Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2012
15/2002.L1.S1
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I - Objecto do recurso e questões a solucionar.
No Tribunal do Trabalho do Funchal, 1 - Paulo Duarte Barreto Pereira, 2 - Duarte Vieira Dias, 3 - Damásio Graciano Jesus Ramos, 4 - Marco Aurélio Martins e Freitas, 5 - Norberto Gregório Sousa da Silva, 6 - Manuel António Encarnação Gomes, 7 - Alberto Zeferino Nunes Abreu, 8 - Nuno Miguel Martins Paixão, 9 - Vítor Manuel Vieira Dias, 10 - Luís Manuel Alves Teixeira, 11 - José Jorge dos Santos, 12 - José Nelson Camacho Mendonça, 13 - Hélder Luís Caires, 14 - Marco Bruno Vieira Abreu, 15 - Carlos Marcelo Martins e Freitas, 16 - José Emanuel Rodrigues, 17 - António José Mendes da Silva, 18 - Márcio Anacleto Freitas Fernandes, 19 - José Paulo Jesus Góis, 20 - Marco Emanuel Ferreira de Vares, 21 - Cristiano Ferreira Vares, 22 - Ricardo Duarte Martins Camacho, 23 - Fábio Caio Figueira Canha, 26 - Carlos Fernandes, 27 - Dinarte Vasconcelos Fernandes, 28 - João de Freitas, 29 - Duarte Miguel Caldeira de Freitas, 30 - José Maria de Freitas Gonçalves, 31 - António Fernandes Belo de Freitas, 32 - Miguel Ângelo Martins de Freitas, 33 - Ricardo Bruno Alves Fernandes e 34 - José António Fernandes de Ornelas intentaram a presente acção especial de anulação e interpretação de cláusulas de convenções colectivas de trabalho, contra:
1 - «ACIF - Associação Comercial e Industrial do Funchal», 2 - «ETP-RAM - Associação Portuária da Madeira - Empresa Trabalho Portuário», 3 - «Sindicato dos Trabalhadores Portuários da RAM» e 4 - «Sindicato dos Estivadores Marítimos do Arquipélago da Madeira», pedindo que seja anulado o contrato colectivo de trabalho (CCT) celebrado entre os réus, publicado no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira (JORAM), 3.ª série, n.º 22, de 16 de Novembro de 2001, ou, caso assim não se entenda, sejam anuladas as cláusulas 1.ª, n.º 1, 18.ª, n.º 6, 30.ª, n.º 3, 46.ª, n.º 2, 48.ª, n.º 4, 57.ª, n.º 4, 63.ª, n.º 4, 73.ª, n.º 2, e 107.ª e anexo ii, tabela salarial iii, por violação das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei 519-C1/79, e, ainda, que sejam anuladas as cláusulas 26.ª, n.º 4, e 136.ª, por violação do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei 519-C1/79, alegando, para tanto, em síntese, que:
Não estão filiados nos Sindicatos subscritores daquele contrato colectivo;
Os autores constam da listagem anexa ao CCT como «trabalhadores temporários»;
O CCT pretende abranger os «trabalhadores temporários» e, ao impor as suas condições a trabalhadores não filiados nos Sindicatos signatários, o âmbito da cláusula 1.ª, n.º 1, viola o artigo 55.º da Constituição da República Portuguesa (CRP);
No anexo iii, ambas as listas (i e ii) incluem trabalhadores em exacta igualdade de circunstâncias, mas prevêem-se diferentes remunerações, nas cláusulas 57.ª, n.º 4, e 30.ª, n.º 3, com fundamento na sua integração numa ou noutra lista;
A cláusula 18.ª, n.º 6, proíbe que os trabalhadores a termo ou em regime de trabalho temporário possam vir a ser efectivos, o que viola os artigos 42.º, n.º 3, 47.º e 51.º do Decreto-Lei 64-A/89, que têm carácter imperativo;
As cláusulas 46.ª, n.º 2, 48.ª, n.º 4, e 63.ª, n.º 4, estabelecem regimes diferenciados em matéria de férias, pagamento de férias e de subsídio de férias, consoante o tipo de vínculo dos trabalhadores, violando os artigos 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei 874/76 e 84.º, n.º 2, da LCT e 21.º, n.º 2, do Decreto-Lei 358/89;
As cláusulas 73.ª , n.º 2, 107.ª ou 109.ª prevêem situações discriminatórias;
Nos anexos referentes às tabelas salariais, para o desempenho das mesmas tarefas, os trabalhadores auferem menor remuneração base e são pior pagos em relação às demais parcelas retributivas;
As cláusulas 19.ª, n.º 1, 26.ª, n.º 4, e 136.ª violam a proibição constante do artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 519-C1/79 e o artigo 61.º, n.º 1, da CRP, porque regulam directamente a actividade económica;
A ETP/RAM tem como única actividade a cedência temporária de trabalhadores para utilização por terceiros e estes podem ser efectivos ou contratados a termo, mas são todos «trabalhadores temporários»;
A ETP/RAM é uma sociedade comercial de composição tripartida e formada pelo Governo Regional, os sindicatos subscritores da convenção e os operadores portuários e, portanto, os Sindicatos em causa estão a negociar consigo próprios.
Os réus contestaram, invocando a ilegitimidade dos autores, com alegado fundamento de não serem sindicalizados e a portaria de extensão não se encontrar publicada, à data da propositura da acção, e o CCT só ser aplicável aos autores quando a portaria de extensão for publicada, nos termos do n.º 1 dos artigos 7.º e 8.º do Decreto-Lei 519-C1/79.
Alegaram, ainda, que:
As condições laborais dos trabalhadores temporários constantes no CCT são específicas, porque estes trabalhadores mantêm com as entidades empregadoras relações laborais de duração limitada, sendo mão-de-obra suplementar sujeita a condicionamentos específicos, respeitantes à sua legitimação como tal;
Por se tratar de um serviço público, a interpretação das cláusulas deve ser lida à luz destas especificidades da actividade portuária;
As diferenças de tratamento entre os trabalhadores não têm por fundamento a mera inclusão dos respectivos trabalhadores na lista i ou na lista ii do anexo iii, mas, sim, de terem, ou não, vínculo contratual de trabalho ao sector, o que implica diferenças nos direitos e regalias;
Quanto às férias dos trabalhadores temporários, o CCT em causa estabelece um regime mais favorável do que o dos trabalhadores não temporários porque podem escolher o período em que pretendem gozar férias;
A ETP/RAM é uma pessoa colectiva de direito civil, constituída sob a forma associativa, sem fins lucrativos, cedendo, quando necessário, mão-de-obra em regime de trabalho portuário, subscrevendo o CCT apenas como forma de ficar obrigada, mesmo antes de, ou sem, portaria de extensão.
Concluem pela procedência da excepção da ilegitimidade processual dos autores e, caso assim não se entenda, pela improcedência da acção.
Os autores responderam, refutando a invocada excepção.
Prosseguindo os autos os seus trâmites, foi proferido despacho saneador - sentença que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade activa e também improcedente a acção, não declarando a nulidade das cláusulas convencionais requeridas.
Os autores, não conformados, apelaram da sentença, vindo a ser proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no qual se decidiu, por unanimidade, julgar parcialmente procedente o recurso, alterando a sentença na parte relativa à apreciação da validade da cláusula 19.ª, n.º 9, do CCT, que se declarou nula, por violação do preceituado pelo artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro (corroborado pelo artigo 533.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho de 2003 e pelo artigo 478.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho de 2009), confirmando, no demais, a sentença recorrida.
Mais uma vez, inconformados, os autores interpuseram recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apresentando alegações, com as seguintes conclusões:
«1 - O CCT em causa foi subscrito pela empresa ETP/RAM na qualidade de entidade empregadora e pelos Sindicatos dos Carregadores e dos Estivadores como representantes dos trabalhadores.
2 - A ETP/RAM era então composta, em partes iguais e poderes equivalentes, pelo Governo Regional da Madeira, a "OPM - Sociedade de Operações Portuárias da Madeira, Lda.", e pelos aludidos Sindicatos, embora, logo a seguir, o Governo Regional abandonasse a sociedade, sem ter sido substituído.
3 - Estes Sindicatos outorgam a convenção detendo a dupla qualidade de gestores da entidade empregadora e representantes dos trabalhadores neles sindicalizados.
4 - Tratando-se de um óbvio "negócio consigo próprio", é forçoso concluir que o mesmo violou o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei 519-C1/79 e violou o princípio da independência dos sindicatos constante do artigo 6.º do Decreto-Lei 215-B/75.
5 - Tal como foi reconhecido pelo acórdão ora sob revista, o CCT assenta na pretensão de efectuar a "gestão [sic] da mão-de-obra nos portos da RAM", embora, na prática, pretenda regulamentar toda a actividade de carga e descarga destes portos.
6 - O mesmo acórdão reconheceu que as disposições do CCT constituíam regulamentação de uma actividade económica e, consequentemente, "a sua sede mais adequada não seja um IRT", mas resolveu ignorar essa reconhecida ilegalidade porque a mesma, "não introduz distorções na livre concorrência".
7 - Independentemente de quaisquer outras considerações, o certo é que esta última conclusão não encontra qualquer suporte na matéria de facto que foi provada.
8 - Tendo o acórdão identificado, neste aspecto, as cláusulas 19.ª, 26.ª e 136.ª, será forçoso reconhecer a sua ilegalidade.
9 - Sendo patente que essas cláusulas violam frontalmente o disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 519-C1/79.
10 - Atendendo à relevância deste tipo de cláusulas, relativamente à globalidade da matéria regulada no CCT, a sua óbvia nulidade não deverá ser vista isoladamente.
11 - Com efeito, o CCT regula, de forma individualizada, quem são os sujeitos que estão abrangidos pelo mesmo, identificando, nome a nome, os trabalhadores que as partes, por si só, e, independentemente da opinião dos visados, definiram como sendo passíveis de aplicação dos regimes aí previstos.
12 - Essas listagens são inalteráveis durante o período de vigência do CCT e apenas são pontualmente actualizáveis aquando da sua revisão.
13 - Tratando-se, ao fim e ao cabo, de um verdadeiro "pacto de emprego", que regulamenta e legitima quem são os concretos indivíduos que podem trabalhar no sector e quais irão ser os respectivos níveis de retribuição.
14 - Em consequência, a convenção determina como âmbito de aplicação todo e qualquer trabalhador, desde que este se encontre "inserido no âmbito de representação profissional do Sindicato", em violação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei 519-C1/79, que apenas admite essa aplicabilidade aos membros da associação sindical celebrante, tal como, aliás, foi aflorado no acórdão ora sob revista.
15 - A cláusula 46.ª, n.º 2, do CCT determina que, para os trabalhadores que designa como "temporários", "são considerados como períodos de férias [...] aqueles em que não sejam contratados".
16 - Sendo posto em causa o direito ao gozo e pagamento das férias dos trabalhadores denominados de "temporários", pelo teor desta cláusula 46.ª, n.º 2, bem como das cláusulas 48.ª, n.º 4, e 63.ª, n.º 4, violando o artigo 4.º, n.º l, da "lei das férias, feriados e faltas", na redacção do Decreto-Lei 397/91 de 16 de Outubro, e bem assim os artigos 213.º, n.os 1 e 3, e 238.º, n.os 1 e 3, dos sucessivos Códigos do Trabalho.
17 - A decisão recorrida violou as normas legais acima discriminadas, de onde decorre quer a invalidade de algumas das cláusulas que foram especificamente indicadas quer a nulidade da convenção no seu todo.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, com excepção da nulidade respeitante ao artigo 19.º, n.º 3, do CCT.» Os réus contra-alegaram, oferecendo as seguintes Conclusões:
«1 - Os Sindicatos, réus, participavam na gestão da ré ETP/RAM, à data em que foi celebrado o CCT, mas tal circunstância não consubstanciava em si qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade, quer no quadro de aplicação da legislação sectorial portuária quer à luz da CRP, até porque o artigo 56.º, n.º 2, alínea a), da lei fundamental previa e prevê expressamente esse direito das associações sindicais, não tendo, assim, sido violado o preceito constitucional invocado pelos recorrentes (artigo 55.º, n.º 4, da CRP) nem nenhum outro da legislação ordinária.
2 - Acresce que sendo a ETP/RAM uma empresa de cedência de mão-de-obra à ou às entidades utilizadoras, a regulamentação colectiva de trabalho aplicável aos trabalhadores seria a que respeitasse à área profissional de ocupação desta mão-de-obra pela entidade utilizadora, conforme o estabelecia o regime legal da prestação de trabalho temporário (n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei 358/89, de 17 de Outubro - então em vigor - aplicável à ré ETP/RAM, por força do disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Decreto-Lei 280/93, de 13 de Agosto).
3 - A ETP/RAM não foi parte negociadora do CCT, não consta do respectivo âmbito empresarial enunciado no n.º 1 da cláusula 1.ª deste instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, nem seria directamente abrangida por este âmbito empresarial caso não tivesse subscrito a convenção colectiva que fora outorgada pela ACIF e pelos sindicatos da profissão.
4 - Na verdade, a ETP/RAM não era representada pela ACIF - pois, se o fosse, não teria subscrito o CCT - e, por isso, não lhe seria aplicável a convenção colectiva se não aderisse à mesma, uma vez que, no tocante ao lado empresarial, a convenção colectiva se aplicava apenas às empresas operadoras portuárias (n.º 1 da cláusula 1.ª do CCT).
5 - A ETP/RAM subscreveu o CCT apenas como meio formal de adesão ao respectivo regime de regulamentação colectiva de trabalho, já que os trabalhadores a seu cargo eram abrangidos por esta convenção colectiva.
6 - Não pode, pois, dizer-se que os Sindicatos, porque participavam na gestão da ETP/RAM, tivessem negociado consigo próprios ao celebrar com a ACIF o CCT em apreço.
7 - Por outro lado, a publicitação de listagens de identificação da mão-de-obra efectiva e eventual referenciada à data da publicação do CCT não corporizava um universo fechado, mas somente um registo dos trabalhadores que, a essa data, se achavam disponíveis para trabalhar nos portos da Região, sendo ali expressamente admitida e referida a actualização anual de tais listagens, fosse qual fosse o período de vigência do CCT (v., entre outros, o teor do n.º 8 da cláusula 18.ª do CCT).
8 - De resto, na revisão parcial subsequente do CCT, operada em 2004, esse carácter não fechado do universo de mão-de-obra abrangível pelo CCT ficou mais claramente enunciado nas reformulações então aprovadas e publicadas no JORAM, 3.ª série, n.º 7, de 2 de Abril de 2004.
9 - Acresce que, nos termos e por força do disposto na Convenção n.º 137 da OIT, ratificada por Portugal pelo Decreto 56/80, de 1 de Agosto, os trabalhadores portuários devem constar de um registo formal, actualizado periodicamente, aos quais a mesma legislação atribui direito de prioridade na ocupação de postos de trabalho portuário.
10 - Não se encontrando instituído outro meio de registo da mão-de-obra portuária, uma tal listagem dava expressão material ao respectivo comando normativo.
11 - Por isso, o acórdão recorrido não enferma de qualquer erro ou vício também neste domínio de questões, porquanto as respectivas disposições do CCT possuíam o necessário carácter geral e abstracto.
12 - Mostra-se, igualmente, infundada e improcedente a alegação deduzida pelos recorrentes de que o CCT teria por universo estrito de trabalhadores por ele abrangidos directamente os que se compreendessem no âmbito abstracto de representação sindical, fossem, ou não, filiados nas respectivas associações sindicais, porquanto o disposto no n.º 2 da cláusula 1.ª da referida convenção colectiva de trabalho era, e é, expresso em salientar a extensão do CCT, mediante portaria de extensão, a outros trabalhadores e entidades que não estivessem abrangidos pela aplicação directa da convenção colectiva de trabalho.
13 - Não existe, assim, qualquer violação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, do (então vigente) Decreto-Lei 519-C1/79.
14 - Por outro lado, a participação dos Sindicatos réus na gestão da ETP/RAM não interferia nem implicava a perda ou diminuição da sua independência perante o patronato nem consubstanciava «negócio consigo próprio», como resultava claramente da natureza e das finalidades imanentes a essa gestão partilhada.
15 - Aliás - conforme doutamente se refere e sustenta no acórdão recorrido - a própria legislação sectorial portuária foi consagrando a existência de organismos de gestão tripartida e de gestão bipartida, de que os Sindicatos fariam parte, sem que daí se tivesse ou pudesse arguir a violação do princípio da respectiva independência perante o patronato ou perante o Estado.
16 - Também contrariamente ao alegado pelos recorrentes, o CCT não instituiu regimes que corporizassem em si matéria de regulamentação económica do sector, limitando-se a explicitar regimes já estabelecidos na respectiva legislação sectorial, em razão do que improcede a invocada ilegalidade das cláusulas 19.ª, n.º 1, 26.ª, n.º 4, e 136.ª do CCT, por não se verificar a alegada ofensa ao disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro, então em vigor.
17 - O teor enunciado em tais disposições do CCT não pode entender-se fora do quadro normativo - mais vasto - que configura especificidades do sector portuário, nomeadamente no tocante às particularidades e aos objectivos de racionalização desta mão-de-obra sectorial e ao regime da respectiva gestão por parte de organismos instituídos exclusivamente para o efeito.
18 - Conforme se salienta no douto acórdão recorrido, tais disposições do CCT evidenciam uma conexão directa com os regimes específicos das relações de trabalho e de afectação dos trabalhadores portuários ao contingente comum disponibilizado e gerido pela ETP/RAM, traduzindo, em paralelo, objectivos fundados de repartição igualitária dos encargos e responsabilidades a suportar por quem (utilizadores da mão-de-obra) era beneficiário de uma tal «pool» de mão-de-obra.
19 - Saliente-se, aliás, que no próprio preâmbulo do Decreto-Lei 280/93, de 13 de Agosto, se sublinha que o regime de trabalho portuário consagrado no diploma visa contribuir, de forma sustentada, para a estabilidade de emprego no sector e para assegurar uma maior racionalização da gestão da mão-de-obra afecta aos portos.
20 - Relativamente ao regime de férias aplicável aos trabalhadores eventuais/temporários, também no acórdão recorrido se fez a correcta apreciação e decisão da questão suscitada pelos recorrentes, pelo que se dá aqui por reproduzida e perfilhada a douta fundamentação ali produzida, em razão do que não se verifica nele, nem no CCT, qualquer violação das disposições da lei ou da Constituição invocadas por aqueles.
21 - Por sua vez, as alegadas discriminações de que seriam alvo os trabalhadores eventuais/temporários em matéria de trabalho suplementar são igualmente destituídas de qualquer fundamento minimamente procedente, porquanto o trabalho suplementar pressupõe, da parte de quem o presta, a existência de um vínculo contratual que dê lugar não só à obrigação de o prestar, quando necessário, como também ao direito às correspondentes prestações remuneratórias, sendo patente que o trabalhador eventual apenas presta trabalho em períodos diários especificamente delimitados pelo contrato pontual que celebram, sem que estejam sujeitos ao regime legal e convencional do trabalho suplementar a cuja prestação de trabalho pudessem estar sujeitos.
22 - Por outro lado, tal fundamento do recurso nem sequer corresponde a qualquer causa de pedir e pedido que os recorrentes tivessem deduzido na acção - conforme o refere, expressamente, o acórdão recorrido, pelo que constitui matéria de que também não pode dele conhecer-se nesta sede de recurso.
23 - Quanto ao direito que os recorrentes invocam relativamente ao subsídio de turno - matéria igualmente não suscitada na acção e, por isso, insusceptível de ser conhecida em sede de recurso - mostrar-se-ia também claro que, por natureza, a mão-de-obra eventual em apreço não se encontrava afecta ao regime de turnos, dada a irregularidade com que é contratada e dada a inexistência de vínculo contratual subjacente que permitisse adstringi-la a tal regime.
24 - Quanto à retribuição paga no período em que ocorria trabalho nocturno prestado pelos trabalhadores contratados em regime de trabalho temporário, importa reafirmar que o valor previsto no CCT para tais períodos de trabalho integrava já uma majoração retributiva superior à normal, cuja finalidade cobria precisamente a remuneração acrescida a que dariam lugar as horas de trabalho em período nocturno.
25 - Assim, não pode deixar de reconhecer-se e concluir-se que a convenção colectiva de trabalho em referência, as suas disposições convencionais impugnadas pelos recorrentes e bem assim o douto acórdão recorrido não se acham inquinados de qualquer dos vícios, ilegalidades ou inconstitucionalidades invocadas no recurso.
26 - Acessoriamente - e a coberto do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 721.º do CPC - fica aqui invocada e alegada a nulidade da parte do acórdão recorrido nos termos da qual se conheceu e se proferiu decisão sobre a matéria constante do n.º 9 da cláusula 19.ª do CCT, porquanto tal matéria e tal preceito convencional não constituíram causa de pedir nem pedido deduzidos na acção [artigo 668.º, n.º 2, alínea d), do CPC].
Deve, nesta conformidade, ser negado provimento ao recurso e confirmar-se o acórdão recorrido, salvo no que respeita à decisão proferida quanto ao teor do n.º 9 da cláusula 19.ª do CCT, a qual é de revogar por se encontrar inquinada de nulidade [artigo 668.º, n.º 1, segunda parte da alínea d), do CPC].
Assim será de Justiça.» A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta emitiu douto parecer no sentido da negação da revista, ao que os recorrentes apresentaram resposta em discordância.
Foram colhidos os legais vistos, pelo que cumpre enunciar as questões que se colocam à apreciação, que se passam a discriminar, pela ordem em que abaixo se conhecerão, e que são as seguintes:
a) Se os Sindicatos que outorgaram o CCT o fizeram na dupla qualidade de gestores da entidade empregadora e de representantes dos trabalhadores, ou seja, em «negócio consigo próprio», violando o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei 519-C1/79 e no artigo 6.º do Decreto-Lei 215-B/75;
b) Se as disposições do CCT constituem regulamentação de uma actividade económica, sendo de reconhecer a ilegalidade das suas cláusulas 19.ª, 26.ª e 136.ª, por violação do disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 519-C1/79;
c) Se o CCT viola o disposto no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei 519-C1/79, por apenas admitir a sua aplicabilidade aos membros dos sindicatos celebrantes;
d) Se o teor das cláusulas 46.ª, n.º 2, 48.ª, n.º 4, e 63.ª, n.º 4, viola o disposto no artigo 4.º, n.º 1, da lei de férias, feriados e faltas, na redacção do Decreto-Lei 397/91, de 16 de Outubro, e, bem assim, os artigos 213.º, n.os 1 e 3, e 238.º, n.os 1 e 3, dos sucessivos Códigos do Trabalho.
II - Fundamentos de facto.
Os factos considerados provados nas instâncias são os seguintes:1 - No JORAM, 3.ª série, n.º 22, de 16 de Novembro de 2001, foi publicado o CCT celebrado entre os réus (doc. n.º 1, junto com a petição inicial).
2 - Na mesma edição foi publicado aviso para a publicação de uma PE - portaria de extensão às relações de trabalho estabelecidas entre entidades não inscritas nas associações patronais outorgantes que na área da convenção exerçam actividade económica abrangida e os trabalhadores ao seu serviço das profissões e categorias profissionais previstas filiados ou não nas associações sindicais outorgantes e bem assim aos trabalhadores das mesmas profissões e categorias profissionais não filiados nas associações sindicais signatárias ao serviço das entidades patronais inscritas nas associações patronais outorgantes.
3 - A portaria de extensão foi publicada no JORAM, 3.ª série, n.º 3, de 1 de Fevereiro de 2002, com entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produz efeitos, quanto à tabela salarial, desde 1 de Janeiro de 2001 e nas demais condições previstas na referida convenção colectiva de trabalho.
4 - Os autores não estão sindicalizados ou filiados nos sindicados subscritores dessa convenção colectiva de trabalho (por admissão nos articulados).
5 - O referido CCT tem o âmbito de aplicação a todas as empresas operadoras portuárias devidamente licenciadas para o exercício da respectiva actividade nos portos da Região Autónoma da Madeira e, por outro lado, todos os trabalhadores inscritos na Associação Portuária da Madeira - Empresa de Trabalho Portuário, e só eles exclusivamente, que se achem afectos ao contingente comum de trabalhadores portuários da ETP/RAM ou que se encontrem disponíveis para a prestação de trabalho temporário requisitado a este contingente e bem assim os que se encontrem colocados ao serviço permanente de empresa(s) de estiva inseridos no âmbito de representação profissional do Sindicato dos Trabalhadores Portuários da Região Autónoma da Madeira e do Sindicato dos Estivadores Marítimos do Arquipélago da Madeira (cláusula 1.ª, n.º 1).
6 - Os autores constam da lista de trabalhadores temporários disponíveis para a contratação publicada no anexo iii da CCT para o ano de 2002 (lista ii, pp. 53 a 57).
7 - Por escritura pública de 29 de Abril de 1991, a Região Autónoma da Madeira, o Sindicato Livre dos Carregadores e Descarregadores dos Portos da Região Autónoma da Madeira, o Sindicato dos Estivadores Marítimos do Arquipélago da Madeira e a «OPM - Sociedade de Operações Portuárias da Madeira, Lda.» constituíram entre si uma associação que passou a usar o nome de «AGMOP/RAM - Associação de Gestão de Mão-de-Obra Portuária dos Portos da RAM» (doc. de fl. 435 a fl. 437).
8 - Regendo-se pelos estatutos juntos aos autos de fl. 438 a fl. 446 [...] 9 - Por escritura pública celebrada em 2 de Dezembro de 1994, a Associação referida no n.º 7 passou a ter a denominação de «Associação Portuária da Madeira - Empresa de Trabalho Portuário, ETP», consignando-se, ainda, a alteração da totalidade dos estatutos (doc. de fl. 448 a fl. 450).
10 - A Associação adoptou a denominação de «ETP-RAM - Empresa de Trabalho Portuário da Madeira» e é uma pessoa colectiva de direito privado, sem fins lucrativos, tendo como objectivo exclusivo o exercício da actividade de cedência temporária de trabalhadores portuários nos portos e terminais da RAM (doc. de fl. 451 a fl. 462).
11 - A ré ETP/RAM encontra-se especificamente licenciada para o exercício de actividade de cedência de trabalhadores para a realização de operações portuárias (doc. de fl. 120 a fl. 122).
12 - A ré ETP/RAM tem trabalhadores com vínculo contratual permanente e trabalhadores temporários (admissão nos articulados).
13 - Os trabalhadores portuários com vínculo contratual permanente estão registados como trabalhadores do efectivo portuário da RAM (doc. a fl. 129).
III - Fundamentos de direito.
Antes de se entrar na análise das questões que acima se deixaram enunciadas, importa chamar à consideração que, na parte final, das conclusões das suas contra-alegações, as recorridas invocam a nulidade do acórdão recorrido, por alegado excesso de pronúncia, por ter declarado a nulidade da cláusula 19.ª, n.º 9, do CCT em apreciação, invocando que tal matéria e tal preceito convencional não constituíram causa de pedir, nem pedido, deduzidos na acção.Sucede que as recorridas não recorreram do acórdão da Relação e para poderem suscitar a questão da nulidade do mesmo careciam de o fazer, sendo certo que o recurso até podia ter como fundamento apenas a dita nulidade (artigo 668.º, n.º 3, do CPC e 721.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC).
Nestes termos decide-se não tomar conhecimento da nulidade arguida.
a) Colocam os recorrentes a questão de saber se os Sindicatos que outorgaram o CCT o fizeram na dupla qualidade de gestores da entidade empregadora e de representantes dos trabalhadores, ou seja, em «negócio consigo próprio», violando o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei 519-C1/79 e no artigo 6.º do Decreto-Lei 215-B/75.
O artigo 3.º do Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro, dispõe:
«1 - Apenas têm capacidade para celebrar convenções colectivas de trabalho:
a) As associações sindicais;
b) As entidades patronais e as associações patronais.
2 - Só as associações sindicais e patronais registadas nos termos do respectivo regime jurídico podem celebrar convenções colectivas de trabalho.
3 - Nos sectores em que existam empresas públicas ou de capitais públicos poderá ser determinada, por despacho conjunto do Ministro do Trabalho e do Ministro da tutela, a autonomização do processo de negociação quanto a elas, devendo esse processo em qualquer caso abranger todos os trabalhadores ao seu serviço.» (o n.º 3 foi revogado pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 209/92, de 2 de Outubro).
Por seu lado, o artigo 6.º do Decreto-Lei 215-B/75, de 30 de Abril, estabelece:
«1 - É proibido às entidades e organizações patronais ou a quaisquer organizações não sindicais promover a constituição, manter ou subsidiar, por quaisquer meios, associações sindicais ou, de qualquer modo, intervir na sua organização e direcção.
2 - As associações sindicais são independentes do Estado, dos partidos políticos e das instituições religiosas, sendo proibida qualquer ingerência destes na sua organização e direcção, bem como o seu recíproco financiamento.
3 - É incompatível o exercício de cargos em corpos gerentes de associações sindicais com o exercício de quaisquer cargos de direcção em partidos políticos ou instituições religiosas.» Em face das citadas disposições legais, importa verificar se existe qualquer violação por parte do CCT quanto à capacidade para a celebração de convenções colectivas do trabalho, conforme disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei 519-C1/79 e do princípio da independência dos sindicatos constante do artigo 6.º do Decreto-Lei 215-B/75, por os sindicatos outorgantes, alegadamente, terem celebrado a convenção detendo a dupla qualidade de gestores da entidade empregadora e representantes dos trabalhadores neles sindicalizados, em «negócio consigo próprio».
O «negócio consigo mesmo» ("a semet ipso"), a que se reporta o artigo 261.º, n.º 1, do CC, é aquele que é celebrado por uma só pessoa, que intervém simultaneamente a título pessoal e de representante de outrem, ou como representante simultaneamente de mais do que uma pessoa [v. Castro Mendes, Teoria Geral, 1979, III, 643].
O «negócio consigo mesmo», sendo, por regra, anulável, por proibido, é, todavia, autorizado e válido desde que o representado tenha consentido especificadamente na sua celebração ou desde que o negócio, por sua natureza, exclua a possibilidade de um conflito de interesses, por dele não poder resultar prejuízo para o representado.
Os recorrentes alegam, para convencer de «negócio consigo próprio», que os sindicatos outorgam a convenção detendo a dupla qualidade de gestores da entidade empregadora e representantes dos trabalhadores neles sindicalizados.
Mas o que alegam não corresponde à realidade, tal como decorre à evidência da cláusula 1.ª, n.º 1, do CCT em discussão e que se passa a citar:
«O presente contrato colectivo de trabalho obriga, por um lado, todas as empresas operadoras portuárias devidamente licenciadas para o exercício da respectiva actividade nos portos da RAM, aqui representadas pela ACIF - Associação Comercial e Industrial do Funchal e, por outro lado, todos os trabalhadores inscritos na Associação Portuária da Madeira - Empresa de Trabalho Portuário ETP, e só eles exclusivamente, que se achem afectos ao contingente comum de trabalhadores portuários da ETP/RAM ou que se encontrem disponíveis para a prestação de trabalho temporário requisitado a este contingente e bem assim os que se encontrem colocados ao serviço permanente de empresa(s) de estiva, inseridos no âmbito de representação profissional do Sindicato dos Trabalhadores Portuários da Região Autónoma da Madeira e do Sindicato dos Estivadores Marítimos do Arquipélago da Madeira.» Como se constata, o CCT em apreço teve como partes outorgantes: de um lado, as empresas operadoras portuárias representadas pela ACIF; de outro lado, os trabalhadores inscritos na Associação Portuária da Madeira e os que se encontravam colocados ao serviço permanente de empresas de estiva e representados pelos sindicatos aludidos.
Quer dizer: os trabalhadores, enquanto outorgantes do CCT, estão todos do mesmo lado e, supostamente, em condições da melhor defesa dos seus interesses, não se verificando, assim, qualquer situação susceptível de integrar negócio consigo mesmo, nem sendo, por isso, de concluir por violação do disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei 519-C1/79, nem do princípio da independência dos sindicatos constante do artigo 6.º do Decreto-Lei 215-B/75, de 30 de Abril.
Deste modo improcede alegação produzida pelos recorrentes.
b) Outra questão suscitada é a de saber se as disposições do CCT constituem regulamentação de uma actividade económica, sendo de reconhecer a ilegalidade das suas cláusulas 19.ª, 26.ª e 136.ª, por alegada violação do disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 519-C1/79.
O artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do citado diploma, estabelece que os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho não podem «estabelecer regulamentação das actividades económicas, nomeadamente no tocante aos períodos de funcionamento das empresas, ao regime fiscal e à formação dos preços».
Será que se verifica ilegalidade, quanto às cláusulas 19.ª, 26.ª e 136.ª, por pretensa violação do disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro, como alegam os recorrentes [exceptuado o n.º 9 da cláusula 19.ª, cuja nulidade foi declarada no acórdão recorrido, já transitado em julgado nessa parte]? Aqui importa citar a fundamentação aduzida na decisão sindicada, que se considera adequada e que foi a seguinte:
«Concordamos que, efectivamente, estas cláusulas visam contribuir para uma maior racionalização da gestão da mão-de-obra portuária nos portos da RAM e vão ao encontro da regulamentação estabelecida no regime jurídico do trabalho portuário e legislação conexa, a partir da reestruturação operada em 1993, que se traduziu nos Decreto-Lei 280/93, de 13 de Agosto, Decreto-Lei 289/93, de 28 de Agosto, Decreto-Lei 356/89, de 9 de Outubro, Decreto Regulamentar 2/94, de 28 de Janeiro, e Decreto-Lei 324/94, de 30 de Dezembro.
O próprio preâmbulo do primeiro dos citados diplomas - que estabeleceu o novo regime jurídico do trabalho portuário - depois de referir que os interesses da economia nacional reclamam medidas susceptíveis de proporcionarem um acréscimo de eficiência e competitividade dos portos portugueses, designadamente através da reformulação do regime jurídico do trabalho portuário, de aludir à constante evolução tecnológica que coloca exigências de qualificação dos trabalhadores e de redução da utilização intensiva de mão-de-obra e aos desafios colocados pela dinâmica do processo de integração europeia, esclarece que o novo regime visa contribuir para uma racionalização da gestão da mão-de-obra nos portos portugueses, por forma a viabilizar o abaixamento dos custos da operação portuária, condição indispensável para que os portos nacionais possam enfrentar com sucesso os exigentes desafios do futuro.
Tendo então sido extinto (pelo artigo 11.º) o regime de inscrição e os contingentes dos portos, e sido reconhecida, sem qualquer formalidade, aos trabalhadores portuários que à data da entrada em vigor do diploma se encontrassem inscritos num organismo de gestão de mão-de-obra portuária a integração no efectivo portuário, ficando pois vinculados por contrato de trabalho sem termo [artigo 13.º e 2.º alínea a)] e tendo-se os OGMOP e demais entidades responsáveis pela gestão de mão-de-obra do contingente comum podido transformar-se em ETP (cf. artigo 12.º) - o que, como vimos, sucedeu com a 2.ª R. - bem se compreende a necessidade de obrigar as utilizadoras a requisitar de forma equitativa os trabalhadores oriundos do contingente comum, como se estabelece no n.º 1 da cláusula 19.ª Embora, porque se referem às relações entre as operadoras portuárias ou utilizadoras de mão-de-obra portuária e a ETP e, nessa medida, constituam regulamentação de uma actividade económica, a sua sede mais adequada não seja, propriamente, um instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, antes o regulamento interno da ETP a que alude o n.º 2 do artigo 9.º do Decreto Regulamentar 2/94, de 28 de Janeiro (que deve ser afixado em local bem visível e de onde constem os preços da mão-de-obra, suas condições de requisição e condições de pagamento, regulamento esse que deve ser aprovado pelo ITP, mediante parecer da autoridade portuária competente e da Direcção-Geral de Concorrência e Preços), porque se conexiona com a afectação dos trabalhadores portuários do contingente comum, questão indiscutivelmente inerente às relações de trabalho, e não introduz distorções na livre concorrência, dado que traduz uma preocupação de repartição igualitária entre as entidades empregadoras, afigura-se-nos ser ainda compatível com a inserção num instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, o mesmo valendo para a norma do n.º 4 da cláusula 26.ª Também a cláusula 136.ª - que determina que os encargos de uma possível reestruturação do trabalho portuário são da responsabilidade das empresas utilizadoras, embora a satisfação do processamento e pagamento de tais encargos compita à ETP, estabelecendo tratamento paritário para os novos operadores - na medida em que reflecte a especificidade (típica do trabalho temporário, aplicável subsidiariamente às ETP), que consiste na repartição entre duas empresas (a utilizadora e a que cede temporariamente mão-de-obra àquela) do papel do empregador, é ainda compatível com a integração no CCT.» Concorda-se com esta fundamentação, sendo que, em todo o caso, o que mais importa reter é que de uma análise, ainda que meramente perfunctória, do conteúdo das cláusulas em apreço se verifica que as mesmas não estabelecem regulamentação de actividade económica, designadamente no tocante aos períodos de funcionamento das empresas, nem ao regime fiscal ou de formação de preços, que é o que o artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 519-C1/79, proíbe aos instrumentos de regulamentação colectiva.
Assim sendo, também nesta parte aos recorrentes não assiste razão.
c) Suscitam os recorrentes a questão de saber se o CCT viola o disposto no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei 519-C1/79, por, alegadamente, apenas admitir a sua aplicabilidade aos membros da associação sindical celebrante.
Estipula, a norma citada, o seguinte:
«As convenções colectivas de trabalho obrigam as entidades patronais que as subscrevem e as inscritas nas associações patronais signatárias, bem como os trabalhadores ao seu serviço que sejam membros quer das associações sindicais celebrantes, quer das associações sindicais representadas pelas associações sindicais celebrantes.» Também quanto a esta questão se considera não se verificar qualquer violação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei 519-C1/79.
Com efeito, os recorrentes alegam que o CCT determina, na cláusula 1.ª, n.º 1, como âmbito de aplicação todo e qualquer trabalhador, desde que este se encontre «inserido no âmbito de representação profissional do Sindicato», em violação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei 519-C1/79, que apenas admite essa aplicabilidade aos membros da associação sindical celebrante.
Sucede que duma leitura atenta da disposição em apreço, e que acima ficou transcrita, conjugada com a do n.º 2 da mesma cláusula, que estabelece que «[o] presente contrato colectivo de trabalho será aplicável, mediante portaria de extensão, que venha a ser publicada para o efeito, a todas as demais entidades empregadoras de trabalhadores portuários e bem assim a estes, verificados que sejam os pressupostos legais correspondentes», não é de aceitar a conclusão que os recorrentes apresentam.
Na verdade, a referência aos trabalhadores «inseridos no âmbito da representação profissional dos sindicatos» outorgantes apenas poderá ser entendida como reportada aos trabalhadores «filiados» nos sindicatos outorgantes, pois só assim se compreende que se estabeleça no n.º 2 da mesma cláusula a admissão de uma portaria de extensão para os demais trabalhadores portuários.
Do que só se pode concluir que o âmbito de aplicabilidade do CCT em referência não se restringe aos membros dos sindicatos celebrantes.
d) Colocam, por último, os recorrentes, a questão de saber se o teor das cláusulas 46.ª, n.º 2, 48.ª, n.º 4, e 63.º, n.º 4, viola o disposto no artigo 4.º, n.º 1, da lei de férias, feriados e faltas, na redacção do Decreto-Lei 397/91, de 16 de Outubro, e, bem assim, os artigos 213.º, n.os 1 e 3, e 238.º, n.os 1 e 3, dos sucessivos Códigos do Trabalho.
Estabelece o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 874/76, de 28 de Dezembro (com a redacção introduzida pelo do Decreto-Lei 397/91, de 16 de Outubro) que «[o] período anual de férias é de 22 dias úteis».
Para os recorrentes existe a violação, que invocam, na medida em que pelo teor das cláusulas 46.ª, n.º 2, 48.ª, n.º 4, e 63.ª, n.º 4, do CCT se determina que, para os trabalhadores que designa como «temporários», «são considerados como períodos de férias [...] aqueles em que não sejam contratados», pondo-se em causa o direito ao gozo e pagamento das férias dos trabalhadores «temporários».
Porém, não assiste razão aos recorrentes.
Como bem se salienta na decisão recorrida, as disposições contidas nas citadas cláusulas, «[s]eguem o figurino traçado pelo artigo 21.º n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 358/89, diploma sobre o trabalho temporário que vigorava ao tempo da aprovação do CCT e que, como vimos, tem aplicação subsidiária, cf. artigo 9.º, n.º 3, do Decreto-Lei 280/93. Nos termos do n.º 3 do artigo 21.º, salvo convenção em contrário aposta no contrato de trabalho temporário, as férias podem ser gozadas após a cessação do contrato, sem prejuízo do seu pagamento e do respectivo subsídio, desde que o contrato de utilização do trabalho temporário não ultrapasse 12 meses. No caso dos trabalhadores portuários temporários, sendo cada contrato celebrado por um dia, a retribuição das férias e respectivo subsídio é processada e paga, na proporção do trabalho prestado, juntamente com a retribuição desse trabalho.
Porque os contratos de utilização, nesse caso, não ultrapassam 12 meses, as férias serão gozadas após a cessação do contrato, nos períodos em que os trabalhadores não forem contratados. Em princípio caberá aos trabalhadores definirem esses períodos, até porque se trata de períodos em que não estão vinculados à ETP - é nesse sentido que deve ser interpretada a 1.ª parte do n.º 2 da cláusula 46.ª - porém, a ETP pode acordar ou estabelecer os períodos dentro dos quais as férias deverão ser fruídas. Daqui não podemos concluir, de forma alguma, como sustentam os recorrentes, que aos mesmos seja coarctado o direito a gozar férias. É certo que, recebendo a retribuição das férias e respectivo subsídio de forma parcelada, é muito provável que, quando pretendam gozar férias, os trabalhadores não disponham já desses valores para poderem gozá-las. É uma situação que dependerá essencialmente da gestão que cada um individualmente fizer desses valores, tal como quando esses valores são pagos apenas de uma vez, antes do gozo das férias, como é usual. Apesar de o objectivo do legislador ao estabelecer o direito a férias pagas e a um complemento específico - o subsídio de férias - seja o de facultar ao trabalhador um efectivo período de lazer para recuperação do desgaste provocado pelo trabalho, é sabido que muitos dos trabalhadores não o utilizam para esse fim, mas para satisfação de outras necessidades».
Do que se conclui, sem necessidade de mais considerandos, que das cláusulas em apreço, não decorre a violação do disposto no artigo 4.º, n.º 1, da «lei das férias, feriados e faltas», na redacção do Decreto-Lei 397/91, de 16 de Outubro, e, bem assim, dos artigos 213.º, n.os 1 e 3, e 238.º, n.os 1 e 3, dos sucessivos Códigos do Trabalho.
Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.
IV - Decisão.
Pelo exposto, decide-se negar a revista, confirmar o aresto recorrido e fixar a seguinte jurisprudência:a) Os Sindicatos que outorgaram o CCT celebrado entre os réus, publicado no JORAM, 3.ª série, n.º 22, de 16 de Novembro de 2001, não o fizeram na dupla qualidade de gestores da entidade empregadora e de representantes dos trabalhadores, ou seja, em «negócio consigo próprio», pelo que não foi, por tal motivo, violado o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei 519-C1/79 e no artigo 6.º do Decreto-Lei 215-B/75;
b) As disposições do mesmo CCT não constituem regulamentação de uma actividade económica, não se verificando a ilegalidade das suas cláusulas 19.ª, 26.ª e 136.ª, por não violação do disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 519-C1/79;
c) O CCT em referência não viola o disposto no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei 519-C1/79, por a sua aplicabilidade não se restringir aos membros dos Sindicatos celebrantes;
d) O teor das cláusulas 46.ª, n.º 2, 48.ª, n.º 4, e 63.ª, n.º 4, do CCT referido não viola o disposto no artigo 4.º, n.º 1, da lei de férias, feriados e faltas (Decreto-Lei 874/76, de 28 de Dezembro, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei 397/91, de 16 de Outubro), e, bem assim, nos artigos 213.º, n.os 1 e 3, e 238.º, n.os 1 e 3, dos sucessivos Códigos do Trabalho.
Custas da revista a cargo dos recorrentes.
Transitado em julgado, publique-se no Diário da República e no Boletim do Trabalho e Emprego, nos termos do artigo 186.º do Código de Processo do Trabalho.
Lisboa, 27 de Setembro de 2011. - Fernando Pereira Rodrigues (relator) - Manuel Joaquim de Oliveira Pinto Hespanhol - Manuel Augusto Fernandes da Silva - António Gonçalves Rocha - António Sampaio Gomes.