I - Relatório
1 - O procurador-geral-adjunto em exercício no Tribunal Constitucional vem, nos termos do artigo 281.º, n.º 3, da Constituição da República e do artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, requerer que o Tribunal aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 17.º, n.º 2, do Decreto-Lei 14/84, de 11 de Janeiro.Para fundamentar o pedido, alega o requerente que a norma que constitui objecto do mesmo (ou seja: a norma constante do referido n.º 2 do artigo 17.º do Decreto-Lei 14/84) foi julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.os 175/91, 342/91, 404/91 e 425/91 deste Tribunal - acórdãos de que junto cópias.
2 - O Primeiro-Ministro, notificado nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei do Tribunal Constitucional, ofereceu o merecimento dos autos.
3 - Cumpre, então, decidir, pois que, no caso, se não vêem razões para deixar de o fazer, não obstante a norma aqui em apreciação ter sido, entretanto, revogada pelo Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro [cf. o artigo 15.º, alínea b)].
De facto, a revogação de uma norma legal, operando ex nunc, não retira, só por si, interesse a uma eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, sabido como é que esta produz efeitos ex tunc e, assim, sempre servirá para eliminar aqueles que hajam produzido medio tempore e que não estejam cobertos por caso julgado ou que não devam ressalvar-se.
II - Fundamentos
4 - O legislador, no propósito confessado de impedir que aqueles que sacavam «cheques incobráveis por falta de provisão» continuassem a emiti-los, instituiu a medida de inibição do uso de cheque, pelo Decreto-Lei 530/75, de 25 de Setembro (cf. o artigo 1.º, n.º 1, e bem assim o preâmbulo).Como o número de cheques sem provisão continuasse a aumentar de forma preocupante, de novo o legislador interveio - agora, com o Decreto-Lei 14/84, de 11 de Janeiro, que, entretanto, veio a ser revogado pelo Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, que é o diploma onde, presentemente, se regulam as restrições ao uso de cheque [cf. Os artigos 1.º a 7.º e, ainda, o artigo 12.º, n.º 1, alínea a), e n.os 6 a 10].
O citado Decreto-Lei 14/84 previu uma medida, que designou por medida de restrição ao uso de cheque, com o objectivo de tentar restringir «o uso de cheques por parte de pessoas que, reconhecidamente, o fazem de forma indevida» (cf. o respectivo preâmbulo).
A medida de restrição ao uso de cheque - que, nos termos do artigo 13.º do citado Decreto-Lei 14/84, competia ao Banco de Portugal aplicar - importava (para aquele a quem fosse aplicada) a proibição de movimentar contas de depósitos bancários por meio de cheques (salvo tratando-se de cheques avulsos) e impunha-lhe a obrigação de devolver às respectivas instituições de crédito todos os módulos de cheques que tivesse em seu poder ou que estivessem na posse de seus mandatários (cf. artigo 10.º, n.os 1, 2 e 3, do citado Decreto-Lei 14/84).
Aquele a quem tivesse sido aplicada a medida de restrição ao uso de cheque incorria na pena prevista para o crime de desobediência se, no prazo de oito dias a contar da notificação para devolver os módulos de cheques que tivesse em seu poder, não os devolvesse (cf. artigo 17.º, n.º 1, do citado Decreto-Lei 14/84). E, se emitisse cheque sem provisão, incorria na pena prevista para o crime de desobediência qualificada, sem prejuízo da responsabilidade pelo crime de emissão de cheque sem cobertura (cf. O artigo 17.º, n.º 2, do citado Decreto-Lei 14/84).
5 - Este Tribunal - no seguimento, aliás, de várias decisões suas, proferidas em processos de fiscalização concreta [cf. os Acórdãos n.os 155/91 (Diário da República, 2.ª série, de 3 de Setembro de 1991), 156/91, 157/91, 158/91, 160/91 (Diário da República, 2.ª série, de 4 de Setembro de 1991), 174/91, 175/91, 182/91, 183/91 e 185/91] -, pelo seu Acórdão 340/91, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de Dezembro de 1991, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral - por violação da reserva de competência da Assembleia da República, resultante da conjugação das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa, em matéria de direito sancionatório público -, da norma do artigo 10.º, n.º 1, do citado Decreto-Lei 14/84, bem, como da norma do artigo 13.º, n.º 1, do mesmo diploma legal (esta meramente consequencial).
Tal declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, arrancou da consideração de que, sendo a medida de restrição ao uso de cheque uma medida sancionatória - recte, uma medida que sancionará um ilícito administrativo atípico -, só a Assembleia da República (ou o Governo por ela autorizado) podia legislar sobre a matéria. Ora, não existia autorização parlamentar bastante, como bem decorre do disposto no artigo 3.º da Lei 12/83, de 24 de Agosto, e no artigo 1.º da Lei 27/83, de 8 de Setembro, invocados pelo preâmbulo do citado Decreto-Lei 14/84.
6 - O artigo 17.º, n.º 2, do Decreto-Lei 14/84, de 11 de Janeiro - único que, agora, aqui está em causa -, não dispõe, porém, sobre a medida de restrição ao uso de cheque.
Preceitua, com efeito, o referido artigo 17.º, n.º 2:
2 - Quem, tendo-lhe sido aplicada a presente medida, emitir cheque sem provisão incorre na pena prevista para o crime de desobediência qualificada, sem prejuízo da responsabilidade pelo crime de emissão de cheque sem provisão.
No preceito sub indicio, pois, define-se um crime cujos elementos constitutivos são:
a) Achar-se o respectivo agente abrangido pela medida de restrição ao uso de cheque;
b) E, não obstante, emitir cheque sem provisão.
Nesse mesmo preceito faz-se corresponder ao crime que aí se define a pena aplicável ao crime de desobediência qualificada.
O legislador dispunha, é certo, de autorização legislativa para definir crimes (e, consequentemente, para definir este crime) e, bem assim, para definir e dosear a pena correspondente ao mesmo, «tomando como pontos de referência as que no Código Penal e na demais legislação penal correspondam a ilícitos de gravidade semelhante».
De facto, no artigo 1.º da Lei 27/83, de 8 de Setembro, invocado pelo Decreto-Lei 14/84, dispõe-se:
Artigo 1.º É concedida autorização legislativa ao Governo para:
a) Definir em geral ilícitos criminais ou contravencionais, no exercício da sua actividade legislativa normal ou no caso de autorizações legislativas da Assembleia da República;
b) Definir as correspondentes penas e doseá-las, tomando como ponto de referência as que, no Código Penal e na demais legislação penal, correspondam a ilícitos de gravidade semelhante.
Simplesmente, tendo sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma que prevê e define a medida de restrição ao uso de cheque (ou seja: a norma do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei 14/84), e sendo um dos elementos constitutivos do crime previsto no n.º 2 do artigo 17.º, precisamente, o haver sido aplicada ao respectivo agente aquela medida de restrição, daquela inconstitucionalidade, não pode deixar de seguir-se, consequencialmente, a inconstitucionalidade da norma do dito artigo 17.º, n.º 2.
Este Tribunal, de resto, nos acórdãos que servem de fundamento ao pedido (Acórdãos n.os 175/91, 342/91, 404/91 e 425/91, todos por publicar), e bem assim no Acórdão 119/92, também inédito, já fez decorrer a inconstitucionalidade do referido n.º 2 do artigo 17.º da inconstitucionalidade do dito n.º 1 do artigo 10.º Identicamente, nos Acórdãos n.os 160/91 e 404/91 (ambos já citados), fez decorrer a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 17.º da inconstitucionalidade do mesmo artigo 10.º, n.º 1. E, como se viu no Acórdão 430/91, da inconstitucionalidade deste mesmo artigo 10.º, n.º 1, fez o Tribunal decorrer a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 13.º No Acórdão 404/91 sublinhou o Tribunal que a inconstitucionalidade dos n.os 1 e 2 do citado artigo 17.º era consequencial, na medida em que neles «se tipificam ilícitos criminais pela desobediência às ordens dadas decorrentes dessa aplicação de sanção» (refere-se, naturalmente, à aplicação da medida de restrição ao uso de cheque pelo Banco de Portugal).
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 17.º, n.º 2, do Decreto-Lei 14/84, de 11 de Janeiro - inconstitucionalidade que é consequencial da inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 10.º do mesmo diploma legal, já declarada, com força obrigatória geral, pelo Acórdão 430/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de Dezembro de 1991), com fundamento em violação da reserva de competência da Assembleia da República, resultante da conjugação das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, em matéria de direito sancionatório público.Lisboa, 12 de Maio de 1992. - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis
Fernando Alves Correia - Vítor Nunes de Almeida - Mário de Brito - Alberto Tavares da Costa - Assunção Esteves - Armindo Ribeiro Mendes - Bravo Serra (votei a decisão atendendo a que a declaração de inconstitucionalidade contida no presente acórdão se baseia num juízo consequencial da declaração de inconstitucionalidade constante do Acórdão 430/91, aresto este no qual votei vencido) - José de Sousa e Brito (sem prejuízo da posição que tomei perante o Acórdão 430/91) - Luís Nunes de Almeida.