2 - Dos factos Além do referido em 1, relevam para a decisão os seguintes factos, evidenciados por documentos e informações prestadas no processo:
a) A celebração do contrato de empréstimo foi aprovada por deliberações de 25 de janeiro de 2012, da Câmara Municipal de Alcoutim, e de 17 de fevereiro de 2012, da respetiva Assembleia Municipal, após consulta a 3 entidades bancárias;
b) Nos termos da cláusula 1.2. do contrato, o empréstimo destina-se a "dotar a autarquia de meios financeiros necessários para apoiar a Construção do Lar, Centro de Dia e Apoio Domiciliário de Balurcos";
c) A obra em causa é promovida pela Associação de Solidariedade Social, Cultura, Desporto e Arte de Balurcos;
d) Conforme esclarecido no ofício a fls. 64 do processo, "a titularidade do imóvel a resultar da obra "Lar, Centro de Dia e Apoio Domiciliário dos Balurcos" pertencerá à Associação de Solidariedade Social, Cultura, Desporto e Arte dos Balurcos";
e) Em 8 de abril de 2009 foi celebrado um "Acordo de Colaboração" entre o Município de Alcoutim e aquela Associação, de acordo com o qual a Associação se comprometia a executar a obra e a apresentar candidatura ao financiamento comunitário da mesma e o Município se comprometia a assumir uma contribuição financeira de 40 % do custo total elegível aprovado;
f) A candidatura ao financiamento comunitário foi aprovada em 24 de junho de 2010, no valor de (euro) 835.709,40, correspondente a 60 % do montante considerado elegível;
g) Em 27 de janeiro de 2012 foi celebrado um novo acordo de colaboração, alterando o anterior, nos termos do qual o Município se compromete a assumir o remanescente não comparticipado pelos fundos comunitários, concretamente o valor de (euro) 1.114.872,96;
h) De acordo com as informações prestadas pela autarquia, o valor da comparticipação foi alterado, tendo em conta o custo real do projeto, superior ao montante considerado elegível, custo real aquele que resulta do concreto valor da empreitada entretanto adjudicada, da taxa de IVA aplicável, do custo efetivo de equipamento informático e de equipamento básico e das despesas de fiscalização. A alteração resultou ainda de a Associação de Solidariedade Social, Cultura, Desporto e Arte de Balurcos não possuir meios para complementar a contrapartida financeira para a execução do investimento;
i) O Município informou que o acordo de colaboração se alicerçou juridicamente no disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 64.º e no artigo 67.º da Lei 169/99, de 18 de setembro, e respetivas alterações;
j) A autarquia referiu ainda, no ofício a fls. 216, que "considerando o seu cariz social, coadjuvado com a importância extrema e a necessidade imperiosa de um investimento desta envergadura num concelho envelhecido como o de Alcoutim, este projeto tem vindo a ser "acarinhado" pelo Município de Alcoutim desde o início, coexistindo sempre uma cooperação técnica e financeira para com a Associação de Solidariedade Social, Cultura, Desporto e Arte dos Balurcos, desde a fase de elaboração do seu projeto técnico, ao seu licenciamento, à respetiva candidatura ao POPH, à abertura de concurso público para a empreitada, culminando no atual acompanhamento técnico e financeiro da execução dos trabalhos", que relevou o interesse municipal do projeto "tendo em consideração que consubstancia uma obra social de grande relevância para o concelho, constituindo manifestamente um marco de desenvolvimento institucional/associativo na área da solidariedade e proteção social, demonstrando uma beneficência social de elevada dimensão, para além de que o retorno do investimento será também proporcionado pela criação de emprego e a fixação de pessoas no concelho" e considerando que "sem este apoio financeiro, o projeto do "Lar, Centro de Dia e Apoio Domiciliário dos Balurcos", irá capitular de igual forma como a maioria das candidaturas no Algarve, devido à indisponibilidade financeira das respetivas IPSS";
k) Conforme referido pela própria autarquia (vide ata a fls. 154), a Associação de Solidariedade Social, Cultura, Desporto e Arte de Balurcos é uma entidade privada;
l) Quanto à realização do empréstimo para financiar a despesa em causa, o Município, no mesmo ofício, refere que "em face da conjuntura de crise económica atual, a contratação de empréstimo configura a única fonte de financiamento exequível, tendo presentes as parcas receitas do município de Alcoutim e do seu orçamento";
m) Ainda no mesmo ofício, a autarquia explicita que o investimento será registado no POCAL, em sede de transferências de capital para a Associação, através da rubrica inscrita nas GOP "Lar de Idosos em Balurcos", com código de classificação orçamental 0103080701.
3 - Fundamentação 3.1 - Do crédito municipal e respeito pelas respetivas finalidades O endividamento municipal está fortemente delimitado pelos princípios e procedimentos da legalidade, do equilíbrio e da estabilidade orçamental e apenas é possível nos casos previstos na lei e de acordo com os pressupostos e limitações nela estabelecidos.
Nessa mesma linha, o n.º 1 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais(1) refere que "Os municípios podem contrair empréstimos e utilizar aberturas de crédito junto de quaisquer instituições autorizadas por lei a conceder crédito [...], nos termos da lei".
A legislação financeira aplicável estabelece a possibilidade de as autarquias recorrerem ao crédito, mas tão só para financiamento de determinados tipos concretos de despesa e em circunstâncias muito delimitadas.
Os artigos 35.º e seguintes da Lei das Finanças Locais estabelecem os tipos e finalidades possíveis de endividamento por parte dos Municípios e o respetivo regime e limites gerais, normas que, em conjunto com as publicadas anualmente nas leis do Orçamento, devem ser entendidas como estabelecendo um numerus clausus imperativo.
Entre os limites legalmente estabelecidos conta-se a imposição fixada no n.º 4 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais de que os empréstimos a médio e longo prazo só possam ser contraídos para aplicação em investimentos ou no saneamento ou no reequilíbrio financeiro dos municípios.
Como se refere em inúmeros Acórdãos deste Tribunal, o legislador exige, assim, que os empréstimos municipais tenham um escopo concreto, devendo o aplicador do direito assegurar-se da efetividade da sua utilização para esse fim.
Coloca-se, assim, no presente processo a questão de saber se o empréstimo contraído pelo Município de Alcoutim nas circunstâncias acima referidas se contém nalguma das finalidades legalmente admitidas.
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais, o presente empréstimo, celebrado pelo prazo de 15 anos, é considerado de longo prazo.
Não estando destinado ao saneamento ou reequilíbrio financeiro da autarquia, resta então determinar se foi contraído para ser aplicado em investimentos.
3.2 - Dos empréstimos contraídos para aplicação em investimentos Para a decisão do caso em apreço importa, pois, estabelecer os limites daquilo que pode ser considerado um investimento para efeitos do n.º 4 daquele artigo 38.º e que, consequentemente, pode ser abrangido por esse preceito.
Devemos ter presente que estamos perante legislação financeira, que o endividamento está consagrado como um instrumento de financiamento dos orçamentos públicos, que um empréstimo titula uma receita pública, a qual se destina, por sua vez, ao financiamento de despesas públicas, todas incluídas nos orçamentos municipais.
Assim, e mesmo que fosse abstractamente possível interpretar a norma em causa e o conceito de investimento nela referido com recurso ao senso comum ou apelando a conceitos teóricos sobre o mesmo, porque estamos perante normas de direito financeiro devemos sim fazer apelo aos conceitos e às normas que subjazem à elaboração e execução dos orçamentos públicos.
Para além do que se dispõe na Lei das Finanças Locais e, por força do n.º 1 do seu artigo 4.º, na Lei de Enquadramento Orçamental (LEO)(2), encontramos as necessárias regras no POCAL(3) e no Decreto-Lei 26/2002, de 14 de fevereiro, que estabelece o regime jurídico dos códigos de classificação económica das receitas e das despesas públicas.
De acordo com estes diplomas, os empréstimos a longo prazo são passivos financeiros, classificados como receitas de capital dos orçamentos públicos(4).
Nos termos do ponto 2.3.1. do POCAL, as autarquias devem discriminar, nos seus planos plurianuais de investimentos, os projetos e ações que impliquem despesas orçamentais a realizar por investimentos. Deste modo parece claro que, para a qualificação de um investimento como tal, se apela aos critérios de classificação das correspondentes despesas orçamentais.
E quer de acordo com o POCAL quer nos termos do classificador económico constante do Decreto-Lei 26/2002, as rubricas de Investimentos inserem-se nas despesas de capital, onde também se inserem, de forma autónoma, as Transferências de capital.
De acordo com as respetivas Notas Explicativas, para efeitos do referido classificador, as despesas de investimento compreendem exclusivamente as despesas com a aquisição e reparação dos bens que contribuam para a formação de "capital fixo", constituído pelos bens duradouros detidos e utilizados pela entidade para a produção de bens ou serviços.
O conceito de investimento nesta aceção pode, ainda, ser ligado às operações registadas nas contas da Classe 4 do POCAL, relativa a Imobilizações. Também nos termos das respectivas Notas Explicativas, esta classe inclui os bens detidos com continuidade e que não se destinem a ser vendidos ou transformados no decurso normal das operações da entidade, quer sejam da sua propriedade, incluindo os bens do domínio público, quer estejam em regime de locação financeira.
Vemos, assim, que o conceito financeiro, orçamental e contabilístico de investimento está ligado ao conceito de ativo imobilizado da própria entidade e, mesmo quando se possa reportar a bens que não sejam da sua propriedade, envolve necessariamente que sejam bens por si utilizados no desenvolvimento da sua atividade própria.
Por outro lado, nas despesas de capital autonomizam-se, relativamente aos investimentos, as transferências de capital, as quais, também nos termos das notas explicativas pertinentes, compreendem as importâncias a entregar a quaisquer organismos ou entidades para financiar despesas de capital da entidade recebedora, sem que tal implique, da sua parte, qualquer contraprestação direta para com o organismo dador. Nos termos das notas explicativas do POCAL, refere-se expressamente que estas importâncias são retiradas do rendimento corrente da autarquia.
Constata-se ainda no POCAL que as transferências de capital concedidas são contabilisticamente registadas como custos e perdas extraordinários nas contas da Classe 6 (Custos e Perdas).
Destas regras resulta, então, claro que, em termos financeiros, orçamentais e contabilísticos, só podem ser consideradas como despesas de investimento aquelas que as autarquias destinem à aquisição ou reparação de bens duradouros por si detidos ou por si utilizados na sua atividade.
E resulta ainda que as despesas que as autarquias pretendam fazer para financiar despesas de capital de outras entidades são consideradas como transferências de capital, e consequentemente, como custos ou perdas, e não como investimentos.
Ora, como vimos, o n.º 4 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais só admite a contratação de empréstimos para financiar despesas de investimento, donde se deve concluir que essa contratação não é admitida para financiar despesas com transferências de capital.
A mesma conclusão é confirmada pela circunstância de o POCAL referir expressamente que as transferências são retiradas do rendimento corrente das autarquias. Ora, como já acima referimos, os empréstimos de longo prazo não são receitas correntes, mas sim receitas de capital.
Conforme bem ressalta da matéria de facto acima exposta, o empréstimo em causa destina-se a financiar uma obra alheia à autarquia, desenvolvida por uma entidade privada e que será propriedade dessa entidade privada, sem que a autarquia esteja de qualquer modo envolvida na sua gestão e utilização.
Não se questiona nem avalia se a autarquia pode, ou não, nos termos da Lei 169/99, comparticipar financeiramente nas despesas de construção da obra em apreço, por considerar que a mesma é de interesse municipal e beneficia a comunidade local. Tal não está em discussão neste processo.
Apenas se conclui que, mesmo que essas circunstâncias se verifiquem, uma qualquer comparticipação financeira desse tipo não pode ser feita com base em verbas obtidas com recurso a empréstimos municipais, por a legislação financeira e, concretamente, o artigo 38.º, n.º 4, da Lei das Finanças Locais não o permitir.
Mesmo que a situação pudesse ser considerada um investimento numa aceção social, como parece ser a posição da autarquia. Só que não é essa a aceção que releva para a legislação financeira.
3.3 - Em conclusão Nos termos do disposto no artigo 44.º, n.º 2, da LOPTC(5), nos instrumentos geradores de dívida pública, como é o caso dos empréstimos, a fiscalização prévia deste Tribunal tem por fim verificar, designadamente, a observância das respetivas finalidades.
Face ao que acima se refere, deve considerar-se que o empréstimo em análise não contempla nenhuma das finalidades previstas e consentidas pelo n.º 4 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais.
A constatada violação da norma financeira aí contida constitui fundamento de recusa de visto nos termos do estatuído na alínea b) do n.º 3 do artigo 44.º da LOPTC.
Acresce que, não tendo ainda sido fixados os limites de endividamento municipal para 2012, não está feita no processo a demonstração de que este empréstimo se conteria nesses limites.
4 - Decisão Pelos fundamentos indicados, e nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 44.º da LOPTC, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato.
Não são devidos emolumentos nos termos do artigo 8.º do Regime Jurídico anexo ao Decreto-Lei 66/96, de 31 de maio, e respetivas alterações.
(1) Lei 2/2007, de 15 de janeiro, com as alterações introduzidas pela Declaração de Rectificação 14/2007, de 15 de fevereiro, e pelas Leis n.os 22-A/2007, de 29 de junho, 67-A/2007, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro.
(2) Lei 91/2001, de 20 de agosto, alterada pela Lei Orgânica 2/2002, de 28 de agosto, e pelas Leis n.os 23/2003, de 2 de julho, 48/2004, de 24 de agosto, 48/2010, de 19 de outubro, 22/2011, de 20 de maio, e 52/2011, de 13 de outubro.
(3) O POCAL, Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais, foi aprovado pelo Decreto-Lei 54-A/99, de 22 de fevereiro, e foi objecto de alterações pela Lei 162/99, de 14 de setembro, pelo Decreto-Lei 315/2000, de 2 de dezembro, pelo Decreto-Lei 84-A/2002, de 5 de abril, e pela Lei 60-A/2005, de 30 de dezembro.
(4) Cfr. Anexo I ao Decreto-Lei 26/2002, de 14 de fevereiro.
(5) Lei 98/97, de 26 de agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 87-B/98, de 31 de dezembro, 1/2001, de 4 de janeiro, 55-B/2004, de 30 de dezembro, 48/2006, de 29 de agosto, 35/2007, de 13 de agosto, 3-B/2010, de 28 de abril, 61/2011, de 7 de dezembro e 2/2012, de 6 de janeiro.
1 de junho de 2012. - Helena Abreu Lopes (relatora) - Manuel Mota Botelho - João Figueiredo.
Fui presente (Procurador Geral Adjunto), José Vicente.
Nota. - Decisão transitada em julgado.
206236744