Legitimidade - Ministério Público - Inventário - Incapaz - Representação de Incapaz - Representação do Estado - Reserva de Jurisdição - Direito à Proteção das Crianças e dos Deficientes.
1 - De acordo com o disposto no artigo 3.º, n.os 1, 4 e 7 do regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei 23/2013, de 5 de março, compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário destinado a pôr termo à comunhão hereditária, competindo ao notário dirigir todas as diligências, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns, cabendo ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que sejam da competência do juiz;
2 - A competência para o Ministério Público representar o Estado e os incapazes, consagrada no artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República e nos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público (EMP), é exercida nos tribunais estaduais, designadamente nos tribunais judiciais e nos tribunais administrativos e fiscais;
3 - A intervenção principal e a intervenção acessória do Ministério Público, atuando em representação do Estado-Administração e dos incapazes [artigos 5.º, n.º 1, alíneas a) e c), e n.º 4, e 6.º do EMP], ou oficiosamente no interesse da Coletividade, pressupõem a pendência de uma causa em juízo, sendo deduzidas em processos pendentes nos tribunais estaduais;
4 - O Minisério Público não intervém, a título principal ou a título acessório, no processo de inventário enquanto o mesmo se encontra pendente e a ser tramitado no cartório notarial, sob a direção do respetivo notário, assumindo, no entanto, essa intervenção a partir do momento em que o inventário ingressa no tribunal para o exercício das competências jurisdicionais previstas no RJPI;
5 - As diligências que o Ministério Público entenda ordenar ou determinar para assegurar os direitos e interesses da Fazenda Pública ou no exercício das demais competências que lhe estão atribuídas por lei, na sequência da remessa de elementos prevista no artigo 5.º, n.º 1, do RJPI, devem desenvolver-se, necessariamente, fora do processo de inventário enquanto se encontra pendente no cartório notarial;
6 - A legitimidade que era conferida ao Ministério Público para requerer o inventário em caso de herança deferida a incapazes ou ausentes no artigo 2102.º, n.º 2, do Código Civil, na redação dada pelo Decreto-Lei 227/94, de 8 de setembro, e no artigo 1327.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil de 1961, configurava-se como sendo do tipo oficioso, não sendo exercida em representação judiciária daqueles;
7 - O artigo 4.º, n.º 1, do RJPI atribui a legitimidade para requerer que se proceda a inventário aos interessados diretos na partilha e a quem exerce as responsabilidades parentais, ao tutor ou ao curador, consoante os casos, quando a herança seja deferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta;
8 - Por falta de expressa previsão normativa, o Ministério Público deixou de ter legitimidade para requerer que se proceda a inventário, em caso de herança deferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta;
9 - A ilegitimidade do Ministério Público para requerer o inventário quando a herança seja deferida a incapaz ou a ausente em parte incerta, tal como a sua incompetência para intervir, a título principal ou acessório, no processo de inventário enquanto o mesmo se encontra pendente no cartório notarial, não contende com o direito à proteção das crianças e deficientes pelo Estado consagrado nos artigos 69.º e 71.º da Constituição da República, nem constitui infração ao seu artigo 219.º, n.º 1;
10 - O Ministério Público assume a intervenção principal ou a intervenção acessória a partir do momento em que o processo de inventário é remetido para os meios comuns, ao abrigo do disposto no artigo 16.º do RJPI, assumindo ainda, em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, e 66.º, n.º 2, do mesmo diploma, em toda a plenitude, as competências que a lei e, em particular, o seu Estatuto lhe cometem em representação, quer dos interesses do Estado, quer dos interesses dos incapazes e ausentes em parte incerta;
11 - Assim, e porque resulta do artigo 17.º, n.º 1, do RJPI que, relativamente ao Ministério Público, as questões decididas no processo de inventário pelo notário não podem ter-se como definitivamente resolvidas, o agente do Ministério Público, no momento em que o processo de inventário ingressa em juízo para os fins do artigo 66.º do RJPI (decisão homologatória da partilha) deverá:
a) Examinar toda a tramitação processual do inventário desenvolvida no cartório notarial para determinar se a legalidade foi respeitada e se os interesses da Fazenda Pública e dos incapazes foram devidamente salvaguardados;
b) Concluindo que a legalidade ou os interesses dos incapazes não foram respeitados, nomeadamente, quanto a estes últimos, por uma eventual atuação deficiente dos respetivos representantes legais, o Ministério Público deverá promover ou dizer o que se lhe oferecer e requerer a não homologação da partilha.
12 - A norma contida no artigo 2102.º, n.º 2, do Código Civil constitui uma referência substantiva quanto ao poder funcional do Ministério Público relativamente à defesa dos interesses dos incapazes a quem seja deferida a herança;
13 - Do citado artigo 2102.º, n.º 2, do Código Civil e da disposição contida no artigo 210.º, n.º 1, alínea b), do Código do Registo Civil, que mantém a obrigatoriedade do envio ao Ministério Público pelo conservador do registo civil de certidão dos assentos de óbito lavrados no mês anterior referentes a indivíduos cuja herança seja deferida a incapazes ou ausentes em parte incerta ou ao Estado, decorre uma específica incumbência para o Ministério Público, traduzida na realização das diligências que se entenda levar a cabo junto dos representantes legais dos incapazes para a realização da partilha através de processo de inventário por ter concluído que os interesses do herdeiro incapaz somente serão acautelados com a instauração do mesmo;
14 - Se o representante legal do incapaz não requerer o inventário e optar pela partilha através de instrumento notarial, terá que obter previamente autorização do tribunal, como dispõem os artigos 1889.º, n.º 1, alínea l), e 1938.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, aplicáveis aos tutores dos interditos, por força do disposto no artigo 139.º do mesmo diploma, pertencendo ao Ministério Público a competência para a concessão dessa autorização, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 227/2001, de 13 de outubro;
15 - No âmbito desse processo, a autorização para o representante legal do incapaz convencionar partilha "extrajudicial» deverá ser recusada se o Ministério Público considerar que a satisfação do interesse do incapaz reclama a instauração de processo de inventário;
16 - Na hipótese de o representante do herdeiro incapaz, em violação dos deveres próprios do cargo, não requerer a partilha através de inventário, nem a promover por instrumento notarial, deixando a herança por partilhar, o que pode provocar sério prejuízo para a esfera patrimonial daquele herdeiro, o Ministério Público pode promover as providências que se afigurem adequadas para a salvaguarda do interesse do incapaz, nomeadamente, consoante o caso:
a) Requerer a inibição, total ou somente parcial, do exercício das responsabilidades parentais (artigo 1915.º, n.os 1 e 2, do Código Civil, e artigo 194.º da Organização Tutelar de Menores);
b) Requerer que sejam decretadas as providências adequadas "quando a má administração ponha em perigo o património do filho e não seja caso de inibição do exercício das responsabilidades parentais» (artigo 1920.º, n.º 1, do Código Civil e artigo 200.º da Organização Tutelar de Menores);
c) Requerer, nos termos do artigo 157.º da Organização Tutelar de Menores, a adoção de medidas provisórias e cautelares adequadas;
d) Requerer a remoção do tutor, nos termos do disposto no artigo 1949.º do Código Civil, aplicável ao regime da interdição, ex vi do artigo 139.º do mesmo diploma, através de ação a instaurar no tribunal de família e menores, no primeiro caso [cf. artigo 146.º, alínea a), da Organização Tutelar de Menores], ou a intentar no tribunal comum por onde corre o processo de interdição (artigo 140.º do Código Civil);
17 - A atribuição da competência ao cartório notarial para o processamento do inventário tem subjacente a natureza específica desse processo, a necessidade de descongestionar os tribunais e a convicção de que o respetivo órgão - o notário - exercerá as suas funções com respeito pelos princípios da legalidade e da imparcialidade consagrados no artigo 10.º do Estatuto do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 26/2004, de 4 de fevereiro;
18 - A intervenção jurisdicional no processo de inventário não está afastada na medida em que cabe ao juiz cível da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado, enquanto interveniente por competência própria no mesmo, conhecer dos recursos das decisões do notário que indefiram o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns e do despacho determinativo da forma da partilha, nos termos dos artigos 16.º, n.º 4 e 57.º, n.º 4, do RJPI, respetivamente, competindo-lhe ainda proferir a decisão homologatória da partilha, nos termos do artigo 66.º, n.º 1, do mesmo diploma;
19 - Fora dos casos individualizados na Constituição em que há lugar a uma reserva absoluta de jurisdição, o que sucederá sempre que estejam em causa direitos de particular importância jurídico-constitucional a cuja lesão deve corresponder uma efetiva proteção jurídica, poderá admitir-se que o direito de acesso aos tribunais seja assegurado apenas em via de recurso, permitindo-se que num momento inicial o litígio possa ser resolvido por intervenção de outros poderes (reserva relativa de jurisdição);
20 - O processo de inventário, destinado a pôr termo à comunhão hereditária, assume uma natureza específica, aí se resolvendo questões e dirimindo conflitos, por acordo ou mediante decisão notarial, que respeitam, em regra, a direitos patrimoniais disponíveis, pelo que não têm de estar abrangidos por uma reserva absoluta de jurisdição;
21 - O RJPI assegura uma efetiva intervenção jurisdicional, traduzida no exercício de competências próprias referidas na conclusão 11.ª, sendo que compete sempre ao juiz proferir a decisão homologatória da partilha (artigo 66.º, n.º 1);
22 - As normas constantes do RJPI que preveem a prática pelo notário de atos que se caracterizam, ou que podem ser caracterizados, como materialmente jurisdicionais não contendem com o princípio da reserva jurisdicional consagrado no artigo 202.º da Constituição da República, não sendo, por isso, inconstitucionais.
Senhora Procuradora-Geral da República,
Excelência:
I
1 - Dignou-se Vossa Excelência solicitar a este Conselho Consultivo a emissão de parecer, com caráter de urgência, relativamente a um conjunto de questões, a seguir indicadas, "que se prendem, fundamentalmente, com a intervenção do Ministério Público no âmbito do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei 23/2013, de 5 de março, e regulamentado pela Portaria 278/2013, de 26 de agosto»(1).
São as seguintes as questões suscitadas:
"1) Face ao novo regime do processo de inventário importa apurar se ao Ministério Público é conferida competência para intervir no processo de inventário na fase em que este corre os seus termos nos notários ou se, pelo contrário, essa competência se cinge à fase em que o processo corre termos em juízo;
2) Face ao novo regime do processo de inventário importa apurar se o Ministério Público continua ou não a deter legitimidade "ad causam" para requerer inventário em defesa dos incapazes, ausentes e incapazes de facto ou, ao invés, se essa legitimidade apenas poderá ser atuante do ponto de vista da sua respetiva representação;
3) Na hipótese de se vir a considerar que o Ministério Público mantém legitimidade para requerer inventário, importará esclarecer se este beneficia da isenção de custas;
4) Ao invés, se se entender que, em face do estatuído nos artigos 4.º e seguintes da Lei 23/2013, de 5/3, o Ministério Público deixou de ter legitimidade para requerer inventário em representação de menores ou incapazes, nas situações em que há necessidade de partilha de herança deferida a um (ou uns) desses interessados e inação do representante legal do mesmo, importará saber se não estamos perante uma inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 69.º, n.º 1 e 219.º da Constituição da República Portuguesa, porque, ao arrepio das atribuições legais do Ministério Público na defesa dos interesses dos incapazes e ausentes, previstas naqueles artigos da CRP e nos artigos 3.º, n.º, alínea a), e 5.º, n.os 1, alínea c), e 4 do Estatuto do Ministério Público (Lei 60/98, de 27-08), o RJPI veio impossibilitar, em regra, a defesa dos interesses dos ausentes em parte incerta e dos incapazes por parte do Ministério Público;
5) Por fim, lateralmente às anteriores questões importará apurar se na premissa, que parece segura para o legislador, de que o processo de inventário não encerra geralmente conflitos de interesses, optou-se por permitir que o notário decida, mesmo quando seja necessário recorrer à prova testemunhal e sem qualquer controlo jurisdicional. Este novo figurino legal poderá colocar em causa a sua própria constitucionalidade por violação do princípio constitucional de reserva do juiz, previsto no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, que impede que outras entidades possam apreciar e decidir requerimentos das partes, que estejam em litígio.»
2 - A intervenção deste órgão consultivo foi sugerida em Informação(2) elaborada por Assessor do Gabinete de Vossa Excelência onde também se formulam as questões supra elencadas.
Cumpre ainda referir que, na sequência de análise produzida no Distrito Judicial do Porto, a Procuradora-Geral Distrital representou junto da Procuradoria-Geral da República duas questões relacionadas com as implicações jurídicas decorrentes da entrada em vigor da Lei 23/2013, que aprovou o novo regime jurídico do processo de inventário, referidas na Informação n.º GA130289, de 13 de novembro de 2013, a saber:
Legitimidade do Ministério Público para requerer inventário, nomeadamente em representação de incapazes e ausentes em parte incerta;
Competência do Ministério Público para assegurar os direitos e os interesses da Fazenda Nacional.
Dá-se nota de que "a necessidade de se tomar posição uniforme sobre as temáticas surge na sequência da disparidade de procedimentos adotados pelos Magistrados do Ministério Público naquele distrito judicial.
A exposição da Procuradora-Geral Distrital do Porto é acompanhada por dois pareceres subscritos, respetivamente, pelo Procurador-Geral Adjunto coordenador das áreas cível e laboral do Distrito Judicial do Porto e do Tribunal da Relação do Porto(3) e pelo Procurador-Geral Adjunto coordenado no Tribunal da Relação de Guimarães(4).
No primeiro, conclui-se que:
I - Atualmente, isto é, com o NRJPI [aprovado pela Lei 23/2013], o Ministério Público deixou de ter legitimidade para requerer inventário em representação dos incapazes ou dos ausentes em parte incertos.
II - Contudo, o Ministério Público pode intervir nos inventários como parte acessória, "ex vi" dos artigos 5.º, n.º 4, alínea a), do EMP, e 5.º, n.º 2, parte final, do NRJPI.
III - O Notário só deve remeter, para o Ministério Público, todos os elementos existentes no Processo de Inventário e os respetivos termos (do processo de inventário) quando dele resultar alguma suspeita, algum indício ou algum sinal de atos suscetíveis de gerar na herança a obrigação de pagar à Fazenda Pública impostos ou taxas.
IV - Esta remessa deve também ser feita quando do Processo de Inventário resultar alguma suspeita, algum indício ou algum sinal de que tenha havido qualquer omissão infraccional.
V - Só quando no processo (ao longo do processo) se adquirir o conhecimento das situações referidas em 1) e em 2) é que o Notário deverá/terá que fazer a remessa/participação ao MºPº, como o impõe o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do NRJPI.
VI - Não estando, ainda, operacionais os meios necessários para a remessa pelo Notário pela via eletrónica, deve este, enquanto tal situação se mantiver, remeter ao M.ºP.º os documentos e os atos processuais referidos no artigo 5.º, n.º 1, do NRJPI, em suporte físico (legislação subsidiária - artigos 132.º do NCPC e Portaria 280/2013, de 26/08).
VII - A lei ao consagrar que o Ministério Público ordena as diligências necessárias quis significar com este segmento que o M.ºP.º deve ordená-las no próprio processo de inventário, através de meios eletrónicos.
No segundo parecer mencionado dá-se conta da disciplina jurídica do processo de inventário constante do Código Civil e do Código de Processo Civil e da "primeira grande alteração, dos tempos recentes» que ocorreu com o Decreto-Lei 227/94, de 8 de setembro, através da "eliminação da obrigatoriedade de inventário prévio à aceitação de herança por menor», da "adoção de disposições que garantam, não obstante aquela eliminação, a efetiva defesa dos interesses do menor» e da "simplificação do processo de inventário».
Com a Lei 29/2009, de 29 de junho, "segunda grande alteração, o processo de inventário saiu dos tribunais, consagrando-se a sua desjudicialização». No âmbito desta reforma, "embora a competência para a tramitação do processo tivesse passado para a alçada das conservatórias e dos cartórios notariais, o juiz ainda mantinha o controlo geral do processo», sendo que, "relativamente ao Ministério Público, este conservava a sua tradicional função de garante dos direitos dos menores, ausentes e incapazes».
Com a Lei 23/2013, de 5 de março, "aprofunda-se a desjudicialização [...] e reforça-se o afastamento do processo de inventário dos tribunais através da redução drástica dos poderes do Juiz e do Ministério Público».
O Ministério Público "deixou de ter legitimidade para requerer e intervir, como tradicionalmente lhe competia [...], no processo nos casos de incapacidade e ausência», tarefa que "cabe agora aos responsáveis parentais, tutores ou curadores dos incapazes ou ausentes».
"O MP, além de não poder requerer o inventário, nem sequer é citado quando o processo deva prosseguir (cf. artigo 28.º). Está-lhe reservado no fim do processo, depois da decisão homologatória da partilha, o papel consignado no n.º 2 do artigo 66.º»
"Todavia, embora o MP já não tenha legitimidade para requerer o inventário no caso dos menores, incapazes ou ausentes, poderá [...], com base no disposto na alínea b) do n.º 2 do art. 2102.º do CC, e na hipóteses aí prevista, quando a questão chegar ao seu conhecimento [...] sugerir (naturalmente junto de quem tem legitimidade para o requerer), mas não requerer, a instauração do processo de inventário».
"Relativamente à Fazenda Nacional, o MP tem os poderes consignados nos arts. 5.º [...] e no n.º 2 do cit. artigo 66.º»(5).
3 - Ainda por sugestão do Gabinete, foi solicitada informação sobre as práticas adotadas nos distritos judiciais de Évora, Lisboa e Coimbra.
Nas comarcas do distrito judicial de Évora é referido que "o entendimento maioritário aponta no sentido da falta de legitimidade do Ministério Público para instaurar inventário».
Nas comarcas do distrito judicial de Lisboa, observam-se entendimentos divergentes. Em alguns círculos judiciais sustenta-se que "após a entrada em vigor do NRJPI deixou de ser conferida ao Ministério Público legitimidade para requerer processo de inventário em defesa dos interesses dos incapazes e dos ausentes em parte incerta, tendo essa legitimidade sido atribuída apenas a quem exerce as responsabilidades parentais, ao tutor ou ao curador». Noutros círculos, entende-se que se mantém a legitimidade do Ministério Público para requerer inventário.
Na área abrangida pela Procuradoria-Geral Distrital de Coimbra também existe "diversidade de entendimentos entre os Srs. Magistrados do MP, quanto à questão da legitimidade do MP para requerer inventário».
4 - Perante os entendimentos divergentes sobre esta matéria, considera-se na Informação elaborada pelo Gabinete de Vossa Excelência que "as questões são controversas, não têm interpretação inequívoca e, fundamentalmente colocam em causa as funções da magistratura do Ministério Público num domínio de atuação funcional de significativa importância social e que interfere naquilo a que se pode denominar de núcleo fundamental das atribuições do Ministério Público. E, assim, a reclamar uma atuação uniformizadora para os respetivos procedimentos de atuação futuros».
Pelo que se sugeriu que "com o desiderato que vise a eventual emissão de Diretiva uniformizadora», se solicite a este órgão consultivo "a emissão de parecer sobre as concretas questões anteriormente elencadas, sem prejuízo de outras que venham a ser consideradas pertinentes», sugestão que, como já foi dito, mereceu concordância de Vossa Excelência.
Cumpre, assim, emitir parecer.
II
1 - A Constituição da República dedica ao Ministério Público os artigos 219.º e 220.º, integrados no capítulo IV do título V, consagrado aos Tribunais.
Estabelece o artigo 219.º:
"Artigo 219.º
(Funções e estatuto)
1 - Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
2 - O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.
3 - ...
4 - ...
5 - ...»
Sendo um órgão constitucional integrado na organização dos Tribunais, ao Ministério Público compete, entre o mais, representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar. Trata-se, nesta segunda hipótese de "defender os interesses de determinadas pessoas mais carecidas de proteção, designadamente, verificados certos requisitos, os menores, os ausentes, os trabalhadores, etc.»(6).
Como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na "constituição judiciária», o Ministério Público "surge como um órgão do poder judicial ao qual estão cometidas as funções de representação do Estado, do exercício da ação penal, da defesa da legalidade democrática e dos demais interesses determinados por lei»; a Constituição "não configurou o Ministério Público como órgão de natureza administrativa, dependente do Governo, mas sim como órgão independente, integrado na organização judicial, com estatuto próprio e autonomia institucional» e dotado de governo próprio através da Procuradoria-Geral da República(7).
Cunha Rodrigues considera o conceito de órgão de justiça como "aquele que melhor exprime a posição do Ministério Público no processo penal e também a sua natureza»; reconhece, todavia, a necessidade de equacionar problemas de qualificação resultantes de outras atribuições que, não obstante a sua variedade e amplitude, acabam por se reconduzir "à realização da justiça ou à promoção e defesa da legalidade e, em qualquer caso, de uma forma vinculada e sujeita a regras estritas de estatuto»(8).
"O que é decisivo na atividade do tribunal e na atividade do Ministério Público - afirma o mesmo autor(9) - é o plano de atuação e os fins a que uma e outra estão pré-ordenadas e se dirigem.
"Ora, tanto o plano como os fins de uma e outra atividade são intrinsecamente judiciais, porque, estando sujeitos a um estatuto definido para o poder judicial, operam (melhor, cooperam), numa relação de necessidade, com a realização última das atribuições dos tribunais.
"Concluiremos, assim, no sentido de que o Ministério Público é um órgão judicial, integrado, com autonomia, no poder judicial, embora dotado de atribuições que não são materialmente jurisdicionais nem se confinam às exercidas pelos tribunais.»
Para Jorge Miranda e Rui Medeiros, "[a] sistemática constitucional [...] dá mesmo algum apoio à qualificação do Ministério Público como "órgão judicial" ou integrado num poder ou função "judicial" amplamente entendidos: ao lado da função jurisdicional de dizer o direito no caso concreto, constitucionalmente reservada aos tribunais, e que é passiva por natureza, a função judicial compreenderia a função ativa da iniciativa ou promoção processual que, estando ordenada diretamente ao correto exercício da jurisdição, apresenta a mesma finalidade última e segue o mesmo critério, apesar de desempenhar, no processo, um papel essencialmente diferente e inconfundível com o dela»(10).
Também este Conselho Consultivo vem caracterizando o Ministério Público como órgão autónomo da Administração da Justiça e órgão do Estado de administração da Justiça, a que cabe colaborar com o poder judicial na realização do Direito(11).
2 - A estrutura organizatória e funcional do Ministério Público, o regime estatutário dos seus magistrados e o regime de intervenção processual são concretizadas na lei ordinária.
O Estatuto do Ministério Público (EMP)(12) dispõe no artigo 1.º que o Ministério Público representa o Estado e defende os interesses que a lei determinar, fórmula ampla que, para Jorge Miranda e Rui Medeiros(13), pretende abranger a representação dos incapazes, incertos e ausentes em parte incerta, o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de caráter social e a defesa de interesses difusos.
No que mais importa para o objeto da consulta, estabelece o artigo 3.º, n.º 1, do EMP que compete especialmente ao Ministério Público representar o Estado os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta - alínea a)(14) - e exercer as demais funções conferidas por lei - alínea p).
No artigo 5.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99, de 13 de janeiro, estabelece-se que o Ministério Público "é o órgão encarregado de, nos tribunais judiciais, representar o Estado, exercer a ação penal e defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar».
O mesmo dispõe o artigo 6.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 52/2008, de 28 de agosto.
Por seu lado, o artigo 3.º, n.º 1, da lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei 62/2013, de 26 de agosto, estabelece que o Ministério Público "representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar ...», omitindo a referência aos "tribunais judiciais» que consta dos diplomas de organização judiciária que se indicaram.
O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)(15) dedica ao Ministério Público o capítulo VII (artigos 51.º e 52.º) do título I, epigrafado de Tribunais administrativos e fiscais.
O artigo 51.º (Funções) comete ao Ministério Público a representação do Estado, a defesa da legalidade democrática e a promoção do interesse público, definindo o artigo 52.º o regime da representação do Ministério Público nos tribunais da jurisdição administrativa e tributária.
3 - O regime de intervenção do Ministério Público consta dos artigos 4.º a 6.º do Estatuto:
"Artigo 4.º
Representação do Ministério Público
1 - O Ministério Público é representado junto dos tribunais:
a) No Supremo Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal Administrativo, no Supremo Tribunal Militar e no Tribunal de Contas, pelo Procurador-Geral da República;
b) Nos tribunais de relação e no Tribunal Central Administrativo, por procuradores-gerais-adjuntos;
c) Nos tribunais de 1.ª instância, por procuradores da República e por procuradores-adjuntos.
2 - O Ministério Público é representado nos demais tribunais nos termos da lei.
3 - ...»
"Artigo 5.º
Intervenção principal e acessória
1 - O Ministério Público tem intervenção principal nos processos:
a) Quando representa o Estado;
b) Quando representa as regiões autónomas e as autarquias locais;
c) Quando representa incapazes, incertos ou ausentes em parte incerta;
d) Quando exerce o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de caráter social;
e) Quando representa interesses coletivos ou difusos;
f) Nos inventários exigidos por lei;
g) Nos demais casos em que a lei lhe atribua competência para intervir nessa qualidade.
2 - Em caso de representação de região autónoma ou de autarquia local, a intervenção principal cessa quando for constituído mandatário próprio.
3 - Em caso de representação de incapazes ou de ausentes em parte incerta, a intervenção principal cessa se os respetivos representantes legais a ela se opuserem por requerimento no processo.
4 - O Ministério Público intervém nos processos acessoriamente:
a) Quando, não se verificando nenhum dos casos do n.º 1, sejam interessados na causa as regiões autónomas, as autarquias locais, outras pessoas coletivas públicas, pessoas coletivas de utilidade pública, incapazes ou ausentes, ou a ação vise a realização de interesses coletivos ou difusos;
b) Nos demais casos previstos na lei.»
"Artigo 6.º
Intervenção acessória
1 - Quando intervém acessoriamente, o Ministério Público zela pelos interesses que lhe estão confiados, promovendo o que tiver por conveniente.
2 - Os termos da intervenção são os previstos na lei de processo.»
4 - O Código de Processo Civil (CPC)(16), ao tratar da personalidade e capacidade judiciária (capítulo I do título III do livro I), contém disposições específicas sobre a representação dos incapazes e do Estado pelo Ministério Público, constantes dos artigos 21.º, 23.º e 24.º, que mantêm o regime que o anterior Código de Processo Civil previa nos artigos 15.º, 17.º e 20.º, respetivamente:
"Artigo 21.º
Defesa do ausente e do incapaz pelo Ministério Público
1 - Se o ausente ou o incapaz, ou os seus representantes, não deduzirem oposição, ou se o ausente não comparecer a tempo de a deduzir, incumbe ao Ministério Público a defesa deles, para o que é citado, preferencialmente por transmissão eletrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 132.º, correndo novamente o prazo para a contestação.
2 - Quando o Ministério Público represente o autor, é nomeado um defensor oficioso.
3 - Cessa a representação do Ministério Público ou do defensor oficioso, logo que o ausente ou o seu procurador compareça, ou logo que seja constituído mandatário judicial do ausente ou do incapaz.»
"Artigo 23.º
Representação de incapazes e ausentes pelo Ministério Público
1 - Incumbe ao Ministério Público, em representação de incapazes e ausentes, intentar em juízo quaisquer ações que se mostrem necessárias à tutela dos seus direitos e interesses.
2 - A representação cessa logo que seja constituído mandatário judicial do incapaz ou ausente, ou quando, deduzindo o respetivo representante legal oposição à intervenção principal do Ministério Público, o juiz, ponderado o interesse do representado, a considere procedente.»
"Artigo 24.
Representação do Estado
1 - O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído.
2 - Se a causa tiver por objeto bens ou direitos do Estado, mas que estejam na administração ou fruição de entidades autónomas, podem estas constituir advogado que intervenha no processo juntamente com o Ministério Público, para o que serão citadas quando o Estado seja réu; havendo divergência entre o Ministério Público e o advogado, prevalece a orientação daquele.»
5 - Os preceitos do EMP e do CPC que vêm de se citar contemplam duas das funções que o Ministério Público exercita na jurisdição civil que a doutrina vem referenciando: a função de representação e a função de assistência. A tais funções correspondem, por sua vez, dois níveis de intervenção processual: uma intervenção a título principal e uma intervenção acessória(17).
A função de representação, quando exercida, corresponde à intervenção principal, na terminologia do EMP e traduz-se, segundo Carlos Lopes do Rego, no dever de o Ministério Público "assumir a representação ou o patrocínio judiciário do Estado, de outras pessoas coletivas públicas, e de pessoas ou entidades a que o Estado deve proteção (em razão da sua incapacidade, natural ou jurídica, ou da preterição do contraditório decorrente da forma como foram chamadas à causa), bem como na atuação de competências oficiosas que a lei confere especial e diretamente ao Ministério Público, com vista à realização de interesses postos especificamente a seu cargo [arts. 1.º, 3.º, als. a), e) e p) e 5.º, n.os 1 a 3 do Estatuto do Ministério Público]»(18).
A função de assistência a alguma das partes principais traduz-se na intervenção acessória que se exerce "nos processos em que figurem como parte principal pessoas coletivas públicas ou entidades a que o Estado deve proteção ou que, pela sua natureza, envolvam necessariamente o interesse público, sempre que não se verifiquem os condicionalismos que legitimam a intervenção principal (caráter subsidiário da intervenção acessória) - artigos 3.º, n.º 1, alínea l) e 5.º, n.º 4, do Estatuto do Ministério Público»(19).
6 - O conceito de representação subjacente às situações referidas é juridicamente impreciso e não veicula um significado unívoco. Ele compreende o caso da representação do Estado-Administração em que se estará perante verdadeiros poderes de representação tendentes a exprimir a vontade da pessoa ou do ente em nome de quem se age, que Carlos Lopes do Rego caracteriza como representação orgânica(20). A representação é assumida por um órgão da entidade representada. Já Isabel Alexandre, entende que a representação do Estado-Administração pelo Ministério Público não configura uma situação de representação orgânica, já que "esta traduz a atuação da pessoa coletiva através dos seus órgãos (cf. o artigo 38.º do CC) e o MP não é um órgão do estado-administração», tratando-se antes de representação legal(21).
O objeto da consulta dispensa que se assuma aqui qualquer compromisso sobre a caracterização jurídica da representação do Estado-Administração pelo Ministério Público.
A representação compreende ainda as situações em que se confia ao Ministério Público a representação judiciária a título de patrocínio - representação voluntária e os casos em que os poderes representativos derivam necessariamente da lei e nunca da vontade do representado - representação necessária ou forçada, como sucede nas situações previstas nos artigos 21.º e 22.º do CPC (defesa do ausente e do incapaz por falta de oposição dos seus representantes e representação dos incertos).
III
1 - Sobre a representação do Estado em juízo pelo Ministério Público, cumpre referir, antes de mais, que o termo Estado constante nas disposições legais mencionadas no capítulo anterior é utilizado no seu sentido mais restrito, na aceção administrativa, correspondendo à "pessoa coletiva pública que, no seio da comunidade politicamente organizada e sob a direção do Governo, desenvolve a atividade administrativa»(22) - Estado-Administração.
Este entendimento decorre da distinção entre uma aceção lata e uma aceção restrita de "Estado», em que a primeira corresponde à "comunidade que em determinado território prossegue com independência e através de órgãos constituídos por sua vontade, a realização de ideias e interesses próprios, constituindo uma pessoa coletiva de Direito internacional» - Estado-Coletividade - e a segunda designa a "pessoa coletiva de direito público interno que no seio da comunidade referida na primeira aceção e para efeitos internos tem o Governo por órgão»(23) - Estado-Administração.
De acordo com o sentido exposto - assinala-se no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1/96 - "o Estado-Administração abrange apenas a chamada "administração direta do Estado" (concentrada ou desconcentrada), a qual abarca todos os órgãos e serviços integrados na pessoa coletiva do estado, hierarquicamente dependentes do Governo e sujeitos ao poder de direção deste»(24).
A representação do Estado-Administração pelo Ministério Público, seja qual for a qualificação jurídica que se lhe atribua, é obrigatória para o Ministério Público, ao contrário do que sucede com a representação a título de patrocínio judiciário de outras pessoas e entidades coletivas públicas exercido pelos agentes do Ministério Público que surge sempre como facultativo, cessando com a constituição de mandatário judicial próprio ou com a oposição à intervenção deduzida pelos representantes legais dos incapazes ou de ausentes (cf. artigo 5.º, n.os 2 e 3, do EMP).
A circunstância de o Ministério Público representar organicamente o Estado envolve uma importante consequência processual que é a de que o Estado, quando demandado, tem de necessariamente ser citado na pessoa do agente do Ministério Público e não em qualquer órgão ou agente administrativo, sob pena da verificação da nulidade prevista na alínea b) do artigo 187.º do atual CPC(25).
2 - Finalmente, cumpre dar nota das competências especificamente atribuídas ao Ministério Público para, em nome próprio e na prossecução do interesse público, intentar determinadas ações ou providências judiciais.
Quando atua no âmbito das funções de representação, o Ministério Público intervém nos processos, como já se disse, em representação do Estado-Administração ou exercendo o patrocínio judiciário de determinadas pessoas ou entidades. As correspondentes funções inserem-se nas de representante da parte, titular dos interesses que se pretendem dirimir através da ação.
Porém, o ordenamento contempla preceitos legais que atribuem direta e autonomamente ao Ministério Público competência específica para, na prossecução do interesse público, solicitar determinadas atuações jurisdicionais, com reflexo na esfera jurídica dos particulares. Como salienta Carlos Lopes do Rego, "trata-se, pois, da atuação de uma competência específica, fundada em norma especial, que apenas permite ao Ministério Público intentar determinada ação quando se verifiquem os pressupostos legalmente definidos (caráter taxativo das intervenções oficiosas)(26). Continuando a acompanhar este autor:
"Tal poder de atuação vem, por outro lado, conferido direta e autonomamente ao Ministério Público, sem a interposição de qualquer entidade administrativa em cuja esfera jurídica se situe o direito exercido através da ação. Não se trata, deste modo, de mera atuação em juízo de direitos ou faculdades pertencentes a entidades públicas, a solicitação dos respetivos órgãos dirigentes e no patrocínio ou representação judiciária daquelas - mas antes de exercer um verdadeiro poder de intervenção em relações jurídico-privadas, que o ordenamento jurídico, em certas circunstâncias, reserva ao Estado Coletividade. Este vai, pois, atuar, através do Ministério Público, como verdadeiro substituto processual, solicitando uma providência jurisdicional com reflexo na esfera dos particulares, mas com vista à realização direta de certo interesse público»(27).
Neste tipo de intervenção, o Ministério Público assume o estatuto de uma verdadeira parte, sendo o verdadeiro sujeito da relação jurídica acionada e interessado na procedência da ação, de acordo com o que se mostra disposto no artigo 30.º do atual CPC, que reproduz o artigo 26.º do CPC de 1961(28). O pressuposto processual que se deverá convocar é, consequentemente, o da legitimidade.
IV
O Ministério Público representa no processo os incapazes e os ausentes, deduzindo então intervenção principal, conforme dispõem os já citados artigos 3.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, n.º 1, alínea c), do EMP, e os artigos 21.º e 23.º do CPC.
Atribui-se, pois, ao Ministério Público esta específica competência para a representação judiciária dos incapazes - menores, interditos e inabilitados - pois, como é sabido, sendo detentores de personalidade judiciária (são suscetíveis de ser parte - artigo 11.º, n.º 1, do CPC), não gozam de capacidade judiciária nas ações compreendidas no âmbito da sua incapacidade, ou seja, não podem estar por si e livremente em juízo, sem ser através dos seus legais representantes e sem necessidade de autorização do curador (artigo 16.º, n.º 1, do CPC).
Assim, o Ministério Público tem competência para, em representação dos incapazes e ausentes, "intentar em juízo quaisquer ações que se mostrem necessárias à tutela dos seus direitos e interesses» (artigo 23.º, n.º 1, do CPC).
E tem competência para assumir a defesa dos incapazes nos processos em que eles sejam demandados, realizando um "subsuprimento» ou "suprimento de segunda linha» das respetivas incapacidades por falta de oposição dos respetivos representantes legais (artigo 21.º, n.º 1, do CPC)(29).
Nestas situações de representação judiciária ativa e passiva, cumprirá referir que parte no processo é o incapaz, demandante ou demandado, pois é ele o titular da relação material controvertida. A legitimidade processual traduzida na relação de titularidade entre a parte e o objeto do processo pertence ao incapaz e unicamente por ele se deverá aferir da existência deste pressuposto processual (cf. artigo 30.º do CPC).
A representação dos incapazes deverá ser assumida pelos respetivos representantes legais, assim se suprindo a sua incapacidade judiciária.
Somente em caso de inércia dos seus representantes legais ou gerais na prossecução dos seus direitos ou interesses é que se considera justificada a intervenção principal do Ministério Público. Só então lhe assiste "legitimidade» para intervir, ou melhor, competência para atuar em representação dos incapazes, numa situação de patrocínio judiciário decorrente da lei (não facultativo).
Nesta perspetiva, a representação dos incapazes pelo Ministério Público revela-se claramente subsidiária. De facto, na parte ativa, o Ministério Público assume a representação dos interesses do incapaz perante uma situação de inércia do seu representante legal. Por outro lado, a intervenção principal do Ministério Público cessa logo que seja constituído mandatário judicial do incapaz ou no caso de oposição deduzida pelo representante legal a tal intervenção considerada judicialmente procedente, como dispõem o artigo 5.º, n.º 3, do EMP, e o artigo 23.º, n.º 2, do CPC. Na parte passiva, a representação pelo Ministério Público do incapaz demandado tem lugar somente em situação de revelia absoluta, ou seja, numa situação em que o seu representante legal não deduziu oposição, e cessa com a constituição de mandatário judicial.
V
1 - De acordo com o disposto no artigo 5.º, n.º 4, do EMP, o Ministério Público intervém acessoriamente nos processos em que sejam interessados as Regiões Autónomas, as autarquias locais, outras pessoas coletivas públicas, pessoas coletivas de utilidade pública, incapazes ou ausentes, quando não os represente, a ação vise a realização de interesses coletivos ou difusos e nos demais casos previstos na lei.
O interessa jurídico em que radica a legitimidade do Ministério Público para o ato de intervenção acessória resulta da circunstância de o processo em que a intervenção é deduzida envolver interesse público por força da especial natureza ou qualidade de alguma das partes na causa ou da natureza do objeto processual(30).
Trata-se de uma função subsidiária da função de representação e, contrariamente ao que se passa com a figura processual da assistência (cf. artigo 326.º do CPC), não tem caráter espontâneo ou facultativo, não carecendo de ser requerida.
Como salienta Carlos Lopes do Rego, o Ministério Público será "uma espécie de assistente "ex lege", assumindo a posição de parte acessória desde o momento em que a ação se considera intentada em juízo, independentemente de o requerer; ou seja: como exceção ao princípio do caráter espontâneo da intervenção assistencial e pelo facto de estar pendente em juízo uma ação em que sejam partes as pessoas ou entidades enumeradas no [artigo 5.º, n.º 4, alínea a), do EMP], ao M.ºP.º é automaticamente conferido o papel de parte acessória»(31).
O artigo 6.º do EMP enuncia o papel a desempenhar pelo Ministério Público quando tem de intervir acessoriamente no processo, dispondo que:
"Artigo 6.º
Intervenção acessória
1 - Quando intervém acessoriamente, o Ministério Público zela pelos interesses que lhe estão confiados, promovendo o que tiver por conveniente.
2 - Os termos da intervenção são os previstos na lei de processo.»
O regime processual da intervenção acessória do Ministério Público consta do artigo 325.º do CPC atual, que corresponde ao artigo 334.º do anterior CPC, preceito que fora introduzido na reforma operada pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de dezembro, em concretização da estatuição do artigo 6.º, n.º 2, do EMP.
O artigo 325.º do CPC contempla as especificidades da intervenção acessória do Ministério Público que, repita-se, é imposta por lei para tutela de interesses públicos.
Integrado em subsecção dedicada precisamente à Intervenção acessória do Ministério Público, estabelece o artigo 325.º o seguinte:
"Artigo 325.º
Como se processa
1 - Sempre que, nos termos da respetiva Lei Orgânica, o Ministério Público deva intervir acessoriamente na causa, é-lhe oficiosamente notificada a pendência da ação, logo que a instância se considere iniciada.
2 - Compete ao Ministério Público, como interveniente acessório, zelar pelos interesses que lhe estão confiados, exercendo os poderes que a lei processual confere à parte acessória e promovendo o que tiver por conveniente à defesa dos interesses da parte assistida.
3 - O Ministério Público é notificado para todos os atos e diligências, bem como de todas as decisões proferidas no processo, nos mesmos termos em que o devam ser as partes na causa, tendo legitimidade para recorrer quando o considere necessário à defesa do interesse público ou dos interesses da parte assistida.
4 - Até à decisão final e sem prejuízo das preclusões previstas na lei de processo, pode o Ministério Público, oralmente ou por escrito, alegar o que se lhe oferecer em defesa dos interesses da pessoa ou entidade assistida.»
2 - Como resulta dos preceitos que se transcreveram, a intervenção acessória do Ministério Público pressupõe a pendência de uma causa em juízo e concretiza-se numa atuação zelosa na defesa dos interesses que lhe estão confiados. Compete ao juiz ordenar a notificação ao Ministério Público da pendência de causa em que deva (obrigatoriamente) ter intervenção acessória, devendo ser-lhe notificados todos os atos e diligências e todas as decisões proferidas no processo que devam ser notificadas às partes, sob pena de se ter por cometida a nulidade prevista no artigo 194.º do CPC (artigo 200.º do anterior CPC), de que o tribunal pode conhecer oficiosamente (artigo 196.º do CPC)(32).
VI
1 - O Ministério Público é um órgão do Estado a quem compete a sua representação em juízo, "sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio» (n.º 1 do artigo 24.º do CPC), competindo-lhe ainda, nos termos já expostos, representar judiciariamente os incapazes.
Esta representação cometida ao Ministério Público é para ser exercida nos tribunais portugueses, conforme doutrina já consolidada deste Conselho Consultivo.
No parecer 114/2003(33), examinou-se a questão de saber em que tribunais é que ao Ministério Público compete a representação do Estado e dos incapazes, e, mais concretamente, se tal representação também deve ou não operar nos tribunais arbitrais.
Lê-se aí que:
"Seguramente, tal representação ocorre nas categorias de tribunais que integram a organização judiciária do Estado.
Desde logo, portanto, o Ministério Público representa o Estado e os incapazes nos tribunais que fazem parte da jurisdição comum, os chamados tribunais judiciais.
O Ministério Público também representa o Estado, como vimos, nos tribunais que integram a jurisdição administrativa e fiscal.
Todavia, entre os tribunais estaduais e os tribunais arbitrais voluntários existem, obviamente, significativas diferenças. E o que verdadeiramente releva, quanto à questão que nos ocupa, é, por um lado, a natureza da arbitragem e dos tribunais arbitrais e, por outro, o quadro legal de competências atribuídas ao Ministério Público.»
Depois de se examinar a natureza e o concreto perfil que os tribunais arbitrais assumem no âmbito da administração da justiça, conclui-se que:
"[...] não obstante serem estruturalmente diversos dos tribunais estaduais, os tribunais arbitrais são considerados verdadeiros e próprios tribunais e participam do exercício da função jurisdicional, tal como atrás foi definida.
Todavia, os tribunais arbitrais, sendo verdadeiros tribunais, em determinados aspetos, "não são tribunais como os outros» [(34)]: não são órgãos estaduais nem órgãos de soberania e são constituídos por vontade das partes para resolver um certo litígio.
Constituem, de acordo com a sua natureza e a sua génese, um meio alternativo de resolução de litígios, estando especialmente vocacionados para dirimir conflitos relativos a interesses disponíveis, com base em fórmulas simples, céleres e informais e em parâmetros de decisão que podem reconduzir-se à equidade.
Nessa medida, não se coaduna porventura com a sua natureza a inserção nos tribunais arbitrais - ainda que assumam vocação permanente - de um órgão de justiça como o Ministério Público para representar o Estado ou os incapazes.
Isto sem embargo de, nos termos do artigo 1.º, n.º 4, da Lei 31/86, de 29 de agosto, o Estado e outras pessoas coletivas de direito público poderem celebrar convenções de arbitragem, se para tanto forem autorizados por lei especial ou se elas tiverem por objeto litígios respeitantes a relações de direito privado.
E de os incapazes, desde que devidamente representados, poderem igualmente celebrar convenções de arbitragem.
Apesar de, por regra, competir ao Ministério Público a representação judiciária do Estado e dos incapazes, a Lei 31/86, de 29 de agosto, e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos não contêm, como se realçou, qualquer referência ao Ministério Público.
A omissão pode não ser, em si mesma, decisiva.
Refira-se, todavia, que no direito comparado os diplomas sobre arbitragem que mencionam o Ministério Público fazem-no para afastar de forma expressa a sua intervenção nos tribunais arbitrais (-).
E, entre nós, como vimos, a não previsão de intervenção do Ministério Público nos tribunais arbitrais na ordem administrativa e fiscal deu azo a que tal intervenção fosse reclamada de iure constituendo [(35)].
Cremos, em suma, que a própria natureza da arbitragem, enquanto processo alternativo (ao processo judicial) de resolução de litígios, não deixa de oferecer uma compreensível resistência à participação do Ministério Público nos tribunais arbitrais.
[...] Por uma outra via - a da competência - chegamos igualmente à conclusão de que não compete ao Ministério Público a representação do Estado ou dos incapazes nos tribunais arbitrais [(36)].
As pessoas coletivas públicas (como o Estado) prosseguem determinados fins (atribuições) mediante a utilização de poderes funcionais (competência).
Por atribuições, entende-se "os fins ou interesses que a lei incumbe as pessoas coletivas públicas de prosseguir».
Competência é "o conjunto de poderes funcionais que a lei confere para a prossecução das atribuições das pessoas coletivas públicas».
Por regra, nas pessoas coletivas públicas as atribuições referem-se à pessoa coletiva em si mesma, enquanto a competência se reporta aos órgãos. A lei especificará, portanto, as atribuições de cada pessoa coletiva e, noutro plano, a competência de cada órgão [(37)].
A delimitação da competência obedece ao princípio da legalidade da competência, princípio de que decorrem importantes corolários, designadamente o de que a competência não se presume [(38)]: "isto quer dizer que só há competência quando a lei inequivocamente a confere a um dado órgão» [(39)].
A organização e competência do Ministério Público constituem matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, devendo, por isso constar de lei ou de decreto-lei autorizado [artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição].
A atribuição da competência ao Ministério Público para representar organicamente o Estado em juízo, conforme o Conselho Consultivo já ponderou, funda-se em considerações de ordem prática e financeira [(40)].
A representação de incapazes (e dos incertos e ausentes em parte incerta) é geralmente considerada como típica das funções do Ministério Público: trata-se "de tutelar interesses de pessoas a quem o Estado, na sua veste de ente soberano e garante dos direitos dos cidadãos, deve proteção» [(41)].
Nos tribunais estaduais, integrados na organização judiciária do Estado, o Ministério Público é representado pelo Procurador-Geral da República, que pode fazer-se substituir por procuradores-gerais-adjuntos (no Supremo Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal Administrativo, no Supremo Tribunal Militar e no Tribunal de Contas), por procuradores-gerais-adjuntos (nos tribunais de relação e nos tribunais centrais administrativos), por procuradores da República nos tribunais administrativos de círculo e nos tribunais tributários) e por procuradores da República e procuradores-adjuntos (nos tribunais judiciais de 1.ª instância) (artigos 4.º, n.º 1, do EMP e 52.º do ETAF).
A esses magistrados, que exercem funções nesses tribunais, compete, quando for caso disso, neles representar o Estado e os incapazes.
O n.º 2 do artigo 4.º do EMP acrescenta que o Ministério Público "é representado nos demais tribunais nos termos da lei».
A estatuição da representação do Ministério Público "nos restantes tribunais» sugere a ideia de que a mesma abrange todos os tribunais, também, portanto os tribunais arbitrais; porém, logo se acrescenta "nos termos da lei», quer dizer, nos específicos termos consagrados na lei para as diversas categorias ou espécies de tribunais.
Sucede que a lei não prevê que junto dos tribunais arbitrais exerçam funções magistrados do Ministério Público, tal como não prevê que o Ministério Público tenha representação, ainda que pontual, nesses tribunais.
Ora, a representação do Estado e dos incapazes pelo Ministério Público nos tribunais arbitrais, pressuporia a existência de lei que lhe atribuísse essa competência.
Como essa lei não existe, importa concluir que o Ministério Público não representa o Estado nem os incapazes junto dos tribunais arbitrais, sejam voluntários sejam necessários.»
No parecer 10/2005(42) o Conselho Consultivo foi chamado a pronunciar-se sobre, designadamente, a representação do Estado pelo Ministério Público nos julgados de paz.
Com os mesmos fundamentos que, a tal propósito, se aduziram no parecer 114/2003, há pouco expostos, e não obstante se considerar que "os julgados de paz são verdadeiros e próprios tribunais [que] participam do exercício da função jurisdicional» e que "o Estado-Administração pode ser parte em ações propostas nos julgados de paz, quer na sua veste de titular de direito privado, quer como ente público, quer como demandante, quer como demandado»(43), concluiu-se que a competência para o Ministério Público representar o Estado, nos termos do artigo 219.º da Constituição e dos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público, se reporta aos tribunais estaduais, designadamente aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais, pelo que o Ministério Público não representa o Estado nos julgados de paz (conclusões 3.ª e 4.ª).
Mais recentemente, o tema da representação do Estado pelo Ministério Público e do seu âmbito foi retomado por este órgão consultivo no parecer 33/2011(44), mais precisamente, sobre a questão da representação do Estado no âmbito dos "processos de injunção instaurados contra os serviços da Administração direta do Estado».
Aí se concluiu, por maioria, que:
"O Balcão Nacional de Injunções é uma secretaria judicial integrada na orgânica dos tribunais judiciais, tendo, enquanto secretaria-geral, competência para tramitar as injunções em todo o território nacional [artigo 16.º, n.os 2 e 4, alínea b), do Decreto-Lei 186-A/99, de 31 de maio, e artigos 1.º e 3.º da Portaria 220-A/2008, de 4 de março]» (conclusão 1.ª);
"Compete ao Ministério Público representar o Estado no processo de injunção, devendo ser-lhe efetuada a notificação a que se reporta o artigo 12.º do regime anexo ao Decreto-Lei 269/98» (conclusão 4.ª);
Retoma-se neste parecer o entendimento (restritivo) que o Conselho vem adotando sobre o âmbito da representação judiciária do Estado-Administração pelo Ministério Público, referindo-se que "resulta [...] da doutrina deste Conselho [...] sucessivamente reafirmada, que a representação judiciária do Estado se cinge aos tribunais estaduais (judiciais e administrativos e fiscais)(45).
A conclusão tirada assenta no pressuposto (aceite por maioria) de que a injunção se caracteriza "como uma forma de processo civil especial a tramitar nos tribunais», "como uma forma de processo civil especial a tramitar no âmbito do tribunal, embora sem intervenção do juiz (fase processual desjudicializada)».
Refira-se que a posição vencida assenta na mesma linha quanto ao âmbito da representação do Estado pelo Ministério Público: "Nos termos do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República e dos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público, está atribuída ao Ministério Público a representação do Estado nos tribunais [(46)], o que constitui uma responsabilidade correlacionada com a respetiva matriz funcional de raiz judiciária». A figura da injunção foi, neste entendimento, considerada "providência não judiciária», daí que se conclua que "A lei não atribui ao Ministério Público a representação do Estado-Administração em procedimentos extrajudiciais, nomeadamente na providência de injunção».
2 - Não descortinamos fundamentos para alterar o entendimento do Conselho Consultivo, sucessivamente reafirmado, sintetizado na conclusão 2.ª do parecer 114/2003:
"A competência para o Ministério Público representar o Estado e os incapazes reporta-se aos tribunais estaduais, designadamente aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais.»
VII
1 - O inventário judicial constitui um meio processual acolhido e regulado há muito no ordenamento jurídico português, sendo sua função, enunciada no artigo 1326.º do Código de Processo Civil (CPC), de 1961, "pôr termo à comunhão hereditária»(47).
A obrigatoriedade na instauração de inventário constituiu uma regra com larga tradição entre nós, fundada na disposição contida no artigo 2053.º, n.º 1, do Código Civil, na sua versão original, segundo a qual:
"A herança deferida a menor, interdito, inabilitado ou pessoa coletiva só pode ser aceita a benefício de inventário».
Estava-se num tempo em que estava assumido que o processo de inventário constituía, nas palavras de Lopes Cardoso, "uma medida de proteção, embora de natureza especial; destina-se muito especialmente a evitar prejuízos, e a obrigatoriedade determinada na lei quando os herdeiros sejam incapazes [...] tem inteira razão de ser, vista a finalidade objetiva do inventário e consequente impossibilidade daqueles poderem evitar os prejuízos por si só, independentemente de concurso alheio»(48).
Nos termos do n.º 1 do artigo 2102.º do Código Civil, a partilha pode fazer-se extrajudicialmente, quando houver acordo de todos os interessados, ou por inventário judicial, estabelecendo o n.º 2 do mesmo preceito, na sua redação original, que:
"O inventário judicial é, porém, obrigatório, sempre que a lei exija aceitação beneficiária da herança, e ainda nos casos em que algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência ou incapacidade permanente, outorgar em partilha extrajudicial.»
Coerentemente, dispunha o n.º 2 do artigo 1326.º do CPC, que:
"2. O inventário pode ser requerido pelas pessoas diretamente interessadas na partilha e deve ser requerido pelo Ministério Público quando seja obrigatório.»
Conferia-se, pois, legitimidade ao Ministério Público para requerer o inventário quando o mesmo devesse ser obrigatório, ou seja, quando a herança fosse deferida a menor, interdito, inabilitado ou pessoa coletiva ou quando algum dos herdeiros não pudesse, por motivo de ausência ou incapacidade permanente, outorgar em partilha extrajudicial.
Era salientada justamente a relevância da função social cometida ao Ministério Público na proteção dos incapazes, sendo considerado, então, segundo Lopes Cardoso:
"[...] como a entidade máxima do processo de inventário obrigatório. Intervenção de protetor dos interesses dos incapazes, intervenção de protetor de interesses do Estado.
Juiz dos Órfãos, se usa chamar-lhe com frequência
O MP tem intervenção principal nos inventários obrigatórios e quer os incapazes estejam representados no processo pelos seus pais, tutores ou curadores, quer não estejam.
Na sobredita qualidade detém os mais amplos poderes, competindo-lhe, exemplificativamente:
Requerer que se proceda a inventário obrigatório, quando caso disso (art. 1326.º, n.º 2 do CPC);
Intervir nos diferentes atos do processo de inventário e seus incidentes, devendo o processo ser-lhe continuado oportunamente com vista, podendo requerer tudo quanto julgar conveniente a bem dos incapazes - art. 1326.º;
Interpor os recursos que entender necessários das decisões ofensivas dos legítimos direitos e interesses dos seus curatelados
Dar as suas promoções ou respostas no prazo fixado por lei»(49).
2 - Em 1994, com a publicação do Decreto-Lei 227/94, de 8 de setembro, assiste-se a uma profunda alteração do processo de inventário, terminando a distinção entre inventário facultativo e inventário obrigatório, eliminando-se esta última figura.
Como se consigna na sua nota preambular, o Decreto-Lei 227/94 é enformado por "três grandes linhas de força: a eliminação da obrigatoriedade de inventário prévio à aceitação de herança por menor, a adoção de disposições que garantam, não obstante aquela eliminação, a efetiva defesa dos interesses de menor e a simplificação do processo de inventário». Como justificação das alterações introduzidas, afirma-se:
"Crê-se não subsistirem hoje as razões que - fundadas na desconfiança com que o legislador e a Administração encaravam os cidadãos e, neste particular, os pais e representantes legais do menor - exigiam ao Ministério Público, em regra, a instauração obrigatória de inventário sempre que estava em causa a aceitação de herança por menor.
Na verdade, a necessidade de manutenção da integração e coesão familiares aponta iniludivelmente para que se adote o princípio de que ninguém melhor do que os pais ou representantes legais do menor para definir, em cada caso, o que, de forma mais eficaz, defende os interesses deste. Também assim no que respeita a heranças que sejam deferidas ao menor, na medida em que é o pai ou o seu representante legal quem se encontra melhor posicionado para decidir, no caso, se a respetiva partilha se deve fazer por via judicial ou extrajudicial. Sendo assim, haveria, coerentemente, que eliminar a atual obrigatoriedade de inventário prévio à aceitação da herança por menor, medida que ora se adota.
Não se quis, porém, isentar de todo e qualquer acompanhamento judicial e controlo legislativo aquela opção dos pais ou representante legal do menor, conscientes de que casos haverá em que a defesa dos interesses deste exigirá outras medidas.
Daí que a partilha extrajudicial de herança deferida a menor se encontre condicionada a autorização prévia do tribunal; que o Ministério Público, sempre que, de acordo com os elementos que tenha podido obter - designadamente as relações que as repartições de finanças lhe enviarão relativas à liquidação do imposto sobre sucessões e doações -, entenda que a defesa dos interesses do menor na herança passa pela instauração de inventário o possa fazer; que o pai ou o representante legal do menor seja obrigatoriamente advertido no respetivo ato notarial de que o deve registar no prazo de três meses; que, enfim, se incumba o Ministério Público, no caso de partilha judicial, e o pai ou representante legal do menor, no caso contrário, de requerer o registo predial de direitos sobre imóveis que tenham sido adjudicados ao menor.»
O artigo 2102.º, n.º 2, do Código Civil foi alterado, passando a ter a seguinte redação:
"2 - Procede-se ainda a inventário judicial quando o Ministério Público o requeira, por entender que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária, e ainda nos casos em que algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, outorgar em partilha extrajudicial.»
Quanto à intervenção do Ministério Público no processo de inventário, o artigo 1327.º do CPC passou a dispor que:
"Artigo 1327.º
Legitimidade para requerer ou intervir no inventário
1 - Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:
a) Os interessados diretos na partilha;
b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a incapazes, ausentes em parte incerta ou pessoas coletivas.
2 - ...
3 - Os credores da herança e os legatários são admitidos a intervir nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos, cumprindo ao Ministério Público a representação e defesa dos interesses da Fazenda Pública.»
Como decorrre do citado artigo 2102.º do Código Civil, a partilha extrajudicial é sempre possível havendo herdeiros incapazes, impondo-se, no entanto, a obtenção pelo representante legal do incapaz de autorização do tribunal para convencionar tal partilha, por força da nova redação conferida pelo Decreto-Lei 227/94 aos artigos 1889.º, alínea l), e 1938.º, alínea c), do Código Civil, relativos aos atos dos pais ou do tutor que, como representantes do filho ou do pupilo, respetivamente, carecem de autorização do tribunal(50) (51).
A imposição da autorização do tribunal para os pais e tutores convencionarem partilha extrajudicial, em representação dos seus filhos menores ou dos seus pupilos, designadamente para intervirem no correspondente instrumento notarial, havendo imóveis (cf. artigo 54.º, n.º 2, do Código do Notariado), constitui como que uma compensação pela eliminação da obrigatoriedade de instauração de inventário, revelando-se, sem dúvida, uma medida de proteção dos bens desses incapazes.
Como salienta Domingos da Silva Carvalho de Sá, embora o legislador tenha acabado com a distinção entre inventários obrigatórios e facultativos, "a reforma é atravessada por uma outra ideia, a qual se resume em não deixar descurada, de todo, a defesa dos interesses do menor e, por arrastamento, dos incapazes, no caso de tal se justificar concretamente, continuando a incumbir ao Ministério Público o papel de zelador desses interesses»(52). Daí a disposição contida no n.º 2 do artigo 2102.º, há pouco transcrita.
3 - A Resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 11 de outubro de 2004(53), aprovou medidas de descongestionamento dos tribunais judiciais.
Na prossecução do "esforço de identificação de novas medidas suscetíveis de melhorar os níveis de eficácia que o sistema jurídico e o acesso à justiça exigem» e "Com vista a garantir uma gestão racional do sistema de justiça, libertando os meios judiciais, magistrados e oficiais de justiça para a proteção de bens jurídicos que efetivamente mereçam a tutela judicial», adotam-se um conjunto de orientações e medidas, destacando-se, a enunciada na alínea d) do n.º 1, a ser aprovada até ao final de 2007 (n.º 3):
"Desjudicialização do processo de inventário, considerando que o tratamento pela via judicial deste processo resulta particularmente moroso, assegurando sempre o acesso aos tribunais em caso de conflito».
4 - Em concretização do disposto nesta Resolução do Conselho de Ministros e partindo da constatação de que o processo de inventário se revelava excessivamente moroso, foi publicada a Lei 29/2009, de 29 de junho, que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário(54), que veio consagrar que a tramitação deste processo passasse a ser assegurada pelas conservatórias e pelos cartórios notariais, através dos respetivos profissionais.
Esta lei foi revogada pela Lei 23/2013, de 5 de março, que aprovou o novo regime jurídico do processo de inventário.
Não obstante a revogação da Lei 29/2009, considera-se útil deixar breve referência sobre o regime processual do inventário que aprovou e sobre o regime da intervenção do Ministério Público consagrado, regime este que, diga-se desde já, foi profundamente alterado pela Lei 23/2013 como, mais adiante, se dará conta.
Assim, dispunha o artigo 3.º, n.º 1, que "[c]abe aos serviços de registos a designar por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça e aos cartórios notariais efetuar as diligências do processo de inventário, tendo o juiz o controlo do processo», acrescentando o n.º 2, do mesmo artigo, que "os interessados podem escolher qualquer serviço de registo designado nos termos do número anterior ou qualquer cartório notarial para apresentar o processo de inventário».
Apesar do processo de inventário passar a ser da competência das conservatórias e dos cartórios notariais, a solução adotada não afastou a existência de um controlo jurisdicional. Por um lado, assegurou-se às partes o acesso ao tribunal, em caso de conflito ou discordância, por outro lado, foi prevista a possibilidade de o juiz, a todo o tempo, poder chamar a si a decisão das questões que entender dever decidir. Finalmente, a decisão final do inventário seria sempre homologada pelo juiz. Assim, estabelecia o artigo 4.º, n.º 1, da Lei 29/2009 que "o juiz tem o controlo geral do processo de inventário, podendo, a todo o tempo, decidir e praticar os atos que entenda deverem ser decididos ou praticados pelo tribunal».
O artigo 7.º do mesmo regime jurídico, sobre o "Acesso ao processo», estabelecia que "o juiz e o Ministério Público têm acesso ao processo através de meios eletrónicos para poderem exercer as competências que lhe estão atribuídas».
5 - No âmbito das competências cometidas ao Ministério Público, determinava o artigo 1.º, n.º 2, alínea b), que se procederia à partilha por inventário "Quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária»(55).
O artigo 5.º, sobre a legitimidade para requerer o inventário, expressamente a conferia ao Ministério Público, prevendo ainda a sua intervenção em defesa dos interesses da Fazenda Pública.
Correspondendo, embora com alterações, ao que se consagrava no artigo 1327.º do CPC de 1961, dispunham os n.os 1 e 3 daquele preceito o seguinte:
"Artigo 5.º
Legitimidade para requerer ou intervir
1 - Têm legitimidade para requerer e intervir no processo de inventário:
a) Os interessados diretos na partilha;
b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a incapazes ou ausentes em parte incerta ou ao Estado.
2 - ...
3 - Os credores da herança e os legatários são admitidos a intervir nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos, cumprindo ao Ministério Público a representação da defesa dos interesses da Fazenda Pública.»
Quanto às citações para o inventário, estabelecia o artigo 25.º que seriam citados os interessados diretos na partilha e, de entre outros, também o Ministério Público junto do tribunal competente para o controlo geral do processo, quando a sucessão fosse deferida a incapazes ou ausentes em parte incerta ou ao Estado.
O artigo 35.º exigia a concordância do Ministério Público, quando este tivesse intervenção principal no processo, quanto à composição dos quinhões dos interessados.
E, na mesma situação, o Ministério Público podia reclamar, até ao início das licitações, contra o valor atribuído a quaisquer bens relacionados indicando qual o valor que considerava adequado (artigo 45.º).
Por sua vez, o artigo 53.º determinava que o Ministério Público requeresse a anulação da licitação, na parte respetiva, caso entendesse que o representante de algum incapaz ou equiparado o não defendeu devidamente, nesse ato (n.º 1). Em tal caso, o conservador ou notário determinavam a anulação da licitação, mandando repetir o ato e passando a representação do incapaz a ser assegurada pelo Ministério Público (n.º 2), decisão passível de recurso para o tribunal competente (n.º 3).
6 - Das disposições elencadas no número anterior, é fácil constatar que, não obstante a tramitação do inventário se processar, não no tribunal, mas em serviços de registo ou em cartório notarial, o Ministério Público continuava a deter legitimidade para requerer e intervir em tal processo quando a herança fosse deferida a incapazes ou ausentes em parte incerta ou ao Estado, devendo, neste caso, ser citado para o mesmo processo, onde passaria, em sede de intervenção principal, a zelar pelos interesses daqueles, sanando ou corrigindo até eventuais omissões ou insuficiências do representantes dos incapazes. E o Ministério Público (tal como o juiz) poderia exercer efetivamente (no processo de inventário) todas as suas competências em intervenção principal (e em intervenção acessória) porque a lei lhe permitia expressamente aceder ao processo (através de meios eletrónicos).
Como já foi dito(56), a constituição judiciária acolhe a qualificação do Ministério Público como um "órgão judicial», integrado num poder ou função judicial. As suas competências processuais no domínio da representação dos incapazes e do Estado são judiciárias e desenrolam-se nos tribunais, perante o juiz e não em repartições administrativas.
Uma disposição normativa que contemple uma intervenção principal (ou acessória) do Ministério Público em processo não judicial, tramitado, fora do tribunal (em serviços de registo e cartórios notariais), conduzido por agente administrativo (conservador) ou por um agente privado investido em funções públicas (notário), poderia ser entendida como uma "desqualificação», uma "degradação» ou, de todo o modo, uma "descaracterização» do estatuto constitucional do Ministério Público, podendo, consequentemente, considerar-se problemática a sua conformidade com a Constituição, tópico que dispensa mais desenvolvimentos, tendo em consideração o sentido deste parecer.
VIII
1 - A Lei 23/2013, de 5 de março, aprovou o atual regime jurídico do processo de inventário, doravante designado por RJPI, tendo revogado a Lei 29/2009, com exceção de algumas disposições(57).
Na sua base esteve a Proposta de Lei 105/XII(58), cuja exposição de motivos fornece indicações precisas quanto às opções assumidas pelo legislador.
Quanto às competências das entidades envolvidas neste processo, afirma-se o seguinte:
"Relativamente à Lei 29/2009, de 29 de junho, o Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela presente lei contempla diversas alterações em matéria de repartição de competências para a prática de atos e termos do processo de inventário, criando um sistema mitigado, em que a competência para o processamento dos atos e termos do processo de inventário é atribuída aos cartórios notariais, sem prejuízo de as questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, serem decididas pelo juiz do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado.
Por outro lado, o Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela presente lei contempla alterações em matéria de representação de incapazes e de ausentes em parte incerta e ainda no que respeita à competência do Ministério Público no âmbito do processo de inventário.
Com efeito, quando a herança seja deferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta, estabelece-se que a respetiva representação deve ser garantida por quem exerce as responsabilidades parentais, pelo tutor ou pelo curador, consoante os casos, e que ao Ministério Público compete ordenar as diligências necessárias para assegurar os direitos e interesses da Fazenda Pública.»
Como expressamente se refere, o novo RJPI contempla alterações em matéria de representação de incapazes e de ausentes em parte incerta e ainda no que respeita à competência do Ministério Público no âmbito do processo de inventário.
Em termos sistemáticos, o RJPI é constituído por 3 Capítulos, dedicados, respetivamente, às disposições gerais, à tramitação do processo de inventário e às disposições complementares e finais.
No capítulo das disposições gerais encontram-se as normas mais relevantes para o exame das duas primeiras questões que nos são colocadas e que, por isso, interessa convocar.
O artigo 2.º enuncia a função do processo de inventário, estabelecendo que:
"Artigo 2.º
Função do inventário
1 - O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de se realizar a partilha, a relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e a servir de base à eventual liquidação da herança.
2 - Ao inventário destinado à realização dos fins previstos na segunda parte do número anterior são aplicáveis as disposições da presente lei, com as necessárias adaptações.
3 - Pode ainda o inventário destinar-se, nos termos previstos nos artigos 79.º a 81.º, à partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges.»
O artigo 3.º versa sobre a competência do cartório notarial e do tribunal, interessando-nos, particularmente, as disposições contidas nos seus n.os 1, 4 e 7:
"Artigo 3.º
Competência do cartório notarial e do tribunal
1 - Compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra.
2 - ...
3 - ...
4 - Ao notário compete dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns.
5 - ...
6 - ...
7 - Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz.»
Os pressupostos relativos à legitimidade e à competência do Ministério Público estão consagrados nos artigos 4.º e 5.º, nos seguintes termos:
"Artigo 4.º
Legitimidade para requerer ou intervir no inventário
1 - Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:
a) Os interessados diretos na partilha;
b) Quem exerce as responsabilidades parentais, o tutor ou o curador, consoante os casos, quando a herança seja deferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta.
2 - Existindo herdeiros legitimários, os legatários e os donatários são admitidos a intervir em todos os atos, termos e diligências suscetíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e implicar eventual redução das respetivas liberalidades.
3 - Os credores da herança e os legatários são admitidos a intervir nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos.»
"Artigo 5.º
Competência do Ministério Público
1 - O notário remete para o Ministério Público junto do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado, por via eletrónica, todos os elementos e termos do processo que relevam para a Fazenda Pública.
2 - Compete ao Ministério Público ordenar as diligências necessárias para assegurar os direitos e interesses da Fazenda Pública, sem prejuízo das demais competências que lhe estejam atribuídas por lei.»
2 - Quanto à legitimidade para requerer ou intervir no processo de inventário, há que chamar a atenção para a redação da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º, acima transcrito, radicalmente diversa da que constava do artigo 1327.º, n.º 1, alínea b), do CPC de 1961, onde se conferia legitimidade ao Ministério Público "quando a herança seja deferida a incapazes, ausentes em parte incerta ou pessoas coletivas».
Também a Lei 29/2009 expressamente previa a legitimidade do Ministério Público para requerer ou intervir no processo de inventário, consagrando-a no seu artigo 5.º, n.º 1, alínea b), "quando a herança seja deferida a incapazes ou ausentes em parte incerta ou ao Estado».
A legitimidade conferida ao Ministério Público para requerer o inventário no citado artigo 1327.º, n.º 1, alínea b), do CPC de 1961 (mantida na Lei 29/2009, ainda que limitada, no que respeita às pessoas coletivas, ao Estado) era entendida pela doutrina como subsidiária, por força do n.º 2 do artigo 2102.º do Código Civil, na redação anterior à introduzida pela Lei 29/2009(59).
Na opinião de Carlos Lopes do Rego, tratava-se de uma atuação que se "deve configurar como sendo do tipo oficioso (e não em simples representação do incapaz)», estendendo-se, pois ao Ministério Público, "perspetivado como órgão do Estado-Coletividade - a legitimação para desencadear inventário em que seja interessado direto incapaz, ausente ou pessoa coletiva, sempre que o respetivo representante legal o não haja feito, quando entenda, face às circunstâncias específicas do caso concreto, que os interesses daqueles sujeitos só serão devidamente acautelados através da partilha judicial»(60).
Ora, o artigo 4.º do atual RJPI não contempla, no preceito dedicado a este pressuposto processual, a legitimidade do Ministério Público para requerer o inventário, conferindo-a, exclusivamente aos interessados diretos na partilha e a quem exerce as responsabilidades parentais, ao tutor ou ao curador, consoante os casos, quando a herança seja deferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta.
Como já foi dito, a intervenção do Ministério Público no processo de inventário anteriormente ao regime jurídico vigente configurava uma atuação de tipo oficioso na defesa do interesse público, do Estado-Coletividade, embora com reflexos nos interesses dos incapazes e baseava-se, necessariamente, na existência de norma expressa atributiva dessa legitimidade.
Reafirmando-se o que já foi dito, o Ministério Público não está legitimado a intervir oficiosamente fora dos casos ou das situações especificadas na lei, vigorando, neste domínio, o princípio da tipicidade ou da taxatividade. Como sustenta António da Costa Neves Ribeiro, "a legalidade da intervenção do Ministério Público em nome do Estado (Coletividade) supõe a necessidade da sua previsão em texto legal» e "assim se evitam intromissões abusivas e arbitrárias pouco controláveis»(61).
Concluímos, pois, não assistir, por falta de expressa previsão normativa, legitimidade para o Ministério Público requerer que se proceda a inventário e para nele intervir, como parte principal.
3 - Tratou-se de uma opção do legislador, assinalada, desde logo, na exposição de motivos da Proposta de Lei 105/XII e reafirmada na intervenção parlamentar da Ministra da Justiça, quando se refere que o novo RJPI "contempla alterações em matéria de representação de incapazes e de ausentes em parte incerta e ainda no que respeita à competência do Ministério Público no âmbito do processo de inventário».
Na dita exposição é ainda afirmado que a representação dos incapazes ou dos ausentes em parte incerta, quando a herança lhes seja deferida, "deve ser garantida por quem exerce as responsabilidades parentais, pelo tutor ou pelo curador, consoante os casos», competindo ao Ministério Público "ordenar as diligências necessárias para assegurar os direitos e interesses da Fazenda Pública».
O legislador visou, claramente, modificar o anterior regime de intervenção do Ministério Público no inventário com interessados incapazes ou ausentes, quebrando uma longa tradição existente entre nós neste domínio. Ficou consignado que essa responsabilidade impende sobre quem exerce responsabilidades parentais ou sobre quem se encontra investido no cargo de tutor ou de curador.
Este intuito ficou expresso com toda a clareza no texto da lei, mais concretamente, no artigo 4.º do RJPI, e esta solução repercutiu-se, naturalmente, na tramitação do inventário, onde se omitiram as referências a concretas intervenções do Ministério Público que constavam, quer do anterior CPC, quer da Lei 29/2009(62).
Cumpre referir que a esta solução legislativa foi objeto de algumas críticas por parte de entidades ouvidas no decurso do processo legislativo que culminou com a publicação da Lei 23/2013. Assim, foi referido que "[a] eliminação pura e simples da intervenção do Ministério Público no processo de inventário quando sejam partes incapazes ou ausentes será [...] motivo de inconstitucionalidade da Proposta de lei em apreço, pelo que deve ser tal ponto objeto de alteração»(63) e que "[s]ó uma intervenção suscitada logo desde o início do processo - na qualidade de requerente ou tendo assegurada a citação no momento inicial - permite assegurar uma defesa [pelo Ministério Público] eficaz, não sendo suficiente a comunicação da decisão final homologatória da partilha](64).
4 - Por seu lado, a doutrina também se inclina para a cessação da legitimidade do Ministério Público para requerer o inventário.
Assim, sobre esta questão, ponderam Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita:
"Se no regime anterior tal legitimidade era clara, parece-nos agora que, do cotejo da atual redação do artigo 4.º, n.º 1, do RJPI e do anterior artigo 1327.º, n.º 1, alínea b), do CPC (na redação anterior à Lei 23/2013, de 5 de março), deve concluir-se que o Ministério Público deixou de ter legitimidade para requerer o inventário, uma vez que:
A lei deixou de prever expressamente tal legitimidade (ao contrário do que sucedia com o regime pretérito), dispondo, pelo contrário, que quando a herança seja deferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta o inventário deverá ser requerido por quem exerça as responsabilidades parentais, o tutor ou o curador;
A Lei 23/2013, de 5 de março, apenas prevê a intervenção do Ministério Público com vista a assegurar os direitos e interesses da Fazenda Pública (cf. artigos 5.º e 66.º, n.º 2)»(65)
Também Maria João Gonçalves(66) entende que "no novo regime jurídico do processo de inventário, o Ministério Público deixa de ter legitimidade para requerer e intervir no processo de inventário quando a herança seja deferida a incapazes ou ausentes em parte incerta», considerando que "o artigo 4.º, n.º 1, alínea b), atribui esta responsabilidade apenas aos pais, ao tutor ou ao curador». Para esta autora, "a competência do Ministério Público aparece definida no artigo 5.º e está limitada a assegurar a defesa dos interesses da Fazenda Pública». Trata-se de solução que lhe merece críticas, pois:
"Haveria todo o interesse em manter a solução que resultava do Processo Especial de Inventário e da Lei 29/2009, de 29 de junho. Impunha-se o reconhecimento, no NRJI, do papel do Ministério Público na defesa dos interesses dos incapazes e dos ausentes, papel atribuído ao Ministério Público no respetivo Estatuto, no Código de Processo Civil ou mesmo no Código Civil, só para referir os diplomas mais significativos.
A solução ora preconizada, tal como acontece com a eliminação do controlo geral do processo por um juiz, torna a tramitação do processo de inventário mais simples, evitando a dificuldade de gestão e relação entre as magistraturas e os cartórios notariais. Ocorre que, o que se ganhará em operacionalidade prática perder-se-á em garantia dos direitos, no caso particular, dos incapazes e ausentes.
A presente opção não atende à realidade do fenómeno sucessório, onde se impõe especialmente a proteção dos incapazes e dos seus interesses»(67).
Mais cautelosa é a opinião de Carla Câmara, Carlos Castelo Branco, João Correia e Sérgio Castanheira(68), expressa em anotação ao artigo 4.º, considerando estes autores que [d]a previsão do novo regime jurídico do inventário decorre que o Ministério Público passa a ter competência para intervir no processo, nos termos previstos no artigo 5.º Todavia, deixa de estar prevista na lei a possibilidade de requerer inventários, ainda que a herança seja deferida a incapazes, a ausentes em parte incerta ou ao Estado, com a exceção referida no artigo 2102, n.º 2, b), do Código Civil: "Quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária"».
5 - Parece-nos que a norma do Código Civil em causa não credencia uma legitimidade do Ministério Público para requerer o inventário, constituindo uma referência substantiva quanto ao papel que o Ministério Público pode e deve desempenhar na defesa dos interesses dos herdeiros incapazes.
Trata-se de uma norma que, no essencial, corresponde à redação do artigo 2102.º, n.º 2, conferida, quer pelo Decreto-Lei 227/94, quer pela Lei 29/2009, e cuja razão de ser radica na eliminação do inventário obrigatório adotada pelo diploma de 1994.
Mantém-se um poder funcional do Ministério Público a exercitar na sequência da remessa pelo conservador do registo civil dos assentos de óbito lavrados no mês anterior referentes a indivíduos cuja herança seja deferida a incapazes ou ausentes em parte incerta ou ao Estado [cf. artigo 2010.º, n.º 1, alínea b), do Código do Registo Civil].
Essa competência é agora desempenhada através da realização das diligências que o Ministério Público entenda levar a cabo junto do representante legal do incapaz para este promover, desde logo, a realização da partilha para que se ponha termo a uma comunhão hereditária que pode prejudicar os interesses patrimoniais do herdeiro incapaz. Nesta intervenção extraprocessual que a lei lhe comete, o Ministério Público, com base nos elementos que entretanto tenha recolhido, por diligências efetuadas ou por informações que lhe tenham chegado, caso conclua que os interesses do herdeiro incapaz somente serão totalmente acautelados com a instauração de processo de inventário, deverá persuadir o representante legal do herdeiro incapaz para promover a partilha da herança por essa via e não através de partilha "extrajudicial».
6 - De todo o modo, o entendimento que defendesse uma eventual legitimidade do Ministério Público para requerer o inventário, assente no citado artigo 2102.º, n.º 2, b), do Código Civil, seria de afastar perante a normação contida no artigo 4.º do RJPI que, a propósito da "legitimidade para requerer ou intervir no inventário», de forma precisa e taxativa, enuncia quem a detém. Ora, o Ministério Público não está aí contemplado.
Na interpretação de uma norma vertida em preceito legal, não se pode abstrair do elemento literal já que, como dispõe o artigo 9.º do Código Civil, não pode o intérprete considerar um "pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal».
A letra ou texto da norma é o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, uma função negativa: eliminar tudo quanto não tenha qualquer apoio ou correspondência no texto. A letra é o ponto de partida, mas é também um elemento irremovível da interpretação, na procura do sentido com que a norma deve valer(69).
Ora, o legislador manifestou expressa e inequivocamente a sua vontade não contemplando a legitimidade do Ministério Público para requerer o inventário, assim pondo termo a um regime que recentemente - na Lei 29/2009 - reafirmara. Podendo discutir-se esta solução normativa, o intérprete e aplicador do direito terá de a acatar, tendo presente a liberdade de conformação do legislador democraticamente legitimado, sendo certo que, como se verá, ela não enferma de ilegalidade ou de inconstitucionalidade.
Vejamos agora se o Ministério Público, intervindo, ao abrigo da competência prevista nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.º 1, alínea c), do EMP, pode requerer o inventário, em representação dos incapazes.
Também, a nosso ver, esta possibilidade está afastada no RJPI. De facto, a alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º, expressamente atribui a legitimidade para requerer o inventário aos representantes legais dos incapazes ou ausentes em parte incerta (quem exerce responsabilidades parentais, tutor ou curador, consoante os casos), quando a herança lhes seja deferida.
Por outro lado, há que convocar o artigo 7.º do RJPI que comete a representação do incapaz a um curador especial, quando o seu representante legal concorra com ele à herança ou a ela concorram vários incapazes representados pelo mesmo representante (n.º 1). Relativamente ao ausente em parte incerta sem curadoria instituída, prevê o mesmo preceito a sua representação por curador especial (n.º 2).
Consideramos, pois, que o Ministério Público não pode atuar pela via da representação dos incapazes (legitimidade indireta), parecendo-nos manifestamente inaplicável aqui o regime contemplado no artigo 23.º do CPC.
Aliás, se se entendesse admissível a intervenção no processo de inventário do Ministério Público a título de representante dos incapazes, tal atuação teria, necessariamente, de se manter ao longo da respetiva tramitação. Estaríamos perante uma intervenção do Ministério Público fora do tribunal e em processo dirigido não por um juiz, mas pelo notário. Trata-se de solução que este corpo consultivo nunca admitiu, entendimento que se renova neste parecer(70).
7 - Concluimos, portanto, respondendo à 2.ª questão formulada, que não assiste legitimidade ao Ministério Público para requerer o inventário a qual pertence, de acordo com o disposto no n.º 1 do RJPI, aos interessados diretos na partilha e a quem exerce as responsabilidades parentais, ao tutor ou ao curador, consoante os casos, quando a herança seja deferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta.
8 - O conhecimento da questão de saber se o Ministério Público beneficia de isenção de custas no caso de se considerar que se mantém a sua legitimidade para requerer o inventário (3.ª questão) fica necessariamente prejudicado em face da resposta dada à 2.ª questão.
IX
1 - Pergunta-se se, ao Ministério Público, face ao novo regime do processo de inventário, é conferida competência para intervir no processo de inventário na fase em que este corre os seus termos nos notários ou se, pelo contrário, essa competência se cinge à fase em que o processo corre termos em juízo» (1.ª questão).
A resposta a esta questão já se encontra dada quando se concluiu(71), reafirmando-se a doutrina que vem sendo adotada neste corpo consultivo, que "a competência para o Ministério Público representar o Estado e os incapazes reporta-se aos tribunais estaduais, designadamente aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais».
Por seu lado, já se concluiu que o Ministério Público já não detém legitimidade para requerer ou para intervir no processo de inventário a título principal (artigo 4.º do RJPI).
Também se não prevê que o Ministério Público deduza intervenção acessória no processo de inventário enquanto o mesmo estiver pendente no cartório notarial, pois, como já foi dito(72), a intervenção acessória do Ministério Público pressupõe a pendência de uma causa em juízo.
Concluimos, assim, que a intervenção principal do Ministério Público, em representação judiciária do Estado-Administração e dos incapazes ou atuando oficiosamente no interesse da coletividade reporta-se aos tribunais estaduais e a sua intervenção acessória pressupõe a pendência de uma causa em juízo.
O legislador da Lei 23/2013 terá reconhecido que o "palco» em que o Ministério Público deve atuar, quer a título principal, quer acessoriamente, é o tribunal. Assim se compreende se tenham omitido na tramitação do inventário no cartório notarial e sob a condução do notário regulada no RJPI, aprovado pela Lei 23/2013, as referências ao Ministério Público que constavam da Lei 29/2009 em que figurava como um autêntico sujeito processual.
2 - Posto isto, justifica-se uma atenção ao artigo 5.º do RJPI e determinar se se mantém a conclusão que se acabou de tirar.
O preceito versa sobre a competência do Ministério Público, dispondo, recorde-se, que:
"Artigo 5.º
Competência do Ministério Público
1 - O notário remete para o Ministério Público junto do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado, por via eletrónica, todos os elementos e termos do processo que relevam para a Fazenda Pública.
2 - Compete ao Ministério Público ordenar as diligências necessárias para assegurar os direitos e interesses da Fazenda Pública, sem prejuízo das demais competências que lhe estejam atribuídas por lei.»
Na versão originária do artigo 5.º da Proposta de Lei 105/XII, a competência do Ministério Público limitava-se a ordenar as diligências necessárias para assegurar os direitos e interesses da Fazenda Pública.
É contemplada, especialmente, a situação em que o Estado, nomeadamente a Administração Tributária, pode figurar como credor da herança, havendo necessidade de os seus créditos serem relacionados como dívidas da herança. Participado tal facto nos termos estabelecidos no n.º 1 do artigo 5.º, o Ministério Público diligenciará (ordenará) por forma a que os direitos e interesses da Fazenda Pública sejam assegurados.
O elemento literal traduzido na expressão "ordenar as diligências necessárias para assegurar os direitos...», constante do citado n.º 2, leva-nos a concluir que as "diligências necessárias» devem ter lugar fora do processo de inventário já que não faz qualquer sentido que o Ministério Público determine ou ordene o que quer que seja num processo que não é por si conduzido, mas por outrem (notário ou juiz - cf. artigo 3.º do RJPI).
Nesta perspetiva, perante a remessa dos elementos pelo notário, o agente do Ministério Público deverá contactar com o departamento da Administração revelado no expediente(73) que, pelos seus próprios meios e recursos, se deverá encarregar de exercer os seus direitos e interesses no próprio processo de inventário tramitado no cartório notarial.
O segmento final do n.º 2 deste artigo "sem prejuízo das demais competências que lhe estejam atribuídas por lei» não figurava na versão originária da Proposta de Lei 105/XII, tendo sido acrescentado por todos os Grupos Parlamentares no decorrer do processo legislativo(74).
Com este aditamento, pretendeu-se significar que as competências do Ministério Público destinam-se a assegurar, não só os direitos e interesses da Fazenda Pública, mas também os das pessoas ou entidades que merecem proteção do Estado e, de entre elas, naturalmente, os incapazes. Quanto a estes, atente-se, por exemplo, na competência do Ministério Público para requerer o registo quando, em processo de inventário, lhes tiver sido adjudicado qualquer direito sobre imóveis, constante do artigo 39.º, n.º 5, do Código do Registo Predial.
Enfim, reafirmando ideia há pouco expressa, conclui-se que as diligências que o Ministério Público ordene ou determine para assegurar os direitos e interesses da Fazenda Pública ou no exercício das demais competências que lhe estejam atribuídas por lei têm lugar, necessariamente, fora do processo de inventário.
X
1 - Perante o entendimento de que "em face do estatuído nos artigos 4.º e seguintes da Lei 23/2013, de 5/3, o Ministério Público deixou de ter legitimidade para requerer inventário em representação de menores ou incapazes, nas situações em que há necessidade de partilha de herança deferida a um (ou uns) desses interessados e inação do representante legal do mesmo, importará saber se não estamos perante uma inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 69.º, n.º 1 e 219.º da Constituição da República Portuguesa, porque, ao arrepio das atribuições legais do Ministério Público na defesa dos interesses dos incapazes e ausentes, previstas naqueles artigos da CRP e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, n.os 1, alínea c), e 4 do Estatuto do Ministério Público (Lei 60/98, de 27-08), o RJPI veio impossibilitar, em regra, a defesa dos interesses dos ausentes em parte incerta e dos incapazes por parte do Ministério Público».
Se bem entendemos a questão que é formulada, suscita-se aqui a inconstitucionalidade material da solução normativa contida no artigo 4.º, n.º 1, do RJPI, interpretada no sentido, já acolhido neste parecer, de que o Ministério Público deixou de ter legitimidade para requerer inventário, havendo herdeiros incapazes, numa situação em que, constando-se a necessidade de se proceder a partilha de herança em processo de inventário, se observa uma inação do respetivo representante legal em o promover. Como parâmetros constitucionais, invocam-se os artigos 69.º, n.º 1, e 219.º da Lei Fundamental.
2 - A não previsão da legitimidade do Ministério Público para requerer o inventário em caso de herança deferida a incapazes poderá, de certa forma, ser entendida como inserida numa linha de continuidade da opção tomada pelo legislador com o Decreto-Lei 227/94, de 8 de setembro, traduzida na eliminação da obrigatoriedade de inventário no caso de existência de herdeiros menores ou outros incapazes.
Recorde-se que, nas suas versões iniciais, o artigo 2053.º do Código Civil dispunha que a herança deferida a menor, interdito, inabilitado ou pessoa coletiva só podia ser aceita a benefício de inventário judicial, estabelecendo o artigo 2102.º do mesmo diploma que o inventário judicial era obrigatório, sempre que a lei exigisse aceitação beneficiária da herança.
Por seu lado, o artigo 1326.º, n.º 2, do CPC, na versão anterior ao Decreto-Lei 227/94, conferia expressamente legitimidade ao Ministério Público para requerer o inventário, "quando seja obrigatório».
Na sequência da alteração aos citados preceitos, a partilha extrajudicial passou a ser assumida como regra, operando em caso do acordo de todos os interessados e ainda no caso de o Ministério Público, havendo herdeiros incapazes, entender que não se justifica a partilha judicial.
Assim o inventário judicial passou a ter lugar a requerimento dos interessados diretos na partilha, por inexistência de acordo dos mesmos, ou a pedido do Ministério Público, em caso de herança deferida a incapazes, ausentes em parte incerta ou pessoas coletivas (artigo 1327.º, n.º 1, do CPC de 1961), quando entendesse que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária, e ainda nos casos em que algum dos herdeiros não pudesse, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, outorgar em partilha extrajudicial» (artigo 2102.º, n.º 2, do Código Civil, na redação de 1994).
Já se fez referência à razão de ser da eliminação da obrigatoriedade do inventário, exposta na nota preambular do Decreto-Lei 227/94. Foi entendido não subsistirem já razões que, "fundadas na desconfiança com que o legislador e a Administração encaravam os cidadãos e, neste particular, os pais e representantes legais do menor - exigiam ao Ministério Público, em regra, a instauração obrigatória de inventário sempre que estava em causa a aceitação de herança por menor», acrescentando-se que "a necessidade de manutenção da integração e coesão familiares aponta iniludivelmente para que se adote o princípio de que ninguém melhor do que os pais ou representantes legais do menor para definir, em cada caso, o que, de forma mais eficaz, defende os interesses deste».
Estas considerações têm de valer também para as situações em que as heranças são deferidas a outros incapazes, representados por tutor ou por curador. Também aqui, a normalidade das coisas (quod plerumque accidit) aponta efetivamente no sentido de que será o representante legal do incapaz "quem se encontra melhor posicionado para decidir, no caso, se a respetiva partilha se deve fazer por via judicial ou extrajudicial»(75).
Competirá, portanto, aos representantes legais dos incapazes em caso de herança a estes deferida, ponderar sobre se a partilha deverá ter lugar em processo de inventário ou se poderá realizar-se por via "extrajudicial», ou seja, sem necessidade de instauração daquele processo.
3 - Vejamos se a solução normativa contida no artigo 4.º do RJPI, traduzida na eliminação da legitimidade do Ministério Público para requerer inventário havendo herdeiros incapazes, mesmo na situação em que os respetivos representantes legais não atuam apesar de se reconhecer a necessidade de se proceder a partilha da herança em processo de inventário, ofende as normas dos artigos 69.º, n.º 1 e 219.º da Constituição da República.
O artigo 69.º da Constituição da República, dispõe que:
"Artigo 69.º
Infância
1 - As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.
2 - O Estado assegura especial proteção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal.
3 - É proibido, nos termos da lei, o trabalho de menores em idade escolar.»
Como escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, "consagra-se neste artigo um direito das crianças à proteção, impondo-se os correlativos deveres de prestação ou de atividade ao Estado e à sociedade (i. é, aos cidadãos e às instituições sociais). Trata-se de um típico "direito social», que envolve deveres de legislação e de ação administrativa para a sua realização e concretização». Por outro lado, acrescentam estes autores, "este direito não tem por sujeitos passivos apenas o Estado e os poderes públicos, em geral, mas também a "sociedade" (n.º 1), a começar pela própria família»(76).
Para Jorge Miranda e Rui Medeiros, "as intervenções dos poderes públicos não só estão estritamente vinculadas à prossecução dos interesses dos filhos, como também devem ser submetidas a um rigoroso crivo de proporcionalidade»(77).
A Constituição, salientam estes autores, "não enuncia as medidas concretas em que se consubstancia a proteção das crianças em geral e, de modo particular, das crianças privadas de um ambiente familiar normal»(78), dispondo o legislador ampla liberdade de conformação nesta matéria.
O artigo 71.º da Constituição poderá também ser convocado como parâmetro da constitucionalidade da solução normativa em exame. O n.º 1 consagra que os "cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados», dispondo o n.º 2 que:
"2. O Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efetiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais ou tutores.»
A Constituição não enuncia as concretas modalidades de ação estadual de apoio aos cidadãos portadores de deficiência. Ainda segundo Jorge Miranda e Rui Medeiros, elas "podem ser as mais diversificadas, dentro da grande margem de liberdade deixada ao legislador, desde os subsídios e isenções fiscais até às prestações em espécie de serviços públicos».
Porém, advertem, "os poderes do Estado não podem [...] expropriar nem precludir os direitos e deveres dos pais e tutores" (n.º 2 in fine), sendo o papel do Estado fundamentalmente supletivo e auxiliar, mas se necessário substitutiva, daqueles»(79).
Decorre do exposto que as medidas a adotar pelo Estado de apoio às crianças, categoria que inclui os menores, e aos cidadãos portadores de deficiência, onde se incluem os interditos e os inabilitados, não se encontram tipificadas ou enunciadas de forma concreta na Constituição. O juízo relativamente à eleição das medidas de proteção a estes cidadãos mais vulneráveis cabe primária e fundamentalmente ao legislador que goza, nesta matéria, de uma ampla margem de conformação.
Não se nos afigura que a retirada da legitimidade ao Ministério Público para requerer o inventário quando a herança seja deferida a incapaz ou a ausente em parte incerta constitua violação do direito à proteção das crianças e deficientes pelo Estado consagrado nos citados artigos 69.º e 71.º da Constituição.
Consideramos também que esta solução normativa não viola o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição. Este preceito dispõe, nomeadamente, que ao Ministério Público compete defender os interesses que a lei determinar. Nesta expressão, está abrangida a intervenção do Ministério Público, de natureza social, na defesa de interesses de pessoas que, pela sua debilidade e desproteção, dela careçam. Aí se enquadra, precisamente, a representação dos incapazes pelo Ministério Público.
A citada norma constitucional remete para a lei a definição dos interesses a defender pelo Ministério Público e as condições ou pressupostos dessa intervenção. A norma constitucional não consagra qualquer reserva de competência do Ministério Público no domínio da defesa dos interesses dos menores e demais incapazes, contrariamente ao que sucede com a representação do Estado, com a defesa da legalidade democrática, com o exercício da ação penal.
Tradicionalmente, o Ministério Público vem assumindo "representação orfanológica"(80) e uma intervenção principal nos "inventários exigidos por lei» - artigo 5.º, n.º 1, alínea f), do EMP.
No entanto, como já se disse a defesa destes interesses tem lugar nos tribunais estaduais, interessando recordar que, no âmbito da representação de incapazes e ausentes, a intervenção do Ministério Público é supletiva (cf. artigo 23.º, n.º 2, do atual CPC).
Ora, parece-nos que da ilegitimidade do Ministério Público para requerer o inventário, havendo herdeiros incapazes ou ausentes, como da sua não intervenção no processo de inventário enquanto o mesmo é tramitado no cartório notarial, conduzido pelo notário, não resulta que os interesses daquelas pessoas tenham de ficar seriamente comprometidos.
4 - Na verdade, importa salientar que o Ministério Público continua a poder (dever) intervir no processo de inventário quer quando este seja remetido para os meios comuns (artigo 16.º do RJPI), quer a partir do momento da sua remessa ao tribunal para ser proferida decisão homologatória da partilha. Neste sentido, dispõe o n.º 2 do artigo 66.º que:
"2 - Quando a herança seja deferida a incapazes, menores ou a ausentes em parte incerta e sempre que seja necessário representar e defender os interesses da Fazenda Pública, o processo é enviado ao Ministério Público junto do juízo cível territorialmente competente, para que determine, em 10 dias a contar da respetiva receção, o que se lhe afigure necessário para a defesa dos interesses que legalmente lhe estão confiados.»
Por força deste preceito, o Ministério Público é chamado a assumir, em toda a plenitude, as competências que a lei e, em particular, o seu Estatuto lhe cometem em representação dos interesses do Estado e dos incapazes e ausentes em parte incerta.
Assim, previamente à prolação da decisão homologatória da partilha, deverá o magistrado do Ministério Público a quem for apresentado o processo de inventário, vindo do cartório notarial, examinar toda a tramitação processual desenvolvida para apurar se a legalidade foi respeitada e se os interesses da Fazenda Pública e dos incapazes foram devidamente salvaguardados. E, no caso de concluir que a legalidade ou esses interesses não foram respeitados, nomeadamente, quanto aos dos incapazes, por via de uma deficiente ou anómala atuação dos respetivos representantes legais, o Ministério Público deverá promover ou dizer o que se lhe oferecer e requerer que a partilha não seja homologada.
Esta atuação do Ministério Público tem por base as disposições legais, já apontadas, relativas à representação do Estado e dos incapazes, fundando-se igualmente na disposição contida no artigo 17.º, n.º 1, do RJPI da qual resulta, claramente, que, relativamente ao Ministério Público, as questões decididas no processo de inventário pelo notário não podem ter-se como definitivamente resolvidas. O que se compreende na medida em que, como já em vários momentos se afirmou, o Ministério Público não tem intervenção processual, a qualquer título ou forma, no inventário enquanto o processo estiver pendente e a ser tramitado no cartório notarial.
Cumpre ainda dar nota de que, nesta ocasião, ou seja, no momento em que o processo de inventário ingressa em juízo para ser proferida a decisão homologatória da partilha (artigo 66.º do RJPI), não deverá vedar-se ao Ministério Público a possibilidade de suscitar a remessa para os meios comuns relativamente a questão que, pela sua natureza ou pela complexidade da matéria de facto ou de direito, não deveria ter sido objeto de decisão pelo notário (cf. artigo 16.º do RJPI).
5 - Por outro lado, continua a caber ao Ministério Público competência para requerer o registo de qualquer direito sobre imóveis que tenha sido adjudicado no inventário a incapaz ou a ausente (artigo 39.º do Código do Registo Predial)
6 - O artigo 210.º, n.º 1, alínea b), do Código do Registo Civil mantém a obrigatoriedade do envio ao Ministério Público pelo conservador do registo dos assentos de óbito lavrados no mês anterior referentes a indivíduos cuja herança seja deferida a incapazes ou ausentes em parte incerta ou ao Estado.
Já nos referimos a esta disposição legal, associando-a à norma contida no artigo 2102.º, n.º 2, do Código Civil, vista como uma referência substantiva quanto ao papel que o Ministério Público pode-deve desempenhar na defesa dos interesses dos herdeiros incapazes(81).
Disse-se, então, que a competência decorrente destas disposições legais será desempenhada através da realização das diligências que o Ministério Público entenda levar a cabo junto do representante legal do incapaz para este promover, desde logo, a realização da partilha para que se ponha termo a uma situação comunhão hereditária que pode prejudicar os interesses patrimoniais do herdeiro incapaz. Nesta intervenção extraprocessual que a lei lhe comete, o Ministério Público, com base nos elementos que entretanto tenha recolhido, por diligências efetuadas ou por informações que lhe tenham chegado, caso conclua que os interesses do herdeiro incapaz somente serão totalmente acautelados com a instauração de processo de inventário, deverá persuadir o representante legal do herdeiro incapaz para promover a partilha da herança por essa via e não através de partilha "extrajudicial».
Não se ignoram as dificuldades que os magistrados enfrentam neste domínio, para determinar se o interesse dos incapazes indicados como herdeiros reclama a necessidade (ou não) da instauração do inventário. No âmbito das diligências a desenvolver, e "seja qual for o método utilizado, o que será preciso é que o Ministério Público averigue seriamente se cada um dos casos é caso, ou não, de instauração de processo de inventário»(82).
Acredita-se que, na generalidade das situações, perante o entendimento do Ministério Público de que o interesse do herdeiro incapaz exige que a partilha se processe através de inventário, o respetivo representante legal o promoverá.
Se, ao invés, não requerer o inventário e optar pela partilha "extrajudicial» por instrumento notarial, o Ministério Público pode controlar os termos da partilha para apurar se os interesses do incapaz são salvaguardados.
Na verdade, não obstante a eliminação da regra da aceitação beneficiária da herança deferida a incapazes, os respetivos representantes legais carecem de autorização do tribunal para convencionarem partilha extrajudicial, como dispõem os artigos 1889.º, n.º 1, alínea l), e 1938.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, aplicáveis aos tutores dos interditos, por força do disposto no artigo 139.º do mesmo diploma. Neste âmbito, o representante legal do incapaz quando, com base num juízo de conveniência acerca do interesse do seu representado, não requeira inventário, necessita de autorização judicial para convencionar partilha extrajudicial relativamente à herança aceite.
Ora, como pondera Carlos Lopes do Rego, "a concessão da autorização judicial para outorgar em partilha extrajudicial pressupõe que o requerente especifique os bens a partilhar e justifique que o projeto de partilha que pretende ver aprovado é razoável, na perspetiva do interesse do representado, tendo em conta a natureza e o valor dos bens que se pretende adjudicar ao incapaz». A competência para a concessão desta autorização pertence, desde o Decreto-Lei 227/2001, de 13 de outubro, ao Ministério Público [artigo 2.º, n.º 1, alínea b)]. Se considerar que os interesses do incapaz reclamam a instauração de processo de inventário, o Ministério Público recusará a pretendida autorização para a outorga de partilha extrajudicial, remetendo o requerente para a partilha através de inventário.
7 - Pode suceder que o representante do herdeiro incapaz não requeira a partilha através de inventário, nem a promova através de instrumento notarial, deixando a herança por partilhar, numa situação que pode, por várias razões, provocar sério prejuízo para o património daquele herdeiro, constituindo, ao mesmo tempo, clara violação dos deveres do seu representante, seja de quem exerce responsabilidades parentais, ou de quem exerce a tutela ou a curatela.
Nesta situação, o ordenamento faculta ao Ministério Público instrumentos jurídico-processuais para tutela dos direitos e interesses dos incapazes.
"O exercício das responsabilidades parentais é um poder funcional e, por isso, um poder vinculado e controlado»(83). Quando um dos progenitores ou ambos se encontram em situação de não poderem exercer cabalmente essas responsabilidades a lei estabelece providências destinadas à salvaguarda do interesse dos filhos, inibindo ou limitando o exercício das responsabilidades parentais.
Assim:
O Ministério Público pode requerer a inibição, total ou somente parcial, do exercício das responsabilidades parentais quando qualquer dos pais infrinja culposamente os deveres para com os seus filhos, com grave prejuízo destes (artigo 1915.º, n.os 1 e 2, do Código Civil, e artigo 194.º da Organização Tutelar de Menores), instaurando o correspondente processo tutelar cível no tribunal de família e menores [artigo 146.º, alínea i), da Organização Tutelar de Menores].
O Ministério Público pode requerer ao mesmo tribunal que sejam decretadas as providências adequadas "quando a má administração ponha em perigo o património do filho e não seja caso de inibição do exercício das responsabilidades parentais» (artigo 1920.º, n.º 1, do Código Civil e artigo 200.º da Organização Tutelar de Menores);
O Ministério Público pode, nos termos do artigo 157.º da Organização Tutelar de Menores, requerer a adoção de medidas provisórias e cautelares relativamente a matérias que devam ser apreciadas a final;
Relativamente aos tutores, quer designados para suprimento das responsabilidades parentais, quer como medida de proteção de maiores, o Ministério Público pode requerer a remoção do tutor quando este falte culposamente ao cumprimento dos deveres próprios do cargo, nos termos do disposto no artigo 1949.º do Código Civil, aplicável ao regime da interdição, ex vi do artigo 139.º do mesmo diploma, através de ação a instaurar no tribunal de família e menores, no primeiro caso [cf. artigo 146.º, alínea a), da Organização Tutelar de Menores], ou a intentar no tribunal comum por onde corre o processo de interdição (artigo 140.º do Código Civil).
8 - Conclui-se, assim, que a ilegitimidade do Ministério Público para requerer o inventário quando a herança seja deferida a incapaz ou a ausente em parte incerta, tal como a sua incompetência para intervir, a título principal ou acessório, no processo de inventário enquanto o mesmo se encontra pendente no cartório notarial, não constitui violação do direito à proteção das crianças e deficientes pelo Estado consagrado nos citados artigos 69.º e 71.º da Constituição da República ou que envolva infração ao seu artigo 219.º, n.º 1.
XI
1 - Cabe, finalmente, examinar a conformidade constitucional do RJPI enquanto se permite - lê-se no enunciado da 5.ª questão - "que o notário decida, mesmo quando seja necessário recorrer à prova testemunhal e sem qualquer controlo jurisdicional», figurino que poderá constituir "violação do princípio constitucional de reserva do juiz, previsto no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, que impede que outras entidades possam apreciar e decidir requerimentos das partes, que estejam em litígio».
2 - O RJPI, aprovado pela Lei 23/2013, tal como o anterior regime, aprovado pela Lei 29/2009, constitui a concretização de uma das medidas de descongestionamento dos tribunais judiciais, adotadas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 11 de outubro de 2007, suscetível de "melhorar os níveis de eficácia que o sistema jurídico e o acesso à justiça exigem» e com vista a "garantir uma gestão racional do sistema de justiça, libertando os meios judiciais, magistrados e oficiais de justiça para a proteção de bens jurídicos que efetivamente mereçam a tutela judicial»(84).
Recorde-se que uma das medidas de descongestionamento encontra-se referida na alínea d) do n.º 1 da citada Resolução, com o seguinte enunciado:
"Desjudicialização do processo de inventário, considerando que o tratamento pela via judicial deste processo resulta particularmente moroso, assegurando sempre o acesso aos tribunais em caso de conflito».
3 - Como já se referiu(85), em concretização dessa Resolução do Conselho de Ministros e partindo da constatação de que o processo de inventário se revelava excessivamente moroso, foi publicada a Lei 29/2009, de 29 de junho, que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário, que veio consagrar que a tramitação deste processo passasse a ser assegurada pelas conservatórias e pelos cartórios notariais, através dos respetivos profissionais, diploma que foi revogado pela Lei 23/2013, de 5 de março, que aprovou o novo e atual regime jurídico do processo de inventário.
A exposição de motivos da Proposta de Lei 105/XII, que esteve na base da Lei 23/2013, a propósito da repartição de competências para a prática de atos e termos do processo de inventário, refere a criação de um "sistema mitigado, em que a competência para o processamento dos atos e termos do processo de inventário é atribuída aos cartórios notariais, sem prejuízo de as questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, serem decididas pelo juiz do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado».
A competência do cartório notarial e do tribunal para a prática dos atos e termos do processo de inventário passa, pois, a pertencer a duas entidades: notário e juiz do tribunal de comarca.
Como dispõem os n.os 1, 4 e 7 do artigo 3.º do RJPI, sob a epígrafe "Competência do cartório notarial e do tribunal», compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra (n.º 1) e ao notário dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns (n.º 4). Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz (n.º 7).
Como ponderam Carla Câmara, Carlos Castelo Branco, João Correia e Sérgio Castanheira, "a atribuição de "competência" ao cartório notarial tem subjacente que o notário, órgão próprio da função notarial, exerce as suas funções em nome próprio e sob sua responsabilidade, com respeito pelos princípios da legalidade, autonomia, imparcialidade, exclusividade e livre escolha (artigo 10.º do Estatuto do Notariado, Decreto-Lei 26/2004, de 4 de fevereiro)(86).
Como decorre das citadas disposições do artigo 3.º do RJPI, na distribuição, em termos materiais, da competência do cartório notarial e do tribunal, "o legislador optou, segundo Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, por atribuir ao notário a competência (regra) para a prática, em geral, de todos os atos e termos do processo de inventário, concretizando especificamente quais os atos (exceções à regra) que reserva à competência do Tribunal»(87).
4 - No que respeita às competências do juiz no novo processo de inventário, pode dizer-se que lhe é atribuída uma competência própria no processo e uma função de decisor em sede de recurso(88).
4.1 - Enquanto interveniente por competência própria no processo de inventário, cabe ao juiz proferir a decisão homologatória da partilha, nos termos do artigo 66.º, n.º 1, do RJPI:
"Artigo 66.º
Decisão homologatória da partilha
1 - A decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio é proferida pelo juiz cível territorialmente competente.
2 - Quando a herança seja deferida a incapazes, menores ou a ausentes em parte incerta e sempre que seja necessário representar e defender os interesses da Fazenda Pública, o processo é enviado ao Ministério Público junto do juízo cível territorialmente competente, para que determine, em 10 dias a contar da respetiva receção, o que se lhe afigure necessário para a defesa dos interesses que legalmente lhe estão confiados.
3 - Da decisão homologatória da partilha cabe recurso de apelação, nos termos do Código de Processo Civil, para o Tribunal da Relação territorialmente competente, com efeito meramente devolutivo.»
Competirá ainda ao juiz:
Proceder à designação do cabeça de casal se todas as pessoas referidas no artigo 2080.º do Código Civil se escusarem ou forem removidas (artigo 2083.º do Código Civil);
Proferir decisão homologatória do acordo dos interessados que ponha termo ao processo de inventário na conferência, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 66.º, n.º 1, e 48.º, n.º 7, do RJPI(89).
Segundo Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, "para além dos atos que a lei especificamente comete ao Tribunal, caberá igualmente ao juiz (devendo o processo ser-lhe remetido para o efeito) proferir decisão quanto ao levantamento do sigilo bancário quando tal se revele necessário, bem como decidir as impugnações de decisões do notário que ponham termo ao processo (como é o caso de decisões que julguem procedentes exceções que ponham fim ao inventário, como sucede com a ilegitimidade, litispendência, caso julgado, entre outras)»(90).
4.2 - Enquanto juiz de recurso, compete ao juiz de primeira instância decidir o recurso:
Da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns, recurso com subida imediata e com efeito suspensivo (artigo 16.º, n.os 4 e 5, do RJPI);
Do despacho determinativo da forma da partilha (artigo 57.º, n.º 4, do RJPI).
5 - Como já se referiu, o legislador atribuiu ao notário a competência (regra) para a prática, em geral, de todos os atos e termos do processo de inventário. Nesses atos estão compreendidas quer a determinação de diligências instrutórias, quer a apreciação dos dados probatórios, quer a prolação de decisões. Ao notário compete, enfim, "dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns» (artigo 3.º, n.º 4, do RJPI).
Mas atentemos nos atos cuja competência pertence ao notário, valendo-nos, para tanto, do elenco elaborado por Carla Câmara, Carlos Castelo Branco, João Correia e Sérgio Castanheira(91):
"São atos da competência do Notário:
i) Decidir das questões prejudiciais (artigo 16.º, n.º 2, com exceção daquelas que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário (16.º, n.º 1);
ii)Decidir dos incidentes (artigo 14.º) e outras questões incidentais (v.g. decisão sobre a arguição de nulidade de citações e ou notificações (cf. artigo 6.º);
iii) Decidir das oposições e impugnações (artigo 31.º, n.º 3);
iv) Decidir das reclamações contra a relação de bens (artigo 35.º, n.º 3);
v) Decidir da remessa dos interessados para os meios comuns (artigo 16.º, n.º 1, 17.º, n.º 2, 36.º, n.º 1 e 57.º, n.º 3);
vi) Decidir da remessa para o Ministério Público de todos os elementos e termos do processo que relevam para a Fazenda Pública (artigo 5.º, n.º 1);
vii) Marcar e presidir à conferência preparatória e marcar e presidir à conferência de interessados (artigos 47.º, n.º 1 e 49.º);
viii) Determinar o adiamento daquelas conferências (artigos 47.º, n.º 5 e 49.º);
ix) Decidir da suspensão e do arquivamento do processo (9.º, n.º 4, 10.º, n.º 1, 11.º, n.os 5 e 6, 12.º, n.os 3 e 4, 16.º, n.º 2, 16.º, n.º 8, 16.º, n.º 1 e 19.º);
x) Decidir do modo como deve ser organizada a partilha (artigo 57.º, n.º 2);
xi) Nomear curadores especiais (artigo 7.º, n.º 1);
xii) Determinar a intervenção de interessado preterido (artigo 78.º, n.º 1);
xiii) Proceder à apreensão de bens pelo tempo indispensável à sua inclusão na relação de bens (artigo 27.º, n.os 4 e 5);
xiv) Decidir sobre a cumulação de inventários (artigo 18.º);
xv) Autorizar o prosseguimento de inventário suspenso (artigo 16.º, n.º 6);
xvi) Notificar os interessados para impulso do processo (artigo 19.º, n.º 1);
xvii) Praticar oficiosamente os atos em falta (artigo 19.º, n.º 2);
xviii) Fixar o valor da caução a favor de incapazes (artigo 8.º);
xix) Determinar diligências instrutórias após a dedução de oposição ao inventário (artigo 31.º, n.º 3);
xx) Determinar a avaliação de bens, cabendo-lhe nomear o perito para o efeito (artigo 33.º, n.º 2);
xxi) Decidir a adjudicação dos bens (artigo 50.º);
xxii) Decidir sobre as questões suscetíveis de influenciar a partilha e identificar os bens a partilhar (artigo 47.º, n.º 1), decidir sobre as questões que ainda o não tenham sido e que seja necessário decidir para a organização do mapa da partilha (artigo 57.º, n.º 2), bem como decidir das reclamações contra o mapa (artigo 63.º, n.º 2);
xxiii) Decidir sobre o passivo não aprovado (artigo 39.º);
xxiv) Decidir sobre a forma de pagamento do passivo aprovado/verificado se não houver acordo dos interessados (artigo 40.º);
xxv) Referenciar o montante do excesso, no caso de verificar que os bens doados, legados ou licitados excedem a quota do respetivo interessado ou a quota disponível do inventariado (artigo 60.º, n.º 1);
xxvi) Ordenar a notificação dos interessados para requererem a redução de legados ou doações inoficiosas (artigo 60.º, n.º 2);
xxvii) Decidir sobre a forma de preenchimento equitativo dos quinhões relativos a vários licitantes, podendo mandar proceder a sorteio ou autorizar adjudicação em comum na proporção que indicar (artigo 61.º, n.º 4);
xxviii) Decidir sobre nova partilha, no caso de recurso (artigo 69.º, n.º 1);
xxix) No inventário especial subsequente a justificação de ausência, determinar a prestação de caução a curador definitivo e, no caso de este a não prestar determinar, no mesmo processo, a entrega dos bens a outro curador (artigo 77.º, n.º 6); e
xxx) É detentor de competência residual. De facto, o Notário (a quem compete "dirigir todas as diligências de processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra" - artigo 39.º, n.º 4, tem competência para a tramitação de todos os atos que não estejam atribuídos por lei a outra entidade, designadamente antes da remessa do processo a tribunal.»
A opção, traduzida na desjudicialização do processo de inventário, na medida em que os atos em que ele se desenvolve estão, na sua generalidades, retirados da competência do juiz, obedeceu a um propósito de descongestionamento dos tribunais e à busca de maior celeridade perante a constatação de que tal processo "se revelava excessivamente moroso».
O legislador terá tido ainda entendido que este processo, pela sua especificidade, poderia ser tramitado com maior eficiência e celeridade num cartório notarial e sob a direção de uma entidade não judicial.
Efetivamente, a fisionomia do processo de inventário sempre foi considerada diferente da fisionomia geral das ações declarativas. ALBERTO DOS REIS criticava os que consideravam que o processo de inventário tinha natureza essencialmente administrativa, apresentando caráter mais gracioso ou voluntário do que contencioso. Escreve este autor:
"Este conceito não é exato. Não o é, em face do sistema seguido pelo Código atual, que colocou o inventário ao lado dos processos de jurisdição contenciosa e não no capítulo relativo aos processos de jurisdição voluntária; não o é, perante a análise dos próprios atos e termos do inventário.
O processo tem índole contenciosa porque nele se discutem e decidem questões sobre as quais os interessados estão em conflito»(92).
E concluía Alberto dos Reis:
"O inventário não é, como qualquer ação, um procedimento judicial promovido por determinada pessoa contra outra; não tem a significação e o alcance dum ataque dirigido contra certo adversário; por isso é que se tem, por vezes, afirmado que o inventário é um processo de índole administrativa. Afastada, por errada, esta conceção, o que fica é o seguinte: o inventário é um processo contencioso sui generis, um processo contencioso de feição particular»(93).
Sobre a natureza do processo de inventário, considera também João António Lopes Cardoso que "peca por excesso» a opinião dos que sustentam que a partilha é mais um ato de caráter administrativo do que um ato de caráter jurisdicional, ponderando:
"Certamente que o inventário pode revestir esta feição e algumas vezes a reveste, mas noutras apresenta-se como um processo contencioso nitidamente definido (-). É um processo complexo que pode revestir uma e outra natureza, consoante no seu decurso surjam ou não questões entre os interessados e a atividade jurisdicional é ou não provocada, para decidir controvérsias.
Quer dizer: se o juiz, no inventário, é solicitado para autenticar o deliberado pelos interessados, sem oposição de ninguém, pode dizer-se que ele é um processo gracioso (-); se, ao contrário, os interessados não estão de acordo, suscitam questões quanto à falta de descrição de bens, validade ou interpretação do testamento ou doação, impugnam a legitimidade própria e alheia [...] o juiz é forçado a decidir, a administrar justiça e o processo transforma-se em contencioso»(94):
Isto é, para este autor, "não pode sustentar-se com rigor que o inventário seja de natureza graciosa, nem pode atribuir-se exclusivamente natureza contenciosa»(95).
Também Domingos Silva Carvalho de Sá alude à "natureza complexa e mista» do processo de inventário (então regulado no CPC de 1961), ora tendo "uma estrutura de processo gracioso, ora de processo contencioso». E acrescenta o autor que "a função do juiz no processo de inventário, em certos momentos, é apenas a de homologar os acordos a que chegaram os interessados. Noutros momentos, essa função é verdadeiramente jurisdicional, cumprindo-lhe instruir e julgar certas questões que lhe são colocadas»(96).
Podemos caracterizar, portanto, o processo de inventário como um processo sui generis, um processo misto, de natureza administrativa e contenciosa, no qual assume particular relevo a vontade dos interessados na partilha. Importa acrescentar que os direitos que são acionados em tal processo são, em regra, livremente disponíveis, por radicarem em relações jurídicas patrimoniais.
6 - A tramitação do inventário no cartório notarial apela muito, quer-nos parecer, à interação entre o notário que a dirige e os interessados na partilha com vista à obtenção de acordos. Mas, como é evidente, o notário terá de intervir, nos momentos processuais próprios, para proferir decisões que podem afetar os interesses daqueles.
Todavia, a intervenção jurisdicional no novo processo de inventário não foi, como já foi dito, afastada. A tramitação do processo pode ser suspensa, sendo o mesmo remetido para os meios judiciais quando se suscitem questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ali ser decididas (artigo 16.º, n.º 1, do RJPI). Note-se que a remessa para os meios judiciais comuns pode ter lugar tanto por iniciativa do notário, como por iniciativa de qualquer interessado (artigo 16.º, n.º 3, do RJPI), cumprindo salientar que da decisão do notário que indefira o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns cabe recurso para o tribunal (artigo 16.º, n.º 4, do RJPI).
Esta possibilidade de remessa do processo para os meios comuns, oficiosamente ou a requerimento dos interessados, "levará a que as questões que de maior complexidade forem suscitadas nos processos de inventário continuem a ser tramitados nos tribunais, quedando-se fora destes aqueles de manifesta simplicidade que já seriam resolvidos pela via do acordo de partilha»(97).
Recorde-se ainda que cabe recurso para o tribunal do despacho determinativo da forma da partilha (artigo 57.º, n.º 4, do RJPI).
Por fim, há que sublinhar que, nos termos do disposto no artigo 66.º, n.º 1, do RJPI, a decisão homologatória da partilha compete ao juiz cível da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado.
7 - Sobre o âmbito e a extensão da intervenção judicial no momento em que é proferida a decisão homologatória da partilha, ponderam Carla Câmara, Carlos Castelo Branco, João Correia e Sérgio Castanheira:
"De facto, o inventário corre os seus trâmites no cartório notarial, até ao momento em que caiba proferir decisão homologatória da partilha. Chegado este momento, os autos transitam para o Tribunal, para que seja o juiz a proferir tal decisão, ato jurisdicional constitutivo em que culmina toda a atividade processual até então desenvolvida.
É este o momento para o Juiz aferir da validade dos atos praticados e da legalidade e regularidade do processo.
E não se diga que a tanto obsta o preceituado no artigo 17.º, n.º 1, do NRPI quando preceitua que se consideram "definitivamente resolvidas as questões que, no inventário, sejam decididas no confronto do cabeça de casal ou dos demais interessados a que alude o artigo 4.º, desde que tenham sido regularmente admitidos a intervir no procedimento que precede a decisão, salvo se for expressamente ressalvado o direito às ações competentes", na medida em que tal preceito o que pretende é obstar à invocação interpartes das mesmas questões sobre que já se pronunciaram e sobre que já foi proferida decisão fazendo, assim, precludir a possibilidade de, de novo, as mesmas serem invocadas por aquelas, por se terem definitivamente resolvidas.
Tal preceito não obsta à sindicância pelo Juiz dos atos do processo até então praticados e, sendo caso, à determinação pelo mesmo da anulação e repetição dos que tenha por contrários à lei ou violadores de garantias das partes»(98).
Mais adiante, escrevem os mesmos autores que "a decisão da partilha assenta no despacho determinativo da forma da partilha, no mapa da partilha e nas operações de sorteio», tratando-se de "uma efetiva sentença - artigo 152.º, n.º 2 do novo CPC».
Muito embora o novo RJPI não contemple a possibilidade, prevista no artigo 60.º da Lei 29/2009, de, no caso de não homologação da partilha pelo juiz, poder este propor ao notário a realização de nova partilha, consideram os autores que se acompanham que "no caso de não homologação, o juiz, de forma fundada, deverá mencionar quais os motivos que o levaram a não confirmar os atos anteriormente praticados, desencadeando-se, em sede notarial, a realização de novos atos de partilha». E, embora o juiz não possa introduzir por sua iniciativa as alterações ou modificações que entenda por convenientes, não lhe está vedada a possibilidade de enunciar "atos que, em sede notarial, devem ser praticados, ou que supra as irregularidades que aquele detete, inclusive em questões incidentais e decisões interlocutórias até então proferidas, que se tenham refletido nas operações de partilha.
Para além disso, deverá o juiz, como é óbvio, suscitar e decidir nulidades que sejam do conhecimento oficioso»(99).
No mesmo sentido, consideram Eduardo Sousa Paiva e Isabel Cabrita que:
"Caso entenda que a mesma [partilha)] não se encontra corretamente efetuada, parece-nos que o juiz deverá proferir despacho nesse sentido, apontando os lapsos de que a partilha enferma e determinando a respetiva correção. Entendimento diverso, ou seja, que o juiz não poderia sindicar tais falhas, corresponderia a concluir que o juiz estraria vinculado a homologar uma partilha erradamente efetuada, esvaziando completamente de sentido a intervenção judicial nesta fase do processo»(100).
A decisão homologatória configura-se, pois, como verdadeiro ato jurisdicional constitutivo e de validação de todos os atos praticados até aí no processo.
8 - Uma vez que é colocada a hipótese de violação do princípio da reserva do juiz nas normas do RJPI que atribuem ao notário poderes de recolha e apreciação da prova e de prolação de decisões, interessa tecer algumas considerações sobre o conceito material de jurisdição ou de função jurisdicional.
Na tarefa de densificação desse conceito, geralmente realizada a par da caracterização da função administrativa, o Tribunal Constitucional tem convocado o pensamento de Afonso Queiró, condensado no seguinte texto(101), transcrito no acórdão 963/96:
"Ao cabo e ao resto, o quid specificum do ato jurisdicional reside em que ele não apenas pressupõe mas é necessariamente praticado para resolver uma "questão de direito". Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de uma situação de facto traduzida numa "questão de direito" (na violação do direito objetivo ou na ofensa de um direito subjetivo), se atua, por força da lei, para se conseguir a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica decorrente da resolução dessa "questão de direito'', então não estaremos perante um ato jurisdicional; estaremos, sim, perante um ato administrativo.
Não é, pois, como muito bem o acentua DUGUIT, pelo lado dos efeitos que substancialmente se distinguem as duas espécies de atos jurídicos externos que no seu conjunto respetivamente constituem o exercício da função jurisdicional e da função administrativa. Pelo lado dos efeitos (declarativos, condenatórios, constitutivos ou executivos), as duas funções equivalem-se ou identificam-se. A distinção entre elas é de ordem teleológico-objetiva. Em cada caso, há que proceder à interpretação da lei, para se concluir qual é a finalidade objetiva que, com o exercício de determinada competência legal, necessariamente se realiza».
Como também se afirma no acórdão do mesmo Tribunal n.º 235/98:
"A separação real entre a função jurisdicional e a função administrativa passa pelo campo de interesses em jogo: enquanto a jurisdição resolve litígios em que os interesses em confronto são apenas os das partes, a Administração, embora na presença de interesses alheios, realiza o interesse público. Na primeira hipótese, a decisão situa-se num plano distinto do dos interesses em conflito; na segunda hipótese, verifica-se uma osmose entre o caso resolvido e o interesse público.
[...]
No quadro desta caracterização conceitual atingiu-se uma definição teleológica da função jurisdicional que atende ao desígnio da intervenção dos órgãos do poder político do Estado, desígnio que é, na função jurisdicional e não já na função administrativa, estritamente jurídico, visando a realização do direito objetivo pela composição de interesses conflituantes e não o da sua aplicação ou concretização em função de outros interesses públicos, ainda que para o efeito usando como meio a dirimição de conflitos ou litígios jurídicos»(102).
9 - Tendo presente a caracterização das funções jurisdicional e administrativa, há que reconhecer que o Estado, visando pôr termo a uma comunhão hereditária, entendeu delegar numa entidade privada - o notário - o exercício de poderes públicos, ali traduzidos, umas vezes na prática de atos administrativos, noutras vezes na prática de atos jurisdicionais.
De facto, não oferecerá duvidas de que o processo de inventário revela (ou pode revelar) situações fáctica e ou juridicamente problemáticas carecidas de uma resolução necessariamente jurisdicional, visto estarmos perante uma "definição autoritária de interesses privados».
10 - Tem sido observado o exercício de atividades materialmente reconduzíveis à jurisdição por órgãos não jurisdicionais.
José Carlos Vieira de Andrade alude, a propósito da definição da fronteira entre a administração e a jurisdição, "o "caso difícil" das sanções administrativas, designadamente das coimas aplicadas em procedimentos de contraordenações, e agora também das sanções cominadas no âmbito das atividades privadas sujeitas a regulação pública, em que as autoridades reguladoras dirimem litígios entre particulares» (103).
Também Paula Costa e Silva, sobre a concessão de poderes sancionatórios às autoridades independentes, "com preterição da competência judiciária», e sobre o recurso ao regime geral do ilícito de mera ordenação social, observa que "a prática do exercício da função judicial por órgãos não judiciais está relativamente consolidada entre nós, sendo paulatinamente acentuada», prática que, segundo a autora, "não deve tranquilizar, desde logo porque os novos decisores não estão abrangidos pelo estatuto dos magistrados»(104).
No direito da União Europeia, o Regulamento 650/2012, de 4 de julho de 2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu(105), estabelece o reconhecimento automático nos outros Estados-Membros das decisões proferidas num qualquer Estado-Membro (artigo 39.º). Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, alínea g), deste Regulamento, entende-se por decisão, "qualquer decisão em matéria de sucessões proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, independentemente da designação que lhe é dada, incluindo uma decisão sobre a fixação pelo secretário do órgão jurisdicional do montante das custas do processo».
De acordo com o disposto no n.º 2 do mesmo preceito:
"2. Para efeitos do presente Regulamento, a noção de "órgão jurisdicional" inclui os tribunais e as outras autoridades e profissionais do direito competentes em matéria sucessória que exerçam funções jurisdicionais ou ajam no exercício de uma delegação de poderes conferida por um tribunal ou sob o controlo deste, desde que essas outras autoridades e profissionais do direito ofereçam garantias no que respeita à sua imparcialidade e ao direito de todas as partes a serem ouvidas, e desde que as suas decisões nos termos da lei do Estado-Membro onde estão estabelecidos:
a) Possam ser objeto de recurso perante um tribunal ou de controlo por este; e
b) Tenham força e efeitos equivalentes aos de uma decisão de um tribunal na mesma matéria.»
11 - Vejamos se as normas do RJPI que atribuem poderes materialmente jurisdicionais ao notário, ou que podem ser interpretadas nesse sentido, ofendem o princípio da reserva do juiz ou da reserva de jurisdição, consagrado no artigo 202.º da Constituição da República:
"Artigo 202.º
Função jurisdicional
1 - Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.
2 - Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
3 - No exercício das suas funções os tribunais têm direito à coadjuvação das outras autoridades.
4 - A lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos.»
Este preceito define, no n.º 1, os tribunais como os "órgãos de soberania com competência para administrar a justiça», e identifica, no n.º 2, o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados.
Conforme referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, "diferentemente do que acontece noutros ordenamentos constitucionais, a função de dizer o direito em nome do povo é atribuída pela CRP, aos tribunais e não aos juízes. A função jurisdicional pertence, porém, aos juízes, sendo os tribunais (nos quais se incluem magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais administrativos, gestores judiciais) esquemas indispensáveis ao exercício da jurisdictio pelo juiz. Tribunal terá aqui um sentido jurídico-funcional - daí a epígrafe "função jurisdicional" - conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material ("jurisdictio" como atividade do juiz materialmente caracterizada). [...] Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (artigo 202.º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes poderão ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade)»(106).
Como se lê no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013, "o entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito».
Quanto ao âmbito do princípio da reserva de jurisdição, este acórdão dá conta de que a doutrina "vem referenciando diferentes níveis ou graus de reserva», citando J. J. Gomes Canotilho e José Carlos Vieira de Andrade.
Quanto à "admissibilidade do exercício de atividades materialmente reconduzíveis à jurisdição por órgãos não jurisdicionais», referem Jorge Miranda e Rui Medeiros que, sendo diversos os contributos doutrinais, é "visível, ainda assim, uma tendência para admitir, com grande latitude, a relativização da reserva de jurisdição»(107).
Segundo Paulo Castro Rangel:
"Com a expressão "reserva total ou quase total de jurisdição" quer significar-se que [...] aí onde se apresente um conflito de interesses ou pretensões (jurídico ou juridicamente relevante), (a) aos conflituantes é arbitrado o direito a que aquele seja resolvido (definitivamente) por um tribunal (b) e ao tribunal é atribuída uma competência indisputável para o resolver.
Mas aceitar esta conclusão não implica que a reserva assim delineada goze da mesma intensidade e tenha a mesma extensão em todos os casos e situações conflituais. Na verdade, a categoria da reserva de jurisdição não tem de ser uma categoria monolítica, com um conteúdo (em intensidade e extensão) perfeitamente "normalizado", "pronto-a-servir" a toda e qualquer situação da vida, por mais díspares que se configurem os interesses em presença. E seria até estranho que o fosse, tão naturalmente se aceita a graduação e diferenciação em intensidade e extensão da reserva de lei ou da reserva de administração (-). Aliás, isto é qualquer coisa que [...] decorre do próprio texto da Constituição. Na verdade, em alguns preceitos (v.g. artigo 27.º, n.º 2, e artigo 28.º, n.º 1), prevê-se expressamente que certos atos só possam ser praticados em consequência de uma decisão jurisdicional, o que naturalmente reclamará um regime de reserva mais exigente»(108).
Reconhecidos diferentes níveis ou graus de reserva de jurisdição, José Carlos Vieira de Andrade distingue entre uma área ou nível de reserva absoluta e uma área ou nível de reserva relativa. A reserva absoluta do juiz, traduzida num monopólio, só se impõe "no que se possa considerar o núcleo duro da função jurisdicional». Em contrapartida, "nas zonas de contacto com outras atividades, designadamente a administrativa», valerá apenas uma reserva relativa, "que obriga o legislador tão só à sujeição a reexame judicial de decisões de caráter jurisdicional que entenda (fundadamente) cometer a órgãos não judiciais, em particular a órgãos administrativos»(109).
Para este autor, "a "reserva do juiz" constitui, no seu núcleo essencial, uma reserva absoluta, mas, na sua periferia, pode bastar-se com a reserva da autoria da decisão final, em segunda instância, assegurada por procedimento adequado e pelo controlo total (reexame) em caso de impugnação», sendo que uma das "áreas típicas da reserva do juiz respeita à garantia dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, designadamente quando estejam em causa medidas restritivas desses direitos»(110).
Segundo J. J. Gomes Canotilho, os órgãos especialmente qualificados para as funções de realização concreta do direito para solucionar litígios (jurisdictio) "devem ter o monopólio da jurisdição, pois isso é uma dimensão ineliminável do princípio do Estado de direito e um corolário do princípio da divisão de poderes; o monopólio jurisdicional é hoje, seguramente, um princípio constitucional material concretizador e densificador destes princípios»(111). Prossegue o autor:
"A doutrina procura esclarecer melhor o sentido de "monopólio jurisdicional" distinguindo entre "monopólio do juiz" ou "reserva de juiz" quanto à "última palavra" e "monopólio" ou "reserva de juiz" quanto à "primeira palavra" (Monopol des letzten Wortes e Monopol des ersten Wortes).
[...].
O "monopólio da última palavra" "significa, em termos gerais, o direito de qualquer indivíduo a uma garantia de justiça, efetiva e assegurada através de "processo justo" para defesa das suas posições jurídico-subjetivas. Esta garantia de justiça tanto pode ser reclamada em casos de lesão ou violação de direitos e interesses dos particulares por medidas e decisões de outros poderes e autoridades públicas (monopólio da última palavra contra atos do Estado) como em casos de litígios entre particulares e, por isso, carecidos de uma decisão definitiva e imparcial juridicamente vinculativa» (monopólio da última palavra em litígios jurídico-privados). Alguns autores aludem aqui a reserva relativa de jurisdição (-).
"Diz-se que há um "monopólio da primeira palavra", monopólio do juiz ou reserva absoluta de jurisdição quando, em certos litígios, compete ao juiz não só a última e decisiva palavra mas também a primeira palavra referente à definição do direito aplicável a certas relações jurídicas.
A "reserva de primeira palavra" está constitucionalmente prevista nos artigos 27.º/2 e 28.º/1 referente à privação da liberdade e nos artigos 33.º/4 e 34.º/2, 36.º/6, 46.º/2, 113.º/7. Fora os casos individualizados na Constituição, o reconhecimento do monopólio da primeira palavra tende a afirmar-se quando não existe qualquer razão ou fundamento material para a opção por um procedimento não judicial de decisão de litígios. É este o caso quando estão em causa direitos de particular importância jurídico-constitucional a cuja lesão deve corresponder uma efetiva proteção jurídica. Assim, por exemplo, se em questão do foro criminal é sempre inadmissível qualquer procedimento administrativo prévio, já é discutível se esta exigência do "monopólio da primeira palavra" se aplica aos procedimentos disciplinares ou aos procedimentos sancionatórios em geral (CR, artigo 32.º/10)»(112).
12 - Acompanhando o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/2013, fora dos casos individualizados na Constituição em que há lugar a uma reserva absoluta de jurisdição, o que sucederá não apenas em matéria penal mas sempre que estejam em causa direitos de particular importância jurídico-constitucional a cuja lesão deve corresponder uma efetiva proteção jurídica, poderá admitir-se que o direito de acesso aos tribunais seja assegurado apenas em via de recurso, permitindo-se que num momento inicial o litígio possa ser resolvido por intervenção de outros poderes, caso em que se poderá falar numa reserva relativa de jurisdição ou reserva de tribunal.
O processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária e assume uma natureza específica, aí se resolvem questões e dirimem conflitos, por acordo ou mediante decisão notarial, que respeitam, em regra, a direitos patrimoniais disponíveis, pelo que não têm de estar abrangidos por uma reserva absoluta de jurisdição.
O regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei 23/2013, assegura uma efetiva intervenção judicial pois compete ao juiz do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado julgar o recurso da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns (artigo 16.º, n.º 4) e o recurso do despacho determinativo da forma da partilha (artigo 57.º, n.º 4), competindo-lhe ainda proferir a decisão homologatória da partilha (artigo 66.º, n.º 1).
Nestes termos, consideramos que as normas constantes do RJPI que preveem a prática pelo notário de atos que se caracterizam ou se podem caracterizar como materialmente jurisdicionais não contendem com o princípio da reserva jurisdicional consagrado no artigo 202.º da Constituição da República, não sendo, por isso, inconstitucionais.
XII
Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:
1.ª - De acordo com o disposto no artigo 3.º, n.os 1, 4 e 7 do regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei 23/2013, de 5 de março, compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário destinado a pôr termo à comunhão hereditária, competindo ao notário dirigir todas as diligências, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns, cabendo ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que sejam da competência do juiz;
2.ª - A competência para o Ministério Público representar o Estado e os incapazes, consagrada no artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República e nos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público (EMP), é exercida nos tribunais estaduais, designadamente nos tribunais judiciais e nos tribunais administrativos e fiscais;
3.ª - A intervenção principal e a intervenção acessória do Ministério Público, atuando em representação do Estado-Administração e dos incapazes [artigos 5.º, n.º 1, alíneas a) e c), e n.º 4, e 6.º do EMP], ou oficiosamente no interesse da Coletividade, pressupõem a pendência de uma causa em juízo, sendo deduzidas em processos pendentes nos tribunais estaduais;
4.ª - O Ministério Público não intervém, a título principal ou a título acessório, no processo de inventário enquanto o mesmo se encontra pendente e a ser tramitado no cartório notarial, sob a direção do respetivo notário, assumindo, no entanto, essa intervenção a partir do momento em que o inventário ingressa no tribunal para o exercício das competências jurisdicionais previstas no RJPI;
5.ª - As diligências que o Ministério Público entenda ordenar ou determinar para assegurar os direitos e interesses da Fazenda Pública ou no exercício das demais competências que lhe estão atribuídas por lei, na sequência da remessa de elementos prevista no artigo 5.º, n.º 1, do RJPI, devem desenvolver-se, necessariamente, fora do processo de inventário enquanto se encontra pendente no cartório notarial;
6.ª - A legitimidade que era conferida ao Ministério Público para requerer o inventário em caso de herança deferida a incapazes ou ausentes no artigo 2102.º, n.º 2, do Código Civil, na redação dada pelo Decreto-Lei 227/94, de 8 de setembro, e no artigo 1327.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil de 1961, configurava-se como sendo do tipo oficioso, não sendo exercida em representação judiciária daqueles;
7.ª - O artigo 4.º, n.º 1, do RJPI atribui a legitimidade para requerer que se proceda a inventário aos interessados diretos na partilha e a quem exerce as responsabilidades parentais, ao tutor ou ao curador, consoante os casos, quando a herança seja deferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta;
8.ª - Por falta de expressa previsão normativa, o Ministério Público deixou de ter legitimidade para requerer que se proceda a inventário, em caso de herança deferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta;
9.ª - A ilegitimidade do Ministério Público para requerer o inventário quando a herança seja deferida a incapaz ou a ausente em parte incerta, tal como a sua incompetência para intervir, a título principal ou acessório, no processo de inventário enquanto o mesmo se encontra pendente no cartório notarial, não contende com o direito à proteção das crianças e deficientes pelo Estado consagrado nos artigos 69.º e 71.º da Constituição da República, nem constitui infração ao seu artigo 219.º, n.º 1;
10.ª - O Ministério Público assume a intervenção principal ou a intervenção acessória a partir do momento em que o processo de inventário é remetido para os meios comuns, ao abrigo do disposto no artigo 16.º do RJPI, assumindo ainda, em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, e 66.º, n.º 2, do mesmo diploma, em toda a plenitude, as competências que a lei e, em particular, o seu Estatuto lhe cometem em representação, quer dos interesses do Estado, quer dos interesses dos incapazes e ausentes em parte incerta;
11.ª - Assim, e porque resulta do artigo 17.º, n.º 1, do RJPI que, relativamente ao Ministério Público, as questões decididas no processo de inventário pelo notário não podem ter-se como definitivamente resolvidas, o agente do Ministério Público, no momento em que o processo de inventário ingressa em juízo para os fins do artigo 66.º do RJPI (decisão homologatória da partilha) deverá:
a) Examinar toda a tramitação processual do inventário desenvolvida no cartório notarial para determinar se a legalidade foi respeitada e se os interesses da Fazenda Pública e dos incapazes foram devidamente salvaguardados;
b) Concluindo que a legalidade ou os interesses dos incapazes não foram respeitados, nomeadamente, quanto a estes últimos, por uma eventual atuação deficiente dos respetivos representantes legais, o Ministério Público deverá promover ou dizer o que se lhe oferecer e requerer a não homologação da partilha.
12.ª - A norma contida no artigo 2102.º, n.º 2, do Código Civil constitui uma referência substantiva quanto ao poder funcional do Ministério Público relativamente à defesa dos interesses dos incapazes a quem seja deferida a herança;
13.ª - Do citado artigo 2102.º, n.º 2, do Código Civil e da disposição contida no artigo 210.º, n.º 1, alínea b), do Código do Registo Civil, que mantém a obrigatoriedade do envio ao Ministério Público pelo conservador do registo civil de certidão dos assentos de óbito lavrados no mês anterior referentes a indivíduos cuja herança seja deferida a incapazes ou ausentes em parte incerta ou ao Estado, decorre uma específica incumbência para o Ministério Público, traduzida na realização das diligências que se entenda levar a cabo junto dos representantes legais dos incapazes para a realização da partilha através de processo de inventário por ter concluído que os interesses do herdeiro incapaz somente serão acautelados com a instauração do mesmo;
14.ª - Se o representante legal do incapaz não requerer o inventário e optar pela partilha através de instrumento notarial, terá que obter previamente autorização do tribunal, como dispõem os artigos 1889.º, n.º 1, alínea l), e 1938.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, aplicáveis aos tutores dos interditos, por força do disposto no artigo 139.º do mesmo diploma, pertencendo ao Ministério Público a competência para a concessão dessa autorização, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 227/2001, de 13 de outubro;
15.ª - No âmbito desse processo, a autorização para o representante legal do incapaz convencionar partilha "extrajudicial» deverá ser recusada se o Ministério Público considerar que a satisfação do interesse do incapaz reclama a instauração de processo de inventário;
16.ª - Na hipótese de o representante do herdeiro incapaz, em violação dos deveres próprios do cargo, não requerer a partilha através de inventário, nem a promover por instrumento notarial, deixando a herança por partilhar, o que pode provocar sério prejuízo para a esfera patrimonial daquele herdeiro, o Ministério Público pode promover as providências que se afigurem adequadas para a salvaguarda do interesse do incapaz, nomeadamente, consoante o caso:
a) Requerer a inibição, total ou somente parcial, do exercício das responsabilidades parentais (artigo 1915.º, n.os 1 e 2, do Código Civil, e artigo 194.º da Organização Tutelar de Menores);
b) Requerer que sejam decretadas as providências adequadas "quando a má administração ponha em perigo o património do filho e não seja caso de inibição do exercício das responsabilidades parentais» (artigo 1920.º, n.º 1, do Código Civil e artigo 200.º da Organização Tutelar de Menores);
c) Requerer, nos termos do artigo 157.º da Organização Tutelar de Menores, a adoção de medidas provisórias e cautelares adequadas;
d) Requerer a remoção do tutor, nos termos do disposto no artigo 1949.º do Código Civil, aplicável ao regime da interdição, ex vi do artigo 139.º do mesmo diploma, através de ação a instaurar no tribunal de família e menores, no primeiro caso [cf. artigo 146.º, alínea a), da Organização Tutelar de Menores], ou a intentar no tribunal comum por onde corre o processo de interdição (artigo 140.º do Código Civil);
17.ª - A atribuição da competência ao cartório notarial para o processamento do inventário tem subjacente a natureza específica desse processo, a necessidade de descongestionar os tribunais e a convicção de que o respetivo órgão - o notário - exercerá as suas funções com respeito pelos princípios da legalidade e da imparcialidade consagrados no artigo 10.º do Estatuto do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 26/2004, de 4 de fevereiro;
18.ª - A intervenção jurisdicional no processo de inventário não está afastada na medida em que cabe ao juiz cível da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado, enquanto interveniente por competência própria no mesmo, conhecer dos recursos das decisões do notário que indefiram o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns e do despacho determinativo da forma da partilha, nos termos dos artigos 16.º, n.º 4 e 57.º, n.º 4, do RJPI, respetivamente, competindo-lhe ainda proferir a decisão homologatória da partilha, nos termos do artigo 66.º, n.º 1, do mesmo diploma;
19.ª - Fora dos casos individualizados na Constituição em que há lugar a uma reserva absoluta de jurisdição, o que sucederá sempre que estejam em causa direitos de particular importância jurídico-constitucional a cuja lesão deve corresponder uma efetiva proteção jurídica, poderá admitir-se que o direito de acesso aos tribunais seja assegurado apenas em via de recurso, permitindo-se que num momento inicial o litígio possa ser resolvido por intervenção de outros poderes (reserva relativa de jurisdição);
20.ª - O processo de inventário, destinado a pôr termo à comunhão hereditária, assume uma natureza específica, aí se resolvendo questões e dirimindo conflitos, por acordo ou mediante decisão notarial, que respeitam, em regra, a direitos patrimoniais disponíveis, pelo que não têm de estar abrangidos por uma reserva absoluta de jurisdição;
21.ª - O RJPI assegura uma efetiva intervenção jurisdicional, traduzida no exercício de competências próprias referidas na conclusão 11.ª, sendo que compete sempre ao juiz proferir a decisão homologatória da partilha (artigo 66.º, n.º 1);
22.ª - As normas constantes do RJPI que preveem a prática pelo notário de atos que se caracterizam, ou que podem ser caracterizados, como materialmente jurisdicionais não contendem com o princípio da reserva jurisdicional consagrado no artigo 202.º da Constituição da República, não sendo, por isso, inconstitucionais.
Este parecer foi votado na sessão do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 10 de abril de 2014.
Maria Joana Raposo Marques Vidal - Manuel Pereira Augusto de Matos (relator) - Fernando Bento - Maria Manuela Flores Ferreira (com voto de vencida em anexo) - Paulo Joaquim da Mota Osório Dá Mesquita - Alexandra Ludomila Ribeiro Fernandes Leitão.
Maria Manuela Flores Ferreira - Votei parcialmente vencida nos termos e pelas razões que a seguir sinteticamente se indicam.
1 - Desde logo, afigura-se-me não se poder concluir que o novo regime jurídico do processo de inventário não coloca questões de conformidade constitucional.
Com efeito, aquele modelo parece partir da ideia de inexistência de conflito de interesses no processo de inventário(113), o que, pese embora a sua natureza complexa, não corresponde à realidade.
Aliás, quando não há conflito ou a herança não deva ser aceite a benefício de inventário, os interessados têm ao seu dispor a partilha através de instrumento notarial.
Por outro lado, há que notar que não se está perante um meio alternativo de processo de inventário. Isto é, o regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei 23/2013, de 5 de março, é o único consagrado no ordenamento jurídico para proceder a inventário, não se trata, pois, de um modelo optativo(114).
E não se fez a desjudicialização de atos de cariz administrativo ou técnico, antes atribuiu-se ao notário também a prática de atos materialmente jurisdicionais em termos tais, devendo aqui considera-se também as decisões interlocutórias, que não se vê onde se poderá buscar a competente legitimação.
Assim sendo, a tramitação do processo de inventário no cartório suscita-nos dúvidas em vários aspetos por violação do princípio de reserva do juiz(115).
Esta matéria, naturalmente, que também terá implicações na atuação do Ministério Público.
De todo o modo, e independentemente daquela problemática, que não vamos aprofundar, divergimos da posição assumida no Parecer quanto à intervenção do Ministério Público.
2 - Antes do mais, importa sublinhar que, conquanto no regime jurídico do processo de inventário (RJPI) se tenha verificado uma acentuada desjudicialização, não se desjurisdicionalizou o processo de inventário(116).
Cabe também frisar que as normas constantes do artigo 5.º do RJPI sofreram durante o procedimento legislativo uma alteração significativa.
Com efeito, apesar do o artigo 5.º já na Proposta de Lei 105/XII ter a epígrafe "Competência do Ministério Público", o seu texto reportava-se apenas à defesa dos direitos e interesses da Fazenda Pública.
Ora, ao seu n.º 2 viria a acrescentar-se o segmento "sem prejuízo das demais competências que lhe estejam atribuídas por lei».
Este acrescento é o reconhecimento expresso de que se mantêm as atribuições do Ministério Público, não se cingindo portanto o seu papel à defesa dos interesses da Fazenda Pública.
Poder-se-á até dizer que tal não seria necessário(117), mas resulta, com certeza, mais claro o texto legal, dando-se uma outra amplitude ao preceito, de acordo, aliás, com a própria epígrafe(118).
2.1 - Dito isto, atentemos melhor na intervenção do Ministério Público.
Não se ignoram as modificações verificadas em matéria de inventário após 1994 largamente explanadas no texto do Parecer e de que agora se beneficia, em especial, como é óbvio, o novo RJPI a que se refere a consulta.
E antes de prosseguir não posso deixar de aludir ao que me parece ser uma contradição do Parecer. Por um lado, refere-se, e bem, que o Ministério Público atua junto dos tribunais, mas por outro, no que ao inventário respeita, deverá entender-se que apenas lhe está destinada uma atividade "informal" com vista a desencadear o processo de inventário pelos representantes legais.
Vejamos então.
2.1.1 - Impõe-se, desde logo, convocar o n.º 2 do artigo 2102.º do Código Civil, cujo teor, recorde-se, é o seguinte:
"2 - Procede-se à partilha por inventário:
a) Quando não houver acordo de todos os interessados na partilha;
b) Quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária;
c) Nos casos em que algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, intervir em partilha realizada por acordo.»(119)
Ora, na alínea b) atribui-se ao Ministério Público a competência para determinar se no caso concreto a partilha se deve fazer por inventário.
E desta norma de natureza substantiva haverá, a nosso ver, que retirar as devidas consequências processuais.
Refira-se que no caso da alínea c) deverá sempre proceder-se a inventário.
Estas normas do Código Civil são aliás, apoiadas pela alínea b) do n.º 1 do artigo 210.º do Código do Registo Civil, que estabelece que o conservador do registo civil deve enviar ao Ministério Público junto do tribunal competente para as finalidades previstas no regime jurídico de inventário os assentos (sic) de óbito lavrados no mês anterior referentes a indivíduos cuja herança seja deferida a incapazes ou ausentes em parte incerta ou ao Estado.
Havendo, ainda, que ter presente o estabelecido no artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 3.º e 5.º do Estatuto do Ministério Público, e não esquecendo o último segmento do n.º 2 do artigo 5.º do RJPI, entendo que o Ministério Público pode/deve requer inventário nas hipóteses das alíneas b) e c) do artigo 2102.º do Código Civil.
2.1.2 - Invoca-se, em oposição e este entendimento, a norma do artigo 4.º do RJPI.
Porém, este preceito não é mais do que a aplicação e adaptação ao inventário da regra geral de legitimidade constante do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo Civil(120) e bem assim do que relativamente ao suprimento da incapacidade estabelece o artigo 16.º daquele Código(121).
É certo que no RJPI não se referencia o Ministério Público.
Tal poderá levar a afastar a intervenção do Ministério Público em nome próprio - intervenção principal oficiosa -, como acontecia tradicionalmente no processo de inventário(122).
De novo, não se ignora a mudança de paradigma do RJPI, mas, face ao que acima se disse, afigura-se-nos que não está reservado ao Ministério Público uma atuação informal, embora conduzindo eventualmente às providências referidas na 16.ª conclusão do Parecer.
Assim, na hipótese da alínea b) do n.º 2 do artigo 2102 do Código Civil, se o representante do incapaz não requerer inventário(123), o Ministério Público poderá fazê-lo em sua representação (cf. também a alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º e a alínea c) do n.º 1 do artigo 5.º, ambos do Estatuto do Ministério Público).
Aliás, em algumas situações, tal será mesmo recomendado, não só porque as providências referidas na conclusão 16.ª do Parecer serão medidas extremas(124), como o desencadear o inventário poderá, de imediato, evitar consequências nefastas para os interesses do incapaz.
Acresce que mal se compreenderia que o Ministério Público requeira o registo quando em processo de inventário for adjudicado a incapaz ou ausente em parte incerta qualquer direito sobre imóveis (cf. n.º 5 do artigo 39.º do Código do Registo Predial) e não possa requerer o inventário.
O que se passa é, ao invés, que se não existisse aquela norma do Código do Registo Predial faltaria a base legal para o Ministério Público requerer o registo.
E poderia ter sido essa a solução legal, restando ao Ministério Público no caso de inércia do representante legal desencadear as providências a que alude a supra referida conclusão 16.ª
Ora, por tudo o que já se disse, a unidade do sistema reclama, em nossa opinião, justamente, que o Ministério Público possa requerer o inventário.
2.1.3 - Entendo, portanto, que o Ministério Público, nas hipóteses das alíneas b) e c) do artigo 2102.º do Código Civil, pode, sendo caso disso, requerer o inventário em representação dos incapazes ou dos ausentes(125).
De todo o modo, importará, hoje, como acontecia já nos modelos anteriores do processo de inventário, que, no decurso do processo, a representação imediata dos interesses dos incapazes e dos ausentes caberá aos representantes referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do RJPI.
3 - Em síntese, e sem o aprofundamento que a matéria exigia mas que a economia do voto de vencido dificulta, para além da questão da conformidade constitucional do RJPI, discordo do Parecer por considerar, nos termos acima descritos, que o Ministério Público pode requerer inventário em representação dos incapazes ou dos ausentes.
(1) O parecer foi solicitado pelo ofício n.º 3004/2014 - Proc.º n.º 09/2008 - Lº 115, de 5 de fevereiro de 2014, tendo sido distribuído por despacho proferido no dia subsequente.
(2) Informação n.º GA140030 - Proc.º n.º 9/2008 - L.º 115, de 28 de janeiro de 2014.
(3) Dr. João Fernando Ferreira Pinto.
(4) Dr. Vinício Ribeiro.
(5) Os trechos transcritos pertencem ao citado parecer.
(6) J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, p. 602.
(7) Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, 1991, p. 224.
(8) Entrada "Ministério Público», Dicionário Jurídico da Administração Pública, volume V, Lisboa, 1993, p. 541. V. deste autor, Em Nome do Povo, Coimbra Editora, 1999, pp. 102-103.
(9) Loc. cit., p. 542.
(10) Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, pp. 207-208. Anotação ao artigo 219.º de José Lobo Moutinho.
(11) Cf., com referências doutrinais, os pareceres n.os 160/2001, de 26 de setembro de 2003 (ponto II, 3.2.), 131/2001, de 4 de janeiro de 2002 (ponto 4.1.), 114/2003, de 11 de março de 2004 (Diário da República, 2.ª série, n.º 134, de 14 de julho de 2005), 31/2009, de 16 de setembro de 2010 (Diário da República, 2.ª série, n.º 216, de 8 de novembro de 2012).
(12) Aprovado pela Lei 47/86, de 15 de outubro, editada como "Lei Orgânica do Ministério Público», retificada pela Declaração de Retificação n.º 20/98 (Diário da República, 1.ª série, de 2 de novembro de 1998), e alterada pelas Leis n.os 2/90, de 20 de janeiro, 23/92, 20 de agosto, 10/94, de 5 de maio, 33-A/96, de 26 de agosto, 60/98, de 27 de agosto (que passou a adotar a designação de Estatuto do Ministério Público), 42/2005, de 29 de agosto, 67/2007, de 31 de dezembro, 52/2008, de 28 de agosto, 37/2009, de 20 de julho, 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 9/2011, de 12 de abril.
(13) Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, cit., pp. 216-217.
(14) No artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da primeira Lei Orgânica do Ministério Público (Lei 39/78, de 5 de julho), dispunha-se competir especialmente ao Ministério Público "Representar o Estado e as pessoas e entidades a quem o Estado deva proteção».
(15) Aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de fevereiro.
(16) Aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de junho.
(17) Sobre estes tópicos, v. Carlos Lopes do Rego, "Atribuições do Ministério Público no âmbito da jurisdição civil", Justiça - Boletim SMMP, 5/88 - junho, pp. 21 e segs., e "A intervenção do Ministério Público na área cível e o respeito pelo princípio da igualdade de armas", O Ministério Público a Democracia e a Igualdade dos Cidadãos, Cadernos da Revista do Ministério Público - 5.º Congresso do Ministério Público, Edições Cosmos, pp. 81 e segs., António da Costa Neves Ribeiro, O Estado nos Tribunais, Intervenção Cível do Min. Público em 1.ª Instância, 2.ª edição (Texto revisto e atualizado), Coimbra Editora, 1994, pp. 23 e segs., Cunha Rodrigues, Em Nome do Povo, cit., pp. 155-158, e Paula Marçalo, Estatuto do Ministério Público Anotado, Coimbra Editora, 2011, pp. 53 e segs..
(18) "A intervenção do Ministério Público na área cível e o respeito pelo princípio da igualdade de armas", O Ministério Público a Democracia e a Igualdade dos Cidadãos, cit., p. 81.
(19) Citou-se Carlos Lopes do Rego, ob. cit., na nota anterior, p. 82.
(20) A intervenção do Ministério Público na área cível e o respeito pelo princípio da igualdade de armas", O Ministério Público a Democracia e a Igualdade dos Cidadãos, cit., p. 83, e "Atribuições do Ministério Público no âmbito da jurisdição civil", Justiça - Boletim SMMP, cit., p. 22. Neste sentido, v. também António da Costa Neves Ribeiro, O Estado nos Tribunais, Intervenção Cível do Min. Público em 1.ª Instância, ob. cit., p. 29, e Bessa Pacheco e Simas Santos, "Representação do Estado pelo Ministério Público" (Breves notas), Revista do Ministério Público, ano 1, vol. 2, p. 186.
(21) "Representação do Estado português em ações cíveis", Revista do Ministério Público, 131, Julho-Setembro 2012, pp. 19-20 e 43. No mesmo sentido, Alexandra Leitão, "A representação do Estado pelo Ministério Público", Julgar, n.º 20, p. 207.
(22) Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 3.ª edição, com a colaboração de Luís Fábrica, Carla Amado Gomes e J. Pereira da Silva, Almedina, p. 220.
(23) Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Tomo I, 10.ª edição (reimpressão), Almedina, Coimbra, 1980, p. 186.
(24) Diário da República, I-A série, de 5 de janeiro de 1996.
(25) Correspondente ao artigo 194.º, alínea b) do anterior CPC. Acompanhou-se neste ponto Carlos Lopes do Rego, "Atribuições do Ministério Público no âmbito da jurisdição civil", Justiça - Boletim SMMP, cit., p. 23 (nota 6).
(26) "A intervenção do Ministério Público na área cível e o respeito pelo princípio da igualdade de armas", O Ministério Público a Democracia e a Igualdade dos Cidadãos, cit., p. 88.
(27) Idem, p. 89.
(28) V. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de abril de 1987 (Boletim do Ministério da Justiça, 366-493).
(29) V. Carlos Lopes do Rego, "A intervenção do Ministério Público na área cível e o respeito pelo princípio da igualdade de armas", O Ministério Público a Democracia e a Igualdade dos Cidadãos, cit., p. 86.
(30) Acompanha-se Carlos Lopes do Rego, "Intervenção acessória do Ministério Público no âmbito do processo civil", O Ministério Público numa Sociedade Democrática, Livros Horizonte, 1984, pp. 134147.
(31) Ob. cit. na nota anterior, p. 141.
(32) Sobre como se processa a intervenção acessória do Ministério Público, v. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2013 - 6.ª Edição, Almedina, pp. 109-112.
(33) De 11 de março de 2004 (Diário da República, 2.ª série, n.º 134, de 14 de julho de 2005 - ponto 9).
(34) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º volume, p. 121).
(35) J. A. Dimas de Lacerda, ["A Revista do Ministério Público e a reforma do contencioso administrativo", Revista do Ministério Público, Ano 25, Jan/Mar 2004].
(36) Seguimos, neste passo, de perto o parecer do Conselho Consultivo n.º 74/91, ponto V, 2.5.
(37) Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. 1, 2.ª edição (5.ª reimpressão), Almedina, p. 604
(38) Além disso, a competência é imodificável e é irrenunciável e inalienável. Cf. também sobre a matéria, João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, pp. 117-118.
(39) Diogo Freitas do Amaral, ob. cit., p. 608; a regra de que a competência não se presume tem - acrescenta este autor - a exceção da figura da competência implícita: é implícita a competência que apenas é deduzida de outras determinações legais ou de princípios gerais do Direito público, como por ex., "quem pode o mais pode o menos»; "toda a lei que impõe a prossecução obrigatória de um fim permite o exercício dos poderes minimamente necessários para esse objetivo» (p. 610).
(40) Cf. o parecer 119/82 e Alberto dos Reis, Organização Judicial, Coimbra, 1905, p. 276.
(41) Cunha Rodrigues, [Entrada "Ministério Público», Dicionário Jurídico da Administração Pública, volume V, Lisboa, 1993, p. 560].
(42) De 21 de abril de 2005 (Diário da República, 2.ª série, n.º 169, de 2de setembro de 2005).
(43) Conclusão 2.ª
(44) De 26 de janeiro de 2012 (Diário da República, 2.ª série, n.º 198, de 12 de outubro de 2012).
(45) A propósito do âmbito da representação do Estado, mencionam-se, para além dos pareceres n.os 114/2003 e 10/2005, já referidos, os pareceres n.os 171/80, de 18 de dezembro, e 3/1981, de 8 de outubro, analisou-se a questão de o Ministério Público ter ou não o exclusivo da representação do Estado em juízo, tendo-se concluído no sentido de ter consagração constitucional a competência exclusiva do Ministério Publico para efeito de tal representação. Refira-se que "Não tendo tal doutrina merecido acolhimento por parte da Comissão Constitucional [Parecer 8/82, de 18 de março de 1982 (Pareceres da Comissão Constitucional, 19.º Volume, Lisboa, INCM, 1984, pp. 3 e ss.)], viria subsequentemente a ser alterada a redação do artigo 20.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, permitindo que lei especial possa prever o patrocínio por mandatário judicial próprio [Tal alteração foi introduzida pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de dezembro].
Citam-se ainda:
O parecer 119/82, de 14 de outubro [publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 139, de 20 de junho de 1983], onde se concluiu que "não compete ao Ministério Publico representar o Estado junto de tribunais estrangeiros, pelo que o cumprimento das cartas rogatórias para citação ou notificação do Estado Português, sem individualização da pessoa ou entidade a citar ou a notificar, extraídas de ações cíveis contra este intentadas em tribunais estrangeiros, deve ser efetuado na pessoa do Primeiro-Ministro, como representante do Governo».
O parecer 74/1991, de 21 de novembro [publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 116, de 20 de maio de 1992], em que se concluiu que "a lei não atribui ao Ministério Público competência para representar o Estado Português nas ações emergentes de contratos de investimento estrangeiro intentadas nos tribunais arbitrais, sendo o mesmo neles representado pelo Primeiro-Ministro ou pelo Ministro que aquele designar».
O parecer 160/2001, de 26 de setembro de 2003, em que se concluiu que "o Estado é representado pelo Ministério Público quando intervenha como parte, em processos próprios dos tribunais tributários, na defesa dos seus interesses decorrentes da qualidade de proprietário de bens integrados no seu domínio privado, tendo a mesma lugar quando legalmente admitida a intervenção processual do Estado e no respeito das instruções específicas formuladas pelo Ministro da Justiça que sejam conformes à lei».
(46) Frisado agora.
(47) Estabelecia o n.º 1 do artigo 1326.º do CPC (versão original) que:
"Artigo 1326.º
(Função do inventário. Legitimidade para o requerer)
1 - Aquele que pretenda pôr termo à comunhão hereditária requererá que se proceda a inventário, juntando logo documento comprovativo do óbito do autor da herança e indicando quem deve, nos termos da lei civil, servir como cabeça de casal.
(48) Partilhas Judiciais, volume I, 3.ª edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1979, p. 16.
(49) Ob. cit., p. 32.
(50) Regime que é aplicável aos tutores dos interditos (artigo 139.º do Código Civil). A alteração introduzida aos citados artigos 1889.º, alínea l) e 1938, alínea c), consistiu no aditamento da expressão "ou convencionar partilha extrajudicial». O regime poderá ainda ser aplicável, por força das disposições conjugadas dos artigos 156.º e 139.º do Código Civil, ao curador do inabilitado a quem tenha sido atribuído na sentença de inabilitação poderes de representação quanto à administração dos bens do inabilitado. Nesta situação, sendo a representação a forma de suprimento da incapacidade, o curador terá requerer ao tribunal a autorização para a prática de certos atos tal como sucede com os representantes dos menores e dos interditos (v. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 3.ª edição, revista e atualizada, Universidade Católica Editora, p. 349.
(51) O processo (de jurisdição voluntária) para autorização judicial de certos atos encontrava-se previsto no artigo 1439.º do CPC de 1961, revogado pelo Decreto-Lei 272/2001, de 13 de outubro, diploma que veio a atribuir ao Ministério Público a competência exclusiva para as decisões relativas a pedidos de autorização para a prática de atos pelo representante legal do incapaz, quando legalmente exigida - artigo 2.º, n.º 1, alínea b).
(52) Do Inventário - Descrever, Avaliar e Partir, 6.ª Edição, Revista e Atualizada, Almedina, p. 25. V. também França Pitão, Processo de Inventário (Nova Tramitação), 5.ª Edição, Atualizada e Aumentada, Almedina, p. 19.
(53) Diário da República, 1.ª série, n.º 313, de 6 de novembro de 2007.
(54) A entrada em vigor desta lei foi fixada para o dia 18 de janeiro de 2010, nos termos do seu artigo 87.º, n.º 1, data que, pela Lei 1/2010, de 15 de janeiro, foi diferida para 18 de julho de 2010. Entretanto, a Lei 44/2010, de 3 de setembro, alterou aquele artigo 87.º, n.º 1, da Lei 29/2009, o qual passou a dispor que "a presente lei produz efeitos 90 dias após a publicação da portaria referida no n.º 3 do artigo 2.º». Ao mesmo tempo, o artigo 3.º da citada Lei 44/2010 determinou a sua produção de efeitos "desde o dia 18 de julho de 2010». Aquela portaria não chegou a ser publicada, pelo que o novo regime do inventário, aprovado pela Lei 29/2009 não produziu os seus efeitos, conforme acórdão do Tribunal Constitucional n.º 327/2011, acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos: "Ao determinar que o novo regime do inventário só produz efeitos 90 dias após a publicação de uma portaria, o legislador adiou, mais uma vez, a sua efetiva entrada em vigor, mantendo-se entretanto aplicável aos processos de inventário o regime anterior à Lei 29/2009, de 29 de junho, o qual atribui aos tribunais judiciais, rectius, aos tribunais de família onde os haja instalado, a competência para tramitar os processos de inventário».
(55) Igual redação foi dada ao artigo 2012.º, n.º 2, alínea b), do Código Civil.
(56) Supra II.1.
(57) A Portaria 278/2013, de 26 de agosto, regulamenta algumas das soluções normativas do RJPI, aprovado pela Lei 23/2013.
(58) Publicada no Diário da Assembleia da República (DAR), 2.ª série A, de 26 de outubro de 2012. Encontram-se disponíveis, em PDF, na página da Assembleia da República - Atividade parlamentar, referente ao processo legislativo iniciado com a citada Proposta de Lei 105/XII - um conjunto de pareceres solicitados: nomeadamente do Conselho Superior do Ministério Público e aditamento (Nota sobre a proposta de lei que altera o regime legal do inventário, elaborada pela Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa), do Conselho Superior da Magistratura, da Ordem dos Advogados, da Ordem dos Notários, da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. A discussão na generalidade está documentada no DAR, 1.ª série, de 15 de dezembro de 2012.
(59) Dispunha tal preceito que:
"2 - Procede-se ainda a inventário judicial quando o Ministério Público o requeira, por entender que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária e ainda nos casos em que algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, outorgar em partilha extrajudicial.»
(60) Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 1999, p. 696.
(61) O Estado nos Tribunais ..., cit., p. 241.
(62) Assim, previa-se, nomeadamente, a citação do Ministério Público (artigos 1341.º, n.º 1, do CPC e 25.º da Lei 29/2009), a possibilidade de deduzir oposição ao inventário (artigos 1343.º do CPC e 27.º, n.º 1, da Lei 29/2009), a reclamação contra a relação de bens (artigos 1348.º do CPC e 29.º da Lei 29/2009), a sua concordância quanto à composição dos quinhões (artigos 1353.º do CPC e 35.º da Lei 29/2009), a reclamação contra o valor atribuído aos bens (artigos 1362.º do CPC e 45.º, n.º 1, da Lei 29/2009), o pedido de anulação da licitação (artigos 1372.º do CPC e 53.º, n.º 1, da Lei 29/2009), a forma da partilha (artigo 1373.º do CPC).
(63) Parecer elaborado pelo Gabinete de Estudos e Observatório dos Tribunais da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.
(64) Nota sobre a Proposta de lei que aprova o Regime Jurídico do Processo de Inventário, elaborada pela Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, emitida no âmbito do Conselho Superior do Ministério Público.
(65) Manual do Processo de Inventário à Luz do Novo Regime Aprovado pela Lei 23/2013, de 5 de março, e Regulamentado pela Portaria 278/2013, de 26 de agosto, Coimbra Editora, p. 53.
(66) "O novo regime do processo de inventário", Disponível em http://www.oa.pt/Conteudos.
(67) Loc. cit.
(68) Regime Jurídico do Processo de Inventário Anotado, Almedina, 2013, pp. 42-43.
(69) J. Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 21.ª reimpressão, Almedina, 2013, pp. 182 e 189.
(70) Supra VI.2. e VII.6.
(71) Supra VI.2.
(72) Supra IV.2.
(73) A Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), que integra a administração direta do Estado, no âmbito do Ministério das Finanças, nos termos do artigo 4.º do Decreto-Lei 117/2011 (Lei Orgânica do Ministério das Finanças), tem por missão assegurar a gestão integrada do património do Estado, tendo como atribuições, entre outras, adquirir e administrar os ativos patrimoniais do Estado [artigo 13.º, n.os 1 e 2, alínea d), do Decreto-Lei 117/2011 e artigo 2.º do Decreto-Lei 156/2012, de 18 de julho]. De acordo com o disposto no artigo 5.º da Portaria 229/2013, de 18 de julho, tais competências serão exercitadas pela Direção de Serviços de Gestão Patrimonial, uma das unidades orgânicas da DGTF.
(74) V. Relatório da discussão e votação na especialidade da Proposta de Lei 105/XII.
(75) Do preâmbulo do Decreto-Lei 227/94.
(76) Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, p. 869.
(77) Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, p.708 (anotação de Rui Medeiros).
(78) Idem, ibidem.
(79) Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, cit., pp. 881-882.
(80) Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, cit., p. 217.
(81) Supra VIII.5.
(82) Domingos Silva Carvalho de Sá, ob. cit., p. 40.
(83) Helena Gomes de Melo, João Vasconcelos Raposo, Luís Batista Carvalho, Manuel do Carmo Bargado, Ana Teresa Leal e Felicidade D'oliveira, Poder Paternal e Responsabilidades Parentais, QJ - Quid Juris - Sociedade Editora, 2009, pp. 163. Sobre este tópico, v. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1995, pp. 420-421 (anotação ao artigo 1915.º).
(84) Citada Resolução do Conselho de Ministros.
(85) Supra VII.3.
(86) Regime Jurídico do Processo de Inventário Anotado, cit., p. 35. Também Pedro Gonçalves se refere à função notarial como "função pública autónoma». Para este autor, o princípio da autonomia funcional traduz-se na independência do notário, no exercício das suas funções, como delegatário da fé pública, em relação ao Estado, sendo que a independência do notário representa um indício inequívoco contra a qualificação do notário como "órgão administrativo". O facto de o notário, enquanto profissional liberal, ficar submetido à fiscalização e à ação disciplinar do Ministério da Justiça (artigo 3.º do Estatuto do Notariado) não desfavorece, ainda segundo o mesmo autor, a tese que sustenta (Entidades Privadas com Poderes Públicos, Coleção Teses, Almedina, pp. 586-587).
(87) Manual do Processo de Inventário à Luz do Novo Regime Aprovado pela Lei 23/2013, de 5 de março, e Regulamentado pela Portaria 278/2013, de 26 de agosto, cit., p. 19.
(88) Acompanha-se Filipe César Vilarinho Marques, "O papel do juiz no novo regime do processo de inventário", comunicação proferida no Curso Prático "Inventário e Questões Práticas sobre o Direito das Sucessões", realizado no Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, em 11 de janeiro de 2013. V. deste autor, "Linhas Orientadoras do Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei 23/2013, de 05 de março), anexo ao Guia Prático do Processo de Inventário, edição do Centro de Estudos Judiciários, fevereiro de 2014, e-book disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/novo_processo_de_inventario.pdf
(89) Assim, Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, ob. cit., p. 20. Mencionam estes autores outras competências deferidas ao juiz em sede de fixação de honorários e de decisão da reclamação da nota de honorários (artigos 18.º, n.os 4 e 5 e 24.º, n.º 2, da Portaria 278/2013, de 26 de agosto).
(90) Ob. cit., pp. 2, 23 e 30.
(91) Ob. cit., pp. 37-38.
(92) Processos Especiais, volume II - Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, p. 380.
(93) Idem, p. 381.
(94) Partilhas Judiciais, volume I, 3.ª edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1979, pp. 23-24.
(95) Idem, ibidem.
(96) Ob. cit., p. 24.
(97) Carla Câmara, Carlos Castelo Branco, João Correia e Sérgio Castanheira, ob. cit., p. 15.
(98) Ob. cit., pp. 35-36.
(99) Ob. cit., pp. 338-340.
(100) Ob. cit., p. 195. V. sobre este tópico, Filipe César Vilarinho Marques, "O papel do juiz no novo regime do processo de inventário", comunicação proferida no Curso Prático "Inventário e Questões Práticas sobre o Direito das Sucessões", cit., e "Linhas Orientadoras do Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei 23/2013, de 05 de março), anexo ao Guia Prático do Processo de Inventário, cit.
(101) Retirado de Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, pp. 13 e ss. Deste autor, v. "A função administrativa", Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIV, 1977, p. 31.
(102) V. também, entre outros, os acórdãos n.os 443/91, 630/95 e 16/96. Todos os acórdãos do Tribunal Constitucional citados encontram-se disponíveis, em texto integral, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
(103) Lições de Direito Administrativo, 2.ª Edição, Coimbra, 2011, p. 30. A lei-quadro das entidades administrativas independentes com funções de regulação da atividade económica dos setores privado, público e cooperativo foi aprovada pela Lei 67/2013, de 28 de agosto.
(104) "As autoridades independentes. Alguns aspetos da regulação económica numa perspetiva jurídica", O Direito, Ano 138.º, III, 2006, pp. 558-559.
(105) Jornal Oficial da União Europeia, L 201, de 27.7.2012.
(106) Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, cit., pp. 508-509.
(107) Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, cit. p. 27. Anotação ao artigo 202.º de Rui Medeiros e Maria João Fernandes.
(108) Reserva de Jurisdição - Sentido Dogmático e Sentido Jurisprudencial, Universidade Católica Editora, Porto - 1997, p. 60. Itálicos do autor.
(109) "A reserva do juiz e a intervenção ministerial em matéria de fixação das indemnizações por nacionalizações", Scientia Ivridica, Tomo XLVII, n.os 274/276, julho/dezembro, 1998, p. 224.
(110) Lições de Direito Administrativo, cit., p. 33. No mesmo sentido, a propósito das questões suscitadas com a fixação das indemnizações por nacionalização, v. Joaquim Pedro Formigal Cardoso da Costa, "A fixação das indemnizações por nacionalização e o princípio da reserva do juiz", Estudos em Homenagem à Dra Maria de Lourdes Órfão de Matos Correia e Vale, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (171), Centro de Estudos Fiscais, Lisboa - 1995, pp. 131-169. Sobre este tema, v. ainda J. Castanheira Neves, "Da "Jurisdição" no atual Estado-de-Direito», AB VNO AD OMNES, Coimbra Editora, 1998, pp. 177-227, e José de Oliveira Ascensão, "A reserva constitucional da jurisdição", O Direito, Ano 123.º, 1991 II-III (Abril-Setembro), pp. 465-485.
(111) Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, p. 668.
(112) Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., pp. 668-669.
(113) Vide Resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de novembro, que desencadeou a reforma do processo de inventário no sentido da desjudicialização - "[d]esjudicialização do processo de inventário, considerando que o tratamento pela via judicial deste processo resulta particularmente moroso, assegurando sempre o acesso aos tribunais em caso de conflito» [cf. alínea d) do n.º 1].
(114) Ao contrário do que faria supor a referência inicial da "Exposição de motivos" da Proposta de Lei 105/XII:
"O Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, celebrado entre a República Portuguesa e o Banco Central Europeu, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, no quadro do programa de auxílio financeiro a Portugal, prevê o reforço da utilização dos processos extrajudiciais existentes para ações de partilha de imóveis herdados».
(115) Não relevará aqui tratar-se de direitos disponíveis, pois nessa senda poder-se-ia assistir à desjudicialização em quase toda a jurisdição cível, área fundamental da exercitação dos direitos dos cidadãos.
(116) Outro entendimento violaria, aliás, inevitavelmente o disposto nos artigos 20.º, 202.º, 203.º e 209.º da Constituição da República Portuguesa.
(117) Necessária é, com efeito, a referência à Fazenda Nacional, já que sem uma previsão específica, poderia entender-se não caber ao Ministério Público a defesa dos seus interesses.
(118) E deverá evitar a tentação de uma interpretação restritiva das competências do Ministério Público.
(119) Sublinhe-se que a redação no essencial corresponde à redação dada pela Lei 29/2009, de 29 de junho, apenas tendo sido ajustado o último segmento da alínea c).
(120) "1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.»
(121)
"Artigo 16.º
Suprimento da incapacidade
1 - Os incapazes só podem estar em juízo por intermédio dos seus representantes, ou autorizados pelo seu curador, exceto quanto aos atos que possam exercer pessoal e livremente.
2 - Os menores cujo exercício das responsabilidades parentais compete a ambos os pais são por estes representados em juízo, sendo necessário o acordo de ambos para a propositura de ações.
3 - Quando seja réu um menor sujeito ao exercício das responsabilidades parentais dos pais, devem ambos ser citados para a ação.»
(122) Embora uma interpretação atualista da alínea f) do n.º 1 do artigo 5.º do EMP pudesse ainda assim fundamentar essa intervenção.
(123) Inação que pode acontecer por variadas razões.
(124) E essas, sim, acarretam uma intromissão na vida familiar.
(125) Ver, a propósito, Domingos Silva Carvalho de Sá, Do Inventário 2014, Almedina, em especial pág. 42 (obra a que tivemos acesso já depois da apresentação do Parecer).
Pela Diretiva n.º 3/2014, de 28 de maio, a Procuradora-Geral da República determinou que a doutrina deste Parecer deve ser seguida e sustentada pelos magistrados do Ministério Público, nos termos que se seguem:
Diretiva n.º 3/2014
Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário. A intervenção do Ministério Público
A entrada em vigor do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei 23/2013, de 5 de março e regulamentado pela Portaria 278/2013, de 26 de agosto, introduziu no ordenamento jurídico nacional uma profunda reforma quanto ao modelo substantivo e adjetivo do processo de inventário.
De entre as modificações consagradas sobressaem as que se dirigem às funções do Ministério Público, em concreto, no que respeita à legitimidade para requerer o inventário quando a herança seja deferida a incapazes, menores ou ausentes em parte incerta, e sempre que seja necessário representar e defender os interesses da Fazenda Pública.
Tendo-se constatado que quanto àquelas particulares questões o novo regime jurídico do inventário suscitou fundadas dúvidas interpretativas junto da comunidade jurídica, com reflexos contraditórios de acentuada relevância na atuação funcional do Ministério Público, foi solicitada a emissão de parecer junto do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, alargando-se essa consulta ainda a questões relacionadas com a própria dimensão constitucional de algumas das soluções consagradas no texto da lei.
Nestes termos, aderindo à fundamentação do Parecer emitido, ao abrigo do disposto no artigo 42.º, do Estatuto do Ministério Público, determino que seja seguida e sustentada pelos Magistrados do Ministério Público a doutrina do Parecer 5/2014, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 10 de abril de 2014.
Lisboa, 2 de junho de 2014. - O Secretário da Procuradoria-Geral da República, Carlos Adérito da Silva Teixeira.
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