Acórdão do Tribunal de Contas n.º 1/2009
FJ/25.MAI/PG
Recurso extraordinário n.º 01/2009
(processos de fiscalização prévia n.os 957 e 962/2008)
I - Relatório
I.1 - Pelo Acórdão 19/08-16.Dez.-1.ªS/PL, proferido no processo de recurso ordinário n.º 27/2008, a 1.ª Secção do Tribunal de Contas confirmou a decisão impugnada nesse recurso, recusando o visto a dois contratos de empréstimo celebrados entre o município de Alfândega da Fé e a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Terra Quente, C. R. L.Através destes contratos, registados como processos de fiscalização prévia n.os 957 e 962/2008, a instituição de crédito identificada havia concedido ao município financiamentos no montante de (euro) 561 907,00 e (euro) 469 076,00 (total de (euro) 1 030 983,00), pelo prazo de 15 anos.
I.2 - O Ministério Público veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do referido Acórdão 19/08-16.Dez.-1.ªS/PL, alegando que o mesmo consagrou uma solução jurídica oposta à que foi perfilhada no Acórdão 17/08-9.Dez-1.ªS/PL.
I.3 - Alegou, em síntese, o recorrente que pelo Acórdão 19/08-16.Dez.-1.ªS/PL o Tribunal recusou o visto aos contratos de empréstimo, com fundamento em que o município se encontrava, à data da celebração dos mesmos, numa situação de «excesso» de endividamento líquido, enquanto que pelo Acórdão 17/08-9.Dez.-1.ªS/PL o Tribunal havia concedido o visto a situações idênticas, por considerar que, nessa data, existia uma mera probabilidade de haver «excesso» de endividamento líquido, só podendo o Tribunal decidir com base numa certeza jurídica da verificação desse excesso, impossível de prever no momento em causa.
Considerou, assim, o Ministério Público que se verificou oposição de julgados, ao terem sido adoptadas, nos arestos referidos, soluções jurídicas opostas sobre a mesma questão fundamental de direito: a de saber qual o momento relevante para aferição do eventual excesso de endividamento líquido, previsto no n.º 1 do artigo 37.º da Lei das Finanças Locais (1).
I.4 - Notificado o município de Alfândega da Fé para se pronunciar, nos termos do artigo 99.º, n.º 2, aplicável por força do artigo 101.º, n.º 3, da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (LOPTC) (2), veio o mesmo referir que subscrevia, na íntegra, os fundamentos da petição de recurso apresentada pelo Ministério Público, aos quais aderiu.
I.5 - O procurador-geral-adjunto junto do Tribunal de Contas, notificado para o efeito previsto no n.º 2 do artigo 102.º da LOPTC, emitiu parecer no sentido da existência da oposição de julgados, da prevalência dos fundamentos de recusa do visto constantes do Acórdão recorrido e da fixação de jurisprudência nos seguintes termos:
«A - De harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 35.º, 36.º, 37.º, 38.º e 39.º da Lei 2/2007, de 15 de Janeiro (LFL), todos os municípios podem aceder ao crédito de curto, médio e longo prazo, quer para acorrer a dificuldades de tesouraria, quer para investimentos, devendo estes encontrar-se bem identificados no respectivo contrato.
B - Para além do limite geral a tais empréstimos, estabelecido pelo artigo 39.º da LFL, nenhum município poderá aceder a empréstimos de médio e longo prazo (para investimentos), desde que se encontre em situação de ultrapassagem do respectivo limite de endividamento líquido (limite especial), calculado de harmonia com o disposto no artigo 36.º da LFL.
C - Esta solução é imposta pelo disposto na parte final do n.º 6 do artigo 38.º e na parte final do disposto no n.º 6 do artigo 39.º da LFL - os quais devem ser conjugados com o disposto no artigo 37.º do mesmo diploma legal.
D - A verificação da ocorrência de uma tal situação deverá ter lugar por aplicação das regras impostas pelo artigo 36.º da LFL com referência simultânea ao termo do exercício anterior ao do ano de celebração do contrato de empréstimo e ao momento exacto em que este teve lugar - que é o momento determinante do regime legal aplicável.» I.6 - Corridos os demais vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
São as seguintes as questões a resolver:
1) Se existe oposição de julgados que justifique a fixação de jurisprudência;
2) Em caso afirmativo, qual o sentido da jurisprudência a fixar;
3) Se a jurisprudência fixada determina a alteração da decisão tomada pelo Acórdão recorrido.
II - Da existência da oposição de julgados
II.1 - Pressuposto do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. - No que à 1.ª Secção do Tribunal de Contas diz respeito, e nos termos do disposto no artigo 101.º, n.º 1, da LOPTC, é pressuposto do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência que tenham sido proferidas no plenário da 1.ª Secção, em processos diferentes, duas decisões, em matéria de concessão ou recusa de visto, que, no domínio da mesma legislação, e relativamente à mesma questão fundamental de direito, assentem sobre soluções opostas.
No caso, foram proferidos dois Acórdãos (os Acórdãos n.os 17/08-9.Dez.-1.ªS/PL e 19/08-16.Dez.-1.ªS/PL), ambos aprovados em plenário da 1.ª Secção, em processos diferentes, tendo o primeiro concedido o visto a contratos de empréstimo celebrados pelo município de Gouveia e o segundo recusado o visto a contratos de empréstimo outorgados pelo município de Alfândega da Fé. Como também determina o n.º 1 do referido artigo 101.º, o recurso foi interposto da decisão proferida em último lugar.
Resta, então, apurar se esses Acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação e se integram soluções opostas relativamente à mesma questão fundamental de direito.
II.2 - Do Acórdão fundamento. - Em 9 de Dezembro de 2008, o plenário da 1.ª Secção decidiu, por maioria, conceder o visto a três contratos de empréstimo celebrados entre o município de Gouveia e a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Vila Nova de Tazem, C.
R. L., destinados ao financiamento de investimentos, revogando a decisão de recusa de visto proferida em 1.ª instância.
A decisão de 1.ª instância (3) havia considerado que os dados constantes do processo evidenciavam que o município de Gouveia apresentava, à data da decisão, um excesso de endividamento líquido (4), e que os montantes em causa e os dados financeiros disponíveis nos processos não permitiam perspectivar que, até final do ano, houvesse probabilidade de eliminação desse excesso e de criação de saldo positivo suficiente para suportar o endividamento resultante dos empréstimos.
Não existindo norma legal que permitisse excepcionar os empréstimos em causa de cumprir e relevar para o limite de endividamento líquido, a contratação dos mesmos violava, assim, o disposto no n.º 1 do artigo 37.º da Lei das Finanças Locais.
No Acórdão em causa foi proferida uma declaração de voto do seguinte teor:
«[...] votei a decisão com fundamento, além do mais, no facto de o município de Gouveia apresentar um excesso de endividamento líquido, em 31 de Dezembro de 2007 (5), não consentido pelo artigo 37.º, n.º 1, da Lei 2/2007, de 15 de Janeiro.» Interposto recurso, o Ministério Público deu parecer desfavorável ao seu provimento, por entender que a decisão de recusa de visto deveria ser mantida, atendendo a que não estava «comprovado que este município possa, em caso algum, ver restabelecido o seu limite máximo de endividamento líquido em 31 de Dezembro deste ano - o qual se encontrava ultrapassado já em 31 de Dezembro de 2007 e assim se manteve durante o ano de 2008, designadamente à data da contracção dos empréstimos, não estando previstas receitas suficientes para, até final do exercício (6), tal situação ficar devidamente sanada, através da reposição do limite [...]».
No Acórdão 17/08-9.Dez.-1.ª S/PL, que culminou a decisão do recurso, veio a considerar-se que o disposto no n.º 1 do referido artigo 37.º determina que o montante do endividamento líquido total de cada município e, consequentemente, o seu excesso, se afere no final de cada ano económico, e que só com os elementos contabilísticos aferidos a 31 de Dezembro de cada ano - no caso dos autos, a 31 de Dezembro de 2008 - se pode ter a certeza jurídica de que um município excedeu o seu limite de endividamento líquido total.
Considerou o Acórdão que, aquém dessa data, o único juízo possível é um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança, que, mesmo que sério, não é suficiente para fundamentar uma recusa de visto, nos termos da alínea b), segunda parte, do n.º 3 do artigo 44.º da LOPTC (violação directa de norma financeira). Isto porque, para que se possa concluir pela existência de um fundamento de recusa de visto, é necessário que o julgador tenha a certeza jurídica da existência de tal ilegalidade.
Concluiu-se, assim, no aresto, que a decisão recorrida havia baseado a recusa de visto numa mera probabilidade de que o município de Gouveia iria ter, em 31 de Dezembro de 2008, excesso de endividamento líquido, e não numa certeza jurídica, tendo, por isso, incorrido num erro de interpretação do disposto no n.º 1 do artigo 37.º da Lei das Finanças Locais.
Em consequência, julgou-se procedente o recurso e decidiu-se conceder o visto aos contratos.
Como já se referiu, o Acórdão fundamento foi aprovado por maioria. Efectivamente, um dos juízes que participou no colégio votou vencido, com a seguinte declaração de voto:
«Votei vencido, por considerar que o recurso não merece provimento, revendo-me integralmente nos fundamentos constantes da decisão recorrida, sendo de salientar que, no âmbito da fiscalização prévia, a fim de se aferir se foram excedidos os limites de endividamento a que alude o n.º 1 do artigo 37.º da Lei das Finanças Locais, deverá ter-se em conta a situação que se apurar aquando da apreciação do instrumento gerador da dívida (7)».
II.3 - Do Acórdão recorrido. - Em 16 de Dezembro de 2008, o plenário da 1.ª Secção decidiu, por maioria, recusar o visto a dois contratos de empréstimo celebrados entre o município de Alfândega da Fé e a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Terra Quente, C. R. L., igualmente destinados ao financiamento de investimentos, assim confirmando a decisão proferida em 1.ª instância.
A decisão de 1.ª instância havia considerado que os dados constantes do processo evidenciavam que o município de Alfândega da Fé apresentava, à data da decisão, um excesso de endividamento líquido (8), e que os montantes em causa e os dados financeiros disponíveis nos processos indicavam uma tendência crescente de agravamento desse endividamento e não permitiam perspectivar que, até final do ano, houvesse probabilidade de eliminação desse excesso e de criação de saldo positivo suficiente para suportar o endividamento resultante dos empréstimos.
Não existindo norma legal que permitisse excepcionar os empréstimos em causa de cumprir e relevar para o limite de endividamento líquido, a contratação dos mesmos violava, assim, o disposto no n.º 1 do artigo 37.º da Lei das Finanças Locais.
Na decisão de 1.ª instância em causa (Acórdão 111/08-26.Set.08-1.ª S/SS) foi proferida uma declaração de voto do seguinte teor:
«[...] votei a decisão com fundamento, além do mais, na circunstância de o município de Alfândega da Fé ter, em 31 de Dezembro de 2007 (9), um excesso de endividamento líquido no montante de (euro) 1 710 919,45 (artigo 37.º, n.º 1, da Lei 2/2007, de 15 de Janeiro). Aliás, já em 31 de Novembro de 2006, o mesmo município apresentava um excesso de endividamento líquido no montante de (euro) 349 290,10, conforme se colhe do processo.» Interposto recurso, o Ministério Público deu parecer favorável ao provimento do recurso, por entender que a recorrente havia logrado «demonstrar que a situação de endividamento líquido municipal, se reportada (projectada) a 31 de Dezembro de 2008 (10) - como pensamos que tenha querido o legislador, pois que, de contrário, teria indicado uma outra data limite, como fez, por exemplo, na parte final do n.º 1 do artigo 39.º da LFL - , não excederá os limites legais constantes da norma citada [...] não poderá, assim, afirmar-se que este município pela contracção destes empréstimos para investimento público [...] se mantenha numa situação de excesso (pois só assim a situação seria ilegal) de endividamento líquido, no final do presente ano (31 de Dezembro de 2008).» No Acórdão 19/08-16.Dez.-1.ª S/PL, que culminou a decisão do recurso, veio a considerar-se que do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 44.º da LOPTC e nos n.os 2 e 6 do artigo 39.º, no n.º 1 do artigo 37.º e no n.º 6 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais se retira, em nome da certeza, que um empréstimo, no momento da sua contracção, tem de respeitar os limites de endividamento - de «empréstimos de médio e longo prazo» e de «endividamento líquido» - da autarquia.
Não obstante este Acórdão ter aceite a correcção invocada pela autarquia do seu montante de endividamento líquido, julgou improcedente o recurso por, em relação ao contrato registado sob o n.º 962/08, existir um outro fundamento de recusa de visto e por, em relação ao contrato registado sob o n.º 957/08, o montante do empréstimo não caber na margem de endividamento líquido apurada pelo recorrente nas suas alegações.
O Acórdão recorrido foi aprovado por maioria. Um dos juízes votou vencido, com uma declaração de voto que reproduz a tese que fez vencimento no Acórdão fundamento, ou seja, a de que o montante do endividamento líquido total de cada município e, consequentemente, o seu excesso, se afere no final de cada ano económico, e que só com os elementos contabilísticos aferidos a 31 de Dezembro de cada ano - no caso dos autos, a 31 de Dezembro de 2008 - se pode ter a certeza jurídica de que um município excedeu o seu limite de endividamento líquido total.
II.4 - Da oposição de julgados. - Do exposto resulta manifesto que as decisões em conflito incidiram sobre a mesma questão fundamental de direito.
Em ambos os casos se equacionou a questão do respeito pelos limites legais de endividamento líquido, tendo subjacentes situações de facto substancialmente idênticas, já que em ambos os processos estavam em causa empréstimos contraídos por municípios para afectação ao financiamento de investimentos.
As decisões foram também tomadas no domínio da mesma legislação, tendo estado em causa a aplicação aos casos do disposto na Lei das Finanças Locais, na parte relativa ao regime do crédito municipal, e na Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, na parte relativa ao conteúdo e finalidade da fiscalização prévia do Tribunal de Contas. De resto, durante o intervalo que decorreu entre a aprovação do Acórdão fundamento e a do Acórdão recorrido não ocorreu qualquer modificação legislativa que interferisse na resolução da questão de direito controvertida.
É também claro que a aplicação normativa às situações foi feita de forma diversa em cada um dos Acórdãos.
Enquanto no Acórdão 17/08-9.Dez.-1.ª S/PL se decidiu que a aferição do cumprimento do limite de endividamento líquido municipal só pode ser feita a 31 de Dezembro de cada ano, não existindo certeza jurídica suficiente em qualquer outro momento do ano económico, no Acórdão 19/08-16.Dez.-1.ª S/PL fez vencimento a tese de que essa aferição deve ser feita no momento da contracção dos empréstimos.
O diferente entendimento adoptado conduziu a soluções opostas: no primeiro caso o visto foi concedido, no segundo o visto foi recusado.
Está, pois, verificada a existência da oposição de julgados, devendo este recurso prosseguir com vista à solução do conflito jurisprudencial.
III - Da uniformização de jurisprudência
III.1 - A questão. - A questão a resolver incide sobre o problema de saber:
Se, em sede de fiscalização prévia de contratos de empréstimo celebrados por autarquias locais para financiamento de investimentos, deve o Tribunal de Contas apurar do cumprimento dos limites de endividamento, e, em concreto, do cumprimento do limite de endividamento líquido;
Em caso afirmativo, a que data deve reportar-se esse apuramento;
Concluindo-se pela inobservância do limite de endividamento, se isso constitui fundamento de recusa de visto ao correspondente contrato de empréstimo.
III.2 - Finalidade do visto. - Recorde-se que, nos termos do disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea a), conjugado com o artigo 2.º, n.º 1, alínea c), da LOPTC, estão sujeitos à fiscalização prévia do Tribunal de Contas os actos de que resulte o aumento da dívida pública fundada das autarquias locais, o que ocorre no caso.
E refira-se que estes actos estão sujeitos a visto qualquer que seja o seu valor, ao contrário do que sucede com os contratos e minutas referidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 46.º, que apenas devem ser submetidos a fiscalização prévia se ultrapassarem um montante fixado anualmente nas leis do Orçamento (11).
O artigo 44.º, n.º 1, da LOPTC determina que a fiscalização prévia tem por fim verificar se os actos e contratos estão conforme às leis em vigor e se os respectivos encargos têm cabimento em verba orçamental própria e o n.º 2 do mesmo artigo estabelece, especificamente, que nos instrumentos geradores de dívida pública, a fiscalização prévia tem por fim verificar, designadamente, a observância dos limites e sublimites de endividamento e as respectivas finalidades.
O artigo 83.º, n.º 2, da mesma Lei estabelece ainda que os contratos e outros instrumentos de que resulte dívida pública não são passíveis de declaração de conformidade pela Direcção-Geral do Tribunal de Contas, mesmo que da análise dos respectivos processos não resulte qualquer dúvida sobre a sua legalidade (cf. n.º 1 do mesmo artigo).
Importa, pois, reter que, no quadro da missão genérica de fiscalização da legalidade das receitas e despesas públicas atribuída ao Tribunal de Contas, o legislador fez questão de determinar que:
Todos os actos de que resulte o aumento da dívida pública fundada municipal estão submetidos a visto, independentemente do seu valor;
Ainda que não se suscitem dúvidas sobre a sua legalidade, os Serviços de Apoio do Tribunal de Contas não podem declarar a respectiva conformidade;
O Tribunal de Contas deve, no âmbito da fiscalização prévia sobre eles exercida, verificar especificamente a observância dos limites de endividamento.
Isto só pode significar que o legislador considerou o endividamento das entidades autónomas, e a observância dos respectivos limites, como uma matéria que carece de um rigoroso controlo e acompanhamento prévio por parte do Tribunal de Contas.
A 1.ª Secção do Tribunal de Contas, à qual compete o exercício da fiscalização prévia, tem, então, nessa sede, não apenas a possibilidade, mas o dever legal expresso de fiscalizar o cumprimento dos limites ao endividamento municipal.
III.3 - Dos limites ao endividamento municipal. - O direito financeiro, tal como refere António L. de Sousa Franco, no seu manual Finanças Públicas e Direito Financeiro (12), é um ramo de direito público, no qual releva o princípio da legalidade.
Nos termos estabelecidos no artigo 4.º da Lei das Finanças Locais, nos artigos 9.º e 84.º e seguintes da Lei de Enquadramento Orçamental (13) e no n.º 3.1.1, alínea e), do POCAL (14), os municípios estão legalmente sujeitos aos princípios orçamentais do equilíbrio e da estabilidade.
O disposto naqueles preceitos legais impõe como regra uma situação de equilíbrio orçamental, tanto para a elaboração e aprovação dos orçamentos como para a respectiva execução, admitindo situações de endividamento apenas em circunstâncias muito delimitadas.
O n.º 1 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais refere que «Os municípios podem contrair empréstimos e utilizar aberturas de crédito junto de quaisquer instituições autorizadas por lei a conceder crédito [...], nos termos da lei».
Já referia António de Sousa Franco (15), a propósito da natureza do empréstimo público, que se trata de um contrato fortemente informado pelo interesse público, e que o domínio do interesse público determina, entre outros aspectos, a fixação legal das condições a que o empréstimo deve obedecer e conduz a que ele seja um acto «autorizado e vinculado legalmente».
É, assim, claro que o endividamento municipal está fortemente delimitado pelos princípios e procedimentos da legalidade, do equilíbrio e da estabilidade orçamental e apenas é possível nos casos previstos na lei e de acordo com os pressupostos e limitações nela estabelecidos.
Entre estes pressupostos e limitações releva o estabelecimento legal de limites de endividamento.
O artigo 87.º da Lei de Enquadramento Orçamental prevê que a lei estabeleça limites específicos de endividamento anual para as autarquias locais, compatíveis com as obrigações globais de estabilidade.
Concretizando essa previsão, os artigos 35.º e seguintes da Lei das Finanças Locais estabelecem os tipos e finalidades possíveis de endividamento por parte dos municípios e o respectivo regime e limites.
O artigo 37.º estabelece o limite ao endividamento líquido municipal nos seguintes termos:
«1 - O montante do endividamento líquido total de cada município, em 31 de Dezembro de cada ano, não pode exceder 125 % do montante das receitas provenientes dos impostos municipais, das participações do município no FEF, da participação no IRS, da derrama e da participação nos resultados das entidades do sector empresarial local, relativas ao ano anterior.» O artigo 39.º, n.º 2, estabelece o limite ao endividamento municipal de médio e longo prazo da seguinte forma:
«2 - O montante da dívida de cada município referente a empréstimos a médio e longo prazos não pode exceder, em 31 de Dezembro de cada ano, a soma do montante das receitas provenientes dos impostos municipais, das participações do município no FEF, da participação no IRS referida na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º, da participação nos resultados das entidades do sector empresarial local e da derrama, relativas ao ano anterior.» Várias normas legais prevêem situações de excepção aos limites de endividamento, designadamente os n.os 5, 6 e 7 do artigo 39.º e o n.º 2 do artigo 61.º da própria Lei das Finanças Locais ou os artigos 27.º da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro, e 51.º, n.º 1, da Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
Nalguns casos a excepção só opera se houver um despacho favorável do Ministro das Finanças, o qual, nos termos do n.º 6 do artigo 39.º da Lei das Finanças Locais, deve ter em consideração «o nível existente (16) de endividamento global das autarquias locais».
No que se reporta à autorização dos instrumentos concretamente geradores de endividamento, o n.º 6 do artigo 38.º da referida Lei estabelece:
«6 - O pedido de autorização à assembleia municipal para a contracção de empréstimos de médio e longo prazos é obrigatoriamente acompanhado [...] de mapa demonstrativo da capacidade de endividamento do município.» O artigo 92.º da Lei de Enquadramento Orçamental estabelece que o incumprimento das regras e procedimentos relativos à estabilidade orçamental constitui sempre uma circunstância agravante da inerente responsabilidade financeira, que ao Tribunal de Contas compete apurar, para além de poder conduzir à suspensão ou redução de transferências financeiras do Estado.
Efectivamente, a LOPTC comete ao Tribunal de Contas várias obrigações de controlo nesta matéria, tipificando, no seu artigo 65.º, n.º 1, alínea f), a ultrapassagem dos limites legais da capacidade de endividamento como uma infracção geradora de responsabilidade financeira de natureza sancionatória.
Por outro lado, nos termos do n.º 2 do artigo 37.º e do n.º 3 do artigo 39.º da Lei das Finanças Locais, quando um município não cumpra os limites referidos deve reduzir em cada ano subsequente pelo menos 10 % do montante que excede o limite até que ele seja cumprido.
E de acordo com o n.º 4 do artigo 5.º da mesma Lei, a violação do limite de endividamento líquido, previsto para cada município no n.º 1 do artigo 37.º, origina uma redução no mesmo montante das transferências orçamentais devidas no ano subsequente pelo subsector Estado.
O artigo 50.º da Lei das Finanças Locais, bem como os artigos 62.º e 63.º do Decreto-Lei 41/2008, de 10 de Março, estabeleceram ainda deveres de informação dos municípios para com o Governo e para com as Direcções-Gerais do Orçamento e das Autarquias Locais, em matéria de endividamento autárquico, em que se inclui informação trimestral sobre os empréstimos contraídos e informação sobre os montantes de endividamento, designadamente para efeitos de determinação da ultrapassagem dos limites de endividamento e aplicação das reduções previstas no n.º 4 do artigo 5.º da Lei das Finanças Locais.
III.4 - Do momento relevante para aferição da observância dos limites ao endividamento municipal:
a) Conforme se refere no n.º 1 do artigo 37.º e no n.º 2 do artigo 39.º da Lei das Finanças Locais, acima transcritos, a 31 de Dezembro de cada ano é aferida a observância dos limites ao endividamento líquido total de cada município e ao montante da dívida de cada município referente a empréstimos a médio e longo prazo, considerando-se a situação existente nesse dia e comparando-a com o montante das receitas percebidas no ano anterior.
É a situação verificada nesse dia que determina o parâmetro das reduções determinadas nos n.os 2 do artigo 37.º e 3 do artigo 39.º, os cálculos efectuados pela Direcção-Geral das Autarquias Locais, nos termos do artigo 63.º do Decreto-Lei 41/2008, de 10 de Março, ou 71.º do Decreto-Lei 69-A/2009, de 24 de Março, e o montante da eventual redução nas transferências orçamentais determinada pelo n.º 4 do artigo 5.º da Lei das Finanças Locais.
E é assim porque é esse o dia que marca o encerramento do ano económico, que referencia a apresentação das contas anuais e que determina o reporte dos défices orçamentais, nomeadamente perante a União Europeia (17).
Resulta, então, deste regime que, para esses efeitos, será indiferente que o município não tenha respeitado as proporções referidas nos n.os 1 do artigo 37.º e 2 do artigo 39.º da Lei das Finanças Locais noutros dias do ano, desde que cumpra com essas proporções no fecho do ano económico.
b) Deve, então, considerar-se que o controlo dos limites de endividamento municipal supõem uma avaliação que só pode ocorrer no final de cada ano, como se fez no Acórdão fundamento? Se assim for, isso significa que o problema do excesso dos limites de endividamento nunca se pode colocar nem detectar em sede de fiscalização prévia, porque esta apreciação é limitada à apreciação da legalidade de um acto ou contrato concreto e determinado, no momento em que é praticado e apreciado. E porque, como se referiu no Acórdão fundamento, só com os elementos contabilísticos aferidos a 31 de Dezembro de cada ano se pode ter a certeza jurídica de que um município excedeu os seus limites de endividamento.
Poderá argumentar-se em favor desta tese que o controlo financeiro não é inviabilizado, uma vez que é sempre possível ao Tribunal de Contas apreciar a situação de endividamento dos municípios em 31 de Dezembro de cada ano, em sede de verificação das suas contas anuais e em auditorias de controlo sucessivo, podendo aplicar sanções pela «ultrapassagem dos limites legais da capacidade de endividamento», nos termos do artigo 65.º, n.º 1, alínea f), e n.º 2 da LOPTC.
E que, como já vimos, a inobservância do limite de endividamento líquido origina a aplicação de sanções específicas de redução das transferências do Estado e a constituição em obrigações de redução nos anos seguintes.
Quis, então, o legislador, ao contemplar um quadro sancionatório específico, afirmar que a fiscalização prévia da legalidade dos contratos de empréstimo, enquanto actos de que resulta o aumento da dívida dos municípios, não constitui um meio processual adequado de controlo dos limites ao endividamento municipal? Essa conclusão, resultando de uma interpretação literal simples das normas contidas nos referidos n.os 1 do artigo 37.º e 2 do artigo 39.º da Lei das Finanças Locais, ignora, no entanto, outros comandos legais vigentes;
c) Como concluímos acima no ponto iii.2, o legislador referiu expressamente que o Tribunal de Contas deve, na fiscalização prévia dos actos de que resulte o aumento da dívida pública fundada das autarquias, assegurar a verificação da observância dos limites de endividamento.
Constatando-se que, em relação aos demais actos sujeitos a visto, o legislador apenas referiu que o Tribunal deve verificar a sua conformidade com a lei e o cabimento dos respectivos encargos em verba orçamental própria, aquela especificação não pode ter-se por irrelevante nem por eliminada em virtude de estar prevista no âmbito da fiscalização sucessiva e da responsabilização financeira.
Ao invés, e na linha do que se estabelece no n.º 3 do artigo 46.º da LOPTC (18), consideramos que aquilo que o legislador pretendeu foi que a verificação da observância dos limites de endividamento também fosse feita e fosse sempre feita em sede de fiscalização prévia.
Como acima concluímos, a 1.ª Secção do Tribunal de Contas, tem, em sede de fiscalização prévia, não apenas a possibilidade, mas o dever legal expresso de fiscalizar o cumprimento dos limites ao endividamento municipal.
Ora, por força do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, temos de presumir que o legislador não consagrou soluções absurdas.
E absurda seria a solução de incumbir expressamente o Tribunal de Contas de verificar o cumprimento dos limites ao endividamento municipal na fiscalização prévia dos contratos de empréstimo outorgados pelos municípios e, simultaneamente, determinar que esses limites só podem ser aferidos, com a denominada certeza jurídica, num único momento do ano, incompatível com o tempo próprio dessa fiscalização prévia.
Como absurdo seria considerar que o legislador quis que o Tribunal de Contas concedesse o visto numa hipótese de forte e séria probabilidade de excesso de endividamento líquido, viabilizando um irremediável aumento desse endividamento, para mais tarde vir sancionar o responsável pelo acto que antes viabilizou.
Ou mais absurdo ainda, inviabilizar, pela concessão do visto, a responsabilização financeira a posteriori, permitindo que o responsável invoque que o excesso de endividamento decorreu de um acto visado pelo Tribunal de Contas, o que o constituiu na convicção da sua legalidade financeira, assim criando uma legítima causa de exclusão da sua culpa na prática do ilícito financeiro tipificado no artigo 65.º, n.º 1, alínea f), da LOPTC.
Para além de absurda, esta solução permitiria, com o aval do Tribunal de Contas, aquilo que a lei quis precisamente prevenir com as normas cuja aplicação está em causa: o endividamento excessivo dos municípios.
Ora, como refere José de Oliveira Ascensão (19), a propósito do elemento teleológico da interpretação da lei, todo o direito é finalista, toda a norma existe para atingir fins, devendo ser-lhe dada a interpretação adequada à realização da finalidade proposta.
Sendo a conclusão referida na alínea anterior incompatível com a realização do fim pretendido pelo legislador, deve a mesma ser afastada.
d) Importa, pois, descortinar a solução acertada que, sem deixar de ter correspondência na lei, tenha, nomeadamente, em conta a unidade do sistema jurídico (cf. o referido artigo 9.º do Código Civil).
Do regime exposto no ponto iii.3 e de outras normas legais referentes ao crédito municipal, retiramos que, para além da aferição feita a 31 de Dezembro de cada ano, há outros momentos em que a própria lei determina que seja tido em conta o nível de endividamento existente, designadamente:
Prevendo um reporte trimestral ao Governo sobre os empréstimos contraídos (artigo 50.º, n.º 3, da Lei das Finanças Locais);
Estabelecendo que o Ministro das Finanças deve ter em conta a situação existente de endividamento ao decidir autorizar excepções aos limites (artigo 39.º, n.º 6, da mesma Lei);
Fixando como pressuposto dos empréstimos para saneamento financeiro que o resultado da operação não aumente o endividamento líquido do município (artigo 40.º, n.º 1).
Ora, também no que aos concretos contratos de empréstimo diz respeito, o n.º 6 do artigo 38.º da referida Lei determina, como já acima se referenciou, que:
«6 - O pedido de autorização à assembleia municipal para a contracção de empréstimos de médio e longo prazos é obrigatoriamente acompanhado [...] de mapa demonstrativo da capacidade de endividamento do município.» Nos termos do artigo 53.º, n.º 2, alínea d), da Lei 169/99, de 18 de Setembro, compete à Assembleia Municipal aprovar ou autorizar a contratação de empréstimos municipais, resultando do transcrito n.º 6 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais que só o deve fazer se for demonstrada a capacidade de endividamento do município.
Este preceito legal contém, assim, a regra de que a contracção de um empréstimo de médio e longo prazo só pode ser autorizada, e, portanto, ocorrer, se existir capacidade de endividamento do município para tal.
Ora, é manifesto que só existe capacidade de endividamento de um município para contrair um empréstimo se a contracção desse empréstimo couber nos limites legais de endividamento (20).
Conclui-se, assim, que, nos termos da lei, a aferição dos limites legais de endividamento deve ser feita, não apenas a 31 de Dezembro de cada ano, mas também em vários outros momentos e, em especial, no momento da autorização de cada concreto contrato de empréstimo de médio e longo prazo.
A determinação legal de que cada contrato de empréstimo deve caber na capacidade de endividamento do município é, então, a regra expressa que se articula e que operacionaliza o dever legal do Tribunal de Contas de verificar, em fiscalização prévia, o cumprimento dos limites ao endividamento municipal.
e) Resta, então, determinar como é que se pode demonstrar que um município tem capacidade de endividamento para contrair um empréstimo.
As decisões tomadas pela 1.ª Secção deste Tribunal, nomeadamente no Acórdão fundamento e no Acórdão recorrido, as declarações de voto neles proferidas e os pareceres do Ministério Público apontam várias hipóteses.
De acordo com essas hipóteses, poderia concluir-se que um município tem capacidade de endividamento para a contracção de um empréstimo quando:
i) Se apure, de modo definitivo, a observância dos limites de endividamento, o que só poderia ser feito no dia 31 de Dezembro do ano em curso;
ii) Não tenha tido, no final do ano económico anterior, excesso de
endividamento;
iii) Considerando o aumento da dívida resultante do empréstimo e outras situações financeiramente relevantes, se demonstre que o município irá respeitar, no final do ano em curso, os limites de endividamento;iv) No momento da contracção do empréstimo, o nível de endividamento do município, considerando já o aumento da dívida resultante do empréstimo em causa, se contenha nos limites de endividamento para o ano em curso;
v) No momento da apreciação do empréstimo pelo Tribunal de Contas, o nível de endividamento do município, considerando já o aumento da dívida resultante do empréstimo em causa, se contenha nos limites de endividamento para o ano em curso.
Apreciemos a adequabilidade de cada uma desta hipóteses.
f) Deve considerar-se que um município tem sempre capacidade de endividamento para contrair um empréstimo, a não ser eventualmente no preciso dia 31 de Dezembro do ano em curso, porque nunca se consegue provar, com segurança jurídica, a não ser nesse dia, se vai ou não vai cumprir os limites de endividamento? De acordo com este entendimento, a Assembleia Municipal deveria sempre autorizar o aumento da dívida do município, e o Tribunal de Contas deveria sempre conceder o correspondente o visto, independentemente da situação financeira municipal, a não ser que as decisões fossem tomadas no exacto dia 31 de Dezembro.
Já vimos acima que esta solução é absurda e incompatível com os fins visados pela lei, estando, pois, fora de causa.
g) Deve, outrossim, considerar-se que um município tem, ou não, capacidade de endividamento para contrair um empréstimo consoante tenha respeitado, ou excedido, os limites de endividamento no final do ano económico anterior? Nesse sentido, a evolução da situação até ao momento da contracção desse empréstimo deve ser considerada irrelevante? O respeito ou desrespeito pelos limites de endividamento, constatado no final de um dado exercício económico, é, sem dúvida, uma certeza jurídica, constituindo o excesso uma ilegalidade, à qual correspondem possíveis sanções, como já vimos.
Mas é possível que os níveis de endividamento evoluam durante o ano subsequente.
Nomeadamente, uma situação em que se verificou excesso de endividamento em 31 de Dezembro pode evoluir positivamente nos meses seguintes.
Se assim for, em termos de o nível de endividamento entretanto atingido permitir o aumento da dívida resultante do empréstimo com respeito pelos limites do ano em curso, não vemos porque razão há-de impedir-se o município de contrair a dívida, já que esse acto não constitui um risco para o cumprimento desses limites no fim do ano em curso.
Acresce que ignorar a relevância dessa evolução corresponderia a fixar uma sanção para a violação dos limites de endividamento que a lei não prevê. Efectivamente, este entendimento conduziria a que uma autarquia que excedesse o limite de endividamento em 31 de Dezembro de um dado ano estaria impedida de contrair empréstimos para investimentos durante todo o ano seguinte, mesmo que melhorasse significativamente a sua situação financeira. Ora, este tipo de sanção não está prevista na lei a não ser em caso de incumprimento de um plano de saneamento financeiro (21), não nos parecendo que deva decorrer da interpretação das normas que nos ocupam.
h) Deve, então, considerar-se que um município tem capacidade de endividamento para contrair um empréstimo quando demonstre que a evolução da sua situação financeira durante o ano em curso, incluindo o aumento da dívida resultante da contracção do empréstimo em apreciação, lhe vai permitir cumprir, no encerramento do ano económico em referência, os limites de endividamento? Esta posição faz apelo, como se referiu no Acórdão fundamento, a um juízo de probabilidade.
É certo que não será um juízo qualquer.
O mapa demonstrativo da capacidade de endividamento do município requerido pela lei não pode ser uma estimativa infundada. Tem de basear-se em dados contabilísticos e em compromissos assumidos e comprovados de receita e despesa.
Tratar-se-á, pois, de um documento previsional.
Ora a conformidade dos actos sujeitos a fiscalização prévia com documentos previsionais tem relevância jurídica expressa.
Têm mera natureza previsional os orçamentos anuais, os planos plurianuais de investimentos ou os planos de saneamento ou reequilíbrio financeiro. Enquanto previsões financeiras, a sua efectiva realização só será confirmada no final dos exercícios económicos em causa.
No entanto, e apesar dessa sua natureza, a lei prevê que a desconformidade dos actos com documentos previsionais possa ser fundamento de recusa de visto.
Veja-se, designadamente, a questão do cabimento orçamental.
A lei estabelece expressamente, na alínea b) do n.º 3 do artigo 44.º da LOPTC, que constitui fundamento de recusa de visto a assunção de encargos sem cabimento em verba orçamental própria.
Ora, esta verba orçamental decorre de receita que é uma mera previsão, que se pode concretizar ou não, fundando-se, então, no caso, a concessão ou a recusa de visto num juízo de probabilidade e não de certeza.
Importa, no entanto, ponderar se haverá melhor solução.
i) Deverá, em alternativa, considerar-se que um município tem capacidade de endividamento para contrair um empréstimo quando demonstre que o nível do seu endividamento, à data da contracção desse empréstimo, respeita os respectivos limites legais? Esta hipótese dá resposta às várias preocupações em causa.
Em primeiro lugar, é compatível com a operacionalização do disposto no n.º 2 do artigo 44.º da LOPTC, que manda verificar, em sede de fiscalização prévia, a observância dos limites de endividamento.
Por outro lado, tem correspondência com o estabelecido no n.º 6 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais, quando este faz depender a contracção dos empréstimos da existência de capacidade de endividamento do município, oferecendo-lhe a devida concretização.
Está também de acordo com a jurisprudência da 1.ª Secção deste Tribunal, na parte em que tem entendido que deve atender-se ao regime e aos factos vigentes à data da contratação dos empréstimos (22).
Permite, ainda, que a decisão do Tribunal de Contas, em sede de fiscalização prévia, assente numa certeza jurídica e não num juízo de probabilidade.
Trata-se de uma solução que garante o efectivo controlo do endividamento municipal, em realização da finalidade prosseguida pela lei, dando, ainda assim, relevância à evolução verificada nos níveis de endividamento ao longo do ano. Desta forma compatibiliza a necessidade de controlo com a indispensável flexibilidade da gestão financeira.
E, por último, é uma solução que favorece a coerência das várias intervenções possíveis do Tribunal de Contas nesta matéria, permitindo que fiscalização prévia, fiscalização concomitante e sucessiva e responsabilização financeira convirjam no sentido de assegurar uma efectiva observância dos limites de endividamento.
É, pois, a interpretação mais acertada.
j) Fica prejudicada a hipótese referida na alínea e), subalínea v), em virtude de aquela que acabámos de referir ter mais aderência ao estipulado no n.º 6 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais.
III.5 - Do fundamento para a recusa de visto. - Importa, agora, analisar se o facto de, na data de contracção do empréstimo, o município não ter capacidade de endividamento para o efeito (ou seja, de, nessa data, o seu nível de endividamento, incluída a dívida resultante do empréstimo, exceder o limite legal) constitui fundamento de recusa de visto ao correspondente contrato de empréstimo.
A falta de capacidade de endividamento para a contracção do empréstimo constitui uma ilegalidade, por incumprimento de um dos pressupostos dessa contracção, o qual, como vimos, está estabelecido na parte final do n.º 6 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais.
Tal norma deve ser considerada como financeira, por integrar um dos diplomas fundamentais do direito financeiro aplicável às autarquias locais (a Lei das Finanças Locais) e por tutelar, de forma principal, o interesse financeiro público de prevenir o endividamento ilegal e excessivo dos municípios.
A violação de normas financeiras constitui fundamento de recusa de visto, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 44.º da LOPTC.
Devem fazer-se a este respeito algumas precisões.
Em primeiro lugar, que a ilegalidade verificada é a contracção do empréstimo sem que se verifique a capacidade de endividamento do município para tal, e não a violação consumada do limite de endividamento.
A violação dos limites de endividamento, enquanto tal, deve ser apreciada noutro momento e noutras sedes, designadamente em acções de fiscalização sucessiva ou de responsabilização financeira.
Nessa medida, e no âmbito dos processos de fiscalização prévia, o preceito legal violado não é directamente o n.º 1 do artigo 37.º, no caso do limite de endividamento líquido, ou o n.º 2 do artigo 39.º, no caso do limite para a dívida referente a empréstimos a médio e longo prazo, mas sim o n.º 6 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais.
Para aferir da capacidade de endividamento referida neste preceito, há obviamente que recorrer aos critérios estabelecidos nos artigos 36.º, 37.º, n.º 1, e 39.º, n.º 2, daquela Lei, mas, por imperativo do n.º 6 do artigo 38.º, esses critérios devem ser aplicados com referência à data da contratação dos empréstimos.
Refira-se também que não se pode deixar de ter em conta o nível verificado de endividamento no final do ano económico anterior, nomeadamente como ponto de partida da evolução verificada até ao momento em análise e da respectiva sustentabilidade.
Por outro lado, importa precisar que, como referimos no ponto iii.3, o empréstimo público é um acto que obedece a autorizações e vinculações legais.
Consequentemente, sendo a capacidade de endividamento um dos pressupostos legais da contracção dos empréstimos, basta a circunstância de esse pressuposto não estar suficientemente demonstrado para se verificar a ilegalidade fundamento da recusa de visto.
Não se torna, pois, necessário apurar qualquer certeza jurídica quanto à violação dos limites de endividamento a 31 de Dezembro do ano em causa.
A mesma, se vier a ocorrer, constitui uma outra violação de lei.
IV - Da decisão recorrida
Nos termos do n.º 2 do artigo 770.º do Código do Processo Civil, subsidiariamente aplicável, em recurso extraordinário para fixação de jurisprudência a decisão que verifique a existência da contradição jurisprudencial revoga o acórdão recorrido e substitui-o por outro em que se decide a questão controvertida.No mesmo sentido, o n.º 5 do artigo 53.º do Regulamento Interno do Tribunal de Contas, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 162, de 14 de Julho de 1999, estabelece que «o acórdão final que fixar jurisprudência decidirá, em conformidade, da procedência do recurso quanto à decisão recorrida».
Sendo certo que, tal como se refere no n.º 3 do referido artigo 770.º do Código do Processo Civil, a decisão que resolve o conflito não afecta qualquer sentença anterior à que tenha sido impugnada, a lei determina, no entanto, que ela tenha eficácia no processo em que o recurso foi interposto.
Importa, de qualquer modo, precisar que essa eficácia é limitada ao âmbito da jurisprudência fixada, não devendo ser considerados quaisquer outros aspectos, uma vez que o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência se destina tão-só a resolver um conflito jurisprudencial, não devendo ser transformado em mais um recurso ordinário (23).
Vejamos, então, se e de que forma deve ser revista a decisão proferida no Acórdão recorrido (24).
Consta do ponto i.5 deste Acórdão que o Ministério Público, recorrente neste recurso, se pronunciou no sentido da prevalência dos fundamentos de recusa do visto constantes do Acórdão recorrido.
Conforme se concluiu no ponto anterior, a capacidade de endividamento de um município deve aferir-se ao momento da contracção do empréstimo.
Como se explicitou no ponto ii.3, no Acórdão recorrido concluiu-se que do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 44.º da LOPTC e nos n.os 2 e 6 do artigo 39.º, no n.º 1 do artigo 37.º e no n.º 6 do artigo 38.º da Lei das Finanças Locais se retira, em nome da certeza, que um empréstimo, no momento da sua contracção, tem de respeitar os limites de endividamento - de «empréstimos de médio e longo prazo» e de «endividamento líquido» - da autarquia.
E, por esse Acórdão, recusou-se o visto aos contratos em análise, por, em relação ao contrato registado sob o n.º 962/08, existir um outro fundamento de recusa de visto, e por, em relação ao contrato registado sob o n.º 957/08, o montante do empréstimo não caber na margem de endividamento líquido apurada pelo recorrente nas suas alegações.
Da interpretação que defendemos não decorre, pois, qualquer alteração ao sentido da decisão tomada na decisão recorrida, o que, de resto, corresponde também ao pedido do recorrente.
V - Decisão
Assim, pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal de Contas, em plenário geral, em:a) Fixar a seguinte jurisprudência:
«1 - A contracção pelos municípios de empréstimos a médio e longo prazo para aplicação em investimentos pressupõe a demonstração de que os mesmos têm capacidade de endividamento para o efeito, como resulta do disposto no n.º 6 do artigo 38.º da Lei 2/2007, de 15 de Janeiro, rectificada pela Declaração de Rectificação 14/2007, publicada no Diário da República de 15 de Fevereiro de 2007, e alterada pelas Leis n.os 22-A/2007, de 29 de Junho, e 67-A/2007, de 31 de Dezembro.
2 - A referida capacidade de endividamento é calculada com base nos critérios estabelecidos nos artigos 36.º, 37.º, n.º 1, e 39.º, n.º 2, da mesma Lei, com referência à data da contracção dos empréstimos.
3 - A falta de demonstração dessa capacidade de endividamento constitui fundamento de recusa de visto aos contratos, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 44.º da Lei 98/97, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis n.os 87-B/98, de 31 de Dezembro, 1/2001, de 4 de Janeiro, 55-B/2004, de 30 de Dezembro, 48/2006, de 29 de Agosto, e 35/2007, de 13 de Agosto.» b) Confirmar o Acórdão recorrido, por a decisão nele proferida ser conforme com a jurisprudência ora fixada.
Não são devidos emolumentos nos termos do artigo 20.º do Regime Jurídico dos Emolumentos do Tribunal de Contas, anexo ao Decreto-Lei 66/96, de 31 de Maio.
Publique-se na 1.ª série do Diário da República, nos termos do n.º 1 do artigo 9.º da Lei 98/97, na redacção da Lei 48/2006, de 29 de Agosto.
(1) Lei 2/2007, de 15 de Janeiro, rectificada pela Declaração de Rectificação 14/2007, publicada no Diário da República de 15 de Fevereiro de 2007, e alterada pelas Leis n.os 22-A/2007, de 29 de Junho, e 67-A/2007, de 31 de Dezembro. V.
também o artigo 51.º, n.os 3 e 4, da Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
(2) Lei 98/97, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis n.os 87-B/98, de 31 de Dezembro, 1/2001, de 4 de Janeiro, 55-B/2004, de 30 de Dezembro, 48/2006, de 29 de Agosto, e 35/2007, de 13 de Agosto.
(3) Acórdão 112/08 - 26 de Setembro de 2008 - 1.ª S/SS.
(4) Excesso de (euro) 2 054 838,47, representando, só esse excesso, cerca de 27 % da receita municipal relevante de 2007.
(5) Sublinhado nosso.
(6) Sublinhados nossos.
(7) Sublinhado nosso.
(8) Excesso de (euro) 1 804 460,86, representando, só esse excesso, cerca de 31 % da receita municipal relevante de 2007.
(9) Sublinhado nosso.
(10) Sublinhado nosso.
(11) Montante actualmente fixado em (euro) 350 000,00, pelo artigo 159.º da Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
(12) António L. de Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Almedina, 4.ª ed., 11.ª reimpressão, p. 102 (13) Lei 91/2001, de 20 de Agosto, alterada pela Lei Orgânica 2/2002, de 28 de Agosto, pela Lei 23/2003, de 2 de Julho, e pela Lei 48/2004, de 24 de Agosto.
(14) Aprovado pelo Decreto-Lei 54-A/99, de 22 de Fevereiro, com as alterações constantes da Lei 162/99, de 14 de Setembro, do Decreto-Lei 315/2000, de 2 de Dezembro, do Decreto-Lei 84-A/2002, de 12 de Abril, e da Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro.
(15) Idem, pp. 112 e 113.
(16) Sublinhado nosso.
(17) Atente-se, nomeadamente, ao referido no n.º 1 do artigo 5.º da Lei das Finanças Locais: «A coordenação das finanças dos municípios e das freguesias com as finanças do Estado tem especialmente em conta o desenvolvimento equilibrado de todo o País e a necessidade de atingir os objectivos e metas orçamentais traçados no âmbito das políticas de convergência a que Portugal se tenha obrigado no seio da União Europeia.» (18) «3 - O Tribunal e os seus serviços de apoio exercem as respectivas competências de fiscalização prévia de modo integrado com as formas de fiscalização concomitante e sucessiva.» (19) In José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 363.
(20) A própria lei estabelece a correspondência entre os dois conceitos. Nos preceitos em análise e, ainda, no artigo 65.º, n.º 1, alínea f), da LOPTC, quando se fala em «ultrapassagem dos limites legais da capacidade de endividamento».
(21) Cf. artigo 40.º, n.º 5, alínea a), da Lei das Finanças Locais.
(22) V., entre outros, os Acórdãos n.os 4/06 - 9 de Janeiro de 2006 - 1.ª S/SS, 275/06 - 10 de Agosto - 1.ª S/SS, 326/2006 - 7 de Novembro de 2006 - 1.ª S/SS, 45/06 - 4 de Julho - 1.ª S/PL, e 56/06 - 22 de Novembro - 1.ª S/PL.
(23) Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 1996.
(24) E não a constante do Acórdão fundamento.
Lisboa, 25 de Maio de 2009. - Helena Abreu Lopes (relatora) - José Luís Pinto Almeida - António Mira Crespo - Alberto Fernandes Brás - Carlos Moreno - João Figueiredo - Manuel Freitas Pereira - Raul Correia Esteves - Carlos Morais Antunes - António Fonseca da Silva - Eurico Pereira Lopes - Nuno Lobo Ferreira - Manuel Mota Botelho - José Monteiro da Silva - João Ferreira Dias - António Santos Soares (com voto vencido anexo) - António Santos Carvalho (com declaração anexa). - O Presidente, Guilherme d'Oliveira Martins. - O Procurador-Geral-Adjunto, Jorge Leal.
Voto de vencido
Recurso extraordinário n.º 01/2009
Votei vencido quanto ao entendimento constante do n.º 2 da parte decisória, onde se menciona que a capacidade de endividamento é calculada com base nos critérios estabelecidos nos artigos 36.º, 37.º, n.º 1, e 39.º, n.º 2, da Lei 2/2007 de 15 de Janeiro, com referência à data da contracção dos empréstimos.Ou seja, a minha discordância assenta, fundamentalmente, na definição do momento relevante para o cálculo da capacidade de endividamento dos municípios.
As razões da minha discordância, quanto a esse ponto, são, essencialmente, as seguintes:
1 - A Lei 2/2007 de 15 de Janeiro (Lei das Finanças Locais - LFL) trata, nos seus artigos 37.º e 39.º, o limite do endividamento líquido municipal e o limite geral dos empréstimos dos municípios, respectivamente.
2 - No que concerne ao limite do endividamento líquido municipal, e mais propriamente, ao momento da sua aferição, estabelece no seu artigo 37.º, n.º 1, o seguinte:
«Artigo 37.º
Limite do endividamento líquido municipal
1 - O montante do endividamento líquido total de cada município, em 31 de Dezembro de cada ano (1), não pode exceder 125 % do montante das receitas provenientes dos impostos municipais, das participações do município no FEF, da participação no IRS, da derrama e da participação nos resultados das entidades do sector empresarial local, relativas ao ano anterior.» 3 - Por seu turno, quanto ao limite geral dos empréstimos dos municípios, e, designadamente, quanto ao momento da sua aferição, o artigo 39.º, do citado diploma legal, distingue, por um lado, os empréstimos a curto prazo e de aberturas de crédito (n.º 1) e, por outro, os empréstimos de médio e longo prazos (n.º 2).
3.1 - Relativamente ao limite dos empréstimos de curto prazo e de aberturas de crédito e ao momento da sua aferição, estabelece o n.º 1 deste artigo 39.º o seguinte:
«Artigo 39.º
Limite geral dos empréstimos dos municípios
1 - O montante dos contratos de empréstimos a curto prazo e de aberturas de crédito não pode exceder, em qualquer momento do ano, (2) 10 % da soma do montante das receitas provenientes dos impostos municipais, das participações do município no FEF e da participação no IRS referida na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º da derrama e da participação nos resultados das entidades do sector empresarial local, relativas ao ano anterior.» 3.2 - Já no que se refere ao limite dos empréstimos de médio e longo prazos e ao momento da sua aferição, dispõe o n.º 2 do citado artigo 39.º da Lei 2/2007 o seguinte:
«Artigo 39.º
[...]
1 - ......................................................................2 - O montante da dívida de cada município referente a empréstimos a médio e longo prazos não pode exceder, em 31 de Dezembro de cada ano (3), a soma do montante das receitas provenientes dos impostos municipais, das participações do município no FEF, da participação no IRS referida na alínea c) do artigo 19.º, da participação nos resultados das entidades do sector empresarial local e da derrama relativas ao ano anterior.» 4 - Do que se acaba de dizer logo resulta que o legislador, nos normativos atrás referidos, estabeleceu os momentos a que deve reportar-se o apuramento dos limites do endividamento municipal.
Ora, como se viu, apenas quanto ao limite dos empréstimos de curto prazo e das aberturas de crédito, é que o legislador da LFL estipulou que o seu apuramento é efectuado em qualquer momento do ano.
Quanto aos outros limites de endividamento, o mesmo legislador, inequivocamente, estabeleceu que a sua aferição era efectuada com reporte a 31 de Dezembro de cada ano.
É que, além do mais, não se poderá olvidar que, quando um município exceda, em 31 de Dezembro de cada ano, o limite do endividamento líquido total, bem como o montante da dívida referente a empréstimos de médio e longo prazos, terá de reduzir em cada ano subsequente, pelo menos 10 % do montante que excede o seu limite de endividamento líquido e o seu limite de empréstimos, de harmonia com o que estabelecem os artigos 37.º, n.º 2, e 39.º, n.º 3, da Lei das Finanças Locais.
Assim sendo, a nosso ver, o apuramento do limite do endividamento líquido municipal tem que ser efectuado, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 37.º da LFL, em 31 de Dezembro de cada ano e não em outro momento do ano, designadamente, na data da contracção do empréstimo, como resulta da decisão que fez vencimento.
Mas, para a situação ora em causa, perguntar-se-á: em 31 de Dezembro de que ano? A tal questão apenas poderá responder-se, segundo pensamos, que será em 31 de Dezembro do ano anterior ao da contratação do empréstimo.
Na verdade, o apuramento daquele limite não pode ser efectuado em 31 de Dezembro do ano em que for contraído o empréstimo, uma vez que ainda não ocorreu o encerramento do ano económico, e, portanto, não será possível saber o nível de endividamento municipal nessa data.
Na data da contratação do empréstimo apenas se poderão fazer previsões - falíveis como são todas as previsões - quanto à observância do aludido limite de endividamento.
Entendemos, todavia, que não poderá deixar de se ter em conta uma eventual evolução positiva do nível de endividamento líquido, que possa ocorrer entre 31 de Dezembro do ano anterior e a data em que é contratado o empréstimo.
Neste caso, e como se refere no Acórdão, ignorar a relevância da evolução da situação financeira do município, corresponderia a fixar uma sanção para a violação dos limites de endividamento que a lei não prevê, relativamente ao tipo de empréstimos a que nos vimos a reportar.
Numa tal situação, e perante a demonstração cabal de que, na data da contracção do empréstimo, estava ultrapassado o excesso de endividamento líquido apresentado em 31 de Dezembro do ano anterior, não se evidenciariam razões que, deste ponto de vista, inviabilizassem a contracção de tal empréstimo.
Este entendimento, que supõe uma interpretação prospectiva da lei, ou, na esteira de Jorge Miranda, (4) uma interpretação em que, na dúvida, os direitos devem prevalecer sobre as restrições, permitiria superar os efeitos negativos que decorreriam da rígida aplicação do artigo 37.º, n.º 1, da LFL, acima referido. - O Juiz Conselheiro, António Santos Soares.
(2) Itálico nosso.
(3) Itálico nosso.
(4) V. Manual de Direito Constitucional, 4.º, p. 308.
Declaração de voto
O voto favorável não elide, contudo, a dúvida sobre se melhor seria sobrepassar uma visão, por assim dizer, marcadamente notarial, para se aceitar, sim, a funcionalidade de um conceito/critério projectivo, erguido com base no ponto de partida da situação em 31 de Dezembro do ano transacto e baliza na situação previsível de 31 de Dezembro do ano corrente. - O Juiz Conselheiro, António Santos Carvalho.