Interpreta as normas da alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa e da alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade portuguesa no sentido de que o impedimento à aquisição da nacionalidade portuguesa, nelas previsto, decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, deve ter em conta a ponderação do legislador efetuada em sede de cessação da vigência da condenação penal inscrita no registo criminal e seu cancelamento e correspondente reabilitação legal
Acórdão 106/2016
Processo 757/13
I - Relatório
1 - Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL), em que é recorrente o Ministério Público e recorrido Fernando Joaquim de Vasconcelos, foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de novembro (LTC), na sua atual versão, da sentença daquele Tribunal de 16 de novembro de 2012 (de fls. 199-210), que julgou improcedente a ação de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa pelo ora recorrido, deduzida pelo Ministério Público com fundamentos na inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional e na condenação em crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos segundo a lei portuguesa.
2 - É este o teor do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf. fls. 215):
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O Ministério Público vem ao abrigo do disposto no artigo 72.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de novembro, interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, com fundamente na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da mesma Lei.
O presente recurso tem como objeto a expressa recusa de aplicação das alíneas b) do artigo 9.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril e do n.º 2 do artigo 56.º do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), interpretados no sentido de que “(…’) o impedimento de adquirir a nacionalidade portuguesa, decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igualou superior a três anos é um efeito “necessário”, no sentido de efeito automático da condenação, na medida que se impõe inexoravelmente ex vi legis na esfera jurídica do interessado, não deixando à Administração qualquer margem de apreciação e ponderação!”.
Tal recusa é efetuada com fundamento em violação do princípio do direito à aquisição ex novo da nacionalidade portuguesa (artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa) e de que “não pode haver penas nem medidas privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida” (n.º 1 do art.º 30.º da Constituição da República Portuguesa).
Pretende-se, assim, que o Tribunal constitucional aprecie a inconstitucionalidade das referidas normas, face ao disposto no artigo 223.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Requer-se, pois, a V. Exa. que se digne admitir o presente recurso (cf. artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 3, 75.º, n.º 1 e 75.º-A, todos da Lei 28/82, atrás referida).
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3 - O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho proferido no Tribunal a quo em 3/12/2012 (cf. fls. 217), tendo os autos sido remetidos ao Tribunal Constitucional em 12/08/2013 (cf. fls. 221). 4 - Tendo os autos prosseguido no Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para, querendo, produzirem alegações (cf. fls. 222, 223 e 247), tendo o Ministério Público representado neste Tribunal apresentado alegações (fls. 224-246), concluindo nos seguintes termos (cf. fls. 242-246):
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[...] VII - Conclusões 42 - O Ministério Público interpôs recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, “ao abrigo do disposto no artigo 72.º, n.º 3,da Lei 28/82, de 15 de novembro [...] com fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da mesma Lei”. 43 - Este “recurso tem como objeto a expressa recusa de aplicação das alíneas b) do artigo 9.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril e do n.º 2 do artigo 56.º do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), no sentido de que o impedimento de adquirir a nacionalidade portuguesa, decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos é um efeito “necessário”, no sentido de efeito automático da condenação, na medida que se impõe inexoravelmente ex vi legis na esfera jurídica do interessado, não deixando à Administração qualquer margem de apreciação e ponderação”.
44 - Os parâmetros constitucionais cuja violação é invocada na decisão recorrida são os plasmados nos artigos 26.º, n.º 1;
30.º, n.º 1; e 30.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
45 - Distintamente do julgado na douta decisão impugnada, que entendeu que o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, consagra, para além do direito de não perder a nacionalidade portuguesa de que se é titular, o direito, dos não nacionais, a adquirir ex novo, a nacionalidade portuguesa, o Tribunal Constitucional, no Acórdão 599/05, decidiu, no aresto citado, que o direito enunciado naquele preceito se reporta, meramente, ao direito negativo, dos que já são nacionais portugueses, a exigirem do Estado que não atente contra o seu estatuto de cidadãos portugueses.
46 - No tocante aos cidadãos não portugueses que pretendam obter a cidadania portuguesa, são meros titulares da expectativa jurídica da obtenção desse estatuto, mediante o preenchimento de condições estabelecidas pelo legislador ordinário.
47 - Contrariamente ao decidido pela douta decisão recorrida, não se nos afigura que as normas legais plasmadas na alínea b), do artigo 9.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e na alínea b), do n.º 2, do artigo 56.º, do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), violem, sem mais, o disposto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. 48 - Discordamos, igualmente, do teor da douta decisão impugnada, no que concerne à invocada violação do parâmetro constitucional plasmado no artigo 30.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, por parte das normas acima mencionadas, na medida em que o que o fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, previsto na alínea b), do artigo 9.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e na alínea b), do n.º 2, do artigo 56.º, do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), não constitui uma pena ou uma medida de segurança, muito menos privativa ou restritiva da liberdade e, consequentemente, a previsão da norma constitucional é inaplicável ao caso vertente. 49 - Já no que concerne à discrepância das normas sob escrutínio com o disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa, se nos afigura, pelo contrário, ocorrer a violação de tal parâmetro constitucional.
50 - O entendimento que o Tribunal Constitucional elegeu, quanto ao mandato plasmado no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da Re-pública Portuguesa, é no sentido da eleição, como critério da sua aplicação, da imposição da “[...] possibilidade de existência, segundo a previsão legal, de juízos de valoração ou ponderação que podem vir a afastar a automaticidade dos efeitos das penas” (cf. Acórdão 154/04 do Tribunal Constitucional).
51 - As normas sob escrutínio nos autos, as constantes das alíneas b), do artigo 9.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e b), do n.º 2, do artigo 56.º, do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), determinam que a condenação transitada em julgado pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos constitui, por si só, automaticamente, fundamento da oposição à aquisição da nacionalidade, não admitindo qualquer apreciação ou ponderação por parte da Administração ou do julgador, e impondo, necessariamente, como sua consequência, a insusceptibilidade da aquisição da nacionalidade portuguesa.
52 - A violação da norma constitucional torna-se mais evidente em casos como o dos presentes autos, no qual a oposição à aquisição da nacionalidade se fundamenta, automaticamente, numa condenação criminal ocorrida há mais de 21 anos (em 6 de fevereiro de 1992), transitada, igualmente, há mais de 21 anos (em 20 de fevereiro de 1992), na pena de um ano de prisão, cuja execução ficou suspensa por um ano, pena já extinta, e que, de acordo com as regras legais vigentes, já se encontra expurgada do Registo Criminal, nada constando do respetivo certificado.
53 - A automaticidade do efeito atribuído à condenação criminal, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, em circunstâncias semelhantes às acima descritas, viola, consequentemente, o parâmetro de constitucionalidade plasmado no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.
54 - Por força do exposto, deverá, no nosso entendimento, ser declarada a inconstitucionalidade das normas contidas na alínea b), do artigo 9.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e na alínea b), do n.º 2, do artigo 56.º, do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade), quando, em circunstâncias como as supra mencionadas, impede a Administração, ou o julgador, de valorar ou ponderar o contexto fáctico da condenação criminal, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.
Nos termos do exposto, deverá ser negado provimento ao presente recurso, julgando-se inconstitucionais as normas invocadas da Lei 37/81, de 3 de outubro, na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
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5 - Em sequência, veio o ora recorrido responder, declarando aderir na íntegra às alegações apresentadas pelo Ministério Público (cf. fls. 248).
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
6 - Resulta dos autos que o ora recorrido pretende adquirir a nacionalidade portuguesa nos termos previstos no artigo 3.º, n.º 1 da Lei da Nacionalidade Portuguesa (Lei 37/81, de 3 de outubro, sucessivamente alterada pela Lei 25/94, de 19 de agosto, pelo Decreto Lei 322-A/2001, de 14 de dezembro, pela Lei Orgânica 1/2004, de 15 de janeiro, pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, pela Lei 43/2013, de 3 de julho, pela Lei Orgânica 1/2013, de 29 de julho, pela Lei Orgânica 8/2015, de 22 de junho e pela Lei Orgânica 9/2015, de 29 de julho), isto é, por estar casado há mais de três anos com uma cidadã portuguesa.
Mais resulta dos autos que:
a) O requerente da nacionalidade portuguesa, ora recorrido, nasceu na Beira, Moçambique, no dia 3 de setembro de 1968, segundo o Assento de Nascimento n.º 425/76, emitido pelo ConsuladoGeral de Portugal na Beira;
b) Desconhece-se a sua nacionalidade;
c) Reside em Portugal desde 1976;
d) No dia 22 de outubro de 2005 casou com a cidadã portuguesa Sandra Maria de Abreu Fernandes de Vasconcelos;
e) No dia 16 de fevereiro de 2009 o requerente, ora recorrido, prestou na Conservatória do Registo Civil de Almada declarações para aquisição da nacionalidade portuguesa, baseando a pretensão de adquirir a nacionalidade portuguesa no casamento, bem como na alegação de que tem “ligação efetiva à comunidade portuguesa, porque reside em Portugal desde 1976 [...], tem amigos e laços familiares e tem filhos de nacionalidade portuguesa”
;
f) Os seus filhos nasceram em 25/11/1997 e em 24/04/2005, na Caparica, Almada;
g) Declarou ainda que “não foi condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa”
;
h) Segundo informação prestada pelo Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais, a pedido da Conservatória dos Registos Centrais do Instituto dos Registos e Notariado, no processo de querela n.º 497/1989, que correu termos na 2.ª Secção do então 2.º Juízo do Tribunal da Comarca de Cascais, o requerente foi condenado na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por um ano, por sentença proferida em 6 de fevereiro de 1992 (cf. fls. 95-99) e transitada em julgado em 20 de fevereiro de 1992, pela prática, em 18/06/1985, de um crime de furto qualificado;
i) Nessa sentença considerou-se que o crime tinha como moldura penal abstrata (artigos 296.º, 297.º, n.º 2, alíneas c), d) e h) e 299.º, do Código Penal, na versão aplicável) a pena de prisão de 40 dias a 4 anos;
j) Por despacho da ConservadoraAuxiliar da Conservatória dos Registos Centrais, proferido em 7/01/2010, foi remetida certidão do processo ao ProcuradorGeral da República junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por se entender existir fundamento para instauração de ação de oposição à nacionalidade portuguesa (cf. fls. 129-130);
l) Foi instaurada, pelo Ministério Público, ação de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa (Proc. N.º 127/10.OBELSB);
m) No certificado de registo criminal emitido em 8/03/2010 é declarado que nada consta acerca do ora recorrido (fls. 142).
7 - A referida ação, com processo especial, de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, deduzida pelo Ministério Público contra Fernando Joaquim Vasconcelos, então Réu e ora recorrido (cf. fls. 3-7), foi fundada na inexistência de ligação efetiva à comunidade portuguesa, invocando-se também, como causa de pedir, ter o Réu sido condenado em Portugal por crime punível com pena de prisão de máximo igual a três anos, o que, constitui
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fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, nos termos do artigo 9.º, alínea b), da referida Lei 37/81, de 3 de outubro, na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e artigo 56.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro
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(cf. petição do MP, fls. 5-6, em especial 8.º a 12.º, e sentença do TACL, ora recorrido, fls. 199).
8 - O então réu, ora recorrido, apresentou contestação (cf. fls. 136-138), referindo, designadamente, que o processo de querela n.º 497/1989 se refere a factos ocorridos há mais de 24 anos; que, à data dos factos, era um jovem de 16 anos; que do seu registo criminal nada consta; que tem a sua vida organizada em Portugal, é trabalhador efetivo como motorista de uma empresa portuguesa desde 1 de abril de 2004; que paga os seus impostos e está perfeitamente integrado na sociedade portuguesa há muitos anos; e que
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os antecedentes criminais do R. decorrido todo este tempo e por força do preceituado na lei, ao fim de 5 anos são automaticamente cancelados e de forma irrevogável, atento o n.º 1 alínea a) do artigo 15.º [da] Lei 114/2009 de 22 de setembro que altera a Lei 57/98 de 18 de agosto
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(cf. fls. 137).
9 - O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por sentença proferida em 16 de novembro de 2012, julgou improcedente a ação de oposição, ordenando o prosseguimento do processo pendente na Conservatória dos Registos Centrais, com vista à concessão da nacionalidade portuguesa ao Réu e realização dos competentes registos (cf. fls. 209). Fêlo com os seguintes fundamentos, na parte que em especial releva (cf. sentença recorrida, fls. 199-210):
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[...] III - FUNDAMENTAÇÃO 1 - Factos provados [...] 2 - Apreciando [...] 2.1 - Quanto à ocorrência, ou não, do pressuposto da ligação efetiva à comunidade nacional
[...] A consagração no atual regime jurídico de uma presunção iuris tantum, cujo afastamento incumbirá a quem, em sede de oposição à aquisição de nacionalidade, alegue e prove factos que demonstrem a inexistência de ligação efetiva, por parte do requerente, à comunidade portuguesa, não obstante o que se dirá adiante, aproxima-se da cidadania inclusiva (tendencial universalização como direito humano à nacionalidade) do que o fazia a anterior versão da Lei. Ainda assim, isto é, ainda que reputemos como positiva esta inversão do ónus da prova, porque menos restritiva da aquisição da nacionalidade portuguesa e mais consentânea com a existência de um direito fundamental à nacionalidade, não podemos deixar de criticar as manutenções quer desta cláusula indeterminada, quer do conceito de “comunidade nacional?” (José Joaquim Gomes Canotilho, fls. 24-25 do Parecer junto aos autos do Processo 11851l0.3BELSB deste Tribunal).
Estava, pois, o Réu dispensado, por força da referida presunção, de provar a existência de ligação efetiva à comunidade portuguesa, que alegou na declaração da vontade de adquirir a nacionalidade portuguesa.
Apesar disso, o Réu, sem estar a isso obrigado, provou que é casado com uma nacional portuguesa desde o dia 22 de outubro de 2005, tem dois filhos de nacionalidade portuguesa; nascidos em território português, onde vive desde 1976, é motorista na empresa Comcresul desde 1 de abril de 2004 (v. o probatório).
Tais presunção e prova não são abaladas pelo facto de o ora Réu ter sido condenado na pena de um ano de prisão, suspensa por um ano, no longínquo ano de 1992, pela prática de um crime de furto qualificado, cometido em 1985, condenação que já não consta do registo criminal do Réu (v. o probatório). Tratou-se, com efeito, de um facto isolado, ao que parece (já que não consta que o Réu tenha voltado a cometer qualquer crime), a que, a avaliar pela duração da pena concretamente imposta (um ano) e pela circunstância de ela ter sido suspensa, correspondeu pequena gravidade, em concreto, do facto (atendendo ao valor dos objetos furtados) ou uma culpa leve, sem esquecer outras circunstâncias que foram ponderadas na decisão, tais como a idade do Réu à data dos factos, as necessidades de reinserção social (cf. fls. 94 a 99 dos autos do processo físico), e que, em todo o caso, qualquer indivíduo de nacionalidade portuguesa “atribuída” ou “adquirida” poderia cometer, sem que se pusesse a hipótese de o agente perder a nacionalidade portuguesa, por ter, suefetiva à comunidade nacional”.
2.2 - Quanto às consequências da alegada condenação do Réu em pena de prisão de máximo igual a três anos pervenientemente, perdido “ligação efetiva à comunidade nacional” em virtude da condenação.
Verifica-se, por este conjunto de razões, o pressuposto da “ligação Na sentença penal afirma-se que ao crime por que o aqui Réu foi condenado corresponde uma moldura penal abstrata de 40 dias a 4 anos (cf. fls. 97 dos autos do processo físico), sendo que ao arguido vinha imputado o crime de furto qualificado previsto pelos artigos 296.º, 297.º, n.os 2, al. c), d) e h), e 3, e 299.º do Código Penal (C.P.), na redação vigente à data dos factos, e punível com prisão de 1 a 10 anos.
Pareceria, assim, que estaria preenchido o pressuposto das alínea b) do art.º 9.º da LN e b) do n.º 2 do artigo 56.º do RN, segundo as quais constitui fundamento de oposição “a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igualou superior a três anos, segundo a lei portuguesa”.
A questão, no entanto, só na aparência é simples. Porquê? Nos termos do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”, sendo que “os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativa privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução” (n.º 5 do artigo 30.º cit.).
Por direitos “civis” deve entender-se, neste contexto, direitos de que o indivíduo é titular enquanto cidadão, enquanto membro da civitas (da cidade/comunidade política) - na circunstância enquanto membro da República portuguesa. A nacionalidade é espécie desse género de direitos, por isso que é um direito fundamental de natureza pessoal (artigo 26.º, n.os 1 e 4, da Constituição; v. neste sentido J. J. Gomes Canotilho no Parecer cit.).
A garantia do direito fundamental à nacionalidade abrange tanto o direito de não perder a nacionalidade portuguesa de que se é titular quanto o direito de adquirir ex novo a nacionalidade portuguesa:
nada autoriza a afirmar que o direito à “cidadania” ou à nacionalidade a que o art.º 26.º, da Constituição se refere seja só o direito à nacionalidade de que se é já titular e não também o direito a adquirir ex novo; pelo contrário, resulta do n.º 1 do mesmo artigo que o direito fundamental à nacionalidade é, aqui, entendido, aliás de harmonia com os textos de direito internacional vigentes na matéria, como um direito humano e, como tal, um dado supralegal, anterior e independente da lei escrita e não uma criação do legislador constitucional, que se limita a “reconhecê-lo”. Suprimir um direito fundamental ou impedir, ilegitimamente, que ele entre na esfera de uma pessoa não será a mesma coisa?
A liberdade de conformação do legislador ordinário não vai ao ponto de o autorizar a criar normas inconstitucionais.
Ora é óbvio que o impedimento de adquirir a nacionalidade portuguesa, decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igualou superior a três anos é um efeito “necessário”, no sentido de efeito automático da condenação, na medida em que se impõe inexoravelmente ex vi legis na esfera jurídica do interessado, não deixando à Administração qualquer margem de apreciação e ponderação. Além disso, se “não pode haver penas nem medidas privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida” (n.º 1 do artigo 30.º da Constituição), de igual modo não poderão admitir-se efeitos delas, mais a mais automáticos, de duração ilimitada ou indefinida.
Negar ao aqui Réu o direito de adquirir a nacionalidade portuguesa com o fundamento ora em apreço seria objetivamente perpetuar a condenação que sofreu há vinte anos atrás, condenação que passaria a ser um ferrete; um labéu, que o acompanharia durante toda a vida, em flagrante violação da dignidade da pessoa humana, e que em nada contribuiria para a sua reinserção na sociedade.
A negação do direito de adquirir a nacionalidade portuguesa com o referido fundamento violaria, semelhantemente, o princípio da proporcionalidade nos seus elementos necessidade e adequação. Com efeito o impedimento só se justificaria se o crime por que o aqui Réu foi condenado tivesse sido cometido com o fim de, ilegitimamente obter a nacionalidade portuguesa, e o impedimento visasse obstar à concretização desse intento, ou se fosse motivado por ódio aos portugueses enquanto povo - o que não é o caso (sobre o ponto cf. Damião da Cunha, in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, 2.ª edição, Notas ao n.º 4 do art.º 30.º).
Em suma, as alínea b) do artigo 9.º da LN e b) do n.º 2 do artigo 56.º do RN são inconstitucionais por violação das normas e princípios constitucionais referidos - o que determina a sua desaplicação no caso vertente, por força da consideração entrosada dos artigos 3.º, 204.º e 277.º da Constituição elo, n.º 2, do ETAF).
Irrelevando o fundamento em questão, cai a oposição, ante a tudo o que ficou dito.
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10 - É desta sentença que se recorre nos presentes autos. 11 - O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, estando a sua admissibilidade dependente da verificação de dois pressupostos:
i) que a decisão recorrida tenha recusado efetivamente a aplicação de certa norma ou interpretação normativa, relevante para a resolução do caso; e ii) que tal desaplicação normativa se funde num juízo de inconstitucionalidade do regime jurídico nela estabelecido.
Para a apreensão do objeto do presente recurso mostra-se relevante partir do teor do requerimento de interposição do recurso - in casu, obrigatório para o Ministério Público nos termos do poder vinculado previsto no artigo 72.º, n.º 3, da LTC -, no confronto com o decidido na sentença judicial ora recorrida - sentença do TACL de 16/11/2012, a fls. 199-210 dos presentes autos - proferida no âmbito da ação especial de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa deduzida pelo Ministério Público.
12 - Verifica-se que na sentença do TACL, ora recorrida, é formulado um juízo de desvalor constitucional quanto às normas constantes das alíneas b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade (Lei 37/81, de 3 de outubro, na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril) e do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro), que determina a respetiva desaplicação ao caso (cf. sentença recorrida, acima transcrita em 9., fls. 209).
É este o teor das normas legais em causa (na versão vigente à data da decisão judicial recorrida):
Artigo 9.º da Lei da Nacionalidade Portuguesa (Fundamentos) Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa:
a) A inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional;
b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa;
c) O exercício de funções públicas sem caráter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro.
Artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (Fundamento, legitimidade e prazo)
1 - O Ministério Público promove nos tribunais administrativos e fiscais a ação judicial para efeito de oposição à aquisição da nacionalidade, por efeito da vontade ou por adoção, no prazo de um ano a contar da data do facto de que depende a aquisição da nacionalidade.
2 - Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou da adoção:
a) A inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional;
b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa;
c) O exercício de funções públicas sem caráter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro.
Cumpre assinalar que este fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade ou adoção - previsto na alínea b) do artigo 9.º da Lei e reproduzido no artigo 56.º, n.º 2, alínea b) do Regulamento da Nacionalidade portuguesa:
a condenação por sentença transitada em julgado por crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa - aparece replicado na própria Lei da Nacionalidade portuguesa enquanto pressuposto (negativo) da aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização (artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da citada lei) e enquanto condição (também negativa) para a atribuição da nacionalidade (originária) aos indivíduos nascidos no estrangeiro com, pelo menos, um ascendente de nacionalidade portuguesa do 2.º grau na linha reta que não tenha perdido essa nacionalidade, se declararem que querem ser portugueses, possuírem laços de efetiva ligação à comunidade nacional e, verificados tais requisitos, inscreverem o nascimento no registo civil português (artigo 1.º, n.º 1, alínea d) e n.º 3, da Lei).
Ora, o regime normativo contido na alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa (Lei 37/81, de 3 de outubro) e no n.º 2, alínea b), do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade portuguesa (aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006) foi tido por não aplicável ao caso concreto, por razões fundadas no juízo de inconstitucionalidade formulado na mesma sentença.
Da argumentação que sustenta a não aplicação, ao caso dos autos, das normas legais em causa retira-se, fundamentalmente, que o juiz da causa, considerando que a
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garantia do direito fundamental à nacionalidade abrange tanto o direito de não perder a nacionalidade portuguesa de que se é titular quanto o direito a adquirir ex novo a nacionalidade portuguesa
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(fls. 208), configura
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o impedimento de adquirir a nacionalidade portuguesa decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos [como] um efeito necessário, no sentido de efeito automático da condenação, na medida em que se impõe inexoravelmente ex vi legis na esfera jurídica do interessado não deixando à Administração qualquer margem de apreciação e ponderação
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(cf. sentença recorrida, fls. 208) - sendo esta a dimensão normativa impugnada pelo recorrente nos presentes autos -, o que se afigura desrespeitar o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, a que acresceria a violação do n.º 1 do mesmo artigo 30.º, já que, segundo a sentença recorrida,
«
negar ao aqui Réu o direito de adquirir a nacionalidade portuguesa com o fundamento ora em apreço seria objetivamente perpetuar a condenação que sofreu há vinte anos atrás, condenação que passaria a ser um ferrete, um labéu, que o acompanharia toda a via, em flagrante violação da dignidade da pessoa humana, e que em nada contribuiria para a sua reinserção na sociedade
»
(cf. idem). Conclui, por fim, pela violação do princípio da proporcionalidade, nos seus elementos necessidade e adequação, por entender que o impedimento em causa à aquisição da nacionalidade
«
só se justificaria se o crime por que o aqui Réu foi condenado tivesse sido cometido com o fim de ilegitimamente obter a nacionalidade portuguesa [...] ou se fosse motivado por ódio aos portugueses enquanto povo
»
(cf. fls. 209).
Da leitura da sentença recorrida pode retirar-se que do alegado efeito necessário - no sentido de automático - da condenação em crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos decorrem duas consequências que o Juiz entende violadoras das normas e princípios constitucionais por si invocados:
desde logo, a impossibilidade de apreciação e ponderação, pelo aplicador, deste fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa e, ainda, a falta de ponderação do tempo decorrido sobre a condenação em causa, assim também limitando o aplicador da norma.
Desta sentença recorreu o Ministério Público, reportando-se ao alegado efeito necessário, no sentido de automático, da condenação em pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos e à perpetuidade dos efeitos dessa condenação, tendo definido o objeto do presente recurso nos termos supra indicados em I, 2. (cf. fls. 215).
A) Do enquadramento
13 - As normas legais - na dimensão interpretativa assinalada - cuja aplicação foi recusada enquadram-se no direito português da nacionalidade, que se pode perspetivar numa tripla ótica, entre si relacionada, de Direito Internacional, de Direito constitucional e de Direito (interno) infraconstitucional que os concretiza.
14 - Numa definição primeira (ou clássica) de
«
nacionalidade
» partimos da noção de vínculo jurídicopolítico que liga um indivíduo a um Estado, assente na especial relação em que um indivíduo se acha para com a sociedade politicamente organizada a que pertence (na expressão de Luís Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, 4.ª ed. revista, Coimbra, Almedina, 1995, p. 259). Deste primeiro sentido avulta a ideia de uma ligação fundamental do indivíduo ao Estado, resultando desse vínculo a delimitação do povo estadual e mostrando-se, assim, essencial à definição do próprio Estado, enquanto entidade politicamente organizada com substrato territorial e pessoal.
Quanto à designação desse vínculo jurídicopolítico que liga um indivíduo ao Estado verifica-se a utilização algo indiferenciada dos termos
.
Com efeito, quer ao nível doutrinário quer ao nível legislativo - como resulta, aliás, do direito comparado - as duas expressões têm sido utilizadas, muitas vezes, para referir a mesma realidade. Temos, exemplificativamente, a utilização dos vocábulos nationalité e nacionalidad, nos ordenamentos francês e espanhol e citizenship e cittadinanza, nos ordenamentos britânico e italiano, sendo que, entre nós, se o primeiro (nacionalidade) é adotado pelo legislador ordinário, já o segundo (ci-dadania) é claramente preferido pelo legislador constitucional - que o consagra, desde logo, no artigo 4.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Já no plano do direito internacional, universal e regional, o termo nacionalidade é o utilizado nos mais relevantes textos, em especial de índole convencional, que contemplam o referido vínculo (assim sucede, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 15.º) ou, no âmbito regional europeu do Conselho da Europa, com a Convenção Europeia sobre a Nacionalidade de 6 de novembro de 1997 (artigo 4.º). Partindo-se desta primeira noção - assente na ideia do referido vínculo jurídicopolítico -, pode, não obstante, reconhecer-se não se tratar de uma questão de sinonímia entre nacionalidade e cidadania. Algumas diferenças decorrerão, desde logo, da perspetiva assumida na compreensão do próprio conceito.
Assim, mesmo para além do que resulte da relativa imprecisão do termo nacionalidade - se referido à ideia de pertença ou ligação à realidade histórica ou sociológica de nação - e que possa justificar a sua preterição a favor do uso do termo cidadania, releva sobretudo, nas palavras de Moura Ramos,
«
precisar que eles não são em absoluto coincidentes, reportando-se antes a diferentes perspetivas de encarar uma só relação. Assim pode dizer-se que enquanto o termo nacionalidade se limita a acentuar a ideia de ligação de um indivíduo a uma unidade estatal, sublinhando deste modo o vínculo que o une ao Estado, já quando se fala em cidadania se tem em consideração o feixe de direitos e deveres que daquela ligação decorrem, ou seja o seu conteúdo. O termo cidadania aparece assim associado ao estatuto de plena participação do indivíduo nos negócios da cidade, o que coloca a tónica no aspeto nacional, interno, deste conceito (cf. o que dizemos a este propósito in Cidadania, Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, v. I, p. 824-829). O vocábulo nacionalidade, pelo contrário, ao reportar-se antes à ideia de definição da população constitutiva do Estado, acentua a vertente internacional do conceito, na medida em que atende preferencialmente à delimitação do círculo de pessoas sobre que se exerce a jurisdição pessoal do Estado, traçando pela negativa os limites desta e desenhando por essa via os contornos de outra noção - a de estrangeiro:
que é, em relação a qualquer Estado, todo aquele que não está a ele ligado pelo vínculo da nacionalidade
»
(cf. Do Direito Português da Nacionalidade, Coimbra Editora, 1984, nota 1, pp. 4-5).
Também Jorge MIRANDA distingue os conceitos de nacionalidade e de cidadania, preferindo o segundo, pois a cidadania corresponde exatamente à referida qualidade de cidadão, à participação no Estado democrático, e que apenas possuem as pessoas singulares, e à sua ligação com o Estado - ao contrário de nacionalidade, que corresponde à relação com uma Nação e com maior extensão do que aquele (Ma-nual de Direito Constitucional, Tomo III, 6.ª ed., 2010, pp. 102-103). Daqui também resulta, na esteira do que escreve Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 419), podermos, na análise do conceito, conferir maior relevância à dimensão de participação (cidadania-participação) ou à dimensão de pertença (cidadania-pertença, muitas vezes associada à ideia de nacionalidade), tendo em atenção que estas diferentes perspetivas não deixam de se complementar na compreensão do conceito em causa. A riqueza do conceito - sobretudo no plano normativo - não se esgota no exposto. A ideia de cidadania enquanto estatuto não pode deixar de ser completada com a ideia de cidadania enquanto direito (sobre esta dupla dimensão:
cidadania como status e cidadania como direito fundamental, desde logo, António Marques dos Santos,
«
Na-cionalidade e efetividade
» in Estudos de Direito da Nacionalidade, Almedina, 1998, pp. 294-295 e, bem assim, Jorge Miranda, anotação ao artigo 4.º, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, na sua 1.ª edição, Coimbra Editora, 2005, p. 71; referindo-se à
«
natureza bifronte
» do vínculo da nacionalidade, Rui Moura Ramos, Do Direito Português da Nacionalidade, Biblioteca Jurídica Coimbra Editora, 1984, p. 117).
15 - Na ótica do Direito Internacional e suas fontes, deve começar por sublinhar-se a progressiva tendência de reconhecimento expresso e da proteção do direito à nacionalidade enquanto direito da pessoa humana, quer ao nível universal, quer ao nível regional - sendo algumas dessas fontes parâmetro de interpretação dos preceitos constitucionais e legais relativos a direitos fundamentais nos temos do n.º 2 do artigo 16.º da CRP (o caso da Declaração Universal dos Direitos do Homem) ou objeto de receção na Ordem Jurídica Portuguesa, por força do n.º 2 do artigo 8.º da CRP.
Com efeito,
«
[...] no plano do Direito Internacional, universal e regional, regista-se uma tendência para o reconhecimento do direito à nacionalidade como um dos direitos fundamentais do Homem, tendência patente, sucessivamente:
na proclamação do direito à nacionalidade pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH - artigo 15.º) [...]; no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 (PIDCP - artigo 24, § 3, quanto às crianças)[...]; na Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias de 18 de dezembro de 1990 [...] (CTM - artigo 29.º, quanto aos filhos dos trabalhadores migrantes) [...], no Projeto de artigos da Comissão de Direito Internacional (CDI) de 1999 sobre a nacionalidade das pessoas singulares em relação com a sucessão de Estados [...] (artigo 1.º); e, ainda, ao nível regional, na Convenção do Conselho da Europa sobre a nacionalidade de 6 de novembro de 1997
(artigo 4.º, em especial alíneas a) e b)) e na Convenção do Conselho da Europa sobre a prevenção dos casos de apatridia em relação com a sucessão de Estados de 19 de maio de 2006 (artigo 2.º) [...].
»
(Maria José Rangel de Mesquita, Direitos Fundamentais dos Estrangeiros na Ordem Jurídica Portuguesa:
uma perspetiva constitucional, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 13-14).
A importância conferida ao direito à nacionalidade pelas fontes de Direito Internacional relevantes, de índole convencional ou outras, pode ser perspetivada sob um de dois prismas essenciais:
um prisma que configura a nacionalidade como direito da pessoa humana - em geral ou por referência a uma dada categoria particular, como é o caso das crianças ou dos filhos dos trabalhadores migrantes; ou um prisma, em que o direito à nacionalidade reveste porventura maior premência, que consagra a sua proteção com vista à eliminação (ou diminuição) dos casos de inexistência da qualidade de nacional (apatridia) ou à prevenção da sua perda - o que sucede no quadro das diversas convenções em matéria de apatridia, em si mesma considerada ou, em especial, considerada na sua relação com o fenómeno da sucessão de Estados. A este prisma pode acrescentar-se um outro, que confere proteção à nacionalidade no quadro das exigências ditadas pelo princípio da igualdade.
Integrando estes três grupos de fontes, respetivamente, destacam-se, além das já acima referidas:
a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução 44/25 da Assembleia Geral da ONU de 20/11/1989 e que entrou em vigor em 2/09/90 (artigo 7.º, n.os 1 e 2); a Convenção sobre a redução dos casos de apatridia de 30 de agosto de 1961, adotada por uma conferência de plenipotenciários em aplicação da Resolução da Assembleia Geral de 896 (IX) de 5 de dezembro de 1954, que entrou em vigor em 13/12/1975 (em especial artigos 1.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1) e a Convenção de Nova Iorque Relativa ao Estatuto dos Apátridas de 28 de setembro de 1954, adotada por uma conferência de plenipotenciários reunida em aplicação das disposições da Resolução 526.ª (XVII) do Conselho Económico e Social de 26/04/1954, que entrou em vigor em 6/06/1960 (cf. artigo 32.º); e, ainda, no quadro da ONU, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, adotada por Resolução da Assembleia Geral da ONU n.º 34/180, de 18/12/1979, que entrou em vigor em 3/09/1981 (artigo 9. º, n.os 1 e 2) e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Resolução 2106 (XX) da Assembleia Geral da ONU e que entrou em vigor em 4/01/1969 (artigo 5.º, d), iii)).
Sem prejuízo de algumas das fontes mencionadas não vincularem ainda o Estado português - quer por terem a natureza de fonte de Direito Internacional não vinculativa, quer por ainda não terem sido objeto de ratificação e publicação -, as mesmas não deixam de transparecer a significativa relevância dada pelo Direito Internacional dos Direitos do Homem ao direito à aquisição (ou prevenção da perda) da qualidade de nacional de um Estado da comunidade internacional, assim configurando obrigações de meios a cargos dos Estados mediante concretização desses deveres nas respetivas Ordens Jurídicas internas. E, se a vontade em ficar vinculado a tais deveres, por via da vinculação aos instrumentos internacionais convencionais que os consagram é, ainda, uma expressão da soberania estadual na ordem jurídica internacional, a aceitação dessa vinculação, nos moldes previstos pela lei fundamental respetiva, não deixa de conformar heteronomamente a margem de liberdade do legislador nacional na configuração legislativa do regime infraconstitucional aplicável em matéria de nacionalidade e, do mesmo passo, a interpretação do mesmo no quadro da sua aplicação na ordem jurídica nacional. 16 - Na ordem jurídica interna, na ótica do nível constitucional, a lei fundamental consagra a inclusão do direito à cidadania no elenco dos direitos fundamentais pessoais a que se refere o artigo 26.º (n.º 1) da Constituição da República Portuguesa de 1976 (na versão que o legislador de revisão lhe conferiu em 1982 - Lei Constitucional 1/82, de 30 de setembro).
16.1 - A cidadania, como escreve Jorge Pereira da Silva,
«
é simultaneamente um estado e um direito. Por um lado, é um status, traduzido num vínculo jurídico que liga de uma forma estável um indivíduo a uma determinada entidade política soberana (na ordem externa), normalmente um Estado (unitário ou federal). Por outro lado, é também um direito de todos os indivíduos, como tal reconhecido por várias convenções internacionais e por muitos textos constitucionais - entre os quais se encontra a Constituição portuguesa, que reconhece à cidadania, no n.º 1 do seu artigo 26.º, a qualidade de direito, liberdade e garantia, com as inerentes consequências de regime. Mais, é um direito de acesso a outros direitos, uma vez que tanto o Direito Internacional como as ordens jurídicas internas de diferentes Estados fazem em regra depender de um vínculo de cidadania previamente estabelecido a possibilidade de os indivíduos acederem a um significativo conjunto de direitos, fundamentalmente ligados às liberdades de deslocação (transfronteiriça) e de fixação e, bem assim, aos direitos e liberdades de participação política
»
(
«
‘‘Culturas da Cidadania” - Em Torno de um Acórdão do TC e a Nova Lei da Nacionalidade. Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 599/05
» in Jurisprudência Constitucional, n.º 11, julho-setembro 2006, Coimbra Editora, pp. 72-87, p. 81).
É certo que, a este respeito, se pode assinalar um relativo esbatimento da diferença entre o estatuto dos cidadãos portugueses e o estatuto dos nãonacionais (estrangeiros ou apátridas) decorrente da consagração constitucional, no n.º 1 do artigo 15.º, do princípio da equiparação, ao determinar que os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português, e da lei fundamental derivando um entendimento garantístico das exceções ao princípio consentidas pela Constituição. Assim o Acórdão 345/2002 (disponível, bem como os demais citados, em www.tribunalconstitucional.pt):
«
[O] estatuto constitucional do estrangeiro admite exceções ao princípio da equiparação, como resulta inequivocamente da leitura da norma constitucional.
Não obstante, esses desvios constituem restrições a tal princípio e, nessa medida - o que é um aspeto fundamental do regime dos direitos, liberdades e garantias - encontram-se as mesmas submetidas ao regime do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, sendo, como tal, limitadas ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Na verdade, o princípio da proporcionalidade que aqui se surpreende exige - como se retira do longo acervo da jurisprudência constitucional nesta matéria - que as medidas restritivas legalmente previstas sejam o meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei, ou seja, para a salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, sendo necessários para alcançar esses fins, que não poderiam ser atingidos com meios menos gravosos, mais se exigindo que os meios restritivos e os fins obtidos se situem numa “justa medida”. [...]
»
.
Não obstante, deve ter-se presente, para além da importância (simbó-lica, cultural, de pertença) de que se reveste o vínculo de ligação entre um indivíduo e o Estado, que importantes direitos constitucionais, sobretudo de participação política, são ainda reservados aos cidadãos portugueses, como os subsequentes e sucessivos números do citado artigo 15.º não deixam de afirmar - sem prejuízo do expresso fundamento constitucional que possibilita, em certos moldes, a extensão de alguns desses direitos a não nacionais, quer nacionais de Estados membros da União Europeia, quer nacionais de países terceiros.
16.2 - Naquela última vertente, enquanto direito de acesso a outros direitos, merece ainda referência a cidadania europeia, tal como consagrada no artigo 20.º, n.º 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia:
«
É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-membro. A cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui
»
. Sendo certo que o enfoque da cidadania da União Europeia é colocado nos (específicos) direitos de cidadania que lhe são associados hoje (elencados no n.º 2, alíneas a) a d) do artigo 20.º do TFUE e densificados depois nos artigos 21.º a 24.º do mesmo Tratado) e não tanto no direito à cidadania - até porquanto deriva esta da cidadania nacional, cuja definição permanece cometida em exclusivo aos respetivos EstadosMembros -, não menos certo é que, por força do Direito primário (Tratados institutivos) e do direito derivado da União Europeia ao estatuto de cidadão da União Europeia são associados importantes direitos, relevando em especial aqueles que lhe são exclusivos (como, prima facie, a liberdade de circulação e de permanência no território dos EstadosMembros e, em absoluto, os direitos de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu e de eleger e de ser eleito nas eleições municipais no Estado membro de residência ou o direito de proteção diplomática e consular). E, sublinhe-se, os específicos direitos assim conferidos aos cidadãos da União revestem, após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a natureza de verdadeiros direitos fundamentais - a qual decorre da sua inserção, em Título próprio (Título V - Cidadania), na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigos 39.º a 46.º), à qual se atribui hoje o mesmo valor jurídico que os Tratados (cf. artigo 6.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia) cuja violação - quer pelos Estados membros, quer pela União Europeia, se afigura sindicável.
Assim, acrescidamente, esta específica configuração da cidadania da União Europeia, derivando da cidadania nacional dos EstadosMembros, não deixa de se refletir na relevância que assume - ao menos indiretamente - para os que pretendam adquirir a nacionalidade portuguesa, enquanto condição (ou qualidade) sine qua non de acesso ao específico estatuto de cidadania europeia.
17 - Da fundamentalidade material da cidadania decorre, como vimos, a expressa consagração no texto constitucional da cidadania - enquanto estatuto e enquanto direito fundamental.
17.1 - Ao nível constitucional não se encontra a definição de cidadão (nacional). Com efeito, o artigo 4.º da Constituição de 1976 prescreve que
«
são cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional
»
.
A par desta expressa remissão da matéria para as convenções internacionais de que Portugal seja parte e para a lei, a Constituição não deixou, no entanto, de rodear o instituto da cidadania portuguesa de importantes garantias formais e procedimentais, na medida em que inclui o regime da aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa entre as matérias da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 164.º, alínea f), CRP), e estabelece a forma (agravada) de lei orgânica para o exercício desta competência legislativa parlamentar, com as específicas exigências de tramitação, forma e maioria de aprovação associadas às leis orgânicas (artigos 112.º, n.º 3, 166.º, n.º 2, e 168.º, n.os 4 e 5). Do mesmo modo, é exigida a aprovação parlamentar da matéria em sede convencional (artigo 161.º, alínea i), CRP), podendo ainda ponderar-se, nesta sede, se a matéria se inclui na designada
«
reserva de tratado
» solene, não bastando a adoção de um acordo internacional para a respetiva formalização e vinculação do Estado português (neste sentido, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Wolters Kluwer Portugal/Coimbra Editora, 2010, p. 125); e tendo ainda aplicação um regime especial de fiscalização (preventiva) da constitucionalidade, que confere legitimidade também (além do Presidente da República) ao PrimeiroMinistro ou a um quinto dos Deputados em efetividade de funções (cf. artigo 278.º, n.os 4, 5 e 6, da CRP). Disto mesmo nos dá conta o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 599/05, de 2 de novembro de 2005 (B, n.º 6.4, disponível, bem como os demais citados, em www.tribunalconstitucional.pt)
17.2 - Por outro lado, e desde a revisão constitucional de 1982, é a própria Constituição que expressamente afirma a cidadania como um direito fundamental. O direito à cidadania surge consagrado no artigo 26.º, n.º 1 (e n.º 4), da Constituição, a par de outros direitos pessoais:
«
Artigo 26.º
(Outros direitos pessoais)
1 - A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.
[...] 4 - A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.
»
E, nos termos do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição, este direito mostra-se especialmente protegido, a par de outros direitos pessoais, pela garantia da insusceptibilidade de suspensão em estado de sítio ou em estado de emergência.
Sobre o direito fundamental à cidadania já teve o Tribunal Constitucional oportunidade de pronunciar-se. E fêlo nos seguintes termos (Acórdão 599/2005, cit.):
«
[...] Mas é no artigo 26.º, n.º 1, que a Constituição consagra o direito de cidadania portuguesa como direito fundamental ao dispor que “a todos são reconhecidos os direitos [...] à cidadania, [...]”.
Uma tal conclusão resulta evidente do confronto do disposto neste número com a prescrição constante do n.º 4 do mesmo artigo, segundo o qual “a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos”.
Na verdade, “considerando que compete aos Estados, embora dentro dos parâmetros (cada vez mais apertados) do direito internacional, definir quem são os seus próprios cidadãos, seria descabido e internacionalmente irrelevante - senão mesmo tido como uma interferência inaceitável - que o direito interno de um Estado se pronunciasse sobre a obtenção, conservação ou perda de cidadanias de outros paí-ses” (JORGE PEREIRA DA SILVA, Direitos de Cidadania e Direito à Cidadania, Observatório da Imigração, ACIME, Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas, Lisboa, 2004, pp. 91).
[...] É também como direito de natureza fundamental que a doutrina nacional referida qualifica o direito de nacionalidade portuguesa [ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, op. cit. pp. 294, diz a esse respeito, que, “além de ser um elemento do estado das pessoas, isto é, um status, e até mesmo um direito de personalidade, a nacionalidade é um direito fundamental, como já resultava, ainda antes da entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976, do artigo 15.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), de 10.12.1948; no plano do direito constitucional positivo português, se tal conclusão se poderia inferir do texto da Constituição, na sua versão original, segundo alguns [...], ela ficou claramente estabelecida após a primeira revisão constitucional, ao ser incluída a cidadania no elenco dos outros direitos, liberdades e garantias pessoais (artigo 26.º, n.º 1 da CRP), para além do direito à vida (artigo 24.º), do direito à integridade pessoal (artigo 25.º), bem como dos demais direitos referidos no artigo 27.º e seguintes da Lei fundamental, que têm igualmente caráter pessoal”].
A natureza de direito fundamental do direito de cidadania portuguesa postula a sua subordinação a alguns corolários garantísticos que constitucionalmente enformam os direitos fundamentais, nomeadamente, aos princípios da sua universalidade e da igualdade, a vocação para a sua aplicabilidade direta, a vinculação de todas as autoridades públicas e privadas e a sujeição das restrições legais ao regime exigente constante dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP. Tendo, porém, o legislador constitucional remetido a definição do regime do direito à cidadania portuguesa para o direito internacional pactício e para a legislação ordinária, daí decorre que será, nesse terreno, que tais fontes iluminarão a concreta densificação do seu estatuto jurídico.
Sem embargo, não poderá deixar de inferir-se do referido artigo 4.º da Constituição, conjugadamente, quer com outros preceitos constitucionais (por exemplo, os artigos 36.º, 67.º e 68.º, relativos ao estatuto constitucional da família, casamento e filiação, maternidade e paternidade), quer com os princípios de direito internacional, um certo conteúdo mínimo que o legislador ordinário não poderá postergar na definição do regime de acesso ao direito em causa, que é a questão que aqui se coloca.
Assim, cingindonos ao campo em que a questão se coloca, o “legislador não poderá deixar de se ater ao princípio derivado do direito internacional da ligação efetiva (e genuína) entre a pessoa em causa e o Estado português, tomado aquele princípio tanto no sentido negativo - irrelevância da cidadania atribuída ou adquirida à margem de qualquer ligação efetiva - como no seu sentido positivo - preferência da ligação mais efetiva sobre as demais, conformando a propósito da cidadania originária e da cidadania derivada, os critérios que são comummente utilizados na concretização daquele princípio jusinternacional:
isto é, o ius sanguinis e o ius soli, em relação à cidadania originária; a filiação, a adoção, o casamento e a residência, no que respeita à cidadania derivada” (JORGE PEREIRA DA SILVA, op. cit. pp. 97).
Ao legislador ordinário está pois cometida a tarefa de densificar o acesso à cidadania portuguesa, sendo que nessa densificação não poderão deixar de relevar essencialmente as relações que desvelem as situações de uma ligação efetiva entre o indivíduo e o Estado português e a comunidade nacional.
»
17.3 - À fórmula compreensiva contida no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição - a todos é reconhecido o direito à cidadania - têm sido associados quer o direito a não ser privado da cidadania portuguesa quer o direito a aceder à cidadania portuguesa.
Assim, à questão de saber se
«
[...] o n.º 1 do artigo 26.º consagra apenas o direito (dos portugueses) a não serem privados da cidadania portuguesa ou se, mais amplamente, consagra também o direito (de todos os indivíduos não portugueses, mas que tenham uma ligação relevante a Portugal) a obter a cidadania portuguesa
»
, responde Jorge Pereira da Silva:
«
Não temos, porém, grandes dúvidas em afirmar que o direito à cidadania portuguesa é um direito que a Constituição “a todos” reconhece:
aos portugueses o direito de não serem privados arbitrariamente dessa qualidade; a todos os demais reconhece o direito de acederem a essa qualidade, naturalmente, dentro de certos parâmetros
»
(cf.
«
O direito fundamental à cidadania portuguesa
» in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004, pp. 265-313, p. 277)
»
.
Da leitura (ampla) que aquele Autor faz do artigo 26.º, n.º 1, prefere Jorge Miranda retirar
(cf. Jorge Miranda /Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Wolters Kluwer Portugal/Coimbra Editora, 2010, anotação ao artigo 4.º, VI, p. 127).
E se o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição portuguesa tutela o direito fundamental à aquisição da cidadania portuguesa e o direito a não ser privado da cidadania portuguesa, aos dois direitos se assinalam diferenças. Como também escreve Jorge Pereira da Silva (cf.
, cit., p. 279):
«
[O] direito a aceder à cidadania portuguesa e o direito a não ser privado de modo arbitrário da cidadania portuguesa apresentam inevitavelmente uma estrutura muito diferente. Com efeito, ao passo que o primeiro é um direito positivo, exigindo dos poderes públicos uma atitude interventiva, no sentido de criar as condições jurídicas para a sua efetivação, o segundo é um direito essencialmente negativo (se não mesmo uma simples garantia daquele primeiro), que visa a defesa contra as intervenções arbitrárias dos mesmos poderes públicos, exigindo-se destes, apenas, que não atentem contra o status dos cidadãos portugue-ses. Por outras palavras, o direito a obter a cidadania portuguesa é um direito a prestações jurídicas por parte do Estado - a começar pelo Estadolegislador -, enquanto o direito a não ser privado da cidadania portuguesa é um direito a abstenções daquele mesmo Estado (25) [(25) Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, trad., Madrid, 1997, págs. 186 e segs.].
Em consequência, o artigo 26.º da Constituição, no que respeita à dimensão positiva do direito à cidadania (como um todo), é uma norma constitucional não exequível por si mesma, carecendo de concretização por parte do legislador ordinário, enquanto, no concernente à dimensão negativa daquele direito, se apresenta como imediatamente exequível, dispensando, por isso, qualquer intervenção legislativa destinada a conferirlhe efetividade (26) [(26) Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, Coimbra, 2000, págs. 311 e segs.].
18 - Por fim, na ótica do direito ordinário, a definição da cidadania portuguesa - por via da expressa remissão constitucional para o plano infraconstitucional, legal, e convencional, constante do artigo 4.º da CRP -, encontra na Lei da Nacionalidade portuguesa a respetiva concretização. É nessa sede que encontramos os critérios e os pressupostos para a definição de quem é ou pode ser cidadão nacional.
A expressa remissão para o legislador ordinário - a quem a Constituição comete a tarefa de definição dos critérios que presidem ao estabelecimento do vínculo jurídico da cidadania portuguesa (artigo 4.º) - não pode deixar de ter presente a inequívoca natureza iusfundamental da cidadania (artigo 26.º, n.º 1, CRP).
Assim, e tratando-se da regulação de um direito fundamental, constitucionalmente consagrado, cumpre recordar que
«
[...] esta intervenção conformadora do legislador impõe-se, inequivocamente, quando os direitos fundamentais carecem, para o seu exercício, de interpositio legislatoris. Alguns autores aludem aqui a
«
âmbitos normativos
» carecidos de conformação jurídiconormativa [...]. A conformação de direitos fundamentais não significa que o legislador possa dispor deles, significa apenas a necessidade da lei para “garantir” o exercício de direitos fundamentais. A conformação dos direitos fundamentais impõe-se, neste contexto, como tarefa da legislação
»
(Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 1263).
Do que atrás se disse resulta, pois, que, em matéria de cidadania, como escreve Jorge Pereira da Silva, a Lei da Nacionalidade Portuguesa é uma
«
lei constitucionalmente devida, que visa ao mesmo tempo concretizar o direito a aceder à cidadania portuguesa e regular, em termos adequados, as questões organizativas e procedimentais suscitadas pela atribuição e aquisição do estatuto jurídico de cidadão português. A Lei 37/81, de 3 de outubro, contém assim o regime de um direito, liberdade e garantia, merecendo, por isso o epíteto de lei materialmente constitucional
»
(cf.
«
O direito fundamental à cidadania portuguesa
»
, cit., p. 280, itálicos acres-centados).
18.1 - Atentemos, assim, na atual Lei da Nacionalidade portuguesa, aprovada pela Lei 37/81, de 3 de outubro e sucessivamente alterada pela Lei 25/94, de 19 de agosto, pelo Decreto Lei 322-A/2001, de 14 de dezembro, pela Lei Orgânica 1/2004, de 15 de janeiro, pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril - assinalando-se aqui ser essa a versão aplicada nos autos sub judicie -, pela Lei 43/2013, de 3 de julho, pela Lei Orgânica 1/2013, de 29 de julho, pela Lei Orgânica 8/2015, de 22 de junho e resultando a versão atual das alterações introduzidas pela Lei Orgânica 9/2015, de 29 de julho (em especial, sobre as alterações introduzidas pelas Leis Orgânicas n.os 2/2006, de 17 de abril, 8/2015, de 22 de junho e 9/2015, de 29 de julho, vd. Rui Manuel Moura Ramos,
«
As alterações recentes ao direito português da nacionalidade - Entre a reparação histórica, a ameaça do terrorismo islâmico e a situação dos netos de portugueses nascidos no estrangeiro
» in, respetivamente, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 136.º, marçoabril de 2007, n.º 3943, Coimbra Editora, pp. 198-233 e Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 145.º, setembrooutubro de 2015, n.º 3994, Coimbra Editora, pp. 4-25).
De acordo com a lei, a nacionalidade portuguesa pode ser originária - atribuição (artigo 1.º), ou derivada - aquisição por efeito da vontade (artigos 2.º, 3.º e 4.º), pela adoção (plena - artigo 5.º) e por naturalização (artigo 6.º).
18.2 - Para o que especialmente releva, no caso dos autos, de acordo com o artigo 3.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade Portuguesa, o estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do casamento.
Sobre esta modalidade de aquisição da nacionalidade por efeito da vontade já se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 605/2013:
«
[...] [O] direito da nacionalidade, a apresentar alguma “natureza” (ou a ser, por substância, de índole “publicística” e não “privatística”), fá-lo-á por implicar desde logo a definição dos critérios jurídicos que presidem à constituição do vínculo das pessoas à comunidade política portuguesa (artigo 4.º da CRP), e por se reportar ao modo de exercício de um direito que, por isso mesmo, não pode deixar de deter dignidade jusfundamental (artigo 26.º, n.º 1).
É, aliás, esta especial “sensibilidade” que o direito da nacionalidade ostenta face a valores constitucionais (por essência “públicos”, mas nem por isso administrativos), que explica que esse direito tivesse que ser redefinido por lei ordinária, pouco tempo depois da entrada em vigor da Constituição da República. A Lei da Nacionalidade foi escrita em 1981 porque foi então que, neste domínio, o direito português se conformou com as diferentes exigências de valor decorrentes da nova ordem constitucional. Não vale a pena recordar todas essas exigências (Rui Moura Ramos, O Direito Português da Nacionalidade, Coimbra, 1984); mas basta que se sublinhe o novo regime, que então se definiu, de aquisição da nacionalidade em caso de casamento, segundo o qual o estrangeiro casado com nacional português pode[ria] adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio (artigo 3.º, n.º 1, da Lei 37/81, na versão original), para que imediatamente se compreenda a especial reverberação do direito da nacionalidade aos novos valores constitucionais. O regime assim definido vinha, como muito bem se sabe, substituir o outro que fora fixado em 1959 pela Lei 2098, que não apenas contrariava o princípio da igualdade entre cônjuges como desconsiderava a relevância decisiva da vontade na aquisição da nacionalidade por efeito do casamento. Quer isto dizer que a disciplina contida no artigo 3.º da Lei 37/81 foi, desde o início, reflexo especialmente vivo da inevitável comunicação entre direito da nacionalidade e valores constitucionais.
As alterações, posteriores a 1981, que a redação do artigo sofreu são disso mesmo exemplo claro. Em 1994 veio acrescentar-se, ao n.º 1 do referido preceito, a exigência de duração do casamento [de estrangeiro com nacional português] de pelo menos três anos. O casamento passou a partir de então a ser pressuposto de facto idóneo para a aquisição da nacionalidade portuguesa por mero efeito da vontade desde que se verificasse a sua subsistência durante um lapso significativo de tempo. A exigência, que ainda hoje consta da redação desde então inalterada do n.º 1 do artigo 3.º, visou evidentemente evitar que, sob a pressão entretanto acrescida de fluxos migratórios, se manipulasse fraudulentamente, através de “falsos casamentos”, este pressuposto de acesso à cidadania portuguesa.
Do mesmo modo, através da Lei Orgânica 2/2006, na quarta alteração à Lei da Nacionalidade, veio o legislador, como já se disse, equiparar, neste domínio, a união de facto ao casamento. A homenagem a princípios constitucionais como os princípios da igualdade e da não discriminação é evidente. Mas também é evidente a necessidade de impedir (à semelhança do que acontece com o casamento) que a via de acesso à condição de nacional português que assim - e em conso-nância com soluções idênticas propugnadas por direitos estrangeiros e por convenções internacionais - se abre a estrangeiros que tenham laços vivenciais com a comunidade nacional seja fraudulentamente manipulada, através da invocação de estados de união de facto que sejam, na realidade, inexistentes. Foi por isso que se estabeleceu, no n.º 3 do artigo 3.º da Lei 37/81, na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, que, nestes casos, a declaração de vontade de aquisição da nacionalidade portuguesa fosse necessariamente precedida de ação de reconhecimento da situação de união de facto, a interpor no tribunal cível
»
.
O casamento (e, desde 2006, a união de facto - cf. artigo 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade portuguesa) é, assim, um pressuposto de aquisição da cidadania, entendendo-se corresponder, tal como a possibilidade de aquisição da cidadania portuguesa pelos filhos menores ou incapazes ou por efeito da adoção, à razão da
«
salvaguarda da unidade do estatuto fa-miliar
»
, valor que encontra também na Constituição a devida tutela (neste sentido, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Volume II, Tomo III - Estrutura Constitucional do Estado e Tomo IV - Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 125).
Do mesmo passo, a escolha, pelo legislador, deste pressuposto de aquisição da cidadania portuguesa não deixa de refletir a importância dos laços familiares na expressão do vínculo de ligação efetiva à comunidade nacional, base e fundamento - que decorre, desde logo, do Direito Internacional - do estabelecimento da cidadania.
Da lei portuguesa decorre que a aquisição da nacionalidade pelos cônjuges ou companheiros de portugueses é possível a partir do momento em que subsistam esses laços familiares por um período de tempo superior a três anos, cabendo aos interessados comprovar a existência desses laços e expressar a vontade de que pretendem adquirir a nacionalidade portuguesa (artigo 3.º da Lei da Nacionalidade portuguesa). A manifestação de vontade é, assim, determinante no exercício do direito em análise.
18.3 - Mas se, também deste modo, a lei promove o valor da unidade familiar, retirando da constância do casamento um indício forte da ligação do indivíduo à comunidade nacional, é também a lei que dota o Estado português de mecanismos legais destinados a evitar que cidadãos estrangeiros - sem ligação efetiva a Portugal ou tidos por indesejáveis - possam adquirir a nacionalidade portuguesa. Assim, é contemplado o instituto da oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, prevendo-se, no artigo 9.º, da Lei da Nacionalidade portuguesa que esta forma de aquisição da nacionalidade é suscetível de oposição pelo Estado, através do Ministério Público, quando se verifique:
a) a inexistência de uma ligação efetiva do interessado à comunidade nacional;
b) a condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa;
c) o exercício de funções públicas sem caráter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro; e, desde a alteração introduzida pela Lei Orgânica 8/2015, de 22 de junho, d) a existência de perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo, nos termos da respetiva lei.
Se o instituto da oposição à aquisição da nacionalidade integra o quadro normativo português desde a Lei 2098, de 29 de julho de 1959 - então com um âmbito de aplicação mais alargado do que o atual -, certo é que a Lei da Nacionalidade Portuguesa (Lei 37/81), nas suas sucessivas versões, regula aquele instituto, em especial, quanto aos fundamentos para a oposição, como o das normas legais que constituem o objeto do presente recurso de constitucionalidade.
A sua redação original estabelecia os seguintes fundamentos de oposição:
a manifesta inexistência de qualquer ligação efetiva à comunidade nacional; a prática de crime punível com pena maior, segundo a lei portuguesa; e o exercício de funções públicas ou a prestação de serviço militar não obrigatório a estado estrangeiro.
Para a aferição destes fundamentos eram ouvidos em auto os respetivos requerentes sobre os factos suscetíveis de constituir fundamentos de oposição, não lhes cabendo, todavia, a respetiva comprovação. Tal seria substancialmente alterado pela Lei 25/94, de 19 de agosto. Com efeito, esta lei, para além de estabelecer a necessidade de um período de três anos de casamento para que o cônjuge estrangeiro pudesse apresentar um pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa, viria a introduzir uma alteração significativa neste regime ao estabelecer que cabia ao interessado comprovar (por meio documental, testemunhal ou outro) a existência de uma ligação efetiva à comunidade nacional, pois, se isso não sucedesse, a não comprovação era motivo para oposição. Em paralelo cabia também essa prova aos requerentes de naturalização. A Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, veio repor o regime de prova originário, invertendo o respetivo ónus. Cabe, desde então, ao Ministério Público, a comprovação dos factos suscetíveis de fundamentarem a oposição deduzida, incluindo a falta de ligação efetiva à comunidade nacional. Já quanto aos fundamentos de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa por efeito da vontade ou adoção, a reforma de 2006 introduziu alterações ao nível da respetiva redação, definindoos nos seguintes termos:
- a inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional;
- a condenação por sentença transitada em julgado pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa;
- o exercício de funções públicas sem caráter predominantemente técnico e a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro. Por via da Lei Orgânica 8/2015, de 22 de junho, foi também aditado um novo fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade ou adoção:
a existência de perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo, nos termos da respetiva lei (cf. artigo 9.º, alínea d)).
18.4 - Pode ainda ter-se presente a evolução do regime normativo no domínio da aquisição da nacionalidade portuguesa (derivada) por outras formas que não por efeito da vontade ou adoção. Com efeito, com a Lei Orgânica 2/2006, a aquisição da nacionalidade por naturalização mostra-se substancialmente alterada, seja ao nível do poder da respetiva concessão, com a assinalável compressão da discricionariedade que lhe era tradicionalmente cometida - exemplarmente ilustrada com a nova redação do n.º 1 do artigo 6.º, prevendo-se que o Governo concede a nacionalidade portuguesa aos estrangeiros que satisfaçam cumulativamente os requisitos enunciados, e já não pode conceder, expressão circunscrita aos casos muito especiais previstos nos n.os 5 e 6 do mesmo preceito -, seja ao nível dos requisitos a observar, revogando-se os requisitos até então vigentes atinentes à idoneidade do requerente e à capacidade para assegurar a sua subsistência, em termos que viriam a ser substancialmente mantidos nas Leis Orgânicas n.os 8/2015, de 22 de junho (ressalvado o aditamento do mencionado requisito de os requerentes não constituírem perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo) e 9/2015, de 29 de julho.
Relativamente às formas de aquisição da nacionalidade portuguesa (derivada), sobretudo em face das mudanças ocorridas na disciplina legal da naturalização e no instituto de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, sublinha Rui Moura Ramos que a configuração do direito de aquisição da nacionalidade portuguesa pelo legislador ordinário não deixa de acentuar a sua iusfundamentalidade.
Assim, para o Autor (cf.
, cit., pp. 225-226):
«
[...] 26 - Se emerge assim claramente das modificações decorrentes da Lei Orgânica 2/2006 um claro desígnio de reforçar, pela facilitação do acesso à nacionalidade portuguesa, a integração dos estrangeiros imigrados, um outro ponto merece igualmente ser referido, quando pensamos nas linhas de força que animam aquele diploma. É ele o da acentuação do caráter de direito fundamental do direito à nacionalidade, circunstância esta que resulta, de forma que seria difícil ser mais clara, desde logo da mutação de natureza do instituto da naturalização a que acabamos de fazer referência [...].
Na verdade, esta natureza de direito fundamental que se reconhece ao vínculo de nacionalidade resultava até hoje especialmente da disciplina da perda da nacionalidade constante do artigo 8.º da Lei 37/81 [...], e encontrava ainda algum eco na cláusula antipatridia inserida igualmente neste diploma. Mas as limitações decisivas à natureza discricionária do poder estadual a que acabamos de nos referir a propósito da mudança de natureza jurídica da naturalização, vêm acentuar de forma muito clara esta tendência.
Por outro lado, um outro aspeto importa ainda referir em sede de reforço do vínculo da nacionalidade e de redução do poder determinante que era reconhecido ao Estado na sua modelação. Falamos do instituto da oposição à aquisição da nacionalidade, o outro elemento que permitia ao Governo intervir no delineamento concreto do vínculo de nacionalidade. A este propósito há que recordar que ele funcionava como válvula de segurança que permitia paralisar determinadas aquisições de nacionalidade decorrentes da vontade ou da adoção quando existisse o risco de introdução na comunidade portuguesa de “elementos em relação a quem houvesse fundadas razões para que o Estado não lhes quisesse reconhecer a condição nacional portuguesa” [...] Introduzido no nosso direito em 1959, por influência do direito francês onde fora acolhido em 1893 [...], este mecanismo, depois de ver o seu alcance limitado aos casos de aquisição derivada pela Lei 37/81 [...], veria os termos em que se encontrava reconhecido neste diploma serem alargados, como referimos [...], com a Lei 25/94. A interpretação jurisprudencial deste diploma consagraria na verdade a tese de que o interessado na aquisição da nacionalidade portuguesa tinha de comprovar, em termos que não poderiam deixar de se considerar como particularmente exigentes [...], a existência de uma ligação efetiva à comunidade nacional, o que permitiria restringir significativamente a aquisição da nacionalidade portuguesa. Mas a inversão do ónus da prova a que volta a proceder a nova lei, retornando assim à solução original da Lei 37/81, do mesmo modo que a clarificação por ela operada no sentido quer de que a condenação penal prevista na alínea b) do artigo 9.º é uma condenação transitada em julgado, quer de que o exercício de funções públicas no estrangeiro a que se refere a alínea c) da mesma disposição se refere apenas às que se possam considerar “sem caráter predominantemente técnico” [...], ao restringirem o alcance do mecanismo da oposição à aquisição, vêm limitar claramente as faculdades preclusivas (da aquisição da nacionalidade portuguesa) que ele comportava. Pode assim dizer-se que o poder modelador do Estado nas situações de aquisição derivada, que já fora limitado, no domínio da naturalização, às hipóteses, algo residuais, hoje previstas nos n.os 5 e 6 do artigo 6.º [...], se vê também igualmente ainda mais circunscrito por uma conceção que implica um uso mais morigerado do instituto da oposição à aquisição - o que equivale afinal a reforçar a densidade do direito à nacionalidade tal como ele emerge dos diversos preceitos da nossa lei.
»
18.5 - Se os fundamentos de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa por efeito da vontade ou adoção estão atualmente previstos no artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa na sua versão atual (com as últimas alterações, pese embora não relevantes neste domínio, introduzidas pela Lei Orgânica 9/2015, de 29 de julho), o instituto da oposição é regulado nos artigos 56.º a 60.º do (Novo) Regulamento da Nacionalidade portuguesa, aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (alterado pelo Decreto Lei 43/2013, de 1 de abril), prevendo-se que o requerente, aquando da apresentação do pedido, se deverá pronunciar sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional e sobre os demais fundamentos de oposição à aquisição da nacionalidade, sem obrigação, todavia, de comprovação documental (cf. artigo 57.º do Regulamento da Nacionalidade portuguesa).
É obrigatória para todas as autoridades a participação ao Ministério Público dos factos que possam constituir os fundamentos de oposição à aquisição da nacionalidade (artigo 10.º, n.º 2, da Lei da Nacionalidade portuguesa), para a abertura do correspondente processo de oposição. Trata-se de um processo jurisdicionalizado, com as inerentes garantias de defesa do interessado (designadamente o direito ao contraditório), sendo, para o efeito competente a jurisdição administrativa (cf. artigos 10.º, n.º 1, e 26.º, da Lei da Nacionalidade portuguesa).
B) Da questão de constitucionalidade
19 - É nesta sede que se coloca, in casu, a questão de constitucionalidade reportada ao fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa previsto na alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa e na alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade portuguesa - a condenação, por sentença transitada em julgado, por crime punível com a pena máxima igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa.
A decisão de não aplicação das normas legais citadas, ora recorrida, mostra-se dirigida ao sentido normativo que o julgador retira das mesmas, ou seja, a de que
«
o impedimento de adquirir a nacionalidade portuguesa, decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos é um efeito “necessário”, no sentido de efeito automático da condenação, na medida em que se impõe inexoravelmente ex vi legis na esfera jurídica do interessado, não deixando à Administração qualquer margem de apreciação e ponderação
»
(cf. requerimento de recurso de constitucionalidade, fls. 215).
E desse alegado efeito necessário - no sentido de automático - da condenação em crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos decorrem duas consequências que o Juiz entende inconstitucionais:
desde logo, a impossibilidade de apreciação e ponderação, pelo aplicador, deste fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa e, ainda, a falta de ponderação do tempo decorrido sobre a condenação em causa, o que
«
seria objetivamentre perpetuar a condenação que sofreu há vinte anos atrás
»
, nas palavras escolhidas na sentença ora recorrida.
Assim, para além da invocação do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, mostram-se determinantes no juízo de inconstitucionalidade formulado pelo juiz a quo os princípios contidos no artigo 30.º, n.os 1 e 4, da Constituição, que assim dispõe:
«
Artigo 30.º
Limites das penas e das medidas de segurança
1 - Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
2 - [...]. 3 - [...] 4 - Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
5 - [...]
»
Vejamos quanto aos parâmetros invocados. 19.1 - Socorre-se o juiz a quo do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição - “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos” - para concluir, configurando o direito fundamental à nacionalidade (que entende integrar tanto o direito de não perder a nacionalidade portuguesa de que se é titular quanto o direito de adquirir ex novo a nacionalidade portuguesa) e colocando no mesmo plano
«
suprimir um direito fundamental ou impedir, ilegitimamente, que ele entre na esfera de uma pessoa
»
, que
«
a liberdade de conformação do legislador ordinário não vai ao ponto de o autorizar a criar normas inconstitucionais
»
, sendo
«
óbvio que o impedimento de adquirir a nacionalidade portuguesa, decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos é um efeito “necessário”, no sentido de efeito automático da condenação, na medida em que se impõe inexoravelmente ex vi legis na esfera jurídica do interessado, não deixando à Administração qualquer margem de apreciação e ponderação
»
.
A alegada violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da CRP é igualmente sustentada nas alegações produzidas pelo Ministério Público (ora recorrente) a que o recorrido adere.
Reportando-se às normas constantes da alínea b), do artigo 9.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação da Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, e da alínea b), do n.º 2, do artigo 56.º, do Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro (Regulamento da Nacionalidade) - que entende determinarem
«
que a condenação transitada em julgado pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos constitui, por si só, automaticamente, fundamento da oposição à aquisição da nacionalidade, não admitindo qualquer apreciação ou ponderação por parte da Administração ou do julgador, e impondo, necessariamente, como sua consequência, a insusceptibilidade da aquisição da nacionalidade portuguesa
»
- o Ministério Público, ora recorrente, conclui que
«
[a] automaticidade do efeito atribuído à condenação criminal, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, em circunstâncias semelhantes às acima descritas [a oposição à aquisição da nacionalidade se fundamenta, automaticamente, numa condenação criminal ocorrida há mais de 21 anos (em 6 de fevereiro de 1992), transitada, igualmente, há mais de 21 anos (em 20 de fevereiro de 1992), na pena de um ano de prisão, cuja execução ficou suspensa por um ano, pena já extinta, e que, de acordo com as regras legais vigentes, já se encontra expurgada do Registo Criminal, nada constando do respetivo certificado], viola, consequentemente, o parâmetro de constitucionalidade plasmado no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa
»
.
Não se afigura, porém, poder reconhecer-se nas normas legais em causa a consagração de um efeito (automático, necessário) da sentença condenatória por crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos que se mostre proibido pelo disposto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
Desde logo, tenha-se presente que as normas legais sob escrutínio - na interpretação que lhes foi conferida - integram o regime normativo de aquisição da nacionalidade portuguesa (in casu, por efeito da vontade). É por imperativo constitucional - logo na remissão operada pelo artigo 4.º da Constituição - que cabe ao legislador o estabelecimento dos critérios e pressupostos da atribuição e aquisição da cidadania portuguesa. Acrescidamente, da iusfundamentalidade do direito em causa - o direito a aceder à cidadania (artigo 26.º, n.º 1, CRP) - decorre, para o legislador, a obrigação de criação das condições de exercício deste direito fundamental.
Cabe ao Estado português definir quem são os seus nacionais. E deve fazêlo por via da lei (como releva no presente recurso de constituciona-lidade) ou de convenção internacional. Num caso, como noutro, sujeitos a aprovação parlamentar.
Ora, na definição dos critérios de atribuição e aquisição da cidadania, o legislador deve
«
identificar, nas diferentes situações colocadas, as conexões efetivas com o Estado português que são necessárias e suficientes para conferir aos indivíduos o direito a aceder à cidadania portuguesa
»
(Jorge Pereira da Silva,
«
O direito fundamental à cidada-nia
»
, cit., p. 280).
Neste domínio, a margem de conformação do legislador não deixa de se mostrar condicionada pelos imperativos decorrentes do conteúdo do direito fundamental à cidadania (enquanto direito fundamental de natureza pessoal e assim consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição) e do regime que lhe é associado enquanto direito, liberdade e garantia (designadamente nos artigos 12.º, 13.º, 18.º e 20.º, da Constituição), para além do dever de ponderação dos demais valores constitucionais relevantes, subjazendolhe, ainda e necessariamente, o respeito pelos princípios de Direito Internacional, de que avulta (para além do direito de aceder a uma nacionalidade e a dela não ser privado) o princípio da ligação efetiva entre o indivíduo e a comunidade politicamente organizada em que se integra.
Assim, no caso vertente, a aquisição da nacionalidade portuguesa pode ter lugar desde que o estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português declare, na constância do casamento, que pretende adquirir esta nacionalidade. O legislador, ao estabelecer os pressupostos desta forma de aquisição da cidadania estabeleceu também uma
que não haja sido deduzida pelo Ministério Público oposição à aquisição da nacionalidade ou que, tendo-a sido, ela seja considerada judicialmente improcedente. Os fundamentos, previstos na lei, para a oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa constituem, assim, pressupostos (negativos) do direito à aquisição da cidadania. Assim sendo, mesmo configurados como causas obstativas à aquisição da nacionalidade portuguesa, não deixam de corresponder ao desiderato de preenchimento dos critérios de conexão relevantes, ponderados pelo legislador, para o reconhecimento de uma ligação efetiva e genuína do requerente à comunidade nacional - base do vínculo jurídicopolítico a constituir e da ideia inclusiva que o informa.
Do regime legal resulta que, na regulação dos critérios e pressupostos da nacionalidade derivada (por efeito da vontade e da adoção e por naturalização), o legislador atribuiu relevância, como pressuposto de facto, à condenação criminal em causa. Em certa medida, o legislador procura obstar a que aqueles que, por via da prática daqueles crimes, judicialmente aferida, ofenderam os bens jurídicos a que a comunidade nacional entendeu conferir uma tutela jurídicopenal traduzida numa moldura penal de máximo igual ou superior a três anos, integrem a comunidade cujos bens (assim) tutelados não respeitaram.
Pode, pois, conceber-se que a opção do legislador quanto ao fundamento de oposição da aquisição da nacionalidade portuguesa por efeito da vontade e da adoção em causa (que igualmente vale na aquisição da nacionalidade por naturalização) - a condição de não ocorrência de condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo legal igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa - corresponde, ainda, à densificação do vínculo de ligação efetiva entre a pessoa e o Estado (português) que baseia a cidadania.
Esta causa obstativa ou preclusiva da cidadania (derivada) não constitui novidade absoluta no direito comparado. De exemplos que nos são próximos - Itália e França - podemos verificar que os respetivos ordenamentos jurídicos preveem que a ocorrência de uma condenação penal determine a não concessão da respetiva nacionalidade. Assim, a Lei da Cidadania italiana (Legge 5 febbraiso 1992, n. 91 - Nuove norme sulla cittadinanza) prevê, no seu artigo 6.º, entre as causas preclusivas de obtenção da cidadania italiana pelo matrimónio,
«
la condanna per uno dei delitti previsti nel libro secondo, titolo I, capi I, II e III, del codice penale
» e
«
la condanna per un delitto non colposo per il quale la legge preveda una pena edittale non inferiore nel massimo a tre anni di reclusione; ovvero la condanna per un reato non politico ad una pena detentiva superiore ad un anno da parte di una autorità giudiziaria straniera, quando la sentenza sia stata riconosciuta in Italia
»
. Em França, estabelece o Código Civil (Livre Ier, Titre Ier bis, Chapitre III, Section 1, paragraphe 6, 21-27) que:
«
Nul ne peut acquérir la nationalité française ou être réintégré dans cette nationalité s’il a été l’objet soit d’une condamnation pour crimes ou délits constituant une atteinte aux intérêts fondamentaux de la Nation ou un acte de terrorisme, soit, quelle que soit l’infraction considérée, s’il a été condamné à une peine égale ou supérieure à six mois d’emprisonnement, non assortie d’une mesure de sursis [...]
»
.
Ora, este pressuposto (negativo) de aquisição da nacionalidade portuguesa - em grande medida informado pela ideia de cidadania efetiva e retirando da condenação criminal em causa a infirmação dessa mesma ideia de efetividade do vínculo de ligação -, mesmo sendo um efeito ex lege das normas legais em causa, não se mostra proibido pelo princípio contido no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
No plano da formulação dos requisitos para a aquisição da nacionalidade, entendeu o legislador que a condenação por crime punível com pena de máximo igual ou superior a três anos pode ser reveladora da inexistência das condições necessárias ao estabelecimento do vínculo de cidadania.
Na definição desses pressupostos, não se afigura o legislador limitado, por efeito da proibição decorrente do n.º 4 do artigo 30.º, na relevância que atribui ao facto - objetivamente considerado e sem margem para uma apreciação casuística - da ocorrência de uma condenação criminal para o efeito da aferição das condições do interessado para aceder à nacionalidade portuguesa.
Com efeito, e se por expressa opção da Constituição, a configuração do vínculo jurídico da cidadania é remetida ao legislador - na sua dimensão política e ius fundamental -, a definição (legal) dos respetivos critérios, pressupostos e regime mostra-se essencial à própria densificação do direito fundamental à cidadania, assente no estabelecimento do vínculo de uma pessoa com a comunidade politicamente organizada (vg. Estado) em que se inclui. Cabe, assim ao legislador - e não à Administração ou aos Tribunais - a ponderação e a escolha dos critérios e pressupostos da atribuição e aquisição da nacionalidade portuguesa, competência que não pode deixar de exercer, pois decorrente de uma verdadeira imposição constitucional.
É que, para mais, sendo a tarefa de enunciação dos critérios e pressupostos para a atribuição e aquisição da cidadania (artigo 4.º, CRP) não apenas constitucionalmente cometida como também constitucionalmente reservada ao legislador - e em absoluto ao legislador parlamentar - mostra-se, prima facie, justificada a opção por um critério objetivo (partindo da condenação por crimes cuja moldura penal se fixou a partir de determinado limite), que resulta da ponderação do próprio legislador (por via geral e abstrata) e não da ponderação, em cada caso, pelo aplicador da norma - ainda que ao nível judicial.
Como já se disse neste Tribunal - a propósito da inelegibilidade prevista no artigo 13.º da Lei 27/96 de 1 de agosto:
a condenação definitiva dos membros dos órgãos autárquicos em qualquer dos crimes de responsabilidade previstos e definidos na Lei 34/87, de 16 de julho, implica a sua inelegibilidade nos atos eleitorais destinados a completar o mandato interrompido e nos subsequentes que venham a ter lugar no período de tempo correspondente a novo mandato completo, em qualquer órgão autárquico -
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[n]ão pode assim dar-se ao artigo 30.º, n.º 4 um alcance tal que limite desta forma o exercício de uma competência legislativa constitucionalmente modelada
»
(cf. voto de vencido dos Conselheiros Benjamim Rodrigues, Joaquim de Sousa Ribeiro, Maria Lúcia Amaral e Rui Manuel Moura Ramos, aposto ao Acórdão 473/2009 e dissentindo do juízo de inconstitucionalidade nele formulado por aplicação do artigo 30.º, n.º 4, CRP).
Não se trata, assim, de conferir à pena (ou à condenação) um efeito proibido pela Constituição, mas de uma competência exercida pelo legislador ordinário nos termos em que a Constituição o habilita a definir os critérios de acesso à cidadania (naturalmente, nos limites do direito internacional e constitucional relevante), refletindo a ponderação, em abstrato, dos factos e razões relevantes para o estabelecimento daqueles critérios, pelo que não procede, in casu, a invocação do princípio contido no artigo 30.º, n.º 4, CRP.
19.2 - Diga-se, desde já, que igualmente não se mostra ofendido o princípio enunciado no artigo 30.º, n.º 1, da Constituição, já que não encontra aqui aplicação.
Com efeito, quando a Constituição estabelece que não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, permite identificar, como escopo principal da norma constitucional, o estabelecimento de limites (temporais definidos) às sanções criminais ou de outros ramos do direito sancionatório, dirigindo-se, assim, em primeira linha, ao legislador penal. Faltalhe, por isso, a virtualidade de poder ser tida como parâmetro para julgar da constitucionalidade das normas legais que estabelecem, entre os pressupostos para a aquisição da nacionalidade portuguesa, o requisito de não condenação por crime punível com pena acima de determinado limite (tal como configurado pelo legislador penal no respeito daquele comando constitucional), como é o caso. Bem assim, não é neste princípio da definição e limitação temporal das penas (ou outras medidas punitivas), sobretudo em correspondência com o direito à liberdade pessoal, que encontramos o valor que possa ser desrespeitado pela relevância atribuída a um facto ocorrido há dezenas de anos (in casu a sentença criminal data de 1992 - cf. supra, 6) para o efeito de fundamentar a oposição à aquisição da nacionalidade no caso vertente. É que das normas em causa, mesmo assim interpretadas, não resulta a
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perpetuidade
» da pena então determinada.
Ora, se a dimensão normativa que o julgador entendeu derivar das normas legais sob escrutínio e que justificou a sua desaplicação - deste modo obstando à não relevância do decurso do tempo e das consequências já produzidas por esse decurso na vigência do registo criminal do requerente da nacionalidade portuguesa - não merece censura à luz das disposições constitucionais apreciadas, é de questionar se tais normas (e sua dimensão normativa) ainda mereceriam censura em face de (outros) valores e princípios plasmados na Constituição, como o princípio da proporcionalidade (também invocado pela decisão ora recorrida - cf. III, 2.2., supra, 9.), enquanto princípio geral da atuação do poder publico (neste sentido, em especial, os Acórdãos deste Tribunal n.º 187/2001 e n.º 73/2009). Todavia, tal apreciação pode afigurar-se desprovida de utilidade se for possível descortinar ainda nas normas em causa um sentido interpretativo consonante com a Constituição e com o caráter jusfundamental do direito à nacionalidade, ínsito na Lei Fundamental, acima mencionado, e também decorrente das normas de Direito Internacional recebidas pelo Ordenamento jurídicoconstitucional nacional - o que se analisa de seguida.
20 - Da regulação, feita pelo legislador, do direito à aquisição da nacionalidade portuguesa resulta que o fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade ou adoção estabelecido na alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa (reproduzido no artigo 56.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento da Nacionalidade por-tuguesa) constitui um requisito (de verificação negativa) de acesso à nacionalidade derivada (e assim também presente no artigo 6.º, n.º 1, a), da Lei da Nacionalidade que à aquisição da nacionalidade por naturalização se refere). Dele decorre que a condenação, por sentença transitada em julgado, por crime punível com uma pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos é razão impeditiva do acesso àquele direito, operando de modo automático ex vi legis - não obstante a pena se poder encontrar já extinta e expurgada do registo criminal nos termos legais vigentes (como sucede in casu e invocam quer a decisão recorrida (cf. III, 2.1., supra 9), quer o recorrente Ministério Público (cf. VII - Conclusões, 53, supra, I, 4)).
É certo que a Lei da Nacionalidade portuguesa não refere qualquer limite temporal nem prevê a situação de ter ocorrido a cessação da vigência da decisão que aplica a pena para os efeitos da aplicação dos seus artigos 6.º ou 9.º (podendo aqui contrapor-se as soluções já adotadas nos ordenamentos estrangeiros acima referidos, prevendo tanto a Lei da Cidadania italiana como o Código Civil francês que o requisito - negativo - da condenação penal não se aplica em caso de reabilitação do condenado ou cessação da vigência da decisão no registo criminal).
Como se afirmou já, é a própria Constituição que comete ao legislador a tarefa de concretizar o direito a aceder à cidadania portuguesa, resultando essa incumbência na Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade portuguesa), que contém o regime desse direito fundamental. E, como se afirmou igualmente, cabe ao legislador, nessa tarefa, a ponderação das conexões relevantes com o Estado português e os critérios que lhes presidem, resultando, do mesmo passo, a definição da comunidade nacional e a regulação do direito fundamental (pessoal) daqueles que, como in casu, a pretendem integrar - o direito à cidadania, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP.
Ora, pode considerar-se que o fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa em causa resulta da conexão estabelecida pelo legislador entre a inserção do indivíduo na comunidade nacional, de acordo com a vontade por si manifestada, e uma exigência de respeito pelos bens jurídicos reputados de valiosos pelos cidadãos dessa mesma comunidade política, aos quais, através do legislador democraticamente eleito que os representa, entenderam conferir uma tutela penal (a que corresponde uma pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos) - conexão essa que a ocorrência da condenação em causa tende a infirmar - e assim correspondendo a motivo de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa.
Contudo, não se pode deixar de ter igualmente presente que é a mesma comunidade que, também representada pelo legislador democraticamente eleito, por via dos institutos da reabilitação (judicial ou legal) e da cessação do registo criminal das decisões condenatórias (decorrido um período temporal para tanto fixado), não permite a valoração da conduta criminosa em causa para além dos limites decorrentes da reabilitação ou da cessação da vigência das condenações no registo criminal, por imperativos decorrentes das ideias de plena integração e de ressocialização da pessoa condenada na sociedade em que se insere.
De facto, ao tempo da decisão ora recorrida, a Lei 57/98, de 18 de agosto, no seu artigo 15.º, previa o cancelamento definitivo de decisões que aplicaram penas, o que corresponde a uma reabilitação legal ou de direito, que tem lugar, automaticamente, e de forma irrevogável, decorrido determinado lapso de tempo, sem que, entretanto, tenha ocorrido nova condenação por crime.
Este sistema de cessação de vigência e cancelamento das decisões condenatórias foi essencialmente mantido na atual Lei da Identificação Criminal (Lei 37/2015, de 5 de maio), como decorre do seu artigo 11.º:
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Artigo 11.º
Cancelamento definitivo
1 - As decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal nos seguintes prazos:
a) Decisões que tenham aplicado pena de prisão ou medida de segurança, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos, entre 5 e 8 anos ou superior a 8 anos, respetivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;
b) Decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;
c) Decisões que tenham aplicado pena de multa a pessoa coletiva ou entidade equiparada, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena, consoante a multa tenha sido fixada em menos de 600 dias, entre 600 e 900 dias ou em mais de 900 dias, respetivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;
d) Decisões que tenham aplicado pena de dissolução a pessoa coletiva ou entidade equiparada, decorridos 10 anos sobre o trânsito em julgado;
e) Decisões que tenham aplicado pena substitutiva da pena principal, com ressalva daquelas que respeitem aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;
f) Decisões de dispensa de pena ou que apliquem pena de admoestação, decorridos 5 anos sobre o trânsito em julgado ou sobre a execução, respetivamente;
g) Decisões que tenham aplicado pena acessória, após o decurso do prazo para esta fixado na respetiva sentença condenatória ou, tratando-se de pena acessória sem prazo, após a decisão de reabilitação.
2 - Quando a decisão tenha aplicado pena principal e pena acessória, os prazos previstos no número anterior contam-se a partir da extinção da pena de maior duração.
3 - Tratando-se de decisões que tenham aplicado pena de prisão suspensa na sua execução os prazos previstos na alínea e) do n.º 1 contam-se, uma vez ocorrida a respetiva extinção, do termo do período da suspensão.
4 - Cessam também a sua vigência no registo criminal:
a) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução de decisões cuja vigência haja cessado nos termos do n.º 1; mento;
b) As decisões respeitantes a pessoa singular, após o seu faleci-c) As decisões respeitantes a pessoa coletiva ou entidade equiparada, após a sua extinção, exceto quando esta tenha resultado de fusão ou cisão, caso em que as decisões passam a integrar o registo criminal das pessoas coletivas ou equiparadas que tiverem resultado da cisão ou em que a fusão se tiver efetivado;
d) As decisões consideradas sem efeito por disposição legal.
5 - A cessação da vigência das decisões não aproveita ao condenado quanto às perdas definitivas que lhe resultarem da condenação, não prejudica os direitos que desta advierem para o ofendido ou para terceiros nem sana, por si só, a nulidade dos atos praticados pelo condenado durante a incapacidade.
6 - As decisões cuja vigência haja cessado são mantidas em ficheiro informático próprio durante um período máximo de 3 anos, o qual apenas pode ser acedido pelos serviços de identificação criminal para efeito de reposição de registo indevidamente cancelado ou retirado, e findo aquele prazo máximo são canceladas de forma irrevogável.
»
Atendendo ao exposto, da ponderação efetuada pelo legislador ordinário, no plano geral e abstrato, em duas sedes distintas - a da fixação dos critérios objetivos de que depende a aquisição da nacionalidade por efeito da vontade e a pertença à comunidade política, por um lado, e a da fixação dos prazos de que depende a cessação da vigência no registo criminal das decisões penais condenatórias e o seu cancelamento definitivo, por outro -, resulta uma aparente contradição no quadro do sistema jurídico já que sendo as ponderações, em abstrato efetuadas, de sinal contrário, a ponderação efetuada na primeira daqueles sedes tem por efeito, prima facie, neutralizar ou nulificar a ponderação efetuada na segunda.
Ora tal aparente contradição intrasistémica não pode deixar de ser resolvida de harmonia com a Constituição e com a jusfundamentalidade reconhecida pela mesma Lei Fundamental ao direito (fundamental) - e, sublinhe-se, integrado dos direitos, liberdades e garantias pessoais - em causa:
o direito à nacionalidade portuguesa, previsto e tutelado pelo artigo 26.º, n.º 1 (e n.º 4) da Constituição.
Assim sendo, as normas em causa da Lei da Nacionalidade portuguesa e do Regulamento da Nacionalidade portuguesa ora sindicadas - que, no seu elemento literal, conferem relevância, para o efeito, automático, de impedir a aquisição nacionalidade portuguesa por efeito da vontade, a condenação penal transitada em julgado (pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos) -, carecem, sob pena de contradição, de ser interpretadas no quadro do sistema, em conformidade com a proteção conferida pela Constituição, em conso-nância com o Direito internacional, ao direito jusfundamental à nacionalidade. Esta interpretação deve ter em conta a ponderação efetuada pelo legislador democraticamente legitimado que não permite valorar a conduta criminosa para além dos limites decorrentes da cessação da vigência das decisões condenatórias no registo criminal e seu cancelamento e, assim, do instituto da reabilitação (legal) - assim resultando que esta última ponderação tem por efeito neutralizar a ponderação do legislador quanto ao fundamento subjacente à fixação do requisito objetivo (de verificação negativa) previsto nas normas ora sindicadas.
Sendo o fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade em causa o resultado da ponderação, feita pelo legislador, sobre o quanto a ofensa, por via da prática de um crime, indicia o desrespeito pelos valores comunitários a que o ordenamento jurídico nacional conferiu tutela penal, as normas que preveem tal fundamento não podem deixar de ser interpretadas em conformidade com a natureza jusfundamental do direito à nacionalidade - para mais integrado na categoria de direitos, liberdades e garantias -, conferida pela Constituição de modo a levar em conta a ponderação feita pelo mesmo legislador em sede de cessação da vigência no registo criminal das decisões nele inscritas, assim correspondendo a uma reabilitação legal, sob pena de, por essa via, fazer vigorar automaticamente, para aquele efeito, o desvalor da ofensa a bens jurídicos (corporizado na condenação penal) que, por outra via, a mesma comunidade política tem já por superado. Note-se que o entendimento que leva em conta a aceitação da relevância da reabilitação legal ou de direito para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização foi já defendido, quanto à norma de conteúdo e finalidade em tudo semelhantes às normas ora sob escrutínio, plasmada no artigo 6.º, n.º 1, alínea d), da Lei da Nacionalidade Portuguesa, na jurisprudência constante do Acórdão da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 21/05/2015, no Processo 129/15 (disponível em www.dgsi.pt) e assim sumariada:
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O requisito contido na alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Nacionalidade, relativo à aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização, deve ser conjugado com o instituto da reabilitação legal ou de direito
»
- entendimento não perfilhado nestes moldes pela decisão ora recorrida.
Assim, porque não se afiguraria constitucionalmente admissível uma interpretação das normas da alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa e da alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade portuguesa, nas versões aplicadas nos autos, que desconsiderasse a ponderação do legislador efetuada em sede de cessação da vigência da condenação penal inscrita no registo criminal e seu cancelamento e a correspondente reabilitação legal, sob pena de contradição intrasistémica, justifica-se proferir uma decisão interpretativa, ao abrigo do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC, devendo o Tribunal recorrido adotar a interpretação que se julgou conforme à Constituição e, assim, reformular a fundamentação da solução encontrada para o caso concreto ali em julgamento.
III - Decisão
21 - Pelo exposto, decide-se:
a) Interpretar as normas da alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa e da alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade portuguesa no sentido de que o impedimento de adquirir a nacionalidade portuguesa, nelas previsto, decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, deve ter em conta a ponderação do legislador efetuada em sede de cessação da vigência da condenação penal inscrita no registo criminal e seu cancelamento e correspondente reabilitação legal; e, em consequência, embora com diverso fundamento, b) conceder provimento ao recurso e, em consequência, determinar a reforma da decisão recorrida de modo a aplicar as referidas normas com aquele sentido interpretativo.
Sem custas, por não serem legalmente devidas. Lisboa, 24 de fevereiro de 2016. - Maria José Rangel de Mesquita - Lino Rodrigues Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro (com declaração) - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral.
Declaração de voto Apreciada a exata interpretação da norma que veio a ser desaplicada pelo tribunal a quo, pronunciar-me-ia no sentido da sua inconstitucionalidade, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, que proíbe os efeitos necessários das penas.
O disposto na alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa e na alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade portuguesa, interpretadas no sentido, isoladamente considerado, de que “o impedimento de adquirir a nacionalidade portuguesa decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos (como) efeito necessário, no sentido de efeito automático da condenação, na medida em que impõe inexoravelmente ex vi legis na esfera jurídica do interessado não deixando à Administração qualquer margem de apreciação e ponderação”, viola o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição que estabelece que “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”. Introduzido na Revisão Constitucional de 1982, com o objetivo de retirar às penas o seu efeito dessocializador e estigmatizante, da sua interpretação resulta não apenas a proibição dos efeitos automáticos das penas, como ainda, tal como explicam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Edição, Coimbra, 2007, p. 505):
“(Embora o n.º 4 se refira apenas à proibição de efeitos necessários das penas), a proibição estende-se também, por identidade de razão, aos efeitos automáticos ligados à condenação pela prática de certos crimes, pois não se vê razão para distinguir.”
Ainda que se possa entender que ao legislador é concedida margem de conformação para definição das condições para atribuição da nacionalidade portuguesa - direito integrado nos direitos, liberdades e garantias pessoais tutelado pelo artigo 26.º, n.º 1 (e n.º 4) da Consti-tuição-, a liberdade que para tal lhe é constitucionalmente permitida, para a da fixação dos critérios objetivos de que depende a aquisição da nacionalidade por efeito da vontade e a pertença à comunidade política, não pode autorizar a consagração de efeitos automáticos das penas, desatendendo, por completo, aos princípios que, por imposição constitucional, determinam ou modelam as sanções.
Quando a norma a aplicar tenha subjacente a ausência de outra ponderação ou valoração, por apenas levar em linha de conta, mecanicamente, a fixação daqueles critérios legalmente fixados, que determinam que uma condenação transitada em julgado pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, independentemente de qualquer ponderação, apreciação ou valoração da Administração ou julgador do seu contexto, constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade, uma tal norma não pode deixar de determinar o meu juízo de inconstitucionalidade, em virtude da automaticidade do efeito da pena que encerra (Veja-se, em especial, o Acórdão 154/04, mas também outros como os Acórdãos n.os 16/84, 18/84, 91/84, 127/84, 310/85, 75/86, 94/86, 282/86, 255/87, 284/89, 748/93, 522/95, 202/00, 461/00, 422/01, 562/03).
O acórdão entendeu, todavia, ser possível fazer uma outra leitura do disposto nos preceitos desaplicados, evitando o julgamento de inconstitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, que permite que o Tribunal funde um juízo de constitucionalidade relativamente a norma que tenha sido desaplicada, numa outra interpretação da mesma norma, devendo esta outra interpretação ser aplicada no processo em causa, em substituição da que haja sido desaplicada.
Essa outra leitura, embora não leve em linha de conta uma ponderação realizada pela Administração ou pelo julgador quanto ao caso concreto, faz operar um outro critério definido pelo legislador, que afasta o efeito que mecanicamente resultaria da pena. É o que sucede quando é possível fazer funcionar, como critério limitador do efeito automático da pena, a fixação dos prazos de que depende a cessação da vigência no registo criminal das decisões penais condenatórias e o seu cancelamento definitivo, e com isto afastar o fundamento da oposição à aquisição da nacionalidade.
É a essa nova leitura que procede o texto do acórdão. Neste se decide interpretar as normas da alínea b) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade portuguesa e da alínea b) do n.º 2 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade portuguesa, no sentido de que o impedimento de adquirir a nacionalidade portuguesa, nelas previsto, decorrente da condenação em pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, deve levar em conta a ponderação do legislador efetuada em sede de cessação da vigência da condenação penal inscrita no registo criminal e seu cancelamento e correspondente reabilitação legal.
Quando uma tal interpretação possa ser aplicada ao caso, como na presente situação, permitirá, a meu ver, salvar a norma encontrada mediante uma tal decisão interpretativa, já que, ao afastar uma concreta pena como fundamento da oposição à aquisição da nacionalidade, por fazer funcionar a cessação da vigência no registo criminal das decisões penais condenatórias e o seu cancelamento definitivo, pode, por essas circunstâncias, permitir que se prescinda de qualquer outra valoração de contexto, que deixa de ser necessária pelo facto de a condenação penal já não ser tida em conta.
Por essa razão, votei o presente acórdão. - Catarina Sarmento e Castro.
209456057