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Acórdão 752/2014, de 8 de Janeiro

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Sumário

Não julga inconstitucional a dimensão normativa que resulta do n.º 2 do artigo 196.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro, segundo a qual o recluso não tem legitimidade para recorrer da decisão judicial que nega a concessão da licença de saída jurisdicional

Texto do documento

Acórdão 752/2014

Processo 1320/13

Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Artur Jorge Alves Vieira, identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto, datada de 21 de novembro de 2013, que indeferiu a reclamação do despacho do juiz do Tribunal de Execução de Penas que não admitiu o recurso jurisdicional interposto da decisão que lhe indeferiu o pedido de licença de saída jurisdicional, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade da norma contida no n.º 2 do artigo 196.º do Código de Execução das Penas Privativas da Liberdade (aprovado pela Lei 115/2009, de 12 de outubro).

2 - Distribuídos os autos, foi o recorrente convidado, ao abrigo do disposto nos n.os 1, 5, 6 do artigo 75.º-A da LTC, para proceder à indicação, de modo preciso, do sentido da norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, o que fez nos seguintes termos:

«O presente recurso destina-se a apreciar a constitucionalidade do artigo 196.º n.º 1 e 2 do CEP, aplicado nos presentes autos, cuja inconstitucionalidade foi suscitada ao longo do processo, pelo facto do Ministério Público ter o poder de recorrer, ao contrário do arguido/recluso, que não tem essa opção, que lhe está vedada pela lei ordinária (artigo 196.º n.º 1 e 2 e artigo 325.º do CEP), já que o arguido não pode recorrer da decisão que não lhe concedeu a licença de saída jurisdicional, o que viola nomeadamente o estatuído no artigo 32.º, mormente o n.º 1 (e artigo 18.º) da Constituição, relativo às garantias de defesa do arguido, para além dos princípios da igualdade, proporcionalidade, não discriminação e os fins das penas, previstos na Lei Fundamental.

Com efeito, o exato sentido da norma que se pretende ver apreciada (artigo 196.º n.º l e 2 do CEP), que impede o arguido/recluso de recorrer contra decisão que não lhe concedeu a licença de saída jurisdicional, i.e., decisão contra si proferida, está em claro confronto com a Constituição da República Portuguesa, ou seja, o 196.º n.º 2 do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei 115/2009 de 12 de outubro, da proposta de Lei 252/X, em confronto com o artigo 2.º, 9.º, 18.º, e 32 n.º 1 todos da CRP, e artigo 13.º "Direito a recurso efetivo", da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, aprovado e publicado no Diário da República a 9 março de 1978.

A dita norma põe em causa direitos fundamentais, concretamente o Direito ao Recurso, incorporado na Constituição da República, na 4.ª revisão Constitucional, aprovada pela Lei 1/1997 de 20-09, que ao seu artigo 32, n.º 1, lhe acrescentou a expressão "incluindo o recurso"».

3 - As partes foram notificadas para alegar, tendo o recorrente apresentado alegações, onde conclui o seguinte:

1.º O presente recurso para o Tribunal Constitucional vem interposto na sequência da decisão do TEP, proferida em 06-06-2013, que indeferiu a Licença de Saída Jurisdicional, nos autos n.º 4624/10.0TXPRT-I, e levou o recluso a interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto, nos termos artigo 196.º do CEP e artigo 32.º n.º 1 da CRP, ex vi artigo 399.º e 400.º n.º 1 à contrário do CPP - a subir imediatamente - arts. 235.º, n.º 1, 236.º, n.º 1, b), 237.º e 238.º do CEP.

2.º O recluso não aceitou que lhe fosse negado o direito a recorrer de uma decisão contra si proferida, no caso a recusa de licença de saída jurisdicional, pois o "Ministério Púbico pode recorrer da decisão que conceda, recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional".

3.º Está desde logo em causa a igualdade de direitos, consagrada na lei fundamental, concretamente no artigo 13.º, sob a epígrafe "Princípio da Igualdade".

4.º Foi proferido Despacho Liminar, pelo Exmo. Sr. Juiz do Tribunal de Execução de Penas do Porto, que considerou que, nos presentes autos, o recurso não era admissível, nos termos do disposto no artigo 414.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

5.º Esse despacho referiu ainda que das decisões do tribunal de execução das penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei.

6.º Das disposições conjugadas dos artigos 235.º, n.º 1 e 196, n.º 2, ambos do CEP, resulta que o recluso apenas pode recorrer da decisão que revogue a licença de saída jurisdicional.

7.º Concluiu o Sr. Juiz do TEP do Porto, no seu despacho, que a decisão que recuse a concessão de uma licença de saída jurisdicional apenas é recorrível pelo Ministério Público, como resulta do disposto no artigo 196.º, n.º 1 do CEP.

8.º O recluso discordou do despacho em causa, tendo por isso reclamado do mesmo, para o Exmo. Sr. Presidente do Tribunal da Relação do Porto, nos termos do artigo 405.º do CPP.

9.º A Reclamação fundamentou-se na repulsa do recluso em aceitar que a decisão que recuse a concessão de uma licença de saída jurisdicional apenas é recorrível pelo Ministério Público, como resulta do disposto no artigo 196.º, n.º 1 do CEP.

10.º O artigo 236.º n.º 1, alínea b) do CEP, consagra o direito ao condenado a recorrer contra as decisões contra si proferidas.

11.º A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 32.º n.º 1, garante o direito ao recurso em processo penal, para além de que o processo penal tem estrutura acusatória.

12.º O artigo 18.º da CRP impede que a lei (ordinária, entenda-se) possa restringir os direitos, liberdades e garantias, salvo nos casos previstos na própria CRP, o que não é o caso dos presentes autos, pois esse limite foi imposto por lei ordinária, no caso os arts. 196.º n.º 2 e 235.º do CEP.

13.º Face à Lei Fundamental, não poderia nunca o arguido recluso ser impedido de recorrer de uma decisão contra si proferida, como a que recusa a licença de saída jurisdicional, sendo que o Ministério Público pode recorrer da decisão que conceda, recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional - cf. artigo 196.º n.º 1 e 2 do CEP - o que configura uma clara violação dos direitos do arguido recluso, nomeadamente do princípio da igualdade de armas e da proporcionalidade em processos penal.

14.º Viola a Constituição o facto do Ministério Público ter mais poderes que o arguido recluso, em prejuízo deste (artigo 196.º, n.º 1 do CEP), uma vez que a lei apenas atribui ao MP o direito ao recurso, sendo este direito vedado ao arguido (por não estar expressamente previsto no n.º 2 do artigo 196.º do CEP), em contradição com o estatuído na Constituição - artigo 32.º n.º 1 da CRP.

15.º O Ministério Público poder recorrer em favor do arguido, mas o artigo 196.º, n.º 1 do CEP não prevê a possibilidade do MP recorrer exclusivamente em favor do arguido, podendo o MP recorrer em desfavor deste, o que não raras vezes acontece (cf. Ac. do Tribunal da Relação de Évora, Proc. 1.682/10.0TXEVR.-D.E1, de 06-02-2013 - in www.dgsi.pt), o que configura uma desigualdade de direitos das partes, para além da restrição dos direitos de defesa do artigo 32.º da CRP.

16.º Por conseguinte, há uma clara inconstitucionalidade do artigo 196.º n.º 2 do CEP, já que está vedado ao recluso - pessoa afetada pessoalmente - recorrer contra decisão contra si proferida, por não estar expressamente previsto neste artigo.

17.º Não se pode aceitar que o arguido/recluso seja impedido de recorrer de uma decisão que o afeta pessoalmente, quando o Ministério Público, que não está recluído nem privado do seu direito à Liberdade (artigo 27.º n.º 1 da CRP), pode, de forma mais abrangente, recorrer dessa decisão que "conceda, recuse ou revogue".

18.º Não há Inconstitucionalidade mais grave que aquela que atinge o Direito à Liberdade, relativo a uma saída precária.

19.º Está em causa o artigo 32.º da Constituição, relativo às garantias do Processo Penal, e ainda o artigo 18.º da Lei Fundamental - direito fundamental - Direito à Liberdade, consubstanciado na possibilidade do arguido recorrer de uma decisão que não lhe concede uma licença de saída jurisdicional, vulgarmente designada de saída precária.

20.º O cumprimento de pena de prisão por um condenado visa, entre outras coisas, reeducar o indivíduo, ressocializá-lo e reintegra-lo na sociedade.

21.º Estas são as finalidades da punição em penas de prisão.

22.º Atendendo a estes princípios, é garantido que a lei prevê a concessão de saídas jurisdicionais, previstas pelo artigo 78.º do CEP, que refere que podem ser concedidas licenças de saída quando se verifiquem certos requisitos.

23.º Trata-se, neste caso, de um verdadeiro poder-dever do Estado, a quem incumbe auxiliar o recluso (artigo 2.º e 9.º da Constituição).

24.º Em matéria de concessão de saídas jurisdicionais, sempre que as mesmas forem recusadas, deve o arguido recluso ter direito a recorrer, caso entenda que a decisão contra si proferida o prejudica, como foi o caso.

25º. Trata-se de uma verdadeira questão de constitucionalidade a de saber se a lei (ordinária) pode restringir os direitos, liberdades e garantias, incluindo o recurso, para além dos casos previstos na CRP.

26º. Nos presentes autos, esse limite é imposto por lei ordinária, concretamente pelos arts 196.º n.º 2 e 235.º do CEP (ex vi artigo 414.º do CPP).

27.º Daqui decorreu o fundamento para o arguido/recluso interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º n.º 1 alínea b) da Lei 28/82 de 15 de novembro.

28.º O presente recurso destina-se a apreciar a constitucionalidade do artigo 196.º n.º 2 do CEP, aplicada nos presentes autos, pelo facto do Ministério Público ter mais poderes que o arguido recluso, em prejuízo deste (artigo 196.º, n.º 1 do CEP), já que vê o seu direito negado, em violação com o estatuído no artigo 32.º n.º 1 da Constituição - garantias de defesa do arguido - e dos princípios da igualdade, proporcionalidade, não discriminação e os fins das penas, previstos na Lei Fundamental.

29.º A norma que se pretende ver apreciada impede o arguido recluso de recorrer contra decisão que não lhe concedeu a licença de saída jurisdicional, o que está em claro confronto com a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente com os artigos 2.º, 9.º, 18.º e 32.º n.º 1 e ainda o artigo 13.º "Direito a recurso efetivo, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem", e artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, aprovado e publicado no Diário da República a 9 março de 1978.

30.º A dita norma põe em causa direitos fundamentais, concretamente o Direito ao Recurso, incorporado na Constituição da República, na 4.ª revisão Constitucional, aprovada pela Lei 1/1997 de 20-09, que ao seu artigo 32.º, n.º 1, lhe acrescentou a expressão "incluindo o recurso"

31.º Prevê o artigo 8.º da DUDH que toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra atos que violem direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

32.º É sobejamente reconhecido que assiste a todos, pelo menos, um grau de recurso efetivo.

33.º In casu, isso não aconteceu, porquanto o artigo 196.º n.º 2 do CEP prevê essa proibição oculta, essa restrição, essa limitação aos direitos do recluso.

34.º Porém, o Ministério Público, pelo n.º 1 do mesmo artigo 196.º pode recorrer da decisão que conceda, recuse ou revogue.

35.º Não se acolhe a fundamentação do Exmo. Sr. Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto, no despacho com data de 15-11-2013, quando refere que "o reclamante parece não dar conta, ou relevo, à circunstância de a possibilidade de o Ministério Público recorrer da decisão de recusa não considerar uma desigualdade em desfavor do condenado, pois essa possibilidade de recurso do Ministério Público foi consagrada formal e materialmente em favor do arguido, não é um direito concedido ao Ministério Público em desfavor do arguido é um direito, que o Ministério Público exercita ou não, em favor do condenado, constituindo mais uma garantia para o condenado".

36.º Isto porque o artigo 196.º n.º 1 do CEP não tem na sua génese um direito do arguido recluso, já que o MP pode recorrer contra ou em favor do recluso e não exclusivamente em favor do recluso, havendo exemplos de jurisprudência superior em que o MP recorreu de facto contra o recluso, o que configura assim uma desigualdade de direitos das partes, pois o MP tem a opção de recorrer, mas o recluso não tem essa opção.

37.º O argumento do Tribunal da Relação do Porto não levou em conta o facto de apenas o Ministério Público poder recorrer da decisão que "conceda" a licença de saída jurisdicional, prejudicando assim o recluso, que não o pode fazer.

38.º Há por isso uma clara desigualdade de armas (entre o arguido recluso e o M.P.) que o Tribunal da Relação do Porto não considerou, pois cingiu-se e limitou-se a uma interpretação literal do conteúdo da norma ora em crise (artigo 196.º n.º 2 do CEP).

39.º Isto porque o Ministério Público, a uma decisão do TEP que conceda a licença de saída jurisdicional, pode recorrer contra o recluso; porém, se for recusada essa licença de saída jurisdicional ao recluso, este não tem o mesmo poder recursório de que possa abrir mão, em defesa dos seus direitos, garantindo a igualdade de armas - processo equitativo.

40.º Defendeu ainda a decisão singular do Tribunal da Relação do Porto que o catálogo de direitos do artigo 32.º da Constituição está perspetivado tendo em vista fundamentalmente o arguido e não o condenado.

41.º Ora, tal argumento é quase ofensivo dos direitos do arguido recluso.

42.º É o próprio Tribunal da Relação do Porto que, por duas vezes, pelo menos, apelida o recorrente de "arguido" no seu despacho.

43.º Perante tal argumento do TRP, está em causa a violação do artigo 13.º n.º 1 da CRP, já que ali se pretende dizer que os cidadãos arguidos recluídos têm menos direitos que os cidadãos em liberdade, ainda que ambos sejam arguidos e condenados perante a lei.

44.º O artigo 32.º n.º 1 da CRP assegura todos os direito de defesa, incluindo o recurso, não distinguido o tipo de arguido, de crime, se está recluso ou em liberdade!

45.º Não colhe por isso o argumento do Tribunal da Relação do Porto, que está em clara violação do princípio ínsito nos artigos 13.º e 32.º n.º 1 da CRP.

46.º Os direitos dos cidadãos só podem ser limitados por força da decisão judicial e baseada na lei (se nela ficar prevista alguma proibição), tal como o Direito à Liberdade, no caso de pena de prisão.

47.º Quanto aos outros Direitos, estes permanecem inalterados (veja-se o exercício do direito ao voto, que não se perde mesmo no caso de reclusão).

48.º O acórdão 150/2013, do Tribunal Constitucional, refere que: "essa relação de poder foi substituída por relações jurídicas com recíprocos direitos e deveres, em que o recluso não é mais "objeto" mas passou a ser "sujeito da execução" (Anabela Rodrigues, Novo Olhar sobre a questão penitenciária, 2.ª edição, Coimbra, 2002, 69).

49.º Invoca este mesmo acórdão o Decreto-Lei 265/79, segundo a qual a visão do recluso «é agora a de uma pessoa sujeita a um mero "estatuto especial", jurídico-constitucionalmente credenciado (CRP, artigo 27.º-2) e que deixa permanecer naquela a titularidade de todos os direitos fundamentais, à exceção daqueles que seja indispensável sacrificar ou limitar (e só na medida em que o seja) para realização das finalidades em nome das quais a ordem jurídico-constitucional credenciou o estatuto especial respetivo».

50.º O Tribunal da Relação do Porto não considerou nem qualificou corretamente a situação de alguém que está preso, em cumprimento de pena de prisão aplicada.

51.º Só uma interpretação mais ampla poderá fazer com que se atinja um sentido lógico-dedutivo, com total observância da lei. (artigo 9.º do Código Civil, encontrando-se no pensamento legislativo sentido lógico do texto da lei).

52.º O arguido não deixa de o ser, pelo facto de ter sido condenado ou de lhe ser aplicada uma pena, e mantém essa qualidade durante todo o decurso do processo (cf. artigo 57.º n.º 2 do CPP).

53.º A medida de coação de Termo de Identidade e Residência - TIR - aplicada aos arguidos, extingue-se apenas com a extinção da pena e não com o trânsito em julgado (cf. artigos 196.º e 214.º, n.º 1, alínea e) do CPP), tendo esta recente alteração sido introduzida pela Lei 20/2013 de 21-2, que alterou o CPP.

54.º Considerando uma "dupla conforme de expressão", que poderá ser "arguido condenado", entendemos que esta expressão, por si só, não pode colher, pois como se sabe "arguido condenado" pode ser um qualquer arguido condenado em pena de multa, em trabalho a favor da comunidade ou em Pena de Prisão suspensa na sua execução, não estando este arguido condenado privado da sua liberdade.

55.º O arguido tem deveres e direitos em processo penal, mormente os previstos no artigo 61.º e seg. do CPP, onde está incluindo o direito ao recurso, consagrado também no artigo 32.º n.º 1 da CRP.

56.º O facto de estarem recluídos, em pena privativa de liberdade, não retira aos arguidos quaisquer direitos fundamentais.

57.º O próprio artigo 6.º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade refere que o recluso mantém a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da sentença condenatória ou a decisão de aplicação de medida de privativa da liberdade e as impostas, nos termos e limites do presente Código, por razões de ordem e segurança do estabelecimento prisional.

58.º Estão em causa Direitos, Liberdades e Garantias do arguido recluso, que está privado da Liberdade - bem supremo, numa escala de valores, também constitucionalmente consagrado.

59.º O Acórdão 638/2006 do TC deu razão a um arguido condenado preso, e decidiu Julgar inconstitucional, por violação do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º e nos artigos 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 127.º do Decreto-Lei 783/76, de 29 de outubro, na parte em que não admite o recurso das decisões que neguem a liberdade condicional.

60.º O ponto n.º 7 deste Acórdão 638/2006 do Tribunal Constitucional afirma: "Aliás - e seja como for quanto â exata qualificação dos processos de execução de penas, para o efeito da subsunção ma noção de «processo criminal» utilizada no artigo 32, n.º 1 da Constituição -, cumpre notar que, já antes da revisão constitucional de 1997, se veio a consolidar uma jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido da tutela constitucional do direito de decorrer das decisões que afetem direitos, liberdades e garantias como o direito à liberdade. A Constituição exige em tais casos a possibilidade efetiva de uma reapreciação em recurso - o que, no caso dos autos, poderia consistir no recurso para o Tribunal da Relação do Porto".

61.º Também aqui havia uma clara violação do artigo 32.º n.º 1 da CRP, por não ser, naquele tempo, admissível o recurso quanto à recusa da concessão da liberdade condicional.

62.º A concessão da Liberdade Condicional está prevista nos artigos 61.º e seguintes do Código Penal, por remissão, também, a alguns artigos do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

63.º Antes do Acórdão 638/2006 do TC, era proibido tal ato recursório, tendo, todavia, sido revogada tal norma por se ter declarado, e muito bem, inconstitucional, com força obrigatória geral.

64.º A presente questão que se leva a conhecer é exatamente a "mesma", embora denominada por "recurso à recusa da concessão da licença de saída jurisdicional", sendo que, o MP pode recorrer e o principal interessado (recluso) não.

65.º Em ambas as situações, o arguido preso continua sempre em prisão, mas em diferente modo de execução da pena privativa de liberdade (a quem é concedida a liberdade condicional está em cumprimento de pena de prisão, apenas numa fase distinta da reclusão permanente), sendo que, ao poder-se beneficiar das medidas de flexibilização da medida da pena, a ressocialização, reeducação e reintegração do agente na sociedade, mais facilmente se atingirão os objetivos pretendidos pelo Legislador, com a punição de prisão privativa da liberdade de que aquele foi alvo.

66.º São vários os relatórios técnicos que afirmam que longos tempos de encarceramento enfraquecem o individuo de tal forma, podendo assim fazer com que este jamais se renove, criando hábitos criminógenos, o que se combate com a concessão de Saídas de Licença Jurisdicionais, que assumem enorme importância, confirmada pela taxa de sucesso na sua aplicação e cumprimento pelos reclusos, que ronda os 99 %, segundo os estudos feitos em Portugal nos (últimos anos.

67.º As chamadas saídas precárias assumem-se como uma das formas que os reclusos têm que contactar com o exterior (Titulo XI do CEP) e constituem um contributo ressocializador, essencial no processo de preparação progressiva do recluso para a sua libertação e reinserção na sociedade.

68.º O cumprimento de pena de prisão tem na sua génese, entre outras coisas, reeducar o individuo, ressocializá-lo e reintegra-lo na sociedade, garantido o CEP a concessão de saídas jurisdicionais, pelo que não se compreende como pode este código, no artigo 196.º n.º 2, castrar o direito ao arguido/recluso de recorrer contra decisão que não lhe concedeu a licença de saída jurisdicional.

69.º Sempre que é recusada uma saída jurisdicional (sem direito a recurso), está posta causa a nova etapa da pena, ou seja, as medidas de flexibilização desta.

70.º Reitera-se que a Lei 115/2009, de 12 de outubro, prevê as "Licenças de saída do estabelecimento prisional" no seu artigo 76.º (Tipos de licenças de saída).

71.º O Código Penal dito de 1995 (DL n.º 48/95, de 15 de março) preceitua no n.º 4 do seu artigo 61.º que o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena, naquilo que é conhecido como liberdade condicional obrigatória.

72.º Se o recluso pode recorrer da decisão que indefira a concessão da liberdade condicional, que é, obviamente, uma concessão também, em termos jurídico-penais, tem que estar consagrado o direito a contraditório ao que está vertido na ata do conselho técnico, que recuse a licença de saída jurisdicional (cf. artigo 32.º, n.º 5 da CRP).

73.º No caso das saídas jurisdicionais, estamos perante um caso muito diferente da antecipação da liberdade condicional - por vigilância eletrónica.

74.º Um indivíduo que seja condenado a 20 anos de prisão, atinge % da pena ao fim de 5 anos, mas para solicitar a antecipação da liberdade condicional, prevista no artigo 62.º do Código Penal, terá que aguardar 9 anos de cumprimento de pena (que lhe será com certeza negada - em 99,9 % dos casos).

75.º Entre os 5 anos de pena já cumprida e os 9 anos da referida possibilidade de requerer antecipação, decorrem as medidas de flexibilização da medida da pena, ou seja, as saídas jurisdicionais.

76.º Não há proteção jurídica para o recluso durante o período que vai dos 5 anos até aos 9 anos, (ou seja durante aqueles 4 anos), para recorrer das decisões sobre as saídas jurisdicionais, que lhe são constantemente negadas.

77.º Se o artigo 6.º do CEP até prevê que o recluso mantêm a titularidade dos seus direitos fundamentais, por maioria de razão, deverá ter o direito a interpor recurso de uma decisão que lhe seja desfavorável, tal como prevê o artigo 32.º n.º 1 da Constituição - garantias de defesa - direito ao recurso.

78.º O Tribunal da Relação do Porto, no despacho de 15-11-2013, referiu "mais dois argumentos", que se enunciam de forma breve: "passou pelo "crivo" da Comissão de Assuntos Constitucionais", e passou pelo "crivo" do Presidente da República que entre as questões de conformidade com a Constituição que suscitou não identificou a presente".

79.º Pelo facto de S. Ex.ª, o Presidente da República, não ter suscitado a presente inconstitucionalidade, não implica que esta não exista.

80.º Apenas não foi detetada. (se fosse essa a argumentação usada em qualquer resposta judicial, o Tribunal Constitucional, contrariamente à realidade, não declararia, dia após dia, inconstitucionalidades nas normas, quando todas estas, passaram no crivo do Presidente da República e demais entidades variadas ouvidas nos decursos de diplomas e propostas de Lei).

81.º Desde o acórdão 638/2006, proferido no ano de 2006 e o acórdão 150/2013 do ano de 2013, não houve qualquer alteração à Constituição.

82.º Apenas a implementação do Código de Execução de Penas.

83.º Pelo que se depreende que, entre o Ac. 638/2006 e o Ac. n.º 150/2013, o Tribunal Constitucional tem posições diferentes quanto aos Direitos, liberdades e garantias de um cidadão a cumprir pena de prisão.

84.º Não é justo, nem de Justiça, nem de um Estado de Direito Democrático, o recluso não poder recorrer, em abstrato (o recurso é apenas um direito, e ali se decidirá), da decisão de negação da saída jurisdicional.

85.º A título de exemplo, refira-se a situação no país vizinho, já que em Espanha, o recluso pode recorrer da não concessão das saídas jurisdicionais, sendo que, quem obtiver provimento no recurso, são concedidas com efeitos retractivos, as saídas de que poderia ter beneficiado entre o período de negação e a decisão de recurso.

86.º O artigo 196.º n.º 2 da Lei 115/2009 de 12 de outubro viola, entre outras, os comandos constitucionais ínsitos do art. 9º alínea b) e d), 12.º, n.º 1, 13.º n.º 1 e 2, 18.º n.º 1 e 2, e 32.º n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa, o principio da sociabilidade e o dever de ajuda que incube ao Estado perante os seus cidadãos.

87.º Foram violados o princípio do Estado de Direito Democrático, o princípio do Processo Equitativo e Igualdade de Armas, o princípio da Proporcionalidade, o princípio da Igualdade, o princípio do Direito ao Recurso, todos Constitucionalmente Consagrados na C.R.P. pelos artigos 2.º, 9.º, 13.º n.º 1, 18.º e 32.º n.º 1 da CRP.

4 - O Ministério Público apresentou contra-alegações, concluindo da seguinte forma:

[...]

36.º Definida, pois, a inteira adequação à lei da decisão ora recorrida, vejamos, agora, se a mesma suscita outros reparos, de ordem constitucional, como argumentado pelo recluso.

Ora, desde logo, a jurisprudência deste Tribunal Constitucional tem afirmado (cf. Acórdão 496/96, citado), em matéria de garantia de acesso ao direito e aos tribunais, "a inexistência de uma garantia generalizada de duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador de uma ampla liberdade de conformação no estabelecimento de requisitos de admissibilidade dos recursos, designadamente reportados ao valor da causa, como sucede com o estabelecimento de alçadas. O legislador não pode, apenas, "abolir o sistema de recursos in toto" ou limitá-lo, elevando por exemplo, as alçadas ou a sucumbência a valores totalmente desproporcionados, em termos tais, que "na prática, se tivesse de concluir que os recursos tinham sido suprimidos".

37.º Afigura-se, por outro lado, que assiste razão, mais uma vez, ao Senhor Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto, quando este afirma (cf. supra n.º 8 das presentes alegações):

"Quanto às garantias do processo criminal e direito ao recurso, não pode o reclamante postergar que foi condenado, por decisão transitada em julgado, em pena de prisão efetiva que atualmente cumpre. O catálogo de direitos do artigo 32.º da Constituição está perspetivado tendo em vista fundamentalmente o arguido e não o condenado. Esse normativo deve ser lido no contexto que efetivamente disciplina, o processo criminal até à decisão final transitada em julgado, como a referência a arguido - e não também condenado - leva a intuir. No caso estamos na fase de execução da pena, fora do âmbito de previsão daquele normativo.

A Constituição não define, positivamente, quais os direitos, bens ou valores cuja perda ou restrição pode constituir uma pena. Excetuando o limite expresso no artigo 30.º, n.º 4 e os resultantes dos arts. 24.º, n.º 2 e 26.º, deixou a Constituição para o legislador ordinário um amplo campo de discricionariedade no desenho da execução de penas.

Quanto ao condenado, que mantém a titularidade dos direitos fundamentais não incompatíveis com a sua situação prisional, no desenho dos limites tem que se ponderar e balancear com as limitações inerentes ao sentido da condenação e as exigências próprias da execução da pena, artigo 30.º n.º 5 da Constituição. Essa ponderação foi feita por quem tem, em primeira linha, para tal legitimidade, o legislador, em diploma recente, balanceando os interesses conflituantes consagrou o legislador um sistema parcimonioso de recursos: nem um irrestrito direito de recurso, nem a proibição total de recurso das decisões do TEP.

Parece-nos que a restrição em causa não limita de modo arbitrário ou desproporcionado o direito de o condenado sindicar decisões que julgue desfavoráveis, antes concilia de modo razoável os interesses contraditórios em confronto. Não nos parece por isso que a solução legislativa viole os arts. 18.º e 32.º n.º 1 da Constituição, quando, como se deve, se perspetiva o problema no contexto do artigo 30.º, n.º 5 da Constituição."

38.º Desde logo, nos termos do artigo 2.º, n.º 1 do CEP, «a execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade visa a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade».

Depois, o artigo 3.º, n.º 2, do mesmo Código, acrescenta, em complemento, que «a execução respeita a personalidade do recluso e os seus direitos e interesses jurídicos não afetados pela sentença condenatória ou decisão de aplicação de medida privativa da liberdade».

Haverá, assim, como é natural, direitos afetados pela sentença condenatória e pela aplicação de medida privativa de liberdade.

Não é de estranhar, por isso, que o artigo 6.º do CEP tenha vindo determinar:

"O recluso mantém a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da sentença condenatória ou da decisão de aplicação de medida privativa da liberdade e as impostas, nos termos e limites do presente Código, por razões de ordem e de segurança do estabelecimento prisional."

E um desses direitos é, justamente, o constante do artigo 7.º, n.º 1, alínea m), do CEP: o direito «a ser ouvido, a apresentar pedidos, reclamações, queixas e recursos e a impugnar perante o tribunal de execução das penas a legalidade de decisões dos serviços prisionais».

Todavia, o direito de recurso, de decisões do Tribunal de Execução de Penas para o Tribunal da Relação, terá de exercer-se nos termos do art. 235, n.º 1 do CEP, como atrás referido.

39.º É certo, que a jurisprudência deste Tribunal Constitucional tem reconhecido (cf. Acórdão 638/06, citado), que "tendo sobrevindo, quer à aprovação da norma em apreço, quer ao citado Acórdão 321/93, uma alteração no texto da Lei Fundamental, pela Lei Constitucional 1/97, de 30 de setembro, que se traduziu, no que ora releva, no aditamento de uma referência expressa ao direito de recurso entre as garantias de defesa do processo criminal (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), ficou claro que "o direito a pelo menos um grau de recurso [...] é agora constitucionalmente garantido".

Nessa medida, uma vez que "o Código de Processo Penal contém normas (artigos 484.º a 486.º) que regulamentam o procedimento de apreciação dos pressupostos de que depende a concessão da liberdade condicional, incluindo o início do processo, a decisão a proferir e a respetiva notificação ao interessado", isso significa "que a decisão em causa é uma decisão proferida também nos termos do Código de Processo Penal. Tal inculca que, juntamente com aquelas, as normas de natureza adjetiva constantes do Decreto-Lei 783/76, de 29 de outubro, e reguladoras das providências da competência do Tribunal de Execução de Penas, fazem parte integrante do direito processual penal [...].

A resposta positiva a tal qualificação levaria a considerar tais processos abrangidos pela garantia constitucional do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição. Isto é, as garantias de defesa, na medida em que tal se justifique, estenderiam a sua eficácia em geral aos processos de competência dos Tribunais de Execução de Penas [...]".

40.º Podendo, até, dizer-se, como anteriormente referido, transcrevendo o Acórdão 427/09 (cf. supra n.º 13 das presentes alegações):

"Desta evolução, no sentido de a liberdade condicional dever ser tendencialmente entendida nos quadros da prevenção especial, decorre uma razão adicional para a recondução das decisões sobre a liberdade condicional ao figurino normal das decisões judiciais em matéria penal - ao invés do que foi entendido na decisão recorrida. Se o próprio legislador assinala a transformação de uma decisão de oportunidade em decisão de legalidade (em que o julgador age, como titular de um órgão de justiça, com independência e imparcialidade), os fatores de singularização dessa decisão, eventualmente óbices a uma reapreciação por um tribunal superior não especializado, esbatem-se perante o programa normativo, que pode - e, contendendo com a liberdade dos cidadãos, deve - ser referido por uma segunda instância.

Encontrando-se jurisdicionalizada a execução das penas e abrangendo as garantias de defesa todo o processo criminal, a negação do direito ao reexame, em via de recurso, da decisão denegatória da liberdade condicional traduzir-se-á, com esta fundamentação, na imposição de um encurtamento inadmissível das garantias de defesa do recorrente, sendo inconstitucional por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição."

Todavia, no caso dos autos não estamos perante nenhuma decisão denegatória da liberdade condicional (cf. Acórdão 638/06), de concessão de regime aberto ao exterior (Acórdão 427/09), ou de aplicação de regime de segurança (Acórdão 20/12).

Estamos, apenas, perante a não concessão de uma licença de saída jurisdicional, que não altera o tipo de pena imposta ao recluso - que continua a ser de privação de liberdade em meio prisional -, nem altera o conteúdo da sentença condenatória.

41.º Relativamente ao papel do juiz de execução das penas, o Acórdão 427/09 não deixou, por outro lado, de sublinhar (cf. supra n.º 18 das presentes alegações):

"11. Muito embora a definição legal da competência dos tribunais de execução das penas não contribua decisivamente para a densificação da reserva de juiz em matéria de execução de sanções privativas da liberdade - nem todas as intervenções judiciais são necessariamente impostas pelo artigo 202.º, n.º 2, da CRP (cf. infra ponto 12.) - não é de recusar que para tal densificação contribui também o que a lei inclui - e foi incluindo - na competência daqueles tribunais. Para além dos atos que a CRP reserva expressamente ao juiz e da forma como a doutrina e a jurisprudência vêm densificando a função jurisdicional, desde logo por contraposição à função administrativa (para uma síntese, cf. Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo 202.º, ponto V). Devendo salientar-se, relativamente àqueles atos que, em matéria de execução das sanções privativas da liberdade, a CRP reserva expressamente ao juiz somente o título de execução (ninguém pode ser privado da liberdade a não ser em consequência de sentença judicial condenatória - artigo 27.º, n.os 2) e a prorrogação das medidas de segurança privativas da liberdade, em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica (artigo 30.º, n.º 2).

12 - Se há matérias onde é possível traçar uma linha evolutiva clara, uma delas é, seguramente, a da jurisdicionalização da execução da pena de prisão (sobre esta evolução, Anabela Rodrigues, Novo Olhar..., p. 129 e ss.). Mercê, certamente, da posição jurídica que o recluso foi assumindo na execução desta sanção privativa da liberdade, acompanhando a "nova conceção dos direitos fundamentais como direitos de todas as pessoas, nas diversas circunstâncias da vida social, relativamente a todos os poderes, quaisquer que sejam" (Vieira de Andrade, "O internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica na perspetiva dos direitos fundamentais", A Lei de Saúde Mental e o Internamento Compulsivo, Coimbra Editora, p. 73, autor que se refere expressamente aos reclusos nas pp. 74 e 77). Conceção de que o artigo 30.º, n.º 5, da CRP é expressão acabada - os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução. [...]

Esta orientação é claramente infletida com o Decreto-Lei 783/76, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 222/77 e pelo Decreto-Lei 204/78, de 24 de julho. A par da intervenção justificada pela "novidade" da decisão (modificação ou substituição das penas ou das medidas de segurança), o que continuava a incluir as decisões em matéria de liberdade condicional, instituto cuja natureza jurídica continuava a resistir à de mero incidente na execução da pena de prisão (artigo 22.º), o Tribunal de Execução das Penas passou a exercer funções de garantia da posição jurídica do recluso (artigo 23.º). Nomeadamente, passou a competir ao juiz deste tribunal visitar, pelo menos mensalmente, todos os estabelecimentos prisionais, a fim de tomar conhecimento da forma como estão a ser executadas as condenações e a conceder e revogar as saídas precárias prolongadas (artigo 23.º, 1.º e 4.º).

Com este ponto de chegada é uma nova fase que se inicia, marcada pela tendência para estender a intervenção jurisdicional a toda e qualquer questão relativa à modelação da execução que possa contender com os direitos do recluso. O que arrasta a necessidade de repensar a intervenção do juiz no âmbito da execução das sanções privativas da liberdade. "Do que se trata, com efeito, é de converter a intervenção jurisdicional em garante da execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade, na medida em que a sua modelação afete diretamente os direitos do recluso" (Anabela Rodrigues, Novo Olhar... p. 137, itálico aditado).

Do que se trata, afinal, é de conter esta intervenção no âmbito da função jurisdicional (artigo 202.º, n.os 1 e 2, da CRP), dando ao juiz da execução das sanções privativas da liberdade o papel de juiz das liberdades, à semelhança do que sucede em outros lugares do ordenamento jurídico (cf. artigo 32.º, n.º 4, da CRP). Sem prejuízo de a reserva de juiz significar também que é da competência de um tribunal tomar certas decisões no decurso da execução (por exemplo, as que modificam, substituem ou complementam a sentença condenatória)."

42.º Ora, o digno Juiz de execução das penas manteve, nos presentes autos, a sua integral competência de "juiz das liberdades", ponderando, adequadamente, os interesses e a pretensão do recluso, bem como os interesses da sociedade, a cujo convívio o mesmo recluso pretende regressar, ainda que de forma incidental e transitória.

Por outro lado, o recluso, ora recorrente, manteve a titularidade dos seus direitos fundamentais, a restrição destes direitos fundamentais foi definida por lei e tal restrição teve como fundamento o sentido da condenação e as exigências próprias da execução (cf. Acórdão 20/12 deste Tribunal Constitucional), tendo estado "subordinadas a um princípio de legalidade (exigem previsão legal) e de proporcionalidade (adequação e necessidade)."

Acresce, que houve lugar a uma tutela judicial efetiva do recluso, uma vez que a decisão foi proferida pelo juiz de execução das penas, com totais garantias de independência e imparcialidade.

Assim, a intervenção do poder jurisdicional, no presente procedimento, decorreu da garantia constitucional do direito de acesso ao direito e aos tribunais, estabelecido no artigo 20.º da Constituição.

Bem como do artigo 30.º, n.º 5, da Constituição, uma vez que o direito de acesso ao tribunal não é mais do que a garantia adjetiva necessária à efetivação dos direitos fundamentais do recluso e, por isso, é necessariamente um dos direitos cuja titularidade o recluso mantém.

43.º Por todo o exposto, em termos de solução a adotar, crê-se de seguir, nos presentes autos de recurso, a doutrina consagrada no recente Acórdão 150/13 deste Tribunal Constitucional (cf. supra n.º 23 das presentes alegações), muito embora tal Acórdão se reporte a uma situação ligeiramente diferente, de adaptação à liberdade condicional.

No entanto, dada a proximidade com a situação analisada nos presentes autos, julga-se que valem igualmente para os presentes autos, as considerações seguintes:

"[...] Diversamente, quando o Diretor-Geral dos Serviços Prisionais coloca o recluso em regime aberto no exterior não há qualquer alteração do conteúdo da sentença condenatória. Esta decisão "continua a ser" de privação da liberdade, havendo, tão-só, uma alteração do conteúdo da execução da pena de prisão, político-criminalmente justificada por referência aos princípios jurídico-constitucionais da socialidade e da necessidade da intervenção penal (cf. supra ponto 4.). Isto é: não extravasa a natureza de medida de flexibilização da execução da pena de prisão (neste sentido, para o direito vigente e por comparação com o regime de semidetenção - atualmente previsto no artigo 46.º do Código Penal -, cf. Parecer 104/90 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, já citado) [...]».

Conclui-se, assim, que a 'adaptação à liberdade condicional', não corresponde à 'liberdade condicional', nem é enformada por qualquer alteração do conteúdo da sentença condenatória, antes integrando, ainda, um modo de cumprimento da pena privativa de liberdade ínsita na decisão condenatória."

44.º Tal como se crê serem igualmente aplicáveis as considerações seguintes, do mesmo Acórdão (cf. supra n.º 24 das presentes contra-alegações):

"No caso 'sub judice', não estamos perante um arguido em processo penal 'tout court', mas antes perante um recluso em cumprimento de pena privativa de liberdade (condenado), que, obviamente, mantendo a titularidade dos direitos fundamentais, não poderá deixar de suportar as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução - artigo 30.º, n.os 4 e 5 da Constituição.

Com relevo para o 'estatuto jurídico do recluso', em cumprimento de pena privativa de liberdade, previsto naquela norma jusfundamental e, ora, previsto em consagração daquela no direito infraconstitucional, mais propriamente no artigo 6.º do CEPMPL, no Acórdão 20/2012, o Tribunal pronunciou-se, explicitando-a, da seguinte forma:

«... Desta norma constitucional extraem-se três consequências: i) o recluso permanece titular de todos os seus direitos fundamentais; ii) a restrição destes direitos fundamentais pressupõe sempre uma lei, que obedecerá aos princípios estabelecidos no artigo 18.º da Constituição: e iii) a restrição tem que ter por fundamento o sentido da condenação e as exigências próprias da execução (assim, Damião da Cunha in Jorge Miranda/ Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, 690).

Ou seja, o princípio geral é o de que o preso mantém todos os direitos e com um âmbito normativo de proteção idêntico ao dos outros cidadãos, salvo, evidentemente, as limitações inerentes à própria pena de prisão (v. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 505). [...]

Sobre o estatuto jurídico do recluso estabelece o artigo 6.º do CEPMPL que o recluso «mantém a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da sentença condenatória ou da decisão de aplicação de medida privativa da liberdade e as impostas, nos termos e limites do presente Código, por razões de ordem e de segurança do estabelecimento prisional». Mantém-se, assim, atual, a afirmação de Figueiredo Dias (Direito Penal Português, Parte Geral - II, As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, 111-112) - emitida a propósito do correspondente artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 265/79 - segundo a qual a visão do recluso «é agora a de uma pessoa sujeita a um mero "estatuto especial", jurídico-constitucionalmente credenciado (CRP, artigo 27.º-2) e que deixa permanecer naquela a titularidade de todos os direitos fundamentais, à exceção daqueles que seja indispensável sacrificar ou limitar (e só na medida em que o seja) para realização das finalidades em nome das quais a ordem jurídico-constitucional credenciou o estatuto especial respetivo» [...]».

45.º Tal como se crê de aceitar, da mesma forma, a conclusão do mesmo Acórdão 150/13, embora adaptada à situação dos autos (de concessão de licença de saída jurisdicional), quando aí se refere (cf. supra n.º 25 das presentes alegações):

"Está em causa a (in)constitucionalidade de inadmissibilidade legal de recurso para a Relação de decisão judicial proferida por Tribunal de Execução de Penas, por parte de recluso em cumprimento de pena privativa de liberdade, que negou a concessão de 'adaptação à liberdade condicional', sendo certo que de acordo com o disposto nos artigos 188.º e 235.º do CEPMPL o mesmo se não encontra expressamente previsto.

Porém, não se vê, mau grado o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, que tal norma possa ser convocada no caso 'sub judicio', não obstante a maior judicialização que o novo CEPMPL veio trazer ao Processo de Execução de Penas, porquanto não estamos perante um processo criminal como nela se prevê.

No que importa à invocada violação do princípio constitucional, contido no artigo 20.º, n.º 1 da Constituição, a mesma não ocorre. Na realidade, o recorrente teve acesso ao direito e ao tribunal, desde logo, na medida em que a decisão de que se pretendia ver interposto o recurso, tendo sido proferida por Juiz do Tribunal de Execução de Penas, tem natureza judicial, decisão essa que, sem nos intrometermos na apreciação da mesma, ao nível do direito infraconstitucional, o que nos não compete, carecendo de caráter vinculado e exigindo um juízo de prognose favorável à recuperação social do condenado, não podia deixar de ter em atenção, também, a validade da norma que conduziu à aplicação da pena, e, consequentemente, salvaguardar a prevenção geral positiva, perante a comunidade em geral, que pela aplicação da mesma se visou garantir. Daí que, repita-se, se não possa concluir pela verificação de inconstitucionalidade da norma em causa por violação do princípio consagrado do artigo 20.º, n.º 1 da Constituição.

Do exposto conclui-se pela não inconstitucionalidade da supra identificada interpretação da norma do artigo 179.º, n.º 1 do CEPMPL tal como resulta da decisão recorrida, com fundamento na violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1 da Constituição."

46.º Julga-se, assim, por todo o exposto ao longo das presentes alegações, que este Tribunal Constitucional:

a) não deverá julgar inconstitucional a norma constante do artigo 196.º, n.os 1 e 2 do Código de Execução de Penas, em conjugação com o artigo 235.º do mesmo Código,"pelo facto do Ministério Público ter mais poderes que o arguido recluso, em prejuízo deste (artigo 196.º, n.º 1 do CEP), pois só o MP tem direito ao recurso, sendo este direito vedado ao arguido condenado, em violação com o estatuído no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição - garantias de defesa do arguido - e dos princípios da igualdade e proporcionalidade previstos na Lei Fundamental";

b) pelo que deverá manter-se o despacho recorrido, do Ilustre Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto, de 21 de novembro de 2013, que confirmou a decisão do digno Juiz de Execução das Penas, de 15 de outubro de 2013, que não admitiu o recurso, formulado pelo recluso/recorrente Artur Jorge Alves Vieira, relativo à anterior decisão, do mesmo magistrado judicial, que não lhe concedeu licença de saída jurisdicional.

5 - Dos autos emergem os seguintes elementos relevantes para a decisão:

- Por despacho do juiz do Tribunal de Execução de Penas do Porto, proferido nos autos n.º 4624/10.0TXPRT -I, datado de 6 de junho de 2013, foi indeferido o pedido do recluso/recorrente para concessão de licença de saída jurisdicional;

- O recorrente interpôs recurso desse despacho para o Tribunal da Relação do Porto, não tendo o mesmo sido admitido, por despacho datado de 15 de outubro de 2013, como fundamento em que «...nos termos do artigo 235.º, n.º 1 do CEP, "das decisões do tribunal de execução de penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei". Ora, das disposições conjugadas dos artigos 235.º, n.º 1 e 196.º, n.º 2, ambos do CEP, resulta que o recluso "apenas pode recorrer da decisão que revogue a licença de saída jurisdicional"». Pelo que, «... a decisão que recuse a concessão de uma licença de saída jurisdicional apenas é recorrível pelo Ministério Público como resulta do disposto no artigo 196.º, n.º 1 do CEP. Pelo exposto decido ao abrigo do disposto no artigo 414.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não admitir o recurso interposto nestes autos pelo condenado».

- O recorrente reclamou desse despacho para o Tribunal da Relação do Porto, tendo o Vice-Presidente, por despacho de 21 de novembro de 2013, indeferido a reclamação, nos seguintes termos:

«[...]

Alega o reclamante que o artigo 236.º, n.º 1, alínea b) do CEP, consagra o direito de o condenado recorrer "das decisões contra si proferidas". Invoca a favor da recorribilidade o disposto nos arts. 399.º e 401.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, a contrario. Finalmente sustenta que a solução normativa resultante dos arts. 196.º e 235.º do CEP, no sentido de que o arguido não pode recorrer da decisão que não lhe concedeu licença de saída jurisdicional, viola os arts. 18.º e 32.º da Constituição, porquanto o Ministério Público pode recorrer dessa decisão de recusa.

O CEP consagra no artigo 189.º e segts, o procedimento para a concessão de licença de saída jurisdicional. No caso o despacho reclamado não admitiu o recurso interposto da decisão que não lhe concedeu licença de saída jurisdicional.

A regra em matéria de recursos no CEP consta do artigo 235.º n.º 1: das decisões do TEP apenas cabe recurso nos casos expressamente previstos na lei. Ora, como disse o despacho reclamado, e aceita o reclamante, também entendemos que o CEP, de modo expresso, não prevê que o arguido recorra da decisão que não lhe concedeu licença de saída jurisdicional, artigo 196.º, n.º 2 do CEP.

Esgrime o reclamante o regime a contrário do Código de Processo Penal. Mas sem razão. Se o CEP consagra um regime de recursos próprio e autónomo, carece de fundamento procurar uma solução de segunda mão no Código de Processo Penal, tanto mais quando a norma que se vai buscar ao Código de Processo Penal - o arguido tem legitimidade para recorrer das decisões contra si proferidas - também consta do CEP, mas com a restrição expressa salvo quando a lei dispuser diferentemente, o que é o caso, pois a lei veda o recurso do arguido da decisão que não lhe concede licença de saída jurisdicional, artigo 196.º, n.º 2 do CEP.

Resta a desconformidade constitucional, que o reclamante se limita a afirmar, esquecendo que sobre ele impende um ónus de contribuir para uma correta enunciação, delimitação e resolução jurídica do problema. Mesmo assim, desconhecendo-se embora o concreto entendimento normativo do reclamante, pressupondo que sustenta a inconstitucionalidade da solução normativa resultante dos arts. 196 e 235.º do CEP, no sentido de que o arguido não pode recorrer da decisão que não lhe concedeu licença de saída jurisdicional, por violação dos artºs 18.º e 32.º da Constituição, quando o Ministério Público pode recorrer dessa decisão de recusa, diremos o seguinte.

O reclamante parece não dar conta, ou relevo, à circunstância de a possibilidade de o Ministério Público recorrer da decisão de recusa não configurar uma desigualdade em desfavor do condenado, pois essa possibilidade de recurso do Ministério Público foi consagrada formal e materialmente em favor do condenado; não é um direito concedido ao Ministério Público em desfavor do condenado é um direito, que o Ministério Público exercita ou não, em favor do condenado, constituindo mais uma garantia para o condenado.

Não se descortina a alegada violação do artigo 18.º da Constituição.

Quanto às garantias do processo criminal e direito ao recurso, não pode o reclamante postergar que foi condenado, por decisão transitada em julgado, em pena de prisão efetiva que atualmente cumpre. O catálogo de direitos do artigo 32.º da Constituição está perspetivado tendo em vista fundamentalmente o arguido e não o condenado. Esse normativo deve ser lido no contexto que efetivamente disciplina, o processo criminal até à decisão final transitada em julgado, como a referência a arguido - e não também condenado - leva a intuir. No caso estamos na fase de execução da pena, fora do âmbito de previsão daquele normativo.

A Constituição não define, positivamente, quais os direitos, bens ou valores cuja perda ou restrição pode constituir uma pena. Excetuando o limite expresso do artigo 30.º, n.º 4 e os resultantes dos arts. 24.º, n.º 2 e 26.º, deixou a Constituição para o legislador ordinário um amplo campo de discricionariedade no desenho da execução de penas.

Quanto ao condenado, que mantém a titularidade dos direitos fundamentais não incompatíveis com a sua situação prisional, no desenho dos limites tem de se ponderar e balancear com as limitações inerentes ao sentido da condenação e as exigências próprias da execução da pena, artigo 30.º n.º 5 da Constituição. Essa ponderação foi feita por quem tem, em primeira linha, para tal legitimidade, o legislador, em diploma recente. Balanceando os interesses conflituantes consagrou o legislador um sistema parcimonioso de recursos: nem um irrestrito direito de recurso, nem a proibição total de recurso das decisões do TEP.

Parece-nos que a restrição em causa não limita de modo arbitrário ou desproporcionado o direito de o condenado sindicar decisões que julgue desfavoráveis, antes concilia de modo razoável os interesses contraditórios em confronto. Não nos parece por isso que a solução legislativa viole os arts. 18.º e 32.º n.º 1 da Constituição, quando, como se deve, se perspetiva o problema no contexto do artigo 30.º, n.º 5 da Constituição.

Esquece o reclamante que do direito à liberdade - no seu caso legalmente restringida por decisão judicial transitada em julgado - não deriva uma automática concessão de licença de saída. Acresce que a licença de saída, nos termos em que continua legalmente prevista, podem ser concedidas ao recluso licenças de saída, artigo 76.º n.º 1 do CEP, e nos termos em que foi recomendada pelo Conselho da Europa R(82)16, adotada pelo Comité de Ministros de 24 de setembro de 1982, não é um direito do recluso, quando muito é um interesse legalmente protegido, inserindo-se no poder-dever do modo de execução de uma pena de prisão.

A rematar duas notas:

A matéria de recursos em sede de execução da pena mereceu, na génese da lei que aprovou o CEP, amplo debate, passou pelo crivo da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, onde esteve desde 27.2.2009 a 12.8.2009 e onde foram ouvidas as mais variadas entidades. De seguida passou pelo "crivo" do Presidente da República que entre as questões de conformidade com a Constituição que suscitou não identificou a presente.

Donde sem necessidade de outros considerandos se mantém a decisão reclamada».

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

6 - O recorrente, em cumprimento de pena privativa da liberdade, requereu ao Tribunal de Execução das Penas do Porto a concessão de uma licença de saída jurisdicional, pedido que foi recusado. Dessa decisão interpôs recurso para o Tribunal da Relação, o qual não foi admitido com base no n.º 2 do artigo 196.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), aprovado pela Lei 115/2009, de 12 de outubro, que apenas permite ao recluso recorrer da decisão que revogue a licença de saída jurisdicional. Da decisão de não admissão do recurso reclamou para o Presidente da Relação, reclamação que também foi indeferida.

Solicita então ao Tribunal Constitucional que aprecie se a norma do n.º 2 do artigo 196.º do CEPMPL viola o princípio do duplo grau de jurisdição, decorrente do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, uma vez que não permite ao recluso recorrer da decisão que recusa aquela licença, e se viola o princípio da igualdade, constante do artigo 13.º da Constituição, já que o poder de recorrer da decisão que recusa a licença de saída jurisdicional é atribuído ao Ministério Público e não ao recluso.

Nas alegações, o recorrente descreve com maior amplitude o objeto de recurso de fiscalização da constitucionalidade, fazendo referência à norma do n.º 1 do artigo 196.º do CEPMPL, que atribuiu ao Ministério Público o poder de recorrer da decisão que conceda, recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional, e mencionando outros parâmetros de fiscalização, ao alegar que «foram violados o princípio do Estado de Direito Democrático, o princípio do Processo Equitativo e Igualdade de Armas, o princípio da Proporcionalidade, o princípio da Igualdade, o princípio do Direito ao Recurso, todos Constitucionalmente Consagrados na C.R.P. pelos artigos 2.º, 9.º, 13.º n.º 1, 18.º e 32.º n.º 1 da CRP» (artigo 87.º das alegações).

Não obstante tais indicações, a verdade é que todo o investimento argumentativo é centrado no facto da lei não atribuir ao recluso o direito de recorrer da decisão que recusa a concessão da licença de saída jurisdicional, criando uma situação de desigualdade com o Ministério Público, a quem é conferido tal direito. Não se contesta o poder impugnatório do Ministério Público - previsto no n.º 1 do artigo 196.º do CEPMPL - mas o facto do mesmo poder não ser atribuído ao recluso. Por isso, a norma que, numa interpretação a contrario, impede o recluso de interpor recurso da decisão que recusa a licença jurisdicional é apenas a consta do n.º 2 do referido artigo 196.º, conjugada com o n.º 1 do artigo 235.º do CEPMPL.

E quanto às normas ou princípios constitucionais violados, nos termos em que a questão concreta foi suscitada durante o processo e colocada na petição de recurso, é óbvio que os fundamentos jurídicos tendentes a demonstrar a existência do vício de inconstitucionalidade relevante para a decisão da causa têm por referência apenas os parâmetros do direito ao recurso e do princípio da igualdade.

A norma que é objeto de fiscalização judicial consta do artigo 196.º em conjugação com o n.º 1 do artigo 235.º do CEPMLP, que dizem o seguinte:

Artigo 196.º

Recurso

1 - O Ministério Público pode recorrer da decisão que conceda, recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional.

2 - O recluso apenas pode recorrer da decisão que revogue a licença de saída jurisdicional.

3 - O recurso interposto da decisão que conceda ou revogue a licença de saída jurisdicional tem efeito suspensivo.

Artigo 235.º

Decisões recorríveis

1 - Das decisões do tribunal de execução das penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei.

2 - São ainda recorríveis as seguintes decisões do tribunal de execução das penas:

a) Extinção da pena e da medida de segurança privativas da liberdade;

b) Concessão, recusa e revogação do cancelamento provisório do registo criminal;

c) As proferidas em processo supletivo.

7 - O despacho recorrido não admitiu o recurso jurisdicional interposto de uma decisão judicial que recusou ao recorrente - recluso num estabelecimento prisional - o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional.

Para controlar a legitimidade constitucional da norma que suportou tal decisão - o n.º 2 do referido artigo 196.º - impõe-se começar por caracterizar as "licenças de saída" no âmbito do regime de execução das penas e medidas privativas da liberdade, procurando sobretudo conhecer se tais licenças estão inseridas no campo dos "direitos dos reclusos", cuja tutela efetiva exige a intervenção dos órgãos jurisdicionais, para depois aferir se tal proteção jurídica está garantida na Constituição.

A concessão de "saídas precárias" aos condenados a penas e medidas de segurança privativas da liberdade foi introduzida no direito penitenciário português através do Decreto-Lei 783/76, de 29 de outubro, diploma que consagrou, pela primeira vez, entre nós, a intervenção direta de uma magistratura especializada no cumprimento das penas e medidas de segurança privativas de liberdade e na reintegração social dos condenados, como expressamente se refere no respetivo preâmbulo.

Embora a anterior legislação já previsse a saída precária da prisão, assim como a jurisdicionalização da execução das penas e medidas de segurança, fazia-o em situações que nada tinham a ver com a intenção de socialização e com a garantia dos direitos do recluso. O Decreto-Lei 26 643, de 28 de maio de 1936 (Reforma Prisional de 1936) continha apenas uma disposição - o artigo 314.º - que previa a saída precária dos reclusos, por tempo não superior a 12 horas, quando fossem chamados a juízo ou por outro motivo justificado excecionalmente grave e urgente, autorizada pelo Ministro da Justiça, mediante informação favorável da autoridade judicial.

E a jurisdicionalização da execução das penas, iniciada com a criação dos tribunais de execução das penas pela Lei 2 000, de 16 de maio de 1944 (posta em execução pelo Decreto 34 540, de 27 de abril de 1945), não visava a tutela dos «direitos dos reclusos», pois teve a preocupação de evitar interferências de caráter judiciário na vida interna das prisões, por se entender que tal ingerência «poderia diminuir a autoridade, o prestígio e a iniciativa da direção do estabelecimento prisional» (cf. j. Beleza dos Santos, Os tribunais de execução das penas em Portugal, in, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Suplemento XV, Homenagem ao Doutor José Alberto dos Reis, Vol. I, pág. 290 e 291).

Com a Constituição de 1976, reconheceram-se os direitos fundamentais do recluso e afirmou-se a legalidade na execução das penas, de que resultou a necessidade de conformar o "estatuto jurídico do recluso" e de alargar a intervenção do poder jurisdicional na execução das penas privativas da liberdade.

Tal propósito foi logo concretizado pelo Decreto-Lei 783/76, de 29 de outubro, em cujo preâmbulo se afirma que «o juiz prolonga a ação do poder judicial na fase do tratamento penitenciário, atenuando a descontinuidade que tradicionalmente tem exercido entre o julgamento e condenação, por um lado, e atuação penitenciária dirigida à reintegração social do recluso, pelo outro».

Ao tribunal de execução das penas passou a ser cometida a função de garantia da posição jurídica do recluso, com o poder de intervir nas relações entre a administração penitenciária e os reclusos, abrindo-se dessa forma «um itinerário em que se torna natural a extensão do controlo jurisdicional a qualquer questão relativa à modelação da execução que possa contender com os direitos do recluso» (cf. Anabela Miranda Rodrigues, Novo Olhar Sobre A Questão Penitenciária, 2.ª ed. Coimbra Editora, pág. 137).

O alargamento da intervenção jurisdicional na vida interna das prisões traduziu-se assim na atribuição ao juiz de execução das penas de poderes para visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos prisionais, a fim de tomar conhecimento da forma como estão a ser executadas as condenações; ouvir, na altura das visitas, as pretensões dos reclusos e resolvê-las de acordo com o diretor do estabelecimento; decidir os recursos interpostos pelos reclusos relativos a sanção disciplinar que imponha o internamento em cela disciplinar por tempo superior a oito dias; convocar e presidir ao conselho técnico do estabelecimento sempre que o entenda necessário; e conceder ou revogar a «saída precária prolongada» (cf. artigo 23.º do Decreto-Lei 783/76).

A saída precária prolongada foi uma medida inovadora introduzida no Capítulo VI do Decreto-Lei 783/76 (artigos 34.º a 38.º), onde se fixaram os requisitos, condições, efeitos e procedimento de concessão. Apenas podia ser autorizada aos (i) condenados a penas e medidas de segurança privativas da liberdade de duração superior a seis meses, (ii) quando tivessem cumprido um quarto da pena ou seis meses da medida de segurança, (iii) e se entendesse que favorecia a reintegração social do recluso; as condições da saída eram fixadas caso a caso, não podendo ser superior a oito dias, com possibilidade de renovação de seis em seis meses; o tempo de saída não era descontado no cumprimento da pena, salvo se fosse revogada pelo não regresso ao estabelecimento dentro do prazo determinado ou por incumprimento das condições fixadas; a revogação implicava o desconto no cumprimento da pena do tempo em que o recluso andou em liberdade; a concessão da saída seguia a forma de «processo gracioso», que se iniciava com o requerimento do recluso ou uma proposta do diretor do estabelecimento, seguindo-se a audição do conselho técnico do estabelecimento prisional e do recluso, se tal fosse necessário, após o que a decisão era ditada para a ata, onde o juiz fixava o período de saída e as condições a cumprir, caso fosse concedida. Das decisões que concedessem, negassem ou revogassem a saída precária prolongada não era admitido recurso para a Relação (artigo 127.º).

Este regime de saídas precárias foi modificado com a entrada em vigor do Decreto-Lei 265/79, de 1 de agosto (alterado pelo Decreto-Lei 49/80, de 22 de março), cujas ideias mestras se adequam às conceções poltico-criminais básicas do Código Penal de 1982 em matéria de pena de prisão e que responde, praticamente em todos os pontos, às exigências vertidas em instrumentos internacionais sobre a matéria da execução das sanções privativas da liberdade, entre as quais as "Regras Mínimas" aprovadas pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa constantes da Recomendação R(87)3 de 12 de fevereiro de 1987 (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, pág. 108 e 109).

A consagração de um modelo de execução mais adequado à reintegração social do delinquente, como o que resultava do artigo 2.º daquele diploma, requeria um conjunto de medidas que possibilitassem o contacto com o exterior e que flexibilizassem o cumprimento da pena privativa da liberdade, entre as quais, um regime de saídas que preparasse progressivamente o recluso para a liberdade.

O regime de licenças de saída instituído por esta lei, para além da já prevista licença de saída prolongada, que foi modificada em alguns dos seus pressupostos (artigos 52.º a 54.º, 59.º e 61.º), passou a incluir também autorizações de saída concedidas pela Direção-Geral de Serviços Prisionais ou pelo diretor do estabelecimento prisional, com a natureza de medidas de flexibilização da execução da pena e ou de preparação para a libertação (cf. Alíneas b), c) e d) do artigo 15.º).

Assim, a Direção-Geral dos Serviços Prisionais passou a poder autorizar o recluso internado em estabelecimento ou secção de regime aberto a sair, com ou sem custódia, para trabalhar ou frequentar em estabelecimentos de ensino e aperfeiçoamento profissional ou em determinadas horas do dia, a fim de "tornar a execução das medidas privativas de liberdade mais flexível, nomeadamente nos aspetos referentes ao restabelecimento de relações com a sociedade, de forma geral e progressiva" (cf. alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 58.º); com vista a preparar a libertação, passou a poder autorizar a saída do estabelecimento pelo período máximo de oito dias, sem custódia, durante os últimos três meses do cumprimento da pena, ou durante seis dias por mês, seguidos ou interpolados, durante os últimos nove meses do cumprimento da pena, relativamente ao recluso que trabalhe ou frequente locais de ensino no exterior (cf. artigo 62.º-B e alíneas c) e d) do artigo 15.º); e o diretor do estabelecimento prisional de regime aberto passou também a ter competência para conceder licenças de saída de curta duração, que autorizam o recluso a sair, sem custódia, pelo prazo máximo de quarenta e oito horas, uma vez em cada trimestre (artigo 60.º).

A concessão destes "períodos de confiança" estava subordinada ao preenchimento de condições gerais e especiais que atribuíam ao juiz de execução das penas e à administração penitenciária ampla margem de apreciação e avaliação das circunstâncias pessoais, sociais e familiares que permitiam ao recluso beneficiar de uma saída do estabelecimento. O n.º 1 do artigo 50.º, após estabelecer que as licenças de saída precária não eram um direito do recluso, indicava os critérios a ter em conta na concessão, nomeadamente a natureza e gravidade da infração, a duração da pena, a personalidade e comportamento do recluso, na perspetiva da sua evolução ao longo da execução da pena, e o eventual perigo para a sociedade do insucesso da aplicação da medida. As saídas precárias eram assim caracterizadas como medidas individuais de tratamento penitenciário que deviam ser objeto de «um plano global prévio» (n.º 4 do artigo 57.º), que obedeciam às «condições a fixar para cada caso» (n.º 4 do artigo 50.º), cuja negação não podia ser entendida como medida disciplinar (n.º 1 do artigo 55.º), e que não podiam prejudicar a segurança e ordem pública (n.º 2 do artigo 58.º).

O atual Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade - a Lei 115/2009, de 12 de outubro (alterada pelas Leis n.º 33/2010, de 2 de setembro, n.º 40/2010, de 3 de setembro, e n.º 2013, de 21 de setembro) - "renovando" o pensamento socializador que anda associado à execução das penas privativas da liberdade, regula o instituto das licenças de saída do estabelecimento prisional no Capítulo IV, onde distingue dois tipos de licenças: (i) licenças de saída jurisdicionais, que visam a manutenção e promoção dos laços familiares e sociais e a preparação para a vida em liberdade (n.º 2 do artigo 76.º); (ii) licenças de saída administrativas, que compreendem quatro categorias: a) saídas de curta duração, para manter e promover os laços familiares e sociais; b) saídas para realização de atividades; c) saídas especiais, por motivos de particular significado humano ou para a resolução de situações urgentes e inadiáveis; d) saídas de preparação para a liberdade.

Qualquer uma destas categorias de licenças só pode ser concedida se ocorrerem e forem ponderados os requisitos e critérios gerais enunciados nos n.os 1 e 2 do artigo 78.º Ou seja, é necessário que se verifique (i) fundada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, (ii) fundada expectativa de que o recluso não se subtrairá à execução da pena ou medida privativa da liberdade, (iii) compatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social. E tendo em conta a finalidade de cada uma das licenças de saída, na sua concessão devem ser ponderados fatores, como: (i) a evolução da execução da pena, (ii) a necessidade de proteção da vítima, (iii) o ambiente social ou familiar em que o recluso se vai integrar, (iv) as circunstâncias do caso, (v) e os antecedentes conhecidos da vida do recluso.

Como a execução da pena de prisão deve ser orientada pelo princípio da individualização do tratamento prisional e baseada na avaliação das necessidades e riscos próprios de cada recluso (n.º 1 do artigo 5.º), as licenças de saída devem ainda ser programadas tendo em conta o normal desenvolvimento das atividades do recluso (n.º 7 do artigo 77.º); devem fazer parte do plano individual de readaptação do recluso (n.º 3 do artigo 23.º); na sua concessão podem ser fixadas condições, adequadas ao caso concreto, a observar pelo recluso (n.º 3 do artigo 78.º); o período de saída é considerado tempo de execução da pena (n.º 1 do artigo 77.º); e a não concessão não pode, em caso algum, ser utilizada como medida disciplinar (n.º 3 do artigo 77.º).

As licenças de saída jurisdicionais, as que aqui nos interessam, são concedidas e revogadas pelo juiz de execução das penas (n.º 1 do artigo 79.º, e alínea b) do n.º 4 do artigo 138.º), quando, para além das referidas condições gerais, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições especiais: (i) o cumprimento de um sexto da pena e no mínimo seis meses, tratando-se de pena não superior a cinco anos, ou o cumprimento de um quarto da pena, tratando-se de pena superior a cinco anos; (ii) a execução da pena em regime comum ou aberto; (iii) a inexistência de outro processo pendente em que esteja determinada prisão preventiva; (iv) a inexistência de evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos 12 meses que antecederam o pedido (n.º 1 do artigo 79.º). O período de saída não pode ultrapassar o limite máximo de cinco ou sete dias seguidos, consoante a execução da pena decorra em regime comum ou aberto, a gozar de quatro em quatro meses (n.º 2 do artigo 79.º); em caso de não concessão da licença, o recluso pode renovar o pedido após quatro meses a contar da data daquela decisão, podendo o juiz fixar prazo inferior (artigo 84.º); o incumprimento injustificado das condições impostas na licença de saída determina a impossibilidade de renovação do pedido durante seis meses ou a revogação da licença, neste caso, com desconto no cumprimento da pena do tempo em que o recluso esteve em liberdade (n.os 1 e 3 do artigo 85.º); e a concessão da licença segue a forma processual regulada no Capítulo VI do CEPMPL, onde se encontra a norma impugnada - o artigo 196.º - que não permite ao recluso interpor recurso jurisdicional da decisão de não concessão da licença.

8 - O CEPMPL não é tão categórico como a anterior legislação quanto à definição da natureza jurídica das licenças de saída: enquanto o artigo 50.º do Decreto-Lei 265/79 prescrevia que as saídas precárias não eram um «direito do recluso», o atual código faz uma enumeração exemplificativa dos «direitos do recluso» no artigo 7.º, sem qualquer referência às licenças de saída. É certo que na alínea e) desse artigo há uma intenção normativa de se proteger a manutenção de «contactos dos reclusos com o exterior», designadamente através de visitas, comunicação à distância ou correspondência, onde também se podem incluir as saídas do estabelecimento prisional. Mas não é menos certo que essa posição jurídica não confere ao recluso o poder de exigir ou pretender da administração judiciária ou do juiz de execução das penas a concessão de saídas, porque os contactos com o exterior só podem ser mantidos «sem prejuízo das limitações impostas por razões de ordem, segurança e disciplina ou resultantes do regime de execução da pena ou medida privativa da liberdade».

De facto, os requisitos e critérios de que depende a concessão da licença - artigo 78.º - conferem aos órgãos decisores uma ampla margem de discricionariedade que não se adequa com a atribuição ao recluso de um poder da vontade juridicamente protegido. A intervenção do juiz ou da administração penitenciária destina-se a averiguar se, perante a evolução do tratamento prisional, tal medida é adequada e necessária para se atingir o objetivo da reinserção social. Um dos princípios orientadores na prossecução desse objetivo é o princípio nihil nocere, segundo o qual a execução, na medida do possível, deve evitar as consequências nocivas da privação da liberdade e aproximar-se das condições benéficas da vida em comunidade (n.º 5 do artigo 3.º). Ora, o contacto com o exterior mediante saídas temporárias não só favorece a reinserção social do recluso, na medida em que evita os inconvenientes de uma permanência em reclusão por períodos demasiado longos, como assegura uma transição menos brusca da reclusão para a liberdade total. Por isso, o interesse público específico que em primeira linha se pretende realizar com as saídas do estabelecimento prisional é o de promover a socialização do recluso e ou o de evitar a sua dessocialização.

As saídas durante a execução da pena de prisão representam uma atenuação do princípio da continuidade da execução da pena privativa da liberdade, uma vez que o condenado é posto em liberdade durante alguns dias, valendo esse período como tempo de execução da pena (n.º 1 do artigo 77.º). Mas esta liberdade representa apenas um instrumento ou um complemento do interesse público primacial visado pela concessão da licença de saída - a reintegração social do recluso -, já que a intenção normativa não é proteger diretamente a liberdade do recluso, de que se encontra privado por força da sentença condenatória, mas antes proporcionar o restabelecimento de relações com a sociedade de forma geral e progressiva. A proteção que neste caso é concedida ao bem jurídico da liberdade (por uns dias) é apenas um reflexo do cumprimento pela administração penitenciária ou pelo juiz dos preceitos jurídicos que regulam as licenças de saída do estabelecimento prisional, estabelecidos em primeira linha para a recuperação social do recluso. Por isso, as licenças de saída não são um direito subjetivo de que o recluso possa ser, à partida, titular perante a administração penitenciária.

O modo como as saídas do estabelecimento prisional foram reguladas na lei não permite sequer categorizá-las como um direito condicionado (ou um direito comprimido) do recluso. Dos artigos 76.º, n.º 1, 78.º e 79.º, n.º 2 do CEPMPL resulta que as saídas do estabelecimento «podem» ser concedidas verificados certos pressupostos, mas que só o «devem» ser em função da evolução da execução da pena, do ambiente social ou familiar em que o recluso se vai integrar, das necessidades de proteção da vítima e das circunstâncias do caso concreto. Como refere Eduardo Correia, o preenchimento dos requisitos estabelecidos na lei «enquanto revestem o caráter de meras indicações negativas não podem bastar - nem obrigar - à concessão daquelas medidas. Para isso - aliás só desse modo correspondendo por inteiro à finalidade da execução - requere-se uma adequação e conveniência na sua aplicação, tendo em conta o progresso e o desenvolvimento do processo de tratamento, o que, de resto, só vem favorecer a sua consideração como um bom elemento de tratamento e não como um favor, cuja negação pudesse ser entendida como sanção disciplinar» (cf. Direito Criminal - III (1), Lições ao Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de Coimbra, 1980, pág. 149 e 150). O facto das licenças de saída não decorrer automaticamente da verificação dos pressupostos enunciados nos artigos 78.º e 79.º, exigindo sempre um juízo de avaliação da situação pessoal, social e familiar do recluso e um juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro, aponta para a negação de um direito originário à saída do estabelecimento. Tal direito só decorre duma autorização constitutiva que fixe as condições em que pode ser exercido.

Não é por mero acaso que o enunciado linguístico utilizado para explicar a posição jurídica substantiva do recluso no regime de saídas é a «licença» e não a «autorização». No direito administrativo, a autorização distingue-se da licença por ser um ato pelo qual se permite a alguém o exercício de um direito ou de uma competência preexistente, enquanto a licença é um ato pelo qual se atribui a alguém o direito de exercer uma atividade que é por lei relativamente proibida (cf. Rogério Soares, Direito Administrativo, Coimbra, 1978, pág. 116 a 119).

Ora, a adoção de um «regime preventivo» em matéria de saídas do estabelecimento, como o que resulta do CEPMPL, impõe que a intervenção prévia do juiz de execução das penas ou da administração penitenciária tenha que assumir a forma de «licença», por ser essa a técnica de regulamentação que melhor se adequa a «um certo grau de discricionariedade, visto que se torna mais difícil definir em abstrato todas as hipóteses em que o exercício do direito é ou não em concreto socialmente nocivo» (cf. Os Direito Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª ed., pág. 330). De facto, os pressupostos da concessão da licença de saída acima referidos concedem ao juiz ou à administração penitenciária uma ampla margem de liberdade que permite adequar a saída do estabelecimento à finalidade primária de socialização, sem desconsiderar as exigências mínimas de defesa da sociedade. Esse grau de discricionariedade explica que a licença de saída não seja um direito originário do recluso, mas apenas uma medida individual de reinserção social a obter de uma forma progressiva.

9 - A liberdade que a administração penitenciária e o juiz de execução das penas detêm na apreciação dos pressupostos e na configuração do conteúdo das licenças de saída não significa, porém, que a relação do recluso com a administração penitenciária constitua uma espécie de «relação especial de poder» que o coloque num estado de sujeição impeditivo de invocar direitos e garantias.

É verdade que o recluso se encontra numa situação especial geradora de mais deveres e obrigações do que aqueles que resultam para os cidadãos em geral. Mas esse estatuto especial não está desvinculado da lei e da Constituição. Não constitui hoje fonte de dúvida que «abandonada a teoria clássica que situava certas relações de vida - designadamente, e pelo que aqui nos interessa, no que se refere aos reclusos - no domínio do «não-direito» e (ou) rejeitada a tese de que os cidadãos que são regidos por estatutos especiais renunciam aos direitos fundamentais ou ficam numa situação de sujeição que implica uma qualquer capitis deminutio, surge definitivamente delineada no horizonte jurídico a unanimidade de posições que vêm o recluso como sujeito de direitos, mantendo relações jurídicas - de onde emergem direitos e deveres - com a administração» (cf. Anabela Rodrigues, A Posição Jurídica do Recluso Na Execução da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra, 1982, pág. 170).

Tanto assim é, que a relação presidiária é hoje disciplinada por um estatuto específico - o CEPMPL - que contém um catálogo de direitos que não pode ser restringido ou suprimido ao livre arbítrio da administração penitenciária.

Ora, estando tal relação subordinada ao princípio da legalidade, a concessão de poderes discricionários à administração penitenciária já não pode significar a aceitação de um espaço de decisão arbitrário, pois a discricionariedade é uma concessão legal que está sujeita a princípios jurídico-constitucionais limitadores da sua atuação (cf. artigo 266.º, n.º 2 da CRP).

10 - Apesar da incontornável limitação do direito fundamental à liberdade, o estatuto jurídico do recluso não se situa fora da esfera constitucional.

O artigo 30.º, n.º 5 da CRP, introduzido pela revisão constitucional de 1989, determina que «os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução».

Decorre desta norma que, à partida, o recluso é um cidadão que mantém todos os direitos fundamentais que são reconhecidos aos demais cidadãos. Mas a situação especial em que se encontra justifica restrições de direitos que são inerentes à própria pena de prisão, como é o caso da privação da liberdade ou de deslocação, ou que se justificam pela própria execução da pena, como acontece com os limites à liberdade de reunião, manifestação, correspondência, contactos com o exterior, etc.

No fundo, o que se visa com esta norma é «dar relevo ao estatuto do recluso, subordinando a restrição dos direitos fundamentais daquele que se encontra privado de liberdade a um conjunto de pressupostos, negando assim constitucionalmente qualquer possibilidade de conceber a posição jurídica do recluso segundo a figura da "relação especial de poder" (cf. Damião da Cunha, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed. pág. 690).

De modo que a restrição de direitos fundamentais do recluso tem que ser realizada por via legislativa e obedecer às demais regras e princípios de limitação de direitos estabelecidas no artigo 18.º da Constituição: não pode afetar o conteúdo essencial dos direitos, deixando intocado o limite absoluto constituído pela dignidade humana; e ter em conta os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade, só sendo legítimo sacrificar ou limitar direitos fundamentais se (e só na medida) em que for indispensável à realização dos fins em nome dos quais foi jurídico-constitucionalmente credenciado o estatuto especial do recluso.

11 - O princípio geral de que o recluso mantém todos os direitos fundamentais, salvo as limitações inerentes à própria pena de prisão e às exigências da própria execução da pena, pressupõe também a manutenção dos mecanismos que a Constituição prevê para a proteção e tutela desses direitos e demais posições jurídicas subjetivas.

É que a afirmação dos direitos fundamentais e do princípio da legalidade na execução supõe que os reclusos se possam dirigir a órgãos jurisdicionais para reagirem contra eventuais violações dos direitos que lhe são reconhecidos pela Constituição e pela lei. O facto da norma do n.º 5 do artigo 30.º da Constituição não se referir expressamente à tutela jurisdicional efetiva «em caso algum deve ser entendida como restritiva para efeitos de proteção ou de tutela judicial; antes tal tutela estará sempre pressuposta em todo o seu conteúdo» (cf. Damião da Cunha, ob. cit. pág. 691).

Como acima se referiu, o sentido atual da jurisdicionalização da execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade - através da intervenção do tribunal de execução das penas - é o de «garantir os direitos dos reclusos, pronunciando-se sobre a legalidade das decisões dos serviços prisionais» (artigo 115.º da Lei 62/2013, de 26 de agosto). A garantia de acesso ao tribunal para defesa de direitos fundamentais e direitos penitenciários constitui pois um dos principais meios de defesa dos reclusos - uma garantia que ela própria é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (artigo 20.º da CRP).

E relativamente aos atos da administração penitenciária lesivos dos direitos e interesses legalmente protegidos dos reclusos, a tutela jurisdicional efetiva prevista no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição para os administrados também de deve estender aos reclusos, já que o «recluso, pelo simples facto de o ser, não perde a sua posição de administrado, mantendo-a, em princípio, com um "âmbito normativo idêntico ao dos outros cidadãos"» (cf. Acórdão 20/2012).

12 - No presente recurso, não está em causa a legalidade da decisão que negou ao recorrente a licença de saída jurisdicional, nem a garantia da via judiciária, já que a decisão foi tomada pelo tribunal de execução das penas. O que se questiona é o duplo grau de jurisdição, possibilidade negada pelo despacho recorrido, e o princípio da "igualdade de armas" entre o recluso e o Ministério Público no processo de licença de saída jurisdicional, quanto ao exercício do direito ao recurso, que a decisão recorrida também considerou não estar afetado pela norma impugnada.

Em relação à primeira questão de inconstitucionalidade, o recorrente argumenta que a norma impugnada - o n.º 2 do artigo 196.º do CEPMPL - viola o direito ao recurso estabelecido no n.º 1 do artigo 32.º da CRP, porque esta norma assegura a todos o direito de defesa, incluindo o recurso, sem distinguir se o "arguido" está recluso ou em liberdade.

Por conseguinte, o problema jurídico-constitucional que se coloca consiste em determinar se os princípios da «constituição processual criminal» enunciados no artigo 32.º da CRP, designadamente o da existência de um duplo grau de jurisdição, se aplicam e em que medida aos processos de execução das penas.

O que se prescreve no n.º 1 do artigo 32.º é que o «processo criminal» assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. A expressão «incluindo o recurso» foi acrescentada pela Revisão de 1997, seguindo-se o entendimento da jurisprudência constitucional anterior no sentido de que uma das garantias de defesa é, justamente, o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias - o que vale por dizer que, no domínio processual penal, há que reconhecer, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição (cf. Acórdãos n.º 8/87, 124/90, 132/92, 322/93, 265/94, 610/96).

Como os princípios materiais condensados no artigo 32.º são literalmente dirigidos ao «processo criminal», a sua aplicação às formas de processo da competência dos tribunais de execução das penas, tipificadas no artigo 155.º do CEPMPL, depende, desde logo, de se conhecer se as normas reguladoras desses esquemas processuais constituem matéria que cabe intrinsecamente ao direito processual penal.

Numa época em que o controlo jurisdicional da execução das penas privativas da liberdade não interferia na vida interna das prisões, pertencendo a execução quase em exclusivo à administração penitenciária, Castanheira Neves dizia que fora do processo criminal ficava o direito penitenciário, «pois se por ele se executam as medidas decretadas no processo criminal (neste sentido ele é o "processo executivo" deste), a sua índole é, no entanto, inteiramente administrativa» (cf. Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Datilografado por João Abrantes).

Esta conceção foi porém ultrapassada a partir do momento em que o tribunal de execução das penas passou a ter funções de garantia da posição jurídica do recluso, com a jurisdicionalização de importantes domínios da matéria relativa à modelação da execução da pena. A execução das penas passou a ser uma atividade de índole judicial e jurisdicional, que se realiza de forma processualizada. A variedade das formas do processo fixadas no CEPMPL constituem instrumentos que determinados órgãos estaduais judiciais - os tribunais de execução das penas - utilizam tendo em vista a atuação de determinado direito objetivo e ou de certas pretensões de interesses dos reclusos.

O facto da execução das sanções penais privativas da liberdade se poder realizar através de um processo judicial poderá ser um incentivo a que se considere a regulamentação desse processo uma matéria que faz parte do processo penal, designadamente da "fase processual executiva" em que se procede à concreta execução da pena decretada na fase declarativa do processo penal. É aliás «uma evidência que o momento executivo desempenha um papel extraordinariamente relevante na prossecução dos fins ou metas do processo penal considerado no seu conjunto. Não é lícito avaliá-lo como uma espécie de compartimento estanque, pouco sensível à filosofia que impregna todo o ideário processual como realização dos fins últimos do sistema penal» (cf. Lopes Rocha, A execução das penas e medidas de segurança privativas das liberdade, in, O Novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 1988, pág. 477).

Só que, determinando-se a forma jurídica por referência à pretensão de interesses atuada no processo, logo se vê que o direito objetivo e ou os direitos subjetivos que se pretendem valer nas diversas formas processuais reguladas no CEPMPL não correspondem à realização do direito penal substantivo.

Não há dúvida que o processo penal, como instrumento de realização do direito penal substantivo, através da investigação e valoração do comportamento do acusado da prática de um facto criminoso, também abrange uma "fase de execução" ligada ao efeito executivo da sentença, que está regulada no Código de Processo Penal (artigos 467.º e ss.) e que pertence, inequivocamente, ao processo criminal.

Mas, aquelas formas processuais são meios que estão ao serviço de soluções que decorrem de uma regulamentação jurídico-substantiva que verdadeiramente não se enquadra no direito penal substantivo. Assim acontece porque o direito de execução das penas (o chamado «direito penitenciário») tem uma dupla natureza, compreendendo normas de direito substantivo e normas de direito processual de execução das penas. Como escreve Figueiredo Dias, «exata nos parece ser a distinção, dentro do direito de execução das penas, da regulamentação diretamente atinente à determinação prática do conteúdo da sentença condenatória e, portanto, à realização concreta da reação criminal naquela imposta: aqui tratar-se-á de matéria substantiva; e da regulamentação imediatamente respeitante ao efeito executivo da sentença (num sentido análogo àquele em que, no processo civil, se fala em «exequibilidade da sentença») e, portanto, aos preliminares e ao controlo geral da execução (neste compreendidos os chamados «incidentes da execução»: aqui estaremos perante matéria processual, que cabe intrinsecamente ao direito processual penal e que só por razões meramente técnicas dele pode ser distraída» (cf. Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 37).

Ora, a tutela dos interesses protegidos pelas normas jurídico-substantivas do direito penitenciário tem que ser realizada através de formas processuais que exprimam essa realidade material. Tais interesses, alguns substantivados em posições jurídico subjetivas dos reclusos, já não respeitam à investigação e valoração do comportamento do acusado da prática de um crime, mas à execução concreta de uma pena privativa da liberdade decretada num processo penal que praticamente terminou com o trânsito em julgado da sentença condenatória. A regulamentação jurídica da execução da pena pondera valores e interesses específicos que a distinguem do direito penal substantivo e que condicionam o tipo de processo que os realizem.

Como vimos, o reconhecimento de que o recluso é um «sujeito» da execução, titular de direitos e interesses legítimos supõe também que essa posição jurídica seja protegida através do recurso aos tribunais. A diversidade de formas processuais que dão realização efetiva a essa posição jurídica e que permitem o controlo jurisdicional das medidas de execução que possam afetar diretamente os direitos do recluso, formam o direito processual penitenciário, um direito composto por normas que são produto da exigência teleológica e funcional de adequação às especificidades do direito de execução das penas, e por conseguinte, um direito que tem autonomia relativamente ao direito processual penal.

13 - O conteúdo significante dos princípios constitucionais enumerados no artigo 32.º da CRP reporta-se ao processo penal e não ao processo penitenciário: são «garantias do processo criminal» destinadas a assegurar ao «arguido» uma ampla e efetiva defesa contra a acusação que lhe é movida. De facto, os princípios da presunção de inocência do arguido, da judicialização da instrução, da acusação, do contraditório, do juiz natural, da obrigatoriedade de julgamento no mais curto prazo, da escolha e assistência de defensor, da intervenção do ofendido no processo, são princípios jurídico-constitucionais destinados a conformar a "fase declarativa" do processo penal.

A mesma exigência não se faz sentir em processos que não visam a aplicação de sanções, porque aí não há necessidade do processo ser estruturado com todas as garantias de defesa contra as imputações que são feitas ao infrator. O que a Constituição proíbe em absoluto é que seja aplicado qualquer tipo de sanção sem que ao infrator seja dada a possibilidade de se defender.

Ora, os processos que não têm natureza sancionatória, que não obedecem a um modelo acusatório, não precisam de ser organizados com os direitos e instrumentos adequados a contrariar uma acusação. Se a defesa pressupõe uma prévia acusação, é óbvio que não havendo imputação ou acusação não há necessidade de estruturar o processo como garantias de defesa contra o que não existe. Assim, um processo de reconhecimento de direitos ou um processo impugnatório de atos administrativos, sem deixarem de ser «processos equitativos» (cf. n.º 4 do artigo 20.º da CRP), não precisam de ser modelados com os todos meios de defesa que a Constituição exige para um processo sancionatório.

No que respeita à garantia do duplo grau de jurisdição previsto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP para o processo criminal, nem sequer é inteiramente líquido que ele se aplique a todas as fases do processo penal ou a todos os processos sancionatórios. Desde há muito que o Tribunal Constitucional identifica reiteradamente o conteúdo do direito ao recurso com o duplo grau de jurisdição apenas "quanto a decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais" (cf. Acórdãos n.os 31/87, 178/88, 340/90, 401/91, 132/92, 322/93, 265/94, 610/96, 189/2001, 464/2003). Por conseguinte, se não for atingido o núcleo essencial do direito de defesa, não são constitucionalmente ilegítimas restrições ao direito ao recurso de decisões não condenatórios (v.g. decisões interlocutórias) ou que não afetem a liberdade ou outros direitos fundamentais.

E no que se refere aos demais processos sancionatórios, como os de contraordenação, considera-se que a norma do n.º 10 do artigo 32.º não tem o alcance de conferir a garantia de um segundo grau de jurisdição, limitando-se apenas a assegurar ao arguido o direito de audição prévia e o direito de defesa contra as imputações que lhe são feitas (cf. Acórdãos n.os 77/2005, 659/2006, 632/2009, 6/2013 e 612/2014).

14 - O direito ao recurso de decisões judiciais relativas à concreta execução da pena privativa da liberdade já foi apreciado pelo Tribunal Constitucional em matérias que têm algum paralelismo com o caso dos autos.

Na vigência do Decreto-Lei 783/76, de 20 de outubro, foi sujeito ao escrutínio de constitucionalidade a norma do artigo 127.º desse diploma no segmento que não admitia o recurso da decisão de negação da liberdade condicional. Antes da revisão constitucional de 1997, o Tribunal pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade desta norma, com fundamento em que o direito ao recurso não é absoluto, mesmo em matéria penal (Acórdão 321/93). Após a autonomização do direito ao recurso no âmbito das garantias de defesa em processo criminal, operada pela alteração efetuada ao n.º 1 do artigo 32.º, a mesma norma foi julgada inconstitucional com um duplo fundamento: (i) as decisões judiciais sobre a liberdade condicional podem ser reconduzidas "ao figurino normal das decisões em matéria penal", porque as normas que regulam os seus pressupostos "fazem parte integrante do direito processual penal"; (ii) independentemente da subsunção dos processos de execução das penas à noção de "processo criminal", a decisão que nega a liberdade condicional, "por ter como efeito a manutenção da privação da liberdade, tem uma indiscutível conexão com a restrição de direitos, liberdades e garantias", domínio em que está assegurado o duplo grau de jurisdição.

E no âmbito do atual CEPMPL, o Tribunal julgou não ser desconforme com o texto constitucional a norma do n.º 1 do artigo 179.º «na interpretação segundo a qual é irrecorrível a decisão que conheça do pedido de concessão do período de adaptação à liberdade condicional, designadamente no caso de indeferimento». Depois de se concluir «que a "adaptação à liberdade condicional" não corresponde à "liberdade condicional", nem é enformada por qualquer alteração do conteúdo da sentença condenatória, antes integrando, ainda, um modo de cumprimento da pena privativa de liberdade ínsita na decisão condenatória», julgou-se que o direito ao recurso consagrado na norma do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição não pode ser convocado, porque, «não obstante a maior judicialização que o novo CPMPL veio trazer ao Processo de Execução de Penas, não estamos perante um processo criminal como nela se prevê»; e também se considerou que não há violação do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, porque «o recorrente teve acesso ao direito e ao tribunal, desde logo, na medida em que a decisão de que se pretendia ver interposto o recurso, tendo sido proferida por Juiz do Tribunal de Execução de Penas, tem natureza judicial» (Acórdão 150/2013).

15 - Não obstante conformada pela mesma intenção político-criminal em que se baseia a liberdade condicional - a socialização do recluso - a concessão de licença de saída jurisdicional não é uma medida comparável à concessão de liberdade condicional.

Desde logo, porque, enquanto esta representa o fim da pena de prisão, a devolução do condenado à liberdade, embora com sujeição a condição resolutiva, a concessão de licença de saída jurisdicional não representa o fim da prisão, uma vez que, findo o prazo pelo qual foi concedida, o condenado regressa ao estabelecimento prisional. A liberdade condicional, ainda que não seja definitiva, extingue a relação presidiária e o estatuto do recluso; a licença de saída jurisdicional, apesar da interromper a detenção, mantém o vínculo prisional através do dever de regressar ao estabelecimento prisional e do cumprimento das condições fixadas na licença. A liberdade condicional é uma medida tomada na última fase da execução da pena de prisão que visa a libertação antecipada do condenado; já a licença de saída jurisdicional é uma medida individual de reinserção social tomada na fase intermédia da execução que visa a manutenção e promoção de laços familiares e sociais e a preparação para a vida em liberdade. A concessão da liberdade condicional não é um poder discricionário do juiz, mas «um poder-dever, de um poder vinculado à verificação da totalidade dos pressupostos, formais e substanciais, de que a lei faz depender a concessão» (cf. Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 854); já a concessão de licença de saída jurisdicional é um poder que se exerce num espaço em que a margem de discricionariedade é mais ampla e mais visível.

Não surpreende pois que a liberdade condicional, configurada como um incidente ou uma medida de execução da sanção privativa da liberdade, com pressupostos definidos no Código Penal (artigos 61.º a 64.º) e regime processual inserido no Código de Processo Penal (artigos 484.º a 486.º, revogados pelo atual CEPMPL), pudesse assumir natureza processual penal, para efeitos do direito ao reexame, em via de recurso, da decisão denegatória. Estando em causa a liberdade antecipada do recluso, que interfere com o tempo de pena fixado na sentença condenatória, a negação do direito ao recurso traduzir-se-ia num "encurtamento inadmissível das garantias de defesa do recorrente", uma violação do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, como se julgou no Acórdão 638/2006. Com aquela natureza, a doutrina até discute se a competência para colocar o recluso em liberdade condicional se deve manter nos tribunais de execução das penas ou passar a ser do tribunal da condenação (cf. Anabela Rodrigues, Novo Olhar... ob. cit. pág. 136, nota 18).

Diferentemente, a concessão da licença de saída jurisdicional, ainda que tenha por efeito a devolução do recluso à liberdade por alguns dias, representa apenas uma etapa intermédia de um processo progressivo de preparação para a liberdade antecipada, que pode ser concedida verificados certos pressupostos, mas que só deve ser concedida em função das exigências e evolução do tratamento penitenciário. A par de outras medidas estabelecidas no CEPMLP, como a colocação do recluso em regime aberto no exterior (artigo 14.º), as licenças administrativas (artigos 80.º e 81.º), a concessão de adaptação à liberdade condicional (artigo 188.º), a licença de saída jurisdicional representa um "período de confiança" que dá exequibilidade ao objetivo de reinserção do recluso na sociedade, de modo a «favorecer a aproximação progressiva ao mundo livre» (cf. n.º 3 do artigo 5.º).

No decurso da licença de saída, o recluso não se assume, jurídica e materialmente, com liberdade antecipada. Juridicamente, o recluso mantém integralmente o seu estatuto, sendo o período de saída considerado tempo de execução da pena. Materialmente, as condições sociais e familiares em que se vai inserir são necessariamente consideradas na concessão da licença e o resultado obtido é um elemento relevante na evolução posterior do tratamento prisional; no período de saída o recluso deve ser portador de elementos suscetíveis de fornecer dados sobre a sua situação e no termo da licença são recolhidos elementos que permitam confirmar o cumprimento das condições a que foi sujeito (cf. n.os 5 e 7 do artigo 138.º do Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais, aprovado pelo Decreto-Lei 51/2011, de 11 de abril).

Não havendo comparação com a liberdade condicional, o argumento de que o atual CEPMPL remediou a inconstitucionalidade, ao prever no artigo 179.º a recorribilidade da decisão que recusa a liberdade condicional, não pode ser invocado para sustentar a inconstitucionalidade da irrecorribilidade da decisão que recusa a licença de saída jurisdicional. Esta licença não acaba com o estado detentivo do recluso, como acontece com a liberdade condicional, trata-se apenas de uma especial modalidade de execução, uma fase normativamente delimitada do tratamento prisional, que é atuada através de um processo penitenciário que em primeira linha está ao serviço da execução da pena privativa da liberdade.

Com esta natureza, não cai no âmbito normativo do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.

16 - Não garantindo a Lei Fundamental, no referido artigo 32.º, a faculdade de se recorrer da decisão denegatória da licença de saída jurisdicional, o duplo grau de jurisdição ainda poderia ser sustentado no princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, enunciado no n.º 1 do artigo 20.º

De facto, pelo disposto no n.º 5 do artigo 30.º da CRP, os condenados a pena privativa da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução. E de modo algum a restrição do direito fundamental de acesso aos tribunais constitui uma limitação inerente ao sentido da condenação ou uma limitação que se justifique pela própria execução da pena. Os reclusos mantêm a garantia da via judiciária com um âmbito normativo idêntico aos outros cidadãos, o que implica a existência de uma proteção judicial plena, integral, efetiva e sem lacunas. Como refere Anabela Rodrigues, a «garantia constitucional do direito de acesso ao direito e dos direitos conexos (direito de acesso aos tribunais, direito à informação e consulta jurídica e direito ao patrocínio judiciário), contida no artigo 20.º da Constituição, tem particular relevância no âmbito da execução da pena de prisão, onde os direitos fundamentais do recluso estão inevitavelmente submetidos a uma tensão forte e contínua» (cf. Da «afirmação de direitos» à «proteção de direitos» dos reclusos: a jurisdicionalização da execução da pena de prisão, in Direito e Justiça, Vol. Especial, 2004, FDUCP, pág. 195).

Simplesmente, como a garantia de uma tutela jurisdicional efetiva (e não formal) se pode analisar em várias dimensões, nem todas elas constituem concretizações ou manifestações integradas no seu núcleo essencial, insuscetível de ser afetado.

Assim acontece com a garantia do duplo grau de jurisdição, que não é abrangida em todos os casos pelo direito de acesso aos tribunais.

A jurisprudência firme do Tribunal Constitucional é no sentido de que não está consagrada uma garantia constitucional do duplo grau de jurisdição como princípio geral, válido para todos os processos. Considera-se que a Constituição garante o acesso aos tribunais para defesa de direitos, mas que tal garantia não abrange a obrigatoriedade da existência, para todas as decisões, de um duplo grau de jurisdição: «o duplo grau de jurisdição em matéria não penal não se acha constitucionalmente garantido, reconhecendo-se ampla liberdade ao legislador para estabelecer requisitos de admissibilidade dos recursos. Com efeito, da Constituição apenas se deduz uma garantia contra violações radicais pelo legislador ordinário do sistema de recursos instituído e da igualdade dos cidadãos na sua utilização. Nessa medida, caberá à lei infraconstitucional definir o acesso aos sucessivos graus de jurisdição, segundo critérios objetivos, ancorados numa ideia de proporcionalidade (relevância das causas, natureza das questões) e que respeitem o princípio da igualdade, tratando de forma igual o que é idêntico e de forma desigual o que é distinto»» (cf. Acórdão 125/98, mas também Acórdãos n.os 65/88, 202/90, 27/95, 225/2005 e 106/06).

Assim, fora de domínios específicos, como as decisões condenatórias em processo penal e as decisões jurisdicionais que imponham restrições a direitos fundamentais, o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na conformação do direito ao recurso, podendo limitar ou restringir as decisões que admitem recurso em função de determinados fatores, como a natureza do processo, o tipo e objetivo das ações, a relevância das causas e a importância das questões, tendo em vista a racionalização do sistema judiciário.

O que está garantido no artigo 20.º da CRP é que o legislador assegure a «todos» os cidadãos o acesso a um grau de jurisdição e que, sempre que estabeleça vários graus de jurisdição, que garanta igualmente a todos, sem discriminação de natureza económica ou outra, o acesso a esses graus. Nesta dimensão normativa, reafirma-se o princípio geral da igualdade consignado no n.º 1 do artigo 13.º da CRP, pelo que as limitações ou restrições ao direito ao recurso não podem estabelecer diferenciações arbitrárias, sem fundamento material justificativo.

Ora, a intervenção judicial na concessão da licença de saída do estabelecimento prisional representa já o acesso do recluso a um grau de jurisdição, ou seja, à tutela jurisdicional mínima que é coberta pelo n.º 1 do artigo 20.º da CRP. Não sendo a licença de saída um direito fundamental do recluso, mas apenas uma medida individual de reinserção social, o legislador não está vinculado a garantir que decisão judicial que a conceda ou negue tenha que ser reapreciada por um tribunal de segunda instância. Se o legislador não sujeitar essa decisão a recurso, isso significa que um processo penitenciário jurisdicional, decidido em primeira instância por órgão dotado de independência e imparcialidade, constitui um meio bastante para garantir a legalidade da decisão que concede ou negue a licença de saída jurisdicional (cf. artigo 203.º da CRP).

Tem, pois, de concluir-se que, nesta dimensão normativa do n.º 1 do artigo 20.º da CRP, a garantia do duplo grau de jurisdição de decisão judicial relativas a licenças de saída jurisdicionais não goza de uma proteção constitucional.

17 - Apesar disso, o legislador previu no artigo 196.º do CEPMPL a possibilidade de recurso para a Relação da decisão que concede, recuse ou revogue a licença de saída.

Mas, se o processo de concessão de licença jurisdicional comporta o duplo grau de jurisdição, o âmbito da legitimidade para recorrer foi diferenciado em função do sujeito que interpõe o recurso: enquanto o recluso apenas pode recorrer da decisão que revoga a licença, o Ministério Público pode interpor recurso da decisão que concede, nega ou revogue a licença.

Como referimos, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva convoca também o princípio da igualdade. Se o legislador abrir a via judiciária sucessiva, o n.º 1 do artigo 20.º da CRP postula que tal via seja consentida a todos os sujeitos processuais, sem discriminações que não tenham fundamento razoável. Por isso, não estando em causa as discriminações suspeitas enunciados no n.º 2 do artigo 13.º da CRP, aquela diferenciação só não violará o direito à tutela jurisdicional efetiva se houver razões atendíveis - e não meramente arbitrárias - para a solução gizada pelo legislador.

Uma das linhas argumentativas do recorrente está centrada no facto do recluso estar impedido de recorrer de uma decisão que nega a licença de saída jurisdicional, afetando-o pessoalmente, quando o Ministério Público, que não está recluído nem privado do seu direito à liberdade, pode, de forma mais abrangente, recorrer da decisão que "conceda, recuse ou revogue". Tal diferenciação constitui, no seu entender, uma "clara desigualdade de armas" entre o recluso e o Ministério Público.

Importa, pois, averiguar se a diferença estabelecida no artigo 196.º do CEPMPL quanto à legitimidade para a interposição do recurso jurisdicional da decisão que recusa a licença de saída jurisdicional consegue resistir ao crivo do princípio da igualdade.

A igualdade processual, enquanto emanação da tutela jurisdicional, representa uma exigência substancial que é dirigida ao legislador ordinário na concreta conformação do processo. Impõe-se que os atos e formalidades que compõem o processo devam ser ordenados em termos de proporcionar aos interessados uma paridade de condições no quadro dialético em que ele se desenvolve. A equiparação das partes no processo constitui pois uma das várias dimensões da garantia do «processo equitativo» (cf. n.º 4 do artigo 20.º), que vincula o legislador a estruturar o processo em termos de igualdade quanto a direitos e deveres (poderes e ónus) que são atribuídos e ou impostos a cada uma das partes.

Mas a variabilidade de fatores que influem na forma do processo (v.g. tipo de providência, valor dos interesse em jogo, natureza da relação material que serve de base à pretensão, natureza subjetiva das partes) pode consentir diferenciações quanto à disponibilidade de meios processuais que não envolvem uma compressão excessiva do princípio da igualdade. A reclamada igualdade de armas processuais não exige que as partes sejam colocadas numa paridade absoluta de meios, mas apenas que lhes sejam atribuídos direitos ou impostos deveres processuais idênticos, sempre que a sua posição no processo seja equiparável. Se o processo não necessita de ser estruturado segundo uma relação dialética ou se os interessados não se encontram jurídica e facticamente ao mesmo nível, quer quanto ao modo de exporem as suas razões, quer quanto às consequências que se podem extrair do modo como são expostas, torna-se desnecessário conformar o processo com idênticos meios de intervenção processual. Uma concreta conformação processual só violará o princípio da igualdade se os meios processuais atribuídos a intervenientes colocados numa posição jurídica equiparável causarem um desequilíbrio arbitrário, irrazoável ou infundado.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem admitido assimetrias processuais que não envolvem violação do princípio de igualdade, por se justificarem à luz das finalidades servidas pelo processo e da diferente posição jurídica dos intervenientes. No processo penal, justamente a propósito do direito ao recurso, considera-se que «independentemente da natureza de «parte» ou de «sujeito» que se queira atribuir ao arguido e ao assistente em processo penal, a nossa Constituição não consagra, nem quis consagrar, quanto a eles, um princípio de igualdade em matéria do direito ao recurso» (cf. Acórdão 132/92, posição também seguida nos Acórdãos n.os 265/94, 610/96, 194/00 e 640/04). E no processo civil, a propósito da posição processual do Ministério Público, enquanto representante do Estado e defensor da legalidade democrática, considera-se razoável que o legislador estabeleça normas que lhe concedam um tratamento processual diferenciado relativamente às partes processuais em geral (cf. Acórdãos n.os 529/94, 616/98, 632/99, 355/01).

18 - O processo de licença de saída jurisdicional, tal como está desenhado nos artigos 189.º a 193.º do CEPMPL, não é um processo destinado a prevenir ou a compor um conflito entre o recluso e a administração prisional, pois o interesse atuado no processo é um só: a socialização do recluso. A forma desse processo não corresponde ao modelo de um «processo de partes», em que o interesse do recluso se confronta com interesses contrapostos da administração penitenciária. Mesmo a defesa da sociedade, que é uma das finalidades da execução das penas (n.º 1 do artigo 2.º do CEPMPL) não conflitua com aquele interesse. Mais concretamente, como escreve Anabela Rodrigues «a defesa da sociedade não tem o sentido de tarefa cometida à execução, antes deve ser tomada em consideração - como limite - no caso de decisões sobre medidas a tomar durante a execução que visem quer evitar a dessocialização quer promover a não dessocialização» (cf. Novo Olhar... ob. cit. pág. 63).

A ordenação dos atos e formalidades que compõem o processo de licença de saída jurisdicional evidencia ausência de reciprocidade dialética suscetível de provocar a intervenção do princípio da igualdade de armas.

Tal como se prevê no CEPML, o processo inicia-se com um requerimento do recluso entregue na secretaria do estabelecimento prisional, que o remete ao tribunal instruído com o registo disciplinar e informação sobre o regime de execução da pena, data do início, processos pendentes, medidas de coação impostas e eventual evasão (artigo 189.º); uma vez autuado, é concluso ao juiz para despacho liminar, que pode ser de indeferimento, caso não se verifiquem os requisitos previstos no artigo 79.º, ou de marcação da data para reunião do conselho técnico (artigo 190.º); o conselho técnico, presidido pelo juiz e com a participação do Ministério Público, emite um parecer sobre a concessão da licença de saída e as condições a que a mesma se sujeita (n.º 1 do artigo 191.º); se o juiz entender necessário, procede-se à audição do recluso, na presença do Ministério Público (n.º 2 do artigo 190.º); o Ministério Público, querendo, pode emitir um parecer (n.º 1 do artigo 192.º); e por fim, o juiz dita para a ata da reunião do conselho técnico a decisão sobre a concessão da licença requerida, a sua duração e as condições, e em caso de recusa, a fixação de um prazo inferior ao legal para a renovação do pedido (n.os 1 e 2 do artigo 192.º).

Estes atos não introduzem uma função contraditória que tenha que ser arbitrada pelo juiz. O conselho técnico e o Ministério Público não figuram no processo com o «estatuto» de partes processuais, mas como autoridades públicas que emitem pareceres à roda do mesmo interesse servido pelo processo, que é o da readaptação ou reinserção social do recluso. A ausência de uma situação conflitual, que é pressuposto do exercício da função jurisdicional, tem levado mesmo alguma doutrina a defender que a concessão da licença de saída deveria ser da competência do Ministério Público, ficando a intervenção do tribunal reservada à resolução do conflito que eventualmente possa surgir com a decisão daquela entidade (cf. Anabela Rodrigues, Novo Olhar... ob. cit., pág. 138 e Da «afirmação de direitos»... ob. cit. pág.191).

A intervenção do Ministério Público neste "processo gracioso", como era designado na anterior legislação, não ocorre no mesmo nível de intervenção do recluso. A posição processual do Ministério Público é de defesa da legalidade da execução da pena e não defender ou contradizer os interesses do recluso. Nos termos dos artigos 134.º e 141.º do CEPMLP, cabe-lhe acompanhar e verificar a legalidade da execução das penas e medidas privativas da liberdade. O Ministério Público é um órgão autónomo da administração da justiça que intervém no processo tendo em vista a descoberta da verdade e a realização da justiça, pautando a sua atuação por critérios de legalidade, objetividade e imparcialidade (cf. Acórdão 291/02).

É desta particular função constitucional de "defesa da legalidade democrática" (cf. n.º 2 do artigo 219.º da CRP) que decorrem os poderes de participação no conselho técnico, de emissão de pareceres e de recurso da decisão judicial que concede, negue ou revogue a licença de saída jurisdicional. A legitimidade do Ministério Público para interpor recurso destas decisões, prevista no n.º 1 do artigo 196.º do CEPMPL, funda-se unicamente no facto de considerar que tal decisão é contrária à lei. Só por isso ele pode e deve recorrer e não em representação ou em defesa dos interesses do recluso, mesmo quando da sua atuação possa indiretamente resultar a satisfação desses interesses.

A posição jurídica do Ministério Público nesta espécie de processos penitenciários, expressão da função de representante da legalidade e do cumprimento dos deveres funcionais que integram o essencial do seu Estatuto, justifica um tratamento diferenciado relativamente ao recluso, nomeadamente no que se refere à possibilidade de interposição do recurso das decisões que neguem a concessão de licença de saída jurisdicional.

Como vimos, o interesse que serve de base material ao processo de concessão da licença de saída não consubstancia um direito subjetivo do recluso. Esse direito só entra na esfera jurídica do recluso com a decisão judicial que concede a saída do estabelecimento. Assim se compreende que, em caso de revogação da licença, lhe tenha sido atribuída legitimidade para recorrer da decisão revogatória. É que, neste caso, extingue-se o direito à licença, de que resulta o desconto, no cumprimento da pena, do tempo em que esteve em liberdade (cf. n.º 4 do artigo 85.º do CEPMPL). Mas enquanto a licença não é atribuída, a pretensão do recluso dissolve-se numa forma de participação na modelação da execução e nas possibilidades de ressocialização que a lei prevê.

Ora, o princípio da igualdade processual impõe que se estabeleça um equilíbrio entre a posição jurídica de cada um dos intervenientes e os meios jurídicos colocados ao seu dispor. Tal equilíbrio tem que ser avaliado em função do conjunto de atos que compõem o processo e não em relação a cada um deles, pois a diferente natureza dos sujeitos pode implicar a necessidade de diferentes meios de intervenção processual. Assim, se a defesa da legalidade das medidas de execução da pena pode justificar, embora eventualmente não imponha, que um órgão de justiça interponha recurso da decisão judicial que nega a concessão da licença de saída, a mesma necessidade pode não se fazer sentir relativamente ao interveniente que, para além de não realizar um direito subjetivo, pode renovar a mesma pretensão num curto espaço de tempo.

Num processo de natureza predominantemente objetiva, como é o caso do processo de concessão de licença de saída jurisdicional, há fundamento razoável para diferenciar os poderes do Ministério Público dos poderes do recluso quanto à legitimidade para recorrer da decisão judicial que nega a licença de saída. A decisão que nega a licença é sempre uma decisão não definitiva, que pode ser alterada no prazo de quatro meses ou num prazo inferior fixado pelo juiz (cf. artigo 84.º e n.º 3 do artigo 192.º do CEPMPL). A provisoriedade da decisão justifica assim a existência de limitações à recorribilidade por parte de quem pode renovar o pedido. Com efeito, se no prazo de quatro (ou menos) meses o recluso pode renovar o pedido de licença de saída, a pendência do recurso jurisdicional não só prejudicaria a apreciação do novo pedido como poderia inutilizar o recurso, conforme fosse o sentido da decisão daquele pedido.

Acresce que facilmente se descortina na limitação ao direito ao recurso prevista no n.º 2 do artigo 196.º do CEPML um mecanismo de racionalização da atividade judiciária, evitando o congestionamento dos tribunais de segunda instância com inúmeros processos de licença de saída jurisdicionais, atenta a possibilidade de renovação sucessiva do pedido.

Em suma, também nesta perspetiva, e tal como já se decidiu no Acórdão 560/2014, a norma do n.º 2 do artigo 196.º do CEPMPL não enferma de inconstitucionalidade material.

III - Decisão

Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Julgar não inconstitucional a dimensão normativa que resulta do n.º 2 do artigo 196.º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei 115/2009, de 12 de outubro, segundo a qual o recluso não tem legitimidade para recorrer da decisão judicial que nega a concessão da licença de saída jurisdicional;

b) Em consequência, nega-se provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida;

c) Condenar o recorrente em custas, que se fixam em 25 unidades de conta, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).*

* Retificado pelo Acórdão 803/2014, de 26 de novembro.

Lisboa, 12 de novembro de 2014. - Lino Rodrigues Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro - Maria José Rangel de Mesquita - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral.

208323611

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/328196.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1936-05-28 - Decreto-Lei 26643 - Ministério da Justiça

    Promulga a reorganização dos serviços prisionais.

  • Tem documento Em vigor 1944-05-16 - Lei 2000 - Ministério da Justiça

    Estabelece as bases atinentes à reabilitação dos delinquentes e à jurisdicionalização das penas e das medidas de segurança.

  • Tem documento Em vigor 1945-04-27 - Decreto 34540 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro

    Permite aos condenados em quaisquer penas e aos imputáveis submetidos por decisão judicial a medidas de segurança serem rehabilitados pelos tribunais de execução das penas, independentemente de revisão da sentença ou despacho, nos termos do artigo 673.º do Código do Processo Penal - Dá nova redacção aos artigos 76.º, 77.º e 78.º do Código Penal

  • Tem documento Em vigor 1976-10-29 - Decreto-Lei 783/76 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro

    Estabelece a orgânica dos tribunais de execução das penas, dispondo sobre a respectiva composição, funcionamento e competências. Dispôe também sobre as atribuições, direitos e deveres dos magistrados e funcionários de justiça, as competências dos conselhos técnicos dos estabelecimentos prisionais; as visitas aos estabelecimentos prisionais, a saída precária prolongada; as formas de processo e o recurso.

  • Tem documento Em vigor 1977-05-30 - Decreto-Lei 222/77 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro

    Altera o Decreto Lei 783/76 de 29 de Outubro, que aprova a orgânica dos tribunais de execução das penas.

  • Tem documento Em vigor 1978-07-24 - Decreto-Lei 204/78 - Ministério da Justiça

    Altera o Decreto Lei 783/76 de 29 de Outubro que aprova a orgânica dos tribunais de execução das penas.

  • Tem documento Em vigor 1979-08-01 - Decreto-Lei 265/79 - Ministério da Justiça

    Reestrutura os serviços que têm a seu cargo as medidas privativas de liberdade.

  • Tem documento Em vigor 1980-03-22 - Decreto-Lei 49/80 - Ministério da Justiça

    Dá nova redacção aos artigos 8.º, 12.º, 15.º, 24.º, 26.º e 40.º do Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto (reestrutura os serviços que têm a seu cargo as medidas privativas de liberdade).

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1997-09-20 - Lei Constitucional 1/97 - Assembleia da República

    Aprova a quarta revisão da Constituição da República Portuguesa, de 2 de Abril de 1976, e fixa normas para aplicação no tempo de alguns dos preceitos revistos. Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-07 - Decreto-Lei 303/98 - Ministério da Justiça

    Dispõe sobre o regime de custas no Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2009-10-12 - Lei 115/2009 - Assembleia da República

    Aprova e publica em anexo o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

  • Tem documento Em vigor 2011-04-11 - Decreto-Lei 51/2011 - Ministério da Justiça

    Aprova o Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais.

  • Tem documento Em vigor 2013-02-21 - Lei 20/2013 - Assembleia da República

    Altera (20ª alteração) ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de fevereiro.

  • Tem documento Em vigor 2013-08-26 - Lei 62/2013 - Assembleia da República

    Estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário - Lei da Organização do Sistema Judiciário.

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