Acórdão 430/91
Processo 314/91
1 - O representante do Ministério Público junto deste Tribunal requereu em 3 de Junho, ao abrigo do n.º 3 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que o Tribunal Constitucional apreciasse e declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 10.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, do Decreto-Lei 14/84, de 11 de Janeiro.
Baseou o pedido em que tais normas já haviam sido julgadas inconstitucionais em (mais de) três casos concretos: primeiro, no Acórdão 489/89, de 13 de Julho (da 1.ª Secção), publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Fevereiro de 1990; e recentemente nos Acórdãos n.os 155/91, 156/91, 157/91, 158/91 e 160/91, de 24 de Abril, e 174/91, 175/91, 182/91, 183/91 e 185/91, de 7 de Maio (todos da 2.ª Secção), ainda por publicar à data do requerimento.
Ouvido, nos termos do artigo 54.º da citada Lei 28/82, o Primeiro-Ministro limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
Cumpre decidir.
2 - A propósito da fiscalização da constitucionalidade, atribui o n.º 3 do artigo 281.º da Constituição ao Tribunal Constitucional competência para apreciar e declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que ela tenha sido julgada inconstitucional em três casos concretos. E, regulamentando esse preceito, dispõe o artigo 82.º da Lei 28/82 que, sempre que a mesma norma tenha sido julgada inconstitucional em três casos concretos, pode o Tribunal Constitucional, por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade previstos na lei.
A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não é, porém, automática. Isto é: o julgamento da inconstitucionalidade de uma norma em três casos concretos não leva necessariamente à declaração da inconstitucionalidade dessa norma com força obrigatória geral.
Isso mesmo se afirmou logo no acórdão que apreciou o primeiro pedido feito ao Tribunal Constitucional com base no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição (correspondente ao actual n.º 3), ou seja, o Acórdão 93/84, de 31 de Julho (no Diário da República, 1.ª série, de 16 de Novembro de 1984, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., p. 153).
E tem sido nesse sentido a jurisprudência do Tribunal, como se pode ver, v. g., do Acórdão 204/86, de 11 de Junho (no Diário da República, 1.ª série, de 27 de Junho de 1986, e nos citados Acórdãos, 7.º vol., p. 253), e, muito recentemente, do Acórdão 400/91, de 30 de Outubro (no processo 226/90).
Idêntica é a posição da doutrina.
Diz, com efeito, o Prof. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, 2.ª ed., revista, 1983, n.º 108, II:
O pedido leva consigo um juízo sobre a suficiência da última decisão concreta para que se passe à declaração com força obrigatória geral, mas é um novo processo de fiscalização que vem então a abrir-se e uma nova decisão do Tribunal que tem de se formar.
Ensina, por sua vez, o Prof. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., totalmente refundida e aumentada, 1991, parte IV, capítulo 29, padrão VII, 2.º, DI:
Note-se, porém, que este processo de declaração da inconstitucionalidade com base em controlo incidental não é automático. Em termos processuais, trata-se de um novo processo de fiscalização abstracta sucessiva, o que aponta para um nova apreciação da questão pelo TC (cf. o artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional).
Há, assim, que apreciar de novo a questão da inconstitucionalidade das normas que são objecto do pedido.
É o que se passa a fazer.
3 - O Decreto-Lei 15/84, de 11 de Janeiro, alterou o regime de julgamento e punição do crime de emissão de cheque sem provisão e, como se lê no respectivo sumário oficial, «institui a medida administrativa de restrição do uso de cheque pelos responsáveis pela emissão de cheques sem provisão». O capítulo I é subordinado ao título «Do processo pelo crime de emissão de cheque sem provisão» e o capítulo II ao título «Da medida de restrição ao uso de cheque».
Dispõe o artigo 10.º - o primeiro do capítulo II -, nos seus n.os 1 e 2:
A medida de restrição ao uso de cheque a que o presente capítulo se refere é uma providência de natureza administrativa que envolve a proibição às pessoas a quem for aplicada de movimentar por meio de cheques as contas de depósito de que sejam titulares em quaisquer instituições de crédito [n.º 1].
A medida de restrição ao uso de cheque que obriga as pessoas a quem for aplicada a devolver às instituições de crédito todos os módulos de cheques ainda em seu poder ou dos seus mandatários e às instituições de crédito a não lhes facultar cheques para a movimentação das suas contas de depósito, sem prejuízo do disposto no número seguinte [n.º 2].
Nos termos do n.º 1 do artigo 11.º, a medida de restrição ao uso de cheque é aplicável:
a) Quando no período de três meses a mesma entidade saque três ou mais cheques que, apresentados a pagamento no prazo legal, não forem pagos por falta de provisão, ainda que sacados sobre instituições de crédito distintas;
b) Quando, tendo sido emitido um ou mais cheques que não tenham sido pagos por falta de provisão, irregularidade de preenchimento ou de saque, se prove que o titular da conta, pela utilização indevida do cheque, põe em causa o espírito de confiança que deve presidir à sua circulação.
Segundo o n.º 1 do artigo 12.º, a medida de restrição ao uso de cheque tem a duração mínima de seis meses e máxima de três anos.
Quanto à competência para aplicar a medida, preceitua o n.º 1 do artigo 13.º:
Compete ao Banco de Portugal, por intermédio do seu conselho de administração, decidir sobre a aplicação da medida de restrição ao uso de cheque.
Dessa decisão há, porém, recurso contencioso nos termos gerais de direito (n.º 7 do artigo 15.º).
Dispõe finalmente o artigo 17.º:
1 - Quem, estando abrangido pela medida de restrição ao uso de cheque, emitir cheque com provisão fora dos casos previstos no n.º 3 do artigo 10.º, ou no prazo de oito dias após a notificação não devolver às instituições de crédito os módulos de cheques em seu poder, em conformidade com o n.º 2 do artigo 10.º, incorre na pena prevista para o crime de desobediência.
2 - Quem, tendo-lhe sido aplicada a presente medida, emitir cheque sem provisão incorre na pena prevista para o crime de desobediência qualificada, sem prejuízo da responsabilidade pelo crime de emissão de cheque sem provisão.
Está em causa, como se disse, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 10.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1.
E, na verdade, elas foram julgadas inconstitucionais, v. g., nos Acórdãos n.os 489/89, 155/91 e 160/91 - os dois últimos também já publicados no Diário da República, 2.ª série, de 3 e 4 de Setembro de 1991, respectivamente -, com fundamento em que só à Assembleia da República, ou ao Governo, devidamente autorizado, competia legislar na matéria, isto é, criando a medida de restrição ao uso de cheque, e nem o artigo 3.º da Lei 12/83, de 24 de Agosto, nem o artigo 1.º da Lei 27/83, de 8 de Setembro, invocados no Decreto-Lei 15/84, habilitavam o Governo a instituir essa medida.
Importa examinar esses dois pontos.
4 - A questão da constitucionalidade das normas do Decreto-Lei 14/84 que se referem à medida de restrição ao uso de cheque tem sido relacionada com a natureza de tal medida.
Assim, o Supremo Tribunal Administrativo (1.ª Secção) tem-se orientado no sentido da não inconstitucionalidade dessas normas, por entender que a restrição ao uso de cheque é uma «medida de carácter administrativo». A afirmação consta do Acórdão de 12 de Dezembro de 1985 (no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 352, pp. 244), onde se diz mais que a referida medida nem é uma medida de segurança nem se pode identificar com as sanções aplicadas quando se está em presença de uma contra-ordenação, de uma contravenção ou de um crime.
O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão da Secção Criminal de 5 de Abril de 1989 (na Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, 1989, t. 2, p. 8), decidiu também que tais normas não são inconstitucionais, já que «o legislador configurou tal medida como de natureza administrativa e não penal, sujeitando a sua aplicação aos princípios de controlo que regulam o exercício do poder administrativo sancionatório».
Diversamente, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade no citado Acórdão 489/89, onde, depois de se afastar a natureza de «medida de polícia», se conclui que se trata de uma «medida sancionatória», sendo irrelevante tomar posição na questão de saber «se a tipologia descrita se integrará no direito penal, por a respectiva sanção ter a natureza de uma verdadeira pena, ou se, ao invés, se pretendeu criar uma contra-ordenação, estando em causa sanções ordenativas ou coimas», pois, «tanto numa como na outra hipótese, se está perante matéria incluída na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República», só podendo, portanto, o Governo legislar sobre ela se para o efeito estivesse devidamente autorizado [alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição], o que não se verifica, porque nem o artigo 3.º da Lei 12/83 nem o artigo 1.º da Lei 27/83, invocados no preâmbulo do Decreto-Lei 14/84, dão cobertura às normas questionadas.
Como resolver?
5 - Recapitulemos antes de mais o essencial do regime da medida de restrição ao uso de cheque, tal como ele está delineado no capítulo II do Decreto-Lei 14/84:
a) Pressuposto da sua aplicação é, por um lado, a emissão por parte da mesma entidade, no período de três meses, de três ou mais cheques que, apresentados a pagamento no prazo legal, não tenham sido pagos por falta de provisão [alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º] ou, por outro lado, a emissão de um ou mais cheques que não tenham sido pagos por um de três motivos - falta de provisão, irregularidade de preenchimento, irregularidade de saque -, desde que se prove «que o titular da conta, pela utilização indevida do cheque, põe em causa o espírito de confiança que deve presidir à sua circulação» [alínea b) do mesmo número];
b) Sujeito passivo da medida é não só o sacador como também os titulares da conta, «contanto que aquele tenha agido na qualidade de representante e no interesse dos titulares da conta sacada» (n.º 2 do citado artigo 11.º);
c) A medida é temporária, tendo uma duração variável entre seis meses e três anos (artigo 12.º);
d) As pessoas a quem a medida é aplicada ficam proibidas de movimentar por meio de cheques as contas de que sejam titulares em quaisquer instituições de crédito - sendo obrigadas a devolver os módulos de cheques que ainda tenham em seu poder ou em poder dos mandatários e as instituições de crédito correspondentemente impedidas de lhes facultar novos cheques -, excepto se se tratar de cheques avulsos, visados ou não pelas instituições de crédito sacadas, consoante se destinem a pagamentos ou a simples levantamentos de fundos (artigo 10.º);
e) A competência para a aplicação da medida pertence ao Banco de Portugal, através do seu conselho de administração (artigo 13.º);
f) Da respectiva decisão cabe recurso contencioso (n.º 7 do artigo 15.º).
Vejamos então como se poderá (deverá) cracterizar esta medida.
6 - No domínio do ilícito criminal distinguem-se duas espécies de reacções criminais: as penas e as medidas de segurança. O elenco das penas consta do título III do livro I do Código Penal de 1982: são intituladas penas principais as penas de prisão e de multa (artigos 40.º a 47.º), a suspensão da execução da pena (artigos 48.º a 52.º), o regime de prova (artigos 53.º a 58.º), a admoestação e prestação de trabalho (artigos 59.º e 60.º) e a liberdade condicional (artigos 61.º a 64.º); como penas acessórias prevêem-se a pena de demissão (artigos 66.º e 68.º), a suspensão temporária de funções (artigos 67.º e 68.º) e a interdição do exercício de outras profissões ou direitos (artigo 69.º). As medidas de segurança estão enumeradas no título VI do mesmo livro: aí se fala do internamento de inimputáveis (artigos 91.º a 95.º), da expulsão de estrangeiros, como substituto do internamento de inimputáveis (artigo 96.º), da interdição de profissões (artigos 97.º e 98.º), da suspensão e reexame das medidas de segurança (artigos 99.º a 102.º) e do internamento de imputáveis portadores de anomalia psíquica (artigos 103.º a 106.º).
Trata-se de matéria - esta, das penas e medidas de segurança e respectivos pressupostos - sobre a qual só a Assembleia da República pode legislar, salvo autorização ao Governo, nos termos da alínea c) do n.º 1 do citado artigo 168.º
E só a essa matéria se referia a redacção originária da Constituição [artigo 167.º, alínea e)].
Instituído pelo Decreto-Lei 232/79, de 24 de Julho, o ilícito de mera ordenação social - ou seja, «todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima», na definição de «contra-ordenação» dada pelo n.º 1 do artigo 1.º desse diploma - e apesar de o Decreto-Lei 411-A/79, de 1 de Outubro, ter vindo a revogar o n.º 3 do mesmo artigo 1.º, que declarava «equiparáveis às contra-ordenações as contravenções ou transgressões previstas pela lei vigente a que sejam aplicadas sanções pecuniárias», a 1.ª revisão da lei fundamental veio, porém, introduzir no n.º 1 do artigo 168.º uma nova alínea - a alínea d) -, por virtude da qual passou a constituir reserva relativa de competência legislativa o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo, e igualmente o regime geral de punição das infracções disciplinares. O regime do ilícito de mera ordenação social foi, aliás, concomitantemente reformulado no uso da autorização legislativa constante da Lei 24/82, de 23 de Agosto, pelo Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, aprovado pelo Conselho de Ministros em 26 de Agosto de 1982, e em cujo relatório se diz precisamente que «com a revisão constitucional aprovada pela Assembleia da República o direito das contra-ordenações virá a receber expresso reconhecimento constitucional [cf., v. g., os textos aprovados para os novos artigos 168.º, n.º 1, alínea d), e 282.º, n.º 3]».
Como já se disse, as contra-ordenações são punidas, a título principal, com coimas, cujos montantes, mínimo e máximo, constam do artigo 17.º do citado Decreto-Lei 433/82. Mas prevêem-se também nesse diploma sanções acessórias: a apreensão de objectos - nos n.os 1 e 2 do artigo 21.º -; a interdição do exercício de uma profissão ou actividade, a privação do direito a subsídio outorgado por entidades ou serviços públicos e a privação do direito de participar em feiras ou mercados - nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 do mesmo artigo.
Quanto ao ilícito disciplinar:
O Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei 24/84, de 16 de Janeiro, considera infracção disciplinar, no seu artigo 3.º, «o facto, ainda que meramente culposo, praticado pelo funcionário ou agente com violação de algum dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce»; e no artigo 11.º enumera as penas disciplinares aplicáveis a esses funcionários e agentes:
a) Repreensão escrita;
b) Multa;
c) Suspensão;
d) Inactividade;
e) Aposentação compulsiva;
f) Demissão.
Mas, como se disse no Acórdão deste Tribunal n.º 262/86, de 21 de Outubro (no Diário da República, 1.ª série, de 11 de Novembro de 1986), «o direito disciplinar público não é exclusivo da relação entre a Administração e os seus funcionários e agentes», não existindo razão alguma «para concluir que a Constituição tenha tornado ilegítima a utilização da punição disciplinar pública nas relações que envolvem uma relação especial de subordinação de terceiros à Administração.
Ora, a medida de restrição ao uso de cheque nem consta do catálogo das penas principais enumeradas no Código Penal nem pode enquadrar-se na pena acessória do artigo 69.º desse diploma, uma vez que a interdição nele prevista é de «profissões» ou «actividades» (acrescentando-se, aliás, «cujo exercício depende de um título público ou de uma autorização ou homologação da autoridade pública»), e aqui do que se trata é tão-só de restringir o uso de cheque aos titulares de contas de depósito. Não seria, de resto, legítimo falar em «pena acessória» sem haver «pena principal» e esta, se pode não existir no caso de emissão de cheque (ou cheques) sem provisão - porque o procedimento criminal depende de participação do ofendido (Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de 1938) -, não existe mesmo quando a conduta que dá origem à aplicação da medida de restrição é a «irregularidade de preenchimento ou de saque» (aliada à prova de que «o titular da conta, pela utilização indevida do cheque, põe em causa o espírito de confiança que deve presidir à sua circulação»).
Afastada está também a qualificação da medida como medida de segurança, já que as medidas de segurança «pressupõem o cometimento pelo agente de um facto objectivamente criminoso», como diz o Prof. Eduardo Correia, com a colaboração de Figueiredo Dias, assistente da Faculdade de Direito, Direito Criminal, I, reimpressão, 1971, § 2.º, n.º 8, III, b), e resulta inequivocamente do disposto nos artigos 91.º, 97.º e 103.º do Código Penal, e no caso de «irregularidade de preenchimento ou de saque» não há um facto criminoso como pressuposto da aplicação da medida.
Não se afigura, por outro lado, viável a consideração da medida em causa como sanção disciplinar, dada a ausência de uma «relação especial de subordinação» dos titulares das contas de depósito face ao Banco de Portugal (cf. o citado Acórdão 282/86).
Finalmente, deve afastar-se, à face da lei vigente, a inclusão da medida no domínio do ilícito de mera ordenação social, uma vez que, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei 433/82, só há contra-ordenação quando para o facto esteja cominada uma «coima», que é uma sanção pecuniária. Como diz o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, «O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social» (nas Jornadas de Direito Criminal - O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, fase I, 1983), IV, «é [...] através de um índice conceitual formal que o legislador decidiu operar praticamente a distinção entre crimes e contra-ordenações».
Teremos então de concluir que a matéria em causa está fora da reserva de competência da Assembleia da República?
7 - Como vimos, o Acórdão deste Tribunal n.º 489/89 atribuiu à medida de restrição ao uso de cheque carácter sancionatório. Diz-se nele a dado passo:
As normas em apreço implicam uma participação, um julgamento de certa conduta, para se decidir se se subsumem na tipicidade por elas criada.
Se a referida prova se fizer, segue-se uma verdadeira condenação nas sanções previstas: proibição de movimentação por meio de cheque das contas de depósito, salvo por cheques avulsos com determinadas finalidades, obrigatoriedade de devolução dos módulos de cheques em poder do infractor à instituição bancária correspondente. Estas medidas terão a duração mínima de seis meses e máxima de três anos.
Parece manifesto o carácter sancionatório das medidas previstas naquelas normas. Delas resulta a afectação de direitos subjectivos do respectivo sujeito. Evidentemente existe concomitantemente uma finalidade preventiva, mas ela está também sempre ínsita em todo o direito sancionatório.
Isto é assim, evidentemente, tanto quando a medida de restrição ao uso de cheque tem como pressuposto a emissão de cheque (ou cheques) sem provisão - havendo condenação, a medida funcionará como «sanção acessória» -, como quando tal medida tem como pressuposto a «irregularidade de preenchimento ou de saque».
E não obsta à inclusão de tal medida no direito sancionatório - o que pressupõe naturalmente a censurabilidade da conduta, que está na base da sua aplicação - o facto de ela poder recair sobre os titulares da conta, que podem ser diferentes do sacador do cheque. É que isso só é possível se, conforme se exige no n.º 2 do artigo 11.º do Decreto-Lei 14/84, o sacador tiver agido «na qualidade de representante e no interesse dos titulares da conta sacada».
Ora, em casos como este, bastaria dar às medidas cominadas na lei designações que não correspondessem às sanções previstas nos domínios dos diferentes ilícitos - ilícito criminal, ilícito disciplinar e ilícito de mera ordenação social - para subtrair a matéria à reserva de competência da Assembleia da República.
Não pode ser. Ao colocar o direito das contra-ordenações, tal como o direito disciplinar, ao lado do direito penal, na reserva relativa de competência legislativa, não pode a 1.ª revisão da Constituição ter deixado de querer justamente incluir nessa reserva todo o direito sancionatório público (sobre a natureza de «direito sancionatório», tanto do direito das contra-ordenações como do direito disciplinar, cf. Prof. Figueiredo Dias, estudo citado, V).
Legislar sobre a medida de restrição ao uso de cheque, e uma vez que ela tem carácter sancionatório, cabe, pois, na reserva relativa de competência legislativa.
8 - O Acórdão 160/91 caracteriza a medida em questão como uma medida administrativa.
Lê-se, na verdade, nesse acórdão:
Com tal medida o que, com efeito, se pretende é atalhar ao «aumento preocupante do número de cheques sem provisão» (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei 14/84). Está em causa, no fundo, preservar a confiança que deve merecer um meio de pagamento tão divulgado e tão cómodo como é o cheque - ou, palavras do legislador, «a regularidade do funcionamento do mercado monetário» (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei 530/75, de 25 de Setembro).
E logo a seguir:
São, pois, razões estratégicas e utilitárias de ordenação social, e não algo que tenha a ver com os fundamentos éticos da comunidade, que determinam o legislador. Os comportamentos que servem de suporte à aplicação da medida de restrição ao uso de cheque são, assim, do ponto de vista ético-social, comportamentos axiologicamente neutros.
Esta caracterização implicará, como se diz no mesmo acórdão, que a aplicação dessa medida não é «administração da justiça» ou, por outras palavras, que tal actividade não se inclui na reserva do juiz, podendo, portanto, a medida ser aplicada por autoridades administrativas.
Isso, porém, não afasta a conclusão a que se chegou de que a matéria em apreciação faz parte da competência exclusiva da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo.
Com ser uma medida administrativa, a medida de restrição ao uso de cheques não deixa de ser sancionatória. Para utilizar mais uma vez as palavras do referido acórdão, ela «sancionará um ilícito administrativo atípico».
9 - Sendo a matéria em causa da reserva relativa de competência legislativa, como se disse, podia a Assembleia da República autorizar o Governo a legislar. Será que foi dada essa autorização?
No preâmbulo do Decreto-Lei 14/84 invocam-se duas autorizações legislativas: uma constante do artigo 3.º da Lei 12/83, de 24 de Agosto; a outra concedida pelo artigo 1.º da Lei 27/83, de 8 de Setembro.
Dispõe o artigo 3.º da Lei 12/83:
É ainda o Governo autorizado a alterar a legislação processual penal em vigor, a fim de a adequar ao novo Código Penal e de tornar mais eficiente e mais célebre a instrução criminal, a acusação e o julgamento dos delinquentes.
Estabelece, por sua vez, o artigo 1.º da Lei 27/83:
É concedida autorização legislativa ao Governo para:
a) Definir em geral ilícitos criminais ou contravencionais, no exercício da sua actividade legislativa normal ou no caso de autorizações legislativas da Assembleia da República;
b) Definir as correspondentes penas e doseá-las, tomando como ponto de referência as que, no Código Penal e na demais legislação penal, correspondam a ilícitos de gravidade semelhante.
Ora, como naquele mesmo preâmbulo se reconhece, a autorização concedida pelo artigo 1.º da Lei 12/83 foi utilizada para introduzir «alterações na tramitação processual relativa ao crime de emissão de cheque sem provisão, visando atingir uma mais eficiente e célere administração da justiça, sem prejuízo da garantia dos direitos dos arguidos e da estrutura acusatória do processo prevista no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República», sendo as normas pertinentes as que constituem o capítulo I do diploma (artigos 1.º a 9.º). Nada, porém, têm a ver com elas as normas que se ocupam da medida de restrição ao uso de cheque, incluídas no capítulo II.
Quanto ao artigo 3.º da Lei 27/83, ele não habilitava o Governo a instituir a medida em questão, por ela não satisfazer à exigência feita na sua alínea b).
10 - Pode assim concluir-se que, ao instituir, sem autorização da Assembleia da República, a medida de restrição ao uso de cheque com o alcance referido no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei 14/84 - isto é, envolvendo «a proibição às pessoas a quem for aplicada de movimentar por meio de cheques as contas de depósito de que sejam titulares em quaisquer instituições de crédito» -, o Governo invadiu a reserva de competência da Assembleia da República que resulta da conjugação das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, a competência deste órgão para legislar em matéria de direito sancionatório público.
Diga-se entretanto que a inconstitucionalidade do artigo 13.º, n.º 1, do mesmo diploma - ou seja, a norma que atribui ao Banco de Portugal competência para decidir sobre a aplicação dessa medida - é meramente consequencial, como se fez notar no citado Acórdão 160/91.
11 - Por tudo o exposto, declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade - por violação de reserva de competência da Assembleia da República, resultante da conjugação das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa, em matéria de direito sancionatório público - da norma do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei 14/84, de 11 de Janeiro, bem como a inconstitucionalidade - essa meramente consequencial - do artigo 13.º, n.º 1, do mesmo diploma.
Lisboa, 13 de Novembro de 1991. - Mário de Brito - Maria da Assunção Esteves - Fernando Alves Correia - Armindo Ribeiro Mendes - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis - António Vitorino - Luís Nunes de Almeida - José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da minha declaração de voto no Acórdão 160/91) - Vítor Nunes de Almeida (vencido, pelos fundamentos constantes da declaração de voto junta ao Acórdão 294/91, da 1.ª Secção) - Alberto Tavares da Costa (vencido, pelos fundamentos constantes da declaração de voto junta ao Acórdão 294/91) - Bravo Serra (vencido, pelo essencial das razões constantes da declaração de voto que apendiculei ao Acórdão deste Tribunal n.º 155/91, de que junto cópia) - José Manuel Cardoso da Costa.
Voto de vencido
Votei vencido pela seguinte ordem de razões:
1 - O n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei 14/84, de 11 de Janeiro, refere que a medida de restrição ao uso de cheque é uma «providência de natureza administrativa».
Todavia, esse nomen não conduz, só por si, a uma solução a dar à questão de saber qual a natureza da medida em causa, como aliás se reconhece no acórdão a que este voto se encontra apendiculado.
Na verdade, de entre as «providências administrativas» umas há que têm carácter impositor de sanções a quem adoptou condutas havidas por infractoras dos deveres e obrigações que o poder público, como emanação da organização societária, entendeu, para o desenvolvimento desta, estatuir, ou a quem adoptou condutas infractoras de deveres e obrigações decorrentes de um especial vínculo funcional ou de uma especial relação de subordinação, sujeição ou poder à Administração.
Outras, pelo contrário, já não revestem aquele carácter de imposição de sanções, mas sim o carácter de intervenção nas actividades individuais que tenham a potencialidade de pôr em risco os interesses de uma colectividade ou da sociedade, evitando ou minimizando esse risco (cf., em tal sentido, Marcello Caetano, Manual de Direito, vol. II, pp. 1149 e segs.).
Visam assim estas últimas medidas prevenir a ocorrência de danos sociais, garantindo que na sociedade não surjam perturbações que afectem o seu normal funcionamento e desenvolvimento ou, existindo situações de que possam resultar essas perturbações, as mesmas se não exacerbem.
Na verdade, como ensina Marcello Caetano (ob. cit. e loc. cit.), «o ponto de partida para a formulação do conceito de política parece estar na distinção entre os destinatários dos comandos legais. Uma vez, os preceitos normativos dirigem-se imediatamente aos agentes administrativos [...] e só mediatamente afectam os indivíduos que venham a estar em contacto com os agentes ou os serviços. Outras vezes, as normas jurídicas regulam directamente condutas individuais, quer ao facultar a constituição de relações jurídicas por iniciativa e ao sabor dos interesses dos indivíduos quer ao impor a estes a observância de certos deveres de acção ou de abstenção. Nestes casos a intervenção dos órgãos e serviços do Estado nas relações e actividades individuais é, por via de regra, meramente de garantia (para assegurar a eficácia dos direitos, o efectivo cumprimento das obrigações, a sanção das leis através da punição das infracções) [...]».
E, mais adiante:
Há normas de conduta de cuja observância depende a paz, a segurança, a ordem, o desenvolvimento harmónico da sociedade. A repressão da violação dessas normas reintegra a ordem jurídica, mas não pode fazer desaparecer os graves danos que as infracções causaram. Quando as violações são muito frequentes e generalizadas, é mesmo extremamente difícil reprimi-las todas com a devida oportunidade e eficácia, nascendo daí o perigo da impotência das leis.
Por isso as sociedades bem organizadas não podem deixar a execução das leis pelos indivíduos entregues ao acaso do comportamento destes quando tal comportamento possa projectar-se nos interesses públicos dominantes da vida em colectividade.
E esta execução das leis tanto pode consistir na observância das regras de conduta como na punição das suas violações.
Nasce assim uma nova forma de intervenção dos órgãos e agentes da autoridade nas actividades individuais, e que é a essência da «polícia».
E, definindo o que seja a polícia, diz o citado autor que esta será «o modo de actuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das actividades individuais susceptíveis de fazerem perigar interesses gerais, tendo por objecto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir».
Com esta definição concorda Sérvulo Correia (Noções de Direito Administrativo, vol. I, p. 248), que aduz que é no âmbito da polícia administrativa que os poderes (discricionários) da Administração conhecem «uma maior concentração, devido precisamente à flexibilidade requerida para que as intervenções se façam no momento e pelo modo mais oportunos».
A polícia é, em consequência, uma actuação da autoridade, interventora no exercício de actividades individuais, que pressupõe a existência de normas de conduta dos particulares e a possibilidade da sua violação por estes, actividades essas susceptíveis de fazerem perigar interesses gerais (Marcello Caetano, ob. cit. e vol. cit., p. 1151).
Nos tempos da existência do Estado de polícia, era possível à Administração sancionar os comportamentos ou actuações individuais que, muito embora se não incluíssem no direito criminal (de justiça ou secundário), não eram tidas como podendo livremente ser adaptadas.
Com a implementação do Estado de direito, as coisas, neste campo, necessariamente passaram a ter uma outra perspectiva. Regendo aqui o princípio da legalidade, isso passou a implicar que os poderes conferidos à Administração só seriam reconhecidos se fossem expressamente concebidos por lei e somente se poderiam exercitar desde que visassem os fins, também na lei previstos (cf. Sérvulo Correia, ob. cit. e vol. cit., p. 247).
É assim que na lei fundamental se consagrou nos n.os 1 e 2 do artigo 272.º (versão da revisão operada em 1982) que «a polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos» (na versão originária da Constituição o n.º 1 do aludido artigo 272.º elencava nas funções de polícia a defesa da legalidade democrática e os direitos dos cidadãos), sendo as respectivas medidas «as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário».
Esta previsão segundo a qual as medidas de polícia são as previstas na lei pode ser entendida tanto como proibindo a actuação da Administração, na sua vertente de polícia, em casos não taxativamente previstos na lei (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., p. 448), como na acepção de os órgãos e agentes que empregam tais medidas deverem ter competência para o efeito nos termos da lei, assim afastando a enunciação taxativa legal dos actos de polícia, atenta a realidade das coisas que, apontando para «a pluralidade ilimitada de circunstâncias em que perigos para os interesses públicos exigem acções preventivas por parte da Administração não se compadece com a exigência de uma tipificação normativa de todas as possíveis condutas administrativas» (cf. Sérvulo Correia, ob. cit. e vol. e loc. cits., e Marcello Caetano, Manual, 2.º vol., p. 1153).
Como quer que seja, as medidas de polícia exornam da actuação de autoridade e podem implicar limitação das condutas dos particulares, tendo por finalidade evitar o surgimento de situações de perigo de interesses gerais ou o desenvolvimento dessas situações, uma vez ocorridas.
Para tanto, poderão as medidas de polícia, por vezes, conter directivas de proibição, vedando determinadas actuações ou actividades a quaisquer pessoas, em quaisquer casos (cf. Marcello Caetano, ob. cit. e vol. cit., p. 1166).
Assinala Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, p. 331) que, no campo dos poderes coactivos da Administração em matéria de polícia, «a lei deixa, através das cláusulas gerais de polícia [...] um largo espaço de manobra à Administração, que pode, por meios de ordens (comandos ou proibições), interferir com a esfera dos direitos, liberdades e garantias».
Decorre daí, continua este autor, «em primeiro lugar, a preocupação de limitar e vincular as medidas policiais 'restritivas', que só serão legítimas se necessárias (necessidade de eliminar um perigo grave e actual de desordem), idóneas ou eficazes (próprias para eliminação do perigo), proporcionadas (proporção entre os sacrifícios dos direitos e o resultado), tempestivas e de duração limitada ao perigo».
Não se poderá, por isso, simplistamente, partir da posição segundo a qual as medidas de polícia não podem restringir direitos subjectivos.
Antes, pelo contrário, tais medidas, como define Marcello Caetano (ob. cit. e vol. cit., p. 1170), «são providências limitativas da liberdade de certa pessoa ou do direito de propriedade de determinada entidade, aplicados pelas autoridades administrativas independentemente da verificação de transgressão ou contravenção ou da produção de outro acto concretamente delituoso, com o fim de evitar a produção de danos sociais cuja prevenção caiba no âmbito das atribuições da polícia».
Dando como certo (sem agora se tomar expressa posição sobre o ponto) que os direitos que resultam afectados pela medida de restrição ao uso de cheque são expressão da liberdade de exercer ou não os poderes ou faculdades de que se é titular e da liberdade de conformar os interesses próprios (unilateral ou conjuntamente com outrem), ainda que isso resulte de normação contratual privada (cf., sobre a questão, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pp. 42, 43 e 84), então poder-se-á dizer que tais direitos se inserem nos direitos subjectivos fundamentais assentes no princípio da autonomia da vontade.
A fronteira entre as medidas de polícia e as medidas de segurança é, como se sabe, ténue e sem uma nítida separação de conceitos (cf., sobre a questão, Carlo Poliero e Aldo Travi, La Sanzione Administrativa, Milão, 1988, pp. 23 a 27).
Impõe a lei fundamental, contudo, que as segundas, bem como os respectivos pressupostos, constem de diploma emitido pela Assembleia da República, ou pelo Governo, dotado de autorização conferida por aquela [cf. artigo 168.º, n.º 1, alínea c)], o que se não passa já relativamente às primeiras.
Segundo Marcello Caetano (ob. cit e vol. cit., pp. 1169 a 1171), a diferença entre aquelas medidas estaria «apenas em que a aplicação das primeiras» estava «jurisdicionalizada» e pertencia «aos tribunais, enquanto a das segundas» tinha carácter administrativo e competia «a órgãos da Administração», tendo ambas por objecto «prevenir ou evitar um dano, pondo os indivíduos perigosos em situação de não produzirem malefícios ou obstando a que se dêem as circunstâncias favoráveis a essa produção».
Não haverá, assim, segundo o aludido autor, um critério certo que permita, em face da lei, distinguir as duas medidas, pois que, embora sendo a construção lógica do conceito de medidas de polícia o que apontou [ser a sua aplicação de carácter administrativo, competindo ela a órgãos da Administração], a lei «confunde as medidas de prevenção com as sanções, ao permitir a aplicação daquelas a casos em que haja procedimento ilegal [...]».
Avançando, acrescenta o mencionado autor que as medidas de polícia (ou medidas de segurança administrativa) e as medidas de segurança «não são sanções, visto não castigarem factos puníveis, isto é, crimes ou meras transgressões ou contravenções de polícia».
Escopo comum a ambas as medidas será, poder-se-á assim concluir, evitar a produção de um dano (ou o avolumar de uma situação de perigo já desencadeada).
Mas, a ser assim, o que distinguiria, substancialmente, uma e outra das referidas medidas?
Referem alguns autores (cf. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, II, p. 212, e Eduardo Correia, Direito Criminal, I, pp. 31 e 33) que o critério distintivo residiria na circunstância de as medidas de segurança (reacções criminais não constitutivas de penas) pressuporem o cometimento, pelo agente, de um facto que seja objectivamente criminoso, enquanto as medidas de polícia, para a sua aplicação, já não necessitariam desse cometimento, assim podendo ser aplicadas antes do aparecimento objectivo do ilícito.
Como quer que seja, mesmo perante uma tal postura, não se vislumbram obstáculos a que seja prevista a instituição de uma medida de polícia cuja aplicação ocorra surgida que seja uma situação que, de modo objectivo, integre um ilícito.
Aqui chegados, é altura de saber se a medida de que nos ocupamos poderá ser perspectivada como uma medida de polícia.
Não será, como deflui dos excursos anteriores, pelas circunstâncias de ser uma medida que restringe um direito subjectivo fundamental subjacente ao princípio da autonomia da vontade e de pressupor a ocorrência de uma situação que, objectivamente, integre um facto ilícito, que a natureza de medida de polícia será afastada.
No Acórdão 489/89 (citado no presente aresto) o afastamento da medida de restrição ao uso de cheque do campo das medidas de polícia residiu no carácter sancionatório a ela inerente.
Impor-se-á, pois, em primeiro lugar, saber se tal medida tem carácter sancionatório e, em segundo, se a imposição de uma sanção de que resulte a afectação de direitos subjectivos do «destinatário» de uma medida afasta desde logo a possibilidade de ela ser considerada como medida de polícia.
Quanto ao primeiro ponto:
Apresenta-se-nos desde logo duvidosa a questão de saber se a restrição ao uso do cheque prevista no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei 14/84 tem a natureza sancionatória, como se conclui na tese vencedora.
Na verdade, poder-se-á considerar que aquela norma assume o cariz de norma prescritiva ou de conduta, emitida na sequência de uma outra, precisamente a que, ao definir o ilícito correspondente à emissão de cheque sem provisão, «assegura a realização de efeitos práticos da sua intenção normativa» (cf., sobre a função primária e prescritiva das normas, Castanheira Neves, Introdução ao Estudo do Direito, pp. 14 e segs.).
Ou seja: pelo ordenamento jurídico-criminal, tendo em vista o seu conteúdo ético-social, foi imposta a abstenção de emissão de cheque sem provisão (imposição essa, como é claro, decorrente da aplicação de sanção criminal ao agente que violou aquela abstenção e, assim, se colocou numa situação fáctica não desejada por aquele ordenamento); a prescrição da norma - artigo 24.º do Decreto 13004, de 12 de Janeiro de 1927 -, na sua vertente asseguradora de efeitos práticos, é, pois, a de não serem emitidos cheques sem provisão; ora, na sequência desta previsão, poder-se-ia considerar que a norma do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei 14/84 não assegurava a conformação objectiva ao direito estatuído do comportamento do emissor de cheque sem provisão, antes assumindo o carácter de mera prescrição decorrente.
O uso do cheque como meio de pagamento é algo de extremamente corrente na vida moderna e pode contribuir para a facilitação da vida económica. Pôr em perigo a confiança que a sociedade tem em tal meio potencia a criação de uma desordem social ou da colectividade.
Daí a prescrição ínsita na norma que criou o ilícito de cheque sem provisão.
Mas, de outro lado, pode suceder que a postura em risco da confiança da sociedade no cheque surja mesmo que não sejam emitidos cheques sem provisão (v. g. casos de irregularidade de preenchimento ou de saque que, em si, não configuram ilícitos ético-criminalmente reprováveis).
Continua a haver aqui a susceptibilidade de criação de risco dos interesses colectivos que afectam o seu normal funcionamento ou desenvolvimento.
A ser assim, e para que a potencialidade de criação ou de desenvolvimento daquele risco se não aumentasse, bem poderiam ser criadas normas de mero carácter prescritivo que se resumissem a emissão do comando «Não emitirás cheques». Não haveria, destarte, um assegurar da realização prática da prescrição proibitiva - de emissão de cheques sem provisão -, o que afastaria o carácter sancionatório da medida; o seu desrespeito - desobediência à emissão de cheques - é que constituiria um ilícito criminalmente sancionado.
Nesta óptica, o enfoque reconduzir-se-ia, pois, a um carácter não sancionatório da medida.
Obtemperar-se-á que uma tal argumentação não colheria se se atentar no carácter individualizador da aplicação da medida, que sempre pressuporia uma conduta específica de um agente, quer agindo por si, quer na qualidade de representante e no interesse do titular da conta sacada sobre o qual recairia tal aplicação, conduta essa pressupositora de um prévio comportamento desviante.
Neste particular, para se abalar um tal obtemperar, sempre se poderá contra-argumentar com duas ordens de razões: a primeira, como acima se assinalou, partindo da consideração de que se não vêem obstáculos a que fosse prevista a instituição de uma medida cuja aplicação ocorresse criada que fosse previamente uma situação concreta configurativa, objectivamente, de ilícito, ainda que criminal; a segunda residirá em que a(s) conduta(s) do(s) agente(s) não integraria(m) um estado de perturbação da ordem social individualmente imputável(eis) e desejada(s) sancionar, mas sim que essa(s) conduta(s) constituiria(m) o(s) sinal(ais) objectivo(s) da gravidade e actualidade do perigo ou perturbação do interesse público querido defender.
Neste ponto, a exigência de um determinado número de situações concretas pressupositoras da aplicação da medida de restrição ganharia sentido enquanto, por uma banda, se traduzia na configuração de um estado de perturbação do interesse público e, por outra, enquanto exigência do princípio da proporcionalidade entre o sacrifício do direito e o resultado desejado evitar.
Efectivamente, dificilmente se conceberia como adequada e proporcionada a adopção de uma medida generalizada que, a todas as pessoas e entidades, restringisse, por um dado período, o livre uso de cheque, desde que fosse constatado que, por exemplo, num determinado lapso de tempo, no País ou numa dada região, foi emitido certo número de cheques sem provisão ou apresentando irregularidades de saque.
Nesta situação hipotética continuava a haver a necessidade de eliminação do perigo grave e actual de desordem social, já que a emissão de cheques sem provisão ou com irregularidades de saque estava a pôr em risco a confiança depositada pela colectividade no uso do cheque, igualmente se não podendo dizer que deixava de haver idoneidade ou eficácia para a eliminação daquele perigo.
Todavia, a restrição generalizada decorrente dessa medida não podia deixar de ser concebida como desproporcionada.
A isto se adite que a «individualização» (ou a aplicação individualizada) da medida, tal como está concebida nas normas em apreciação, não pode deixar de considerar-se como consubstanciando, também no prisma da proporcionalidade, a actuação da Administração na fonte do perigo de desordem ou perturbação social, como colorário do dever de actuação sobre o pertubador da ordem.
Toda esta alinhada argumentação aponta, pois, para que, ao menos, se possa duvidar do carácter sancionatório da medida de restrição ao uso de cheque.
No tocante ao segundo ponto, ou seja, à questão de saber se a imposição de uma sanção de que resulte a afectação de direitos subjectivos do «destinatário» da medida afasta o carácter de medida de polícia desta:
Viu-se já que é essência das medidas de polícia ter por fim evitar a produção de danos sociais ou a sua ampliação ou generalização, o que o mesmo é dizer que o seu carácter é, essencialmente, preventivo.
No entanto, Marcello Caetano (ob cit. e vol. cit., p. 1166) destaca, de entre os actos de polícia, «os que têm por objecto a aplicação de medidas policiais de segurança», providências que «têm já certo carácter repressivo relativamente a um perigo», sendo este «perigo que se atalha para prevenir que se transforme em dano efectivo».
E, anteriormente, expõe aquele autor (p. 1164):
Os actos de polícia podem ter objecto preventivo ou repressivo, entendendo-se esta palavra no sentido de actividade de aplicação de sanções. Na verdade, as autoridades policiais [órgãos que exclusivamente pertencem à administração policial ou órgãos que cumulativa, acessória ou subsidiariamente com outros exercem atribuições de polícia - cf. ob cit., p. 1159] podem, elas próprias, aplicar sanções e não apenas encaminhar aos tribunais os agentes presumidos dos delitos. As sanções policiais são, porém, as que se relacionam com as normas preventivas.
Daqui se poderia concuir que, ao menos segundo certos entendimentos, não seria incompatível com a natureza de medidas de polícia a estatuição, nelas, de conteúdos sancionatórios.
Perante as dúvidas que se levantam neste ponto, aditadas daqueloutras sobre a natureza sancionatória ou não sancionatória da medida de restrição ao uso de cheque, não será, consequentemente, na caracterização concreta de tal medida como medida de polícia que a questão se pode resolver definitivamente.
Não nos parece, contudo, tratar-se de uma medida de segurança ínsita no direito penal, tal como na tese vencedora do acórdão igualmente se conclui.
De facto, a sua configuração não é de molde a afectar gravemente a esfera dos direitos individuais, nomeadamente a liberdade física individual; em segundo lugar, a sua aplicação não pressupõe, sempre, um post delictum [cf. a alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 14/84]; em terceiro, aquela aplicação pode recair sobre titulares de conta que não sejam pessoas singulares (cf. o n.º 2 daquele artigo 11.º), o que afasta um fundamento ético-jurídico próprio do direito criminal; em quarto lugar, não se visará com esta medida qualquer ressocialização. Quanto a este último ponto, a legislação e a doutrina estrangeiras não poderão servir como decisivos subsídios, face ao diferente posicionamento da primeira.
Assim, a Lei italiana n.º 689, de 24 de Novembro de 1981, previu, nos casos mais graves de condenação pelo delito de emissão de cheque sem cobertura, a publicação da sentença penal de condenação e a interdição de emitir cheques bancários (ou postais) por um período de um a três anos.
A orientação prevalente da jurisprudência italiana reconhece, no entanto, a tal interdição a natureza de pena acessória, caracterizada pela margem de discricionariedade relativamente à quantificação da sua duração (cf. decisão do Tribunal da Cassação de 23 de Janeiro de 1984, na Rivista Penal, 1985, p. 986), e tendo por fim uma eficácia reeducativa, que não depende tanto da sua duração mas, sobretudo, do seu regime de execução (cf. Silvia Larizza, Le Pena Accessorie nel Codice Attuale, pp. 159 a 164).
De todo o modo, e na hipotética posição segundo a qual a medida em causa configurava uma medida de segurança, sempre se poderia porventura dizer que, dada a autorização legislativa concedida pela alínea a) do artigo 1.º da Lei 27/83, a previsão da aplicação dela pelo Banco de Portugal feriria a respectiva norma de inconstitucionalidade material por ofensa do princípio contido no artigo 206.º da lei básica (versão de 1982), não padecendo, pois, tal norma de inconstitucionalidade orgânica.
Contudo, aquela hipotética situação não é a por nós seguida, neste ponto se apoiando o acórdão ora proferido.
2 - Ainda na senda - seguida pela tese vencedora - do carácter sancionatório da medida em causa, ali se concluiu que, a admitir-se que ela consubstanciaria um ilícito contra-ordenacional, então as normas sub judicio (as do artigo 10.º, n.os 1 e 2, e, consequencialmente, as dos artigos 13.º, n.º 1, e 17.º, n.º 1) violariam a alínea a) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição. E isto porque, segundo o raciocínio de tal tese, embora o Governo pudesse, no exercício da sua competência legislativa concorrente, definir concretos ilícitos contra-ordenacionais e as coimas que cabem a cada infracção, ao fazê-lo, havia de mover-se dentro da moldura sancionatória da respectiva lei quadro, não podendo, designadamente - excepto munido de credencial parlamentar - criar sanções que se não reconduzam a qualquer dos tipos de coima previstos naquela lei quadro.
Não obstante também comungarmos do entendimento de que, in casu, se não está perante um ilícito contra-ordenacional (desde logo, como se viu, por se poder, com alguma justificação, duvidar do carácter sancionatório de medida e, depois, por não pressupormos que a sua aplicação, necessariamente, pré-implica a prática de um ilícito ou de um comportamento desviante eticamente censurável), o que, pensamos, se pode legitimamente duvidar é que, mesmo que se tratasse de um ilícito contra-ordenacional, o Governo não estivesse adequadamente munido de credencial parlamentar.
Na realidade, a Lei 12/83, de 24 de Agosto (seu artigo 2.º), autorizou o Governo a «alterar o regime jurídico das contra-ordenações, seus processos e sanções», o que dotaria aquele órgão de soberania de competência para criar uma nova sanção ou um novo tipo de contra-ordenação - a limitação do exercício de um (eventual) «direito» de uso de cheques não visados ou avulsos - distinto dos previstos no Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro.
Não seria, em consequência, no nosso modo de ver, pelo argumento aduzido na tese vencedora que se fulminariam de inconstitucionalidade orgânica as normas sub specie, na postura de a medida de restrição ao uso de cheque poder (dever) ser visualizada como um ilícito contra-ordenacional.
3 - Volvamos agora a atenção para a vertente segundo a qual a medida em apreço constitui uma medida administrativa atípica, ou seja, sem a integrar no domínio contra-ordenacional ou de medidas de polícia.
Não se olvide que pode ser entendido que algumas medidas que, primo conspectu, poderiam ser visualizadas como sanções interditivas, não constituiriam tanto uma pena - logo sanção -, quanto uma garantia para o interesse da Administração, podendo reduzir-se a prevenção especial à componente neutralizadora do perigo.
Valerá aqui citar Carlo Paliero e Aldo Travi (ob cit., p. 117):
(ver documento original)
Evidentemente que, como sublinham aqueles autores, o recurso frequente a medidas interditivas cuja emanação é imposta por lei mas que não têm carácter sancionatório constitui uma orientação perigosa tendo em conta a exigência de garantia e o princípio da igualdade.
Por isso, tais medidas têm de obedecer a princípios de legalidade substancial e procedimental, o primeiro, como se viu, impondo a necessidade, idoneidade, proporcionalidade e duração limitada.
A uma tal caracterização não será de todo estranha a medida de que curamos.
Na realidade, de uma primeira banda, não se podem deixar de ponderar as dúvidas que se nos levantam sobre o carácter sancionador da medida de restrição ao uso de cheque; de outra, ainda que à primeira vista o acento tónico daquela medida enveredasse pelo seu carácter sancionatório, sempre se impunha não passar em claro a função de protecção e de realização directa dos interesses protegidos, ou seja, a colocação em causa do espírito de confiança que deve existir na colectividade quanto à circulação de cheques; ainda de outra, a medida em questão obedece a princípios de legalidade procedimental (a sua aplicação está perfeitamente regulada em diploma legal e aí se prevê a possibilidade de reacção daquela aplicação para os tribunais) e substancial. Quanto a este último ponto, não se deve olvidar: a sua previsão constante de diploma legal fixador dos respectivos pressupostos; a duração limitada no tempo; a proporcionalidade da sua aplicação consistente na actuação da Administração na fonte da «desordem ou perturbação social» criada (o que leva a uma sua «individualização») e que, a subsistir, seria susceptível de criar grave dano. No que tange à necessidade e idoneidade da medida, pensa-se que se não podem levantar acentuadas dúvidas em como a sua consagração corresponde à propriedade de eliminação do perigo de postura em causa do espírito de confiança da sociedade na circulação do título de crédito em causa.
Ora, nesta visão das coisas (e ainda que, para além de uma mera medida administrativa atípica, nos posicionássemos no entendimento segundo o qual se nos deparava uma situação integradora de sanção administrativa atípica não resultante de uma discriminalização não tipológica mas teleológica mas sim como reacção não ordenativa à violação de deveres ou ao desconhecimento de proibições fixadas para defesa de valores tipicamente administrativos e, enquanto tais, desconhecidos da ordem geral - cf., sobre este ponto, Rogério Soares, Direito Administrativo, edição policopiada, 1978, pp. 32 e segs., e Interesse Público, Legalidade e Mérito, pp. 5 e segs. - sem em tal sanção se incluírem casos de especial relação de subordinação, sujeição ou poder à Administração que, pensamos, para o ponto não vêm agora), crê-se que bem podia a implementação da medida ter simples origem governamental.
De outro passo, estando garantidas a previsão legal de aplicação, a reacção contra a mesma por intermédio de recurso para o tribunal, a previsão dos necessários procedimentos condutores à aplicação e suas características de necessidade, idoneidade, eficácia, proporcionalidade, tempestividade e duração limitada no tempo, não seria a medida feridente de quaisquer princípios constitucionais.
4 - A tese vencedora do acórdão, como por várias vezes já se referiu, deu por inquestionavelmente assente que a medida da restrição ao uso de cheque tinha natureza sancionatória (do que, como deflui das considerações apostas na presente declaração de voto, francamente duvidamos).
Ora, segundo aquela tese, afastada que foi a caracterização da medida como medida de segurança, como medida de polícia ou como ilícito disciplinar, restava, considerando-a como uma medida administrativa, analisar se a mesma se perfilava como um ilícito administrativo atípico ou um ilícito contra-ordenacional.
Não tomou tal tese posição quanto a este ponto, concluindo-se que, na admissibilidade da posição perante a qual a medida de restrição ao uso de cheque consubstanciava um ilícito contra-ordenacional, a emissão das normas em causa implicava o ferimento da alínea a) do n.º 1 do artigo 168.º da lei básica.
Neste particular, nada adiantaremos relativamente ao que já acima (cf. n.º 2 do presente voto) se veio a expor.
Concernentemente à (possível) caracterização da medida de que nos ocupamos como um ilícito atípico (não integrador de uma contra-ordenação), a posição vencedora continuou a ver na emissão dessa medida vertida nas normas em questão uma inconstitucionalidade orgânica, precisamente porque existirá um «programa constitucional» relativo ao direito sancionatório.
Dissentimos frontalmente de um tal posicionamento.
O «programa constitucional» relativo ao direito público sancionatório há-de, na nossa óptica, resultar daquilo que da Constituição se extraía sem grau de margem de dúvidas.
Assim, e a admitir-se a existência de tal programa, há-de ele reconduzir-se ao que se encontra previsto na lei fundamental quanto ao órgão de soberania competente para a respectiva edição.
E, quanto a tal questão, o que se extrai da Constituição, no que ora releva?
Extrai-se, somente, a nosso ver, que, após a revisão levada a cabo pela Lei Constitucional 1/82, e no que ao direito público sancionatório tange, a Assembleia da República ficou dotada de competência exclusiva para legislar, salvo no caso de conceder autorização ao Governo, nas matérias de direitos, liberdades e garantias [alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º], definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal [alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo] e regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo [alínea d) do n.º 1 ainda de tal artigo].
Ora bem:
Face a uma tal enunciação, não vemos, de todo em todo, como será lícito extrapolar que, para além daqueles campos, também se insere na reserva relativa do órgão parlamentar a edição de legislação sobre outros campos do direito público sancionatório.
Se fosse esse o desejo do legislador constituinte, certamente não teria deixado de o mencionar no aludido artigo 168.º, sabida como é a existência de inúmeros ilícitos e sanções administrativas no nosso ordenamento jurídico infraconstitucional.
O apelidado «programa constitucional» do direito público sancionatório esgota-se, por isso, na nossa perspectiva, nas referidas três alíneas do n.º 1 do artigo 168.º, não podendo pretender-se alargar à Assembleia da República uma competência reservada (cf. n.º 2 do artigo 113.º da Constituição) que não consta da enunciação prevista na lei básica.
E nem se diga que, adoptando a posição por que enveredamos, abre-se a porta ao executivo para, pela simples dação de um diferente nomen a uma certa medida, poder criar restrições e direitos, liberdades e garantias.
De facto, não é só pelo nomen de uma medida que ela deixa de assumir substancialmente características de crime, medida de segurança, medida disciplinar ou ilícito contra-ordenacional.
De onde, se os tiver, não será pela sua designação que a respectiva edição governamental deixa de poder ser considerada ferida de inconstitucionalidade orgânica.
De outro lado, tocantemente à medida em apreciação, não poucas dúvidas se nos deparam na existência de um real «direito» ao uso de cheque não avulso ou não visado (e é só sobre aquele que a medida incide).
Também não colherá, em nosso entender, qualquer argumento segundo o qual não se perceberia que, desejando a Constituição reservar à Assembleia da República a competência para legislar sobre o regime geral dos ilícitos de mera ordenação social, que podem ser cominados com uma coima de baixo valor económico, não pretendesse também incluir em tal reserva a criação de «sanções» cuja gravidade abstracta se poderia postar de modo superior àquele valor.
E esse argumento não colhe porque não será pela aferição da gravidade das medidas a aplicar que se descortinará a razão da reserva relativa de edição da legislação referente às alíneas b) a d) do n.º 1 do artigo 168.º
Particularmente no que respeita às alíneas c) e d), é para nós nítido que a base atributiva da reserva parlamentar residiu na circunstância de as matérias ali previstas pressuporem uma censura ética; pressuporem, enfim, um comportamento culposo (lato sensu) que, como vimos, não é para nós inerente (a menos que o «comportamento desviante» a que se refere a tese vencedora sempre implique culpa digna de censura - o que se pode fundadamente pôr em dúvida) à aplicação da medida.
A conclusão alcançada pela posição que logrou vencimento no acórdão conduzirá a uma «desertificação» de muitas sanções próprias do direito administrativo, o que, certamente, na nossa perspectiva, não foi nunca intenção do legislador constituinte.
Dado o exposto, votei contra o decidido, por entender que as normas em apreciação não padeciam de inconstitucionalidade, mormente por violação da alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa, o que consequenciaria que se concedesse provimento ao recurso. - Bravo Serra.