efeitos do artigo 26.º, n.º 3, da LFP -, incorrendo, assim, em lapso não só, como vimos, quanto às normas aplicáveis às contas das campanhas eleitorais, mas também quanto ao número de notificações efetuadas nos autos para os efeitos a que alude, acaba, na realidade, por se referir sempre à notificação do Relatório da ECFP.

No caso, a carta para notificação ao recorrente do Relatório da ECFP nos termos e para os efeitos daquele artigo foi expedida em 31/10/2017, ou seja, muito antes da alegada ocupação da sede do Partido, iniciada em 10/02/2018 (tendo o prazo então concedido terminado também muito antes desta data). Assim, o facto em que se baseia toda a argumentação do recurso para sustentar a preterição de formalidades legalmente devidas, a ter ocorrido, verificou-se depois da prática do ato, pelo que nunca mereceria ser considerado.

Além disso, a carta foi enviada para a morada da sede do Partido indicada nos autos e não veio devolvida, sendo, portanto, legítimo inferir que foi entregue a pessoa, presente naquele local, habilitada a recebê-la, tanto mais que não foi - nesse momento ou noutro - comunicada ao processo a alteração da morada da sede ou qualquer circunstância anómala relacionada com a integridade do local suscetível de interferir com o tratamento da correspondência destinada ao Partido (sendo que impendia sobre o recorrente o ónus dessa comunicação, como, de resto, viria a ser expressamente consagrado no artigo 46.º-A da LEC).

B.2. Nulidade da decisão recorrida

12 - O recorrente invoca, ainda, a nulidade da decisão recorrida, sustentando que esta se encontra viciada pela ausência de factos que consubstanciem a imputação objetiva e subjetiva da infração pela qual foi sancionado, designadamente no que respeita à descrição dos factos correspondentes aos elementos típicos da infração, conforme exigido pelo artigo 58.º do RGCO.

Este preceito elenca os elementos que a decisão de aplicação da coima deve conter, destacando-se, para o que ora importa, o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1, onde se incluem a identificação dos factos imputados e a fundamentação da decisão. Aquela decisão deve, assim, observar um conjunto de requisitos, tendo uma estrutura semelhante a uma sentença criminal, ainda que simplificada, e conter a fundamentação da decisão tomada, quer de facto, quer de direito.

O recorrente fundamenta a nulidade da decisão recorrida, por um lado, numa alegada insuficiência de factos para concluir pela existência de qualquer infração contraordenacional e, por outro, numa suposta ausência de factos relevantes para preenchimento do tipo de ilícito imputado.

Como se salienta no Acórdão 244/2021, «o plano dos vícios intrínsecos de um determinado ato processual - neste caso da decisão administrativa sancionatória - não se confunde com o plano do respetivo mérito, designadamente no que respeita à correção de determinada operação de subsunção jurídica de um conjunto de factos à norma tipificadora de uma infração criminal ou contraordenacional. A eventual invalidade da decisão administrativa ora impugnada coloca-se no primeiro dos planos enunciados, verificando-se quando esta não contenha factos que permitam sequer efetuar ou sindicar o juízo subsuntivo. Assim, a decisão de aplicação de uma coima, tendo de conter os elementos referidos no artigo 58.º do RGCO, estará suficientemente fundamentada desde que, em face da mesma, se mostrem justificadas as razões pelas quais é aplicada determinada sanção ao arguido, de modo que este, tomando conhecimento da decisão, possa compreender, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais é condenado e, consequentemente, esteja em condições de impugnar tais fundamentos».

No caso dos autos, é manifesto que não assiste razão ao recorrente quando defende que a decisão recorrida não contém os factos suficientes para decidir sobre a imputação da contraordenação objeto dos autos. Com efeito, a mera leitura da decisão permite identificar a descrição de matéria factual suficiente para julgar a causa. Na verdade, nela foram dados como provados factos relativos ao tipo objetivo (cf. os pontos 5. a 8.) e ao tipo subjetivo (cf. os pontos 9. a 12.) do ilícito imputado, bem como factos relevantes para a determinação da medida da coima a aplicar (cf. os pontos 13. e 14.). Por seu turno, é também manifesto que tal decisão se encontra fundamentada, no que tange quer às razões em que se fundou a prova dos referidos factos, quer à subsunção destes às normas jurídicas consideradas aplicáveis. Da decisão recorrida constam, assim, todos os elementos exigidos pelo n.º 1 do artigo 58.º do RGCO, em especial, os previstos nas suas alíneas b) e c).

Questão diferente - a apreciar oportunamente e que respeita ao mérito da causa -, é a de saber se a factualidade dada como provada é suscetível de preencher os elementos do tipo contraordenacional imputado ao arguido, permitindo concluir que este praticou a contraordenação em apreço.

Por tudo quando foi exposto, improcede, também, esta nulidade invocada.

C. Fundamentação de facto

C.1. Factos provados

13 - Com relevância para a decisão, provou-se que:

1 - O Partido da Terra (MPT) é um partido político português, constituído em 12 de agosto de 1993, cuja atividade se encontra registada junto do Tribunal Constitucional.

2 - O Partido apresentou candidatura à eleição para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, realizada a 16 de outubro de 2016.

3 - O Partido apresentou, em 02 de março de 2017, as respetivas contas relativas à referida campanha.

4 - O Partido utilizou, como conta bancária da campanha, a conta 0680008802930, do Banco Caixa Geral de Depósitos, S. A.

5 - Nas contas apresentadas foi incluída como receita da campanha a quantia de (euro)500,00, obtida por transferência bancária, realizada em 26/09/2016 para a referida conta, sem indicação da respetiva proveniência.

6 - Nas contas apresentadas foram incluídas despesas com combustíveis tituladas pelas seguintes faturas, que não contêm a identificação da matrícula do respetivo veículo:

6.1 - Fatura n.º 92007_003/262344, emitida em 07/10/2016, pelo fornecedor «P.A. PRANCHINHA AUTO AÇOREANA», no montante de (euro)10,00;

6.2 - Fatura n.º 92007_003/003007, emitida em 09/10/2016, pelo fornecedor «P.A. PRANCHINHA AUTO AÇOREANA», no montante de (euro)15,00;

6.3 - Fatura n.º 2466/24458, emitida em 11/10/2016, pelo fornecedor «A.C. CYMBRON, S. A.», no montante de (euro)20,00;

6.4 - Fatura n.º 92007_003/003133, emitida em 14/10/2016, pelo fornecedor «P.A. PRANCHINHA AUTO AÇOREANA», no montante de (euro)10,00.

7 - Nas contas apresentadas foi registada a seguinte despesa de campanha, não tendo sido exibidos elementos complementares de comparação de preços:

7.1 - Fatura n.º 2016/76, emitida em 06/10/2016, pelo fornecedor «TECWELT», no montante de (euro)73,80, com o descritivo «Impressão/fotocópias Cores, Preço Unitário 0,12 (euro), Quantidade 1000, Desconto 50,00 %, IVA 23,00 %, Total Ilíquido 60,00 (euro)».

8 - Nas contas apresentadas foi registada como despesa da campanha a quantia de (euro) 25,00 referente ao aluguer de um veículo ao fornecedor João Mota Gomes, sem exibição de suporte documental (fatura).

9 - Ao agir conforme descrito em 5. dos factos provados, incluindo nas contas a receita de (euro)500,00 sem indicação da sua proveniência, o arguido representou como possível que tal não demonstrasse a origem e o motivo dessa receita e conformou-se com essa possibilidade, apresentando as contas nessas condições.

10 - Ao agir conforme descrito em 6. a 6.4. e 8. dos factos provados, não corroborando documentalmente as despesas relativas a combustíveis e aluguer de veículo, o arguido representou como possível que tal não demonstrasse a origem, o motivo e o destino dessas despesas e conformou-se com essa possibilidade, apresentando as contas nessas condições.

11 - Ao agir conforme descrito em 7. e 7.1. dos factos provados, o arguido representou como possível que o conteúdo da fatura não permitisse detalhar a despesa e, na ausência de elementos complementares de comparação de preços, aferir se o respetivo valor era próximo dos praticados no mercado, conformando-se com essa possibilidade e apresentando as contas nessas condições.

12 - O arguido sabia que a sua conduta era proibida e contraordenacionalmente sancionável, tendo agido livre, voluntária e conscientemente.

13 - O MPT, nas contas referidas em 3., registou receitas no valor total de (euro)750,00 e despesas no valor total de (euro)960,89.

14 - O Partido não recebeu subvenção pública para a campanha eleitoral relativa à eleição mencionada em 2.

[Com interesse, nenhum outro facto se provou.]

C.2. Motivação da decisão sobre a matéria de facto

14 - Na decisão sobre a matéria de facto o Tribunal teve, desde logo, em consideração factos notórios, isto é, do conhecimento geral (maxime, porque divulgados no sítio público do Tribunal Constitucional - http://www.tribunalconstitucional.pt). No mais, a convicção do Tribunal formou-se com base na análise conjugada e crítica da prova documental junta aos autos, como infra se explicitará.

Para prova do facto "1." teve-se em consideração o teor da publicação existente no sítio público da Internet do Tribunal Constitucional - http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/partidos.html, do qual a mesma se extrai.

A prova do facto "2." resulta do teor do PA 6/ALRAA/16/2018, constituindo o pressuposto da prestação de contas.

A prova do facto "3." decorre dos documentos de fls. 2 a 51 do PA.

E a prova do facto "4." retira-se do teor da comunicação de fls. 12 e 13 do PA.

Relativamente à prova do facto "5.", levou-se em conta o extrato bancário junto a fls. 51 do PA, que contém apenas a menção «TRANSFERÊNCIA».

No que respeita à prova do facto "6.", atendeu-se ao teor das faturas juntas a fls. 4 a 7 destes autos, omisso, na parte legível, quanto à matrícula dos veículos, conjugado com o mapa M9 de fls. 35 do PA.

A prova dos factos "7." e "7.1." baseou-se no teor da fatura junta a fls. 8 destes autos.

Ainda a propósito da factualidade descrita em "5." a "7.1", é verdade que o recorrente juntou, entretanto, documentos destinados a complementar/esclarecer as contas apresentadas, por referência a cada uma das situações (ou grupo de situações). Porém, fê-lo já em sede de recurso, numa fase em que as contas já haviam sido objeto de julgamento, ou seja, fê-lo extemporaneamente. Na verdade, estando em causa possibilitar que a ECFP verifique as contas apresentadas, quaisquer elementos ou explicações adicionais devem ser facultados no âmbito do processo de prestação de contas, até à prolação da decisão em sede de procedimento administrativo que as aprecia (neste sentido, vide o Acórdão 43/2015 e, mais recentemente, o Acórdão 236/2021). O recorrente invoca como causa da junção tardia desses documentos a circunstância de não ter sido regularmente notificado do Relatório da ECFP, alegando que a sede do Partido, entre 10/02/2018 e 26/09/2019, esteve indevidamente ocupada por terceiros, impedindo que os legais representantes acedessem à correspondência e, consequentemente, respondessem à matéria constante do Relatório e exercessem os seus direitos durante aquele período (argumentos que utiliza, igualmente, para arguir a nulidade da notificação e do processado subsequente). Contudo, como vimos supra, tais argumentos não podem proceder. Com efeito, recorda-se que, conforme resulta de fls. 63 e 64 do PA, a carta para notificação ao recorrente do Relatório da ECFP foi expedida em 31/10/2017, ou seja, muito antes da alegada ocupação da sede do Partido, iniciada em 10/02/2018, a qual não pode, por isso, servir para justificar uma resposta em fase tão avançada do processo. Assim sendo, naquele momento - quando foram, pela primeira vez, sinalizadas falhas nas contas apresentadas -, podia e devia o recorrente ter juntado os elementos em falta ou prestado os esclarecimentos necessários, mas não o fez, nem viria a fazê-lo antes da prolação da decisão administrativa pela ECFP, confirmando-se o referido juízo de intempestividade.

Estas considerações, só por si, obstariam à valoração dos documentos agora exibidos pelo recorrente. Mas, mesmo que assim não se entendesse, apenas um dos documentos teria a virtualidade de afetar a matéria de facto provada, sendo os demais insuficientes ou irrelevantes. Com efeito, se o talão de depósito junto sob o documento n.º 4 é apto a demonstrar a proveniência da receita referida no ponto 5 dos factos provados, já o documento n.º 5, tratando-se de uma declaração genérica de utilização de um determinado veículo nas ações de campanha para as eleições em causa, não permite relacionar cada despesa de combustível com o respetivo veículo e o documento n.º 6, sendo mera reprodução da fatura junta a fls. 8 destes autos, não fornece qualquer elemento para comparação de preços, pelo que esses documentos não contendem com os factos "6." a "6.4." e os factos "7." e "7.1.", respetivamente.

Para prova do facto "8." analisou-se o mapa M9 de fls. 35 do PA, em conjugação com os demais elementos apresentados para prestação de contas, que não incluem suporte documental (fatura) da despesa em causa. Neste caso, para além de tudo o que acima se consignou quanto à oportunidade da prestação de informações complementares sobre as contas, o recorrente limita-se a dizer que solicitou uma segunda via da fatura em falta, a qual não lhe foi, ainda, facultada, pelo que também aqui é de manter o facto dado como provado.

Por sua vez, a prova da factualidade descrita nos pontos 9. a 12. extrai-se da matéria objetiva dada como provada, que, à luz das regras de experiência comum, deixa antever a sua verificação, tanto mais que do Relatório da ECFP de fls. 53 a 62 do PA constavam já todas as situações aqui em análise, tendo o Partido sido notificado do seu teor (cf. fls. 63 e 64 do PA) e, apesar de lhe ter sido concedido prazo para se pronunciar e/ou retificar as contas, não o fez. Acresce que estamos perante o incumprimento de deveres que, para além de decorrerem da LFP (em articulação com a LEC), têm sido amplamente abordados e explicitados pela jurisprudência constitucional, pelo que, ponderando, ainda, a experiência do Partido (cuja constituição remonta a 1993), a conclusão que se impõe é a de que os agentes da candidatura, necessariamente familiarizados com as regras previstas naqueles diplomas, representaram as exigências daí decorrentes no âmbito da organização das contas da campanha, tendo-se, no entanto, abstido de implementar os procedimentos necessários para assegurar a respetiva observância e conformado com o resultado desvalioso.

Sobre este assunto, veja-se, entre outros, o Acórdão 98/2016: «Tratando-se, com efeito, do incumprimento de deveres que, para além de decorrerem expressamente da Lei 19/2003, de 20 de junho, se encontram, quanto aos termos do seu cabal cumprimento, amplamente esclarecidos na jurisprudência do Tribunal, a conclusão que se impõe é a de que os agentes da candidatura representaram as exigências daí decorrentes no âmbito da organização das contas da campanha, tendo-se, no entanto, abstido de implementar os procedimentos necessários a assegurar a respetiva observância e conformado com o resultado desvalioso. O que conduz a ter por verificado, na modalidade de dolo eventual, o dolo exigido pelo tipo subjetivo do ilícito previsto no artigo 31.º do referido diploma legal. Finalmente, quanto à prova do substrato factual em que assenta o dolo, tem o Tribunal afirmado repetidas vezes (cf., por exemplo, os Acórdãos n.os 86/2008 e 405/2009) que ela decorrerá normalmente de elementos de prova indiciária ou circunstancial obtida através dos chamados juízos de inferência. Como se escreveu no primeiro dos Acórdãos citados, "além de admissível em termos gerais, o meio probatório em questão assum[e] decisiva relevância no âmbito da caracterização do «conteúdo da consciência de um sujeito no momento em que este realizou um facto objetivamente típico», em particular ao nível da determinação da «concorrência dos processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo» (cf. Ramon Ragués I Vallès, El dolo y su prueba en el proceso penal, J.M. Bosch Editor, 1999, pg. 212 e ss.). Isto porque, conforme se sabe, o dolo - ou, melhor, o nível de representação que a sua afirmação supõe sob um ponto de vista fáctico -, uma vez que se estrutura sob realidade pertencente ao mundo interior do agente, apenas se tornará apreensível, na hipótese de não ser dado a conhecer pelo próprio, através da formulação de juízos de inferência e na presença de um circunstancialismo objetivo, dotado da idoneidade e concludência necessárias a revelá-lo".»

Com efeito, o sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, não havendo confissão, a prova dos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente) não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta. Por outras palavras, a verificação objetiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contraordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência, que o agente agiu dolosa ou negligentemente, tudo sem prejuízo da possibilidade de demonstração, designadamente pelo agente, do contrário.

Por último, o facto "13." emerge do teor de fls. 31 e 33 e o facto "14." advém do teor de fls. 31, 39 e 40, todas do PA.

D. Fundamentação de direito

D.1. Preenchimento do tipo contraordenacional

15 - Em causa estão as contas da campanha para a eleição, realizada em 16 de outubro de 2016, dos deputados para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores apresentadas pelo MPT.

O capítulo III da LFP contém as normas aplicáveis em sede de financiamento das campanhas eleitorais. Por sua vez, os artigos 30.º a 32.º do seu capítulo IV preveem as coimas a que estão sujeitos os infratores das regras respeitantes ao financiamento das campanhas eleitorais.

De acordo com o artigo 12.º da LFP, aplicável, ex vi do artigo 15.º, n.º 1, do mesmo diploma, nas campanhas eleitorais existe um dever genérico de organização contabilística, por forma a que a contabilidade reflita, designadamente, as suas receitas e despesas. Este dever genérico é concretizado no n.º 3 do mesmo artigo, que enumera os requisitos especiais do regime contabilístico próprio.

Porém, como se afirmou no Acórdão 417/07 - e repetiu, designadamente, nos Acórdãos n.os 77/2011, 139/2012, 177/2014 e 43/2015 -, não se verifica uma correspondência perfeita entre os deveres que o Capítulo III da LFP impõe às candidaturas e as coimas previstas nos artigos 30.º a 32.º, pelo que nem todas as ilegalidades e irregularidades previamente detetadas na fiscalização às contas da campanha eleitoral implicam responsabilidade contraordenacional. Como se refere, por exemplo, no Acórdão 177/2014, «[...] apesar de a violação da Lei 19/2003, em matéria de financiamento e organização das contas das campanhas eleitorais, poder resultar do incumprimento de qualquer um dos deveres específicos que as suas normas impõem ou da violação do dever genérico de organização contabilística, apenas são passíveis de coima aquelas condutas que sejam subsumíveis à previsão tipificadora dos artigos 30.º a 32.º do referido diploma legal. Com efeito, ao invés do que resultaria de um tipo geral aberto, construído de modo a tornar sancionável a violação, em si mesma e enquanto tal, de qualquer um dos deveres resultantes da Lei 19/2003, os tipos legais que integram o regime jurídico do financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais contêm, eles próprios, uma descrição da conduta proibida que estrutura a própria definição do ilícito».

Na síntese do Acórdão 405/2009 (reproduzida no Acórdão 43/2015), o Tribunal, com base nessa constatação, procedeu à identificação das condutas que o legislador escolheu como passíveis de coima, em matéria de financiamento e organização das contas das campanhas eleitorais, nos seguintes termos:

a) recebimento, por parte dos partidos políticos, de receitas para a campanha eleitoral através de formas não consentidas pela LFP - artigo 30.º, n.º 1, da mesma Lei;

b) incumprimento, por parte dos partidos políticos, dos limites máximos de despesas de campanha eleitoral fixados no artigo 20.º da LFP - artigo 30.º, n.º 1, desta Lei;

c) incumprimento, por parte das pessoas singulares, pessoas coletivas e respetivos administradores, das regras de financiamento de campanha eleitoral previstas no artigo 16.º da LFP - artigo 30.º, n.os 2 a 4, da citada Lei;

d) ausência ou insuficiência de discriminação e comprovação das receitas e despesas da campanha eleitoral, por parte dos partidos políticos, mandatários financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores - artigo 31.º da LFP;

e) incumprimento do dever de entrega, por partidos, mandatários financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores, de contas discriminadas da campanha eleitoral, nos termos previstos no artigo 27.º da LFP - artigo 32.º, n.os 1 e 2, da mesma Lei.

E, a partir desta sistematização, no mesmo Acórdão, identificaram-se, no conjunto das infrações respeitantes ao financiamento das campanhas eleitorais tipificadas na LFP, duas categorias (para além da correspondente ao incumprimento puro e simples do dever de entrega das contas discriminadas da campanha eleitoral): uma, composta por infrações relativas ao financiamento das campanhas eleitorais propriamente dito - as correspondentes à obtenção de receitas ou realização de despesas ilícitas, previstas no artigo 30.º do citado diploma; e outra, integrada pelas infrações relativas à organização das contas da campanha - as correspondentes à ausência ou insuficiência de discriminação e comprovação das receitas e despesas da campanha, a que se refere o artigo 31.º da mesma Lei. Como ali se elucida, as primeiras reportam-se à «inobservância do regime das despesas e das receitas em sentido estrito - ou seja, do conjunto das regras a que se subordina a respetiva realização e de cujo cumprimento depende a regularidade de cada ato» (cf. os artigos 16.º, n.º 4 - anterior n.º 3 -, até "60 IAS por doador", 19.º, n.º 3, e 20.º da LFP); as segundas respeitam à «desconsideração do regime de tratamento das receitas e despesas realizadas - isto é, do conjunto das regras que dispõem sobre a incidência contabilística dos atos já realizados» (cf. o artigo 12.º, por força do artigo 15.º, n.º 1, e os artigos 16.º, n.os 2 e 4, última parte, e 19.º, n.º 2, da LFP).

Para o que ao caso importa, dispõe este artigo 31.º que os mandatários financeiros, os candidatos às eleições presidenciais, os primeiros candidatos de cada lista e os primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores que não discriminem ou não comprovem devidamente as receitas e despesas da campanha eleitoral são punidos com coima mínima no valor do IAS e máxima no valor de 80 vezes o valor do IAS (n.º 1) e que os partidos políticos que cometam a infração prevista no número anterior são punidos com coima mínima no valor de 10 vezes o valor do IAS e máxima no valor de 200 vezes o valor do IAS (n.º 2) [uma vez que estamos perante factos ocorridos antes de 2018, há que atentar no disposto no artigo 152.º, n.os 2 e 3, da Lei 64-A/2008, de 31 de dezembro, nos termos do qual o valor a considerar é o do salário mínimo nacional (SMN) de 2008 ((euro)426,00), enquanto o valor do IAS não o ultrapassasse (o que só sucedeu em 2018 - cf. a Portaria 21/2018, de 18 de janeiro)].

Como resulta do teor da norma, o elemento objetivo do tipo contraordenacional em apreciação consiste na prestação de contas de campanha eleitoral sem discriminação ou sem a devida comprovação das respetivas receitas e despesas. Assim, não está em causa qualquer violação dos deveres legais de organização contabilística a que obedecem as contas das campanhas eleitorais, mas apenas e tão só a violação de tais deveres que se traduza na ausência de discriminação e/ou de devida comprovação da receita ou despesa em causa (vide o Acórdão 754/2020).

Relativamente ao elemento subjetivo, o tipo do artigo 31.º da LFP é estruturalmente doloso, admitindo a verificação do dolo em qualquer uma das três modalidades que dogmaticamente lhe estão associadas, ou seja, dolo direto, necessário ou eventual.

Considera o recorrente que o artigo 31.º da LFP, ao utilizar um conceito indeterminado - «devidamente» -, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da legalidade, na vertente da tipicidade, pelo que, antes de avançar para análise da subsunção da conduta do arguido ao tipo contraordenacional imputado, importa apreciar esta questão.

O Tribunal Constitucional já por diversas vezes se pronunciou sobre o significado e alcance do princípio da legalidade no domínio contraordenacional, tendo repetidamente entendido que «a Constituição não requer para o ilícito de mera ordenação social o mesmo grau de exigência que requer para os crimes. Nem o artigo 29.º da Constituição se aplica imediatamente ao ilícito de mera ordenação social nem o artigo 165.º confere a este ilícito o mesmo grau de controlo parlamentar que atribui aos crimes» (cf. o Acórdão 41/2004).

Na mesma linha, o Tribunal afirmou, no recente Acórdão 231/2020, o seguinte: «Deve, portanto, concluir-se que as exigências do enquadramento constitucional relativamente à técnica legislativa a ser adotada no Direito Contraordenacional não correspondem necessariamente ao paradigma mais exigente da tipicidade no Direito Criminal. É certo que a vinculação da atividade da Administração ao princípio da legalidade pressupõe a tipicidade dos seus comportamentos. Todavia, a exigência da determinabilidade na definição dos deveres impostos aos administrados que podem ser sancionados administrativamente não impede o recurso a conceitos indeterminados. [...]. Daqui resulta que os tipos contraordenacionais podem revestir maior maleabilidade, desde que acautelem a determinabilidade objetiva das condutas proibidas.».

Da jurisprudência constitucional sobre a extensão do princípio da legalidade no âmbito contraordenacional resulta que a Constituição permite o recurso a conceitos indeterminados, mas não indetermináveis, isto é, as exigências decorrentes daquele princípio serão respeitadas se a utilização de conceitos indeterminados não impedir que os destinatários da norma saibam quais as concretas condutas sancionadas.

Vejamos, então, se tais exigências são observadas no caso dos autos.

O tipo contraordenacional imputado ao arguido resulta, como se viu supra, da interpretação conjugada das normas do artigo 30.º, n.os 1 e 2, da LFP com as normas do Capítulo III do mesmo diploma, que regem o tratamento das receitas e despesas realizadas, em particular, o artigo 12.º, ex vi do artigo 15.º, e os artigos 16.º, n.os 2 e 4, última parte, e 19.º, n.º 2, os quais estabelecem requisitos muito específicos a que a contabilidade dos partidos deve obedecer. Ora, através da conjugação destes preceitos, os comportamentos sancionados como contraordenação resultam objetivamente determináveis para os destinatários, não podendo considerar-se violado o disposto no artigo 29.º Constituição. É a posição que encontramos, entre outros, no Acórdão 755/2020, no qual se acrescenta, ainda, que «a obrigação de integral comprovação documental de cada um dos atos de despesa contabilizados pelas candidaturas vem sendo reiteradamente afirmada e explicitada na jurisprudência constitucional, em termos que não deixam dúvidas quanto à forma do seu cumprimento», o que assume especial relevo tendo em conta que «os destinatários da norma são os partidos políticos e os mandatários financeiros das campanhas, necessariamente familiarizados com o conjunto de regras específicas relativas à candidatura a um ato eleitoral».

As considerações expendidas levam a concluir que a norma em apreço, não violando o princípio da legalidade ou tipicidade, não está ferida de inconstitucionalidade material, improcedendo, por conseguinte, este fundamento do recurso.

16 - Cabe, agora, analisar cada uma das quatro condutas imputadas ao recorrente, designadamente na perspetiva do preenchimento do tipo objetivo da contraordenação por que foi sancionado, sendo três delas em conjunto e a outra em separado.

Nas contas apresentadas foi incluída como receita a quantia de (euro)500,00 obtida através de transferência bancária realizada para a conta da campanha sem indicação da respetiva proveniência (facto "5.").

Foram, por sua vez, incluídas despesas com combustíveis cujas faturas não contêm a identificação da matrícula do respetivo veículo (factos "6." a "6.4.").

Foi, ainda, registada como despesa da campanha a quantia de (euro)25,00 referente ao aluguer de um veículo ao fornecedor João Mota Gomes, sem exibição de suporte documental/fatura (facto "8.").

Em face desta factualidade, importa, em primeiro lugar, atender ao disposto no artigo 12.º, n.os 1 e 2, aplicável ex vi do artigo 15.º, n.º 1, ambos da LFP, segundo os quais, como dissemos, a organização contabilística das campanhas eleitorais, sem prejuízo dos requisitos especiais do regime contabilístico próprio, se rege pelos princípios aplicáveis ao Sistema de Normalização Contabilística (SNC). Destas normas extrai-se um dever genérico de organização contabilística nas campanhas eleitorais, por forma a que a contabilidade reflita, designadamente, as suas receitas e despesas.

Releva, ainda, o preceituado pelo artigo 16.º da LFP, que regula a forma como devem ser comprovadas as receitas da campanha, estabelecendo, quanto às contribuições dos partidos políticos, a necessidade de serem certificadas por documento emitido pelos órgãos competentes do partido e, relativamente aos donativos de pessoas singulares, a obrigação de serem titulados por cheque ou outro meio bancário que permita a identificação do seu montante e da sua origem.

É, também, de atentar no artigo 19.º, n.º 2, da LFP, que obriga à discriminação por categorias das despesas de campanha eleitoral, com a junção de documento certificativo em relação a cada ato de despesa. Tem sido entendimento deste Tribunal que o cumprimento do dever imposto pela segunda parte deste artigo impõe não só a apresentação de documentos destinados à comprovação das despesas contabilizadas, mas também que o descritivo dos suportes documentais apresentados para esse efeito seja suficientemente completo para avaliar se as despesas documentadas respeitam à campanha eleitoral e estão adequadamente refletidas nas contas, bem como para aferir da sua razoabilidade.

Volvendo ao nosso caso, as contas apresentadas não evidenciam a proveniência da transferência bancária de (euro)500,00, nem contêm qualquer certificação ou título que permita identificar a origem e o motivo dessa receita, que, desse modo, não pode ser sindicada.

Tais omissões, violadoras dos artigos 12.º, n.os 1 e 2, e 16.º da LFP, traduzem-se na ausência de comprovação da receita, subsumível ao tipo objetivo da contraordenação prevista e sancionada pelo artigo 31.º, n.º 1 e 2, do mesmo diploma legal.

Por outro lado, nas faturas relativas às despesas com combustíveis não são indicadas as matrículas dos veículos respetivos, tornando impossível aferir da sua conexão com a campanha em causa, o que configura incumprimento do citado artigo 12.º, n.os 1 e 2.

E o aluguer de veículo ao fornecedor João Mota Gomes, no valor de (euro)25,00, registado como despesa da campanha, não tem qualquer suporte documental, designadamente, fatura, em violação, para além daquele artigo 12.º, n.os 1 e 2, do artigo 19.º, n.º 2, da LFP.

Tais irregularidades conduzem a uma ausência de comprovação destas despesas da campanha, preenchendo, nessa medida, os pressupostos típicos objetivos da contraordenação em causa.

Analisemos, em seguida, a fatura alegadamente incompleta, isto é, cujo descritivo não é suficientemente detalhado ou claro e, como tal, não permite determinar a natureza da despesa e aferir da razoabilidade do seu montante face aos valores de mercado.

Importa, pois, analisar a fatura em causa à luz do direito aplicável - os n.os 1 e 2 do artigo 31.º, combinados com os artigos 12.º, n.os 1 e 2, e 15.º, n.º 1, todos da LFP - e formular um juízo preciso sobre a irregularidade apontada.

Para tanto, começaremos por identificar e definir as irregularidades que, em abstrato, podem afetar as contas neste domínio. Nesta tarefa, seguiremos de perto a classificação apresentada no Acórdão 758/2020 (que repete e desenvolve as considerações também expendidas sobre o tema no Acórdão 756/2020).

Num primeiro grupo (a) incluem-se as despesas tituladas por faturas que não permitem identificar a natureza, qualidade ou quantidade daquilo que se pagou. São estas, verdadeiramente, as faturas incompletas, inidóneas a servir de instrumento de titulação de despesas de campanha e, por isso, irregulares.

Num segundo grupo (b) estão as despesas que representam gastos relativos a bens e serviços incluídos na Listagem 38/2013, cujos valores se situam dentro dos limites máximo e mínimo aqui estabelecidos, pelo que as faturas que a suportam devem ser consideradas regulares.

Num terceiro grupo (c) encontram-se as despesas que representam gastos relativos a bens e serviços incluídos na Listagem 38/2013, cujos valores se situam fora dos limites estabelecidos naquela listagem. As faturas respetivas devem ser consideradas irregulares em função dessa desconformidade, salvo se o Partido demonstrar cabalmente a razão de ser do desvio ou se este não for significativo.

No último grupo (d) inserem-se as despesas relativas a bens e serviços não incluídos na Listagem referida. As faturas respetivas, desde que discriminem clara e precisamente o seu objeto, devem ser tidas como regulares, salvo se for provado que os montantes nelas inscritos são inverosímeis, por excessivamente elevados ou demasiado reduzidos, em face dos usos do mercado pertinente atento o específico bem ou serviço.

Procuraremos, agora, classificar a fatura dos autos por referência a um daqueles quatro grupos, tendo sempre subjacente o propósito de encontrar um critério justo e equitativo de repartição do ónus da prova da fatura irregular.

A fatura, com o n.º 2016/76, emitida em 06/10/2016, pelo fornecedor «TECWELT», no montante de (euro)73,80, tem o seguinte descritivo: «Impressão/fotocópias Cores, Preço Unitário 0,12 (euro), Quantidade 1000, Desconto 50,00 %, IVA 23,00 %, Total Ilíquido 60,00 (euro)» (factos "7." e "7.1.").

Trata-se de uma fatura cujo descritivo não explica qual o método ou o suporte da impressão, não permitindo identificar as características daquilo que se pagou. Estamos, por conseguinte, perante uma fatura incompleta e, como tal, irregular, integrando-se no grupo (a).

Em suma, a fatura deve ser considerada em desconformidade com o quadro legal aplicável em virtude de o seu descritivo ser incompleto e não terem sido apresentados elementos complementares de comparação de preços que permitissem aferir da razoabilidade das despesas face aos valores de mercado.

Este juízo está em sintonia com a jurisprudência do Tribunal que qualificou situações em que o descritivo do documento de suporte se mostrou insuficiente ou pouco claro e, no conjunto da documentação disponibilizada pelo Partido, não se encontrou qualquer evidência da razoabilidade das despesas face aos preços de referência constantes da lista indicativa de preços ou em relação aos preços praticados no mercado como violação do dever de comprovação, através de documentos de suporte suficientemente concludentes e completos, das despesas da campanha eleitoral, imposto pelos artigos 12.º, n.os 1 e 2 - ex vi do artigo 15.º, n.º 1 - e 19.º, n.º 2, todos da LFP, violação essa relevante no plano contraordenacional, nos termos do artigo 31.º da mesma Lei (cf. os Acórdãos n.os 177/2014, 43/2015, 140/2015, 537/2015, 574/2015 e 98/2016). Salienta-se que o denominador comum a todas as situações - as identificadas nessa jurisprudência (a que se juntam, mais recentemente, os Acórdãos n.os 756/2020 e 758/2020) e a reconhecida nos autos - é a ausência ou insuficiência de documentação de suporte para aferir da razoabilidade dos preços faturados, factualidade que configura a violação do dever imposto pelo artigo 12.º, n.os 1 e 2, ex vi do artigo 15.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 19.º, n.º 2, todos da LFP, dando causa, por via de uma insuficiente comprovação das despesas da campanha, ao preenchimento do tipo contraordenacional constante do artigo 31.º, n.os 1 e 2, da mesma Lei.

17 - No que toca ao tipo subjetivo da contraordenação, a decisão sancionatória imputa os factos ao Partido a título de dolo, sob a modalidade de dolo eventual. Nela se afirma, ainda, que o arguido teve consciência da ilicitude dos mesmos.

A este respeito, pelas razões já apontadas - conjugação da factualidade objetiva apurada com as regras de experiência comum, não retificação das contas mesmo após o conhecimento, através da notificação do relatório da ECFP, das situações em análise, apreciação e julgamento das irregularidades em causa por vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional e experiência do Partido -, ficou provada quer a atuação dolosa relativamente a todas as condutas objetivas (factos "9." a "11."), quer a consciência da ilicitude (facto "12.") por parte do arguido.

18 - Em face de tudo quanto foi exposto, conclui-se que a conduta do arguido integra os elementos do tipo objetivo e subjetivo da contraordenação prevista e sancionada no artigo 31.º, n.os 1 e 2, da LFP.

D.2. Das consequências jurídicas da contraordenação

19 - Para o caso de se manter a condenação, pretende o recorrente que lhe seja aplicada uma admoestação, por entender que «as razões de menor ilicitude ou culpa que justificam a aplicação da medida prevista no artigo 51.º do RGCO, verdadeira sanção de substituição, estão amplamente verificadas no caso sub judice», invocando, ainda, para o efeito a inexistência de benefício económico e a ausência de antecedentes.

Cumpre, então, apreciar se se justifica a aplicação de uma coima ou se, ao invés, será suficiente a aplicação de uma admoestação.

A este respeito estabelece o artigo 51.º, n.º 1, do RGCO, que, quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.

Assim, são requisitos cumulativos da aplicação da sanção de admoestação a reduzida gravidade da contraordenação e a reduzida gravidade da culpa do agente.

Do ponto de vista da gravidade da infração, importa ter em conta, desde logo, que se trata do incumprimento de um dever imposto pelo regime legal do funcionamento e organização das contas dos partidos, de carácter estruturante e essencial para o controlo e fiscalização destas. Para além da importância que o controlo das contas das campanhas eleitorais assume no quadro da efetivação de um Estado democrático, a concreta infração em causa não pode deixar de ser analisada tendo em consideração a sua natureza e dimensão.

No caso, pese embora as infrações cometidas, em si mesmas e isoladamente consideradas, não revelem um grau elevado de gravidade, deve atender-se à quantidade das irregularidades detetadas nas contas prestadas, que, por representar uma violação plúrima dos deveres de organização contabilística, acentua a ilicitude da conduta, globalmente analisada. A culpa, ainda que atenuada por se apresentar na sua modalidade menos intensa - dolo eventual -, bem como pela pequena dimensão e estrutura do Partido, não é tão diminuta ao ponto de justificar a aplicação de uma admoestação, na medida em que, por um lado, está em causa o cumprimento de regras específicas relativas à candidatura de um ato eleitoral que um partido, mesmo com essas características, na ausência de outras razões - que aqui não se descortinam - não pode, em consciência, deixar de conhecer e menosprezar e, por outro, as contas de um partido pequeno e com meios mais escassos também serão, à partida, menos complexas do que as de um partido de maior dimensão.

Deste modo, conclui-se que não se encontram reunidos os pressupostos de aplicação da admoestação e que a medida concreta da coima fixada, a qual se situa muito próximo do mínimo legal, resulta de uma ponderação adequada dos critérios legais.

III - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto pelo MPT e, consequentemente, manter a coima aplicada pela ECFP pela prática da contraordenação prevista e sancionada pelo artigo 31.º, n.os 1 e 2, da LFP.

Atesto os votos de conformidade dos Conselheiros António Ascensão Ramos, José António Teles Pereira e Lino Rodrigues Ribeiro, que participaram por via telemática. João Pedro Caupers.

Lisboa, 8 de fevereiro de 2022. - João Pedro Caupers - Afonso Patrão - José João Abrantes - Mariana Canotilho - Maria Benedita Urbano - Pedro Machete - Joana Fernandes Costa.

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Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/4856769.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 2003-06-20 - Lei 19/2003 - Assembleia da República

    Regula o regime aplicável ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

  • Tem documento Em vigor 2005-01-10 - Lei Orgânica 2/2005 - Assembleia da República

    Regula a organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

  • Tem documento Em vigor 2008-12-31 - Lei 64-A/2008 - Assembleia da República

    Aprova o orçamento do Estado para 2009. Aprova ainda o regime especial aplicável aos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (FIIAH) e às sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (SIIAH), bem como o regime de isenção do IVA e dos Impostos Especiais de Consumo aplicável na importação de mercadorias transportadas na bagagem dos viajantes provenientes de países ou territórios terceiros.

  • Tem documento Em vigor 2018-04-19 - Lei Orgânica 1/2018 - Assembleia da República

    Oitava alteração à Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), segunda alteração à Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), sétima alteração à Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais), e primeira alteração à Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei de Organização e Funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos)

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