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Acórdão 56/2016, de 8 de Março

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Sumário

Julga inconstitucionais interpretações retiradas das seguintes normas: artigos 40.º, § 1.º, e 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 44623, de 10 de outubro de 1962 (exercício de pesca), em conjugação com o disposto nos artigos 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, e 40.º, n.º 1, do Código Penal; artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 44623, de 10 de outubro de 1962, conjugado com o disposto no artigo 43.º, n.º 1, do Código Penal; não julga inconstitucional a norma do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 44623, de 10 de outubro de 1962, na interpretação segundo a qual dele resulta unicamente a aplicação da pena principal de multa ali prevista

Texto do documento

Acórdão 56/2016

Processo 802/15

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - A Causa

1 - No âmbito do processo sumário n.º 678/15.0GBAGD, que correu os seus termos na Comarca de Aveiro, o Ministério Público (o ora Recorrente) proferiu despacho considerando indiciada a prática pelos arguidos António Manuel Simões Pereira e Valteon Bungestab Moreira de um crime de pesca ilegal previsto e punido pelas disposições conjugadas do § 1 do artigo 40.º e pelo artigo 65.º do Regulamento da Lei 2097, aprovado pelo Decreto 44623 de 10/10/1962, na redação conferida pelo Decreto 312/70, de 6 de julho, concluindo pela proposta de suspensão provisória do processo pelo período de quatro meses, nos termos do artigo 281.º do Código de Processo Penal (CPP), ex vi artigo 384.º do mesmo Código, com as injunções de entrega de (euro)150,00 a uma Instituição de solidariedade social, de uma só vez ou em duas prestações mensais de (euro)75,00, e de não ser cometido qualquer crime doloso durante o período de suspensão.

Os autos foram remetidos ao Juiz de Instrução Criminal (JIC) para se pronunciar quanto à concordância ou não concordância relativamente à suspensão provisória do processo, nos termos do 384.º, n.º 2, do CPP.

1.1 - Recebidos os autos pelo JIC proferiu este Magistrado o despacho seguinte:

"[...]

O Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 281.º do Código de Processo Penal, veio propor a suspensão provisória do presente processo, pelo prazo de 4 meses, mediante as seguintes condições:

- entregar a quantia de (euro)150,00 a uma IPSS comprovando no prazo de suspensão tal entrega;

- não praticar crime doloso durante o prazo da suspensão.

Cumpre apreciar.

Foram recolhidos indícios da prática pela arguida de um crime de exercício de pesca ilegal, na sua forma agravada p.p. artigo 40.º, parágrafo 1.º e 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 de 10-10-1962.

A pena aplicável ao crime em causa é, nos termos do referido artigo 65.º de prisão de 10 a 30 dias e multa de (euro)2,99 a (euro)74,82.

O D.L. 400/82 de 23-9, diploma que aprovou o CP de 1982, estabelece no seu artigo 3.º n.º 1 que «ficam alterados para os limites mínimos e máximos resultantes do artigo 40.º do Código Penal todas as penas de prisão que tenham a duração inferior ou superior aos limites aí estabelecidos».

A consequência prática, no que ao crime em causa nestes autos respeita, é que a pena de prisão aplicável teria limites mínimo e máximo coincidentes (30 dias) importando, por esta razão, uma inaceitável e inconstitucional limitação dos poderes do Juiz na determinação concreta da pena, em violação dos princípios da culpa, da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade.

Neste mesmo sentido - da inconstitucionalidade do referido artigo 3.º n.º 1 do D.L. 400/82 de 23-9, quando interpretada num sentido conducente à aplicação de pena de prisão com limite mínimo e máximo coincidentes, se pronunciou já o TC (pelo menos) nos seguintes arestos todos referentes a processos em que foi por nós recusada a aplicação por inconstitucionalidade da mesma norma:

1 - Decisão Sumária n.º 434/2009 (P. TC 881/09 - 2.ª Secção) de 3-11-2009.

Confirma a inconstitucionalidade dos artigos 67.º do Regulamento da Lei 2097 (aprovado pelo decreto-lei 44623 de 10-10-1962 (norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo ac. TC n.º 124/2004

Confirma a inconstitucionalidade do artigo 3.º n.º 1 do Decreto-Lei 400/82 de 23-9 (como já antes havia sido declarado nos Acórdãos 22/2003 e 163/2004.

2 - Decisão Sumária 386/2009 (P.633/09 3.ª Secção)

Confirma a inconstitucionalidade do artigo 3.º n.º 1 do Decreto-Lei 400/82 de 23-9 (como já antes havia sido declarado nos Acórdãos 70/02, 22/2003 e 163/2004.

3 - Decisão Sumária 651/2014 (P.TC 754/2014 2.ª Secção).

Confirma a inconstitucionalidade do artigo 3.º n.º 1 do Decreto-Lei 400/82 de 23-9 (como já antes havia sido declarado nos Acórdãos 70/02, 22/2003 e 163/2004) quando conjugada com o artigo 40.º do CPenal e com os artigos 34.º n.º 2 c) e d) e 65.º do Decreto 44623 de 10-10-1962.

4 - Acórdão 712/2014 (P.534/14 2.ª Secção). DR de 18-12-2014.

Confirma a inconstitucionalidade do artigo 3.º n.º 1 do Decreto-Lei 400/82 de 23-9 enquanto manda aplicar o limite mínimo de 1 mês previsto no artigo 40.º n.º 1 do CPenal (atualmente artigo 41.º) ao crime de pesca ilegal previsto nos artigos 3.º, 33.º, 44.º a) e punido nos termos do artigo 65.º, todos do Regulamento da Lei 2097 aprovado pelo Decreto 44623 de 1962.

5 - Acórdão 102/2015 (P. 197/2014 - 1.ª Secção).

Confirma a inconstitucionalidade do artigo 3.º n.º 1 do Decreto-Lei 400/82 de 23-9 conjugada com os artigos 40.º parágrafo 1.º e 65.º do Decreto 44623 de 10-10-1962.

Pelas razões sumariamente atrás explicitadas e melhor desenvolvidas nos convocados Acórdãos do TC (que aqui se dão por reproduzidas) recusa-se, a aplicação do convocado artigo 3.º n.º 1 do D.L. 400/82, por violação dos artigos 13.º, 18.º e 27.º da CRP, quando interpretado no sentido de que prevendo o Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 de 10-10-1962 uma pena de prisão de 10 a 30 dias é aplicável uma pena de prisão de 30 dias.

A aplicação unicamente da pena de multa prevista no artigo 65.º Decreto 44623 (já não considerando a prisão) não é uma solução viável, pois que equivaleria a ficcionar uma «nova» pena reduzida uma parte da pena aplicável, solução que não aceitamos porquanto se entende como orgânica e materialmente inconstitucional. Efetivamente é matéria de reserva relativa da AR a competência para legislar designadamente sobre crimes e penas, não cabendo aos Tribunais a definição, ainda que em sede interpretativa de penas não previstas em legislação anterior, sob pena de violação daquela reserva e do princípio da legalidade - arts. 165.º e 29.º da CRP.

Por idênticas razões não é viável a aplicação de pena de multa de substituição à pena de prisão em abstrato aplicável. Uma coisa é a aplicação de uma pena de multa em substituição de pena de prisão que seja em abstrato de aplicar outra diversa (e para nós inadmissível) é a aplicação de uma pena de multa de substituição por se constatar pela inconstitucionalidade da pena de prisão aplicável a título principal.

Rejeita-se assim, também, a aplicação do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 de 10-10-1962 por violação dos artigos 29.º e 165.º da CRP quando interpretado no sentido de que é aplicável às condutas ali enquadráveis apenas a multa ali prevista ou, cumulativamente, a multa ali prevista e a pena de multa em substituição da pena de prisão que concretamente fosse fixada dentro dos limites (da pena de prisão) ali estipulados.

Assim sendo, face aos limites fixados no artigo 40.º do CP de 1982, à pena aplicável tal como previsto no artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 e à inconstitucionalidade dos artigos 3.º n.º 1 do D.L. 400/82 e 65.º do citado Regulamento, a consequência será considerar como não criminalmente punível a conduta do arguido.

Face ao exposto, decide-se:

1 - Recusar a aplicação do convocado artigo 3.º n.º 1 do D.L. 400/82, por violação dos artigos 13.º, 18.º e 27.º da CRP, quando interpretado no sentido de que prevendo o Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 de 10-10-1962 uma pena de prisão de 10 a 30 dias é aplicável uma pena de prisão de 30 dias.

2 - Recusar a aplicação do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 de 10-10-1962 por violação dos artigos 29.º e 165.º da CRP, quando interpretado no sentido de que é aplicável às condutas ali enquadráveis apenas a pena de multa ali prevista ou, cumulativamente, a multa ali prevista e a pena de multa em substituição da pena de prisão que concretamente fosse fixada dentro dos limites (da pena de prisão) ali estipulados.

3 - Proferir despacho de não concordância com a promovida suspensão do processo.

[...]".

1.2 - Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º 3 do artigo 72.º, ambos da LTC), recurso esse que foi admitido.

1.2.1 - No Tribunal Constitucional, o Ministério Público e o arguido foram notificados para alegarem. Só o Ministério Público o fez, observando o seguinte:

"[...]

1.4 - O Senhor Juiz, aceitando a qualificação realizada pelo Ministério Público, ou seja, que o crime praticado era o previsto e punido pelos artigos 40.º § 1.º e 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de1962, punível com pena de prisão de 10 a 30 dias e multa de (euro) 2,99 e 74,82, afirmou:

"O D.L. 400/82 de 23-9, diploma que aprovou o CP de 1982, estabelece no seu artigo 3.º n.º 1 que «ficam alterados para os limites mínimos e máximos resultantes do artigo 40.º do Código Penal todas as penas de prisão que tenham a duração inferior ou superior aos limites aí estabelecidos».

A consequência prática, no que ao crime em causa nestes autos respeita, é que a pena de prisão aplicável teria limites mínimo e máximo coincidentes (30 dias) importando, por esta razão, uma inaceitável e inconstitucional limitação dos poderes do Juiz na determinação concreta da pena, em violação dos princípios da culpa, da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade".

Seguidamente refere jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria.

1.5 - Consequentemente, recusou a aplicação "pelas razões sumariamente atrás explicitadas e melhor desenvolvidas nos Acórdãos do TC (que aqui se dão por reproduzidas) recusa-se, a aplicação do convocado artigo 3.º, n.º 1 do D.L. 400/82, por violação dos artigos 13.º, 18.º e 27.º da CRP, quando interpretado no sentido de que prevendo o Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 de 10-10-1962 uma pena de prisão de 10 a 30 dias é aplicável uma pena de prisão de 30 dias".

1.6 - Quanto ao regime que seria aplicável como consequência da inconstitucionalidade, o Senhor Juiz entendeu:

"A aplicação unicamente da pena de multa prevista no artigo 65.º do decreto 44623 (já não considerando a prisão) não é uma solução viável, pois que equivaleria a ficcionar uma «nova» pena reduzida uma parte da pena aplicável, solução que não aceitamos porquanto se entende como orgânica e materialmente inconstitucional. Efetivamente é matéria de reserva relativa da AR a competência para legislar designadamente sobre crimes e penas, não cabendo aos Tribunais a definição, ainda que em sede interpretativa, de penas não previstas em legislação anterior, sob pena de violação daquela reserva e do princípio da legalidade - arts. 165.º e 29.º da CRP.

Por idênticas razões não é viável a aplicação de pena de multa de substituição à pena de prisão em abstrato aplicável. Uma coisa é a aplicação de uma pena de multa em substituição de pena de prisão que seja em abstrato de aplicar outra diversa (e para nós inadmissível) é a aplicação de uma pena de multa de substituição por se constatar pela inconstitucionalidade da pena de prisão aplicável à título principal. Tal solução mais não é do que (mais uma vez) a criação de uma «nova» pena de multa não prevista em legislação anterior".

1.7 - Em conformidade, recusou "a aplicação do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 de 10-10-1962 por violação dos artigos 29.º e 165.º da CRP, quando interpretado no sentido de que é aplicável às condutas ali enquadráveis apenas a pena de multa ali prevista ou, cumulativamente, a multa ali prevista e a pena de multa em substituição da pena de prisão que concretamente fosse fixada dentro dos limites (da pena de prisão) ali estipulados".

1.8 - Desta forma e porque, consequentemente, a conduta do arguido deixara de ser criminalmente punível, proferiu despacho de não concordância com a promovida suspensão do processo.

1.9 - Desta decisão, o Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), interpôs recurso para o Tribunal Constitucional identificando como seu objeto as duas questões de inconstitucionalidade anteriormente referidas (1.5 e 1.7).

2 - Apreciação do mérito do recurso.

2.1 - Primeira questão de inconstitucionalidade

2.1.1 - O artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 400/82 estabelece que "ficam alterados para os limites mínimo e máximo fixados no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, todas as penas de prisão que tenham duração inferior aos limites ali estabelecidos".

Nos termos do artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal (atual 41.º, n.º 1) a pena de prisão tem a duração mínima de um mês.

O crime do artigo 40.º, § 1.º, nos termos do artigo 65.º (ambos do Regulamento) é punível com pena de 10 a 30 dias de prisão.

Assim, temos que o mínimo da pena de prisão constante do artigo 40.º do Código Penal coincide com o máximo de pena aplicável ao crime.

Estamos, pois, perante uma pena de prisão fixa.

2.1.2 - Sobre a questão se pronunciaram os Acórdãos n.os 22/2003, 163/2004, 712/2014 e 102/2015, e as Decisões Sumárias n.os 189/2003 e 190/2003 que julgaram inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei 433/82, enquanto dele decorre o estabelecimento para a pena de prisão, do limite mínimo previsto no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal aprovado por aquele diploma, relativamente a um tipo legal de crime previsto em legislação avulsa cuja moldura penal tenha como limite máximo um limite igual ou inferior ao limite mínimo consagrado no mesmo n.º 1 do artigo 40.º

De salientar que nesses processos, tal como neste, estava em causa, precisamente, crimes de pesca ilegal punidos nos termos do artigo 65.º do Regulamento.

No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão 80/2012, que julgou inconstitucional a norma do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44 623, quando, por força do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, conjugado com o disposto no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal (versão originária), determina que a pena aplicável ao crime é uma pena fixa de um mês de prisão.

2.1.3 - Acrescentaremos que sobre a questão da pena fixa aplicável aos crimes de pesca ilegal, embora previstos em outras disposições legais, como o artigo 65.º§ único do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, ocorreu um conflito jurisprudencial.

Efetivamente, após decisões divergentes, o Plenário, pelo Acórdão 70/2002, confirmando o Acórdão então recorrido (o Acórdão 95/2001), entendeu que a existência de uma pena fixa violava os princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, sendo que é no Acórdão 95/2001 que se encontra desenvolvida fundamentação sobre a matéria.

Aquela norma veio posteriormente a ser declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão 124/2004, que adotou a fundamentação constante do Acórdão 95/2001.

2.1.4 - Não sendo a existência de penas de prisão fixas constitucionalmente aceitável em face aos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, remetendo para a fundamentação constante dos Acórdãos anteriormente referidos, resta-nos concluir que a norma do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, enquanto manda aplicar o limite mínimo (1 mês) previsto no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal (atualmente artigo 41.º), a um tipo penal previsto em legislação avulsa - no caso o crime de pesca ilegal previsto no artigo 40.º, § 1.º, e punido nos termos do artigo 65.º, ambos do Regulamento aprovado pelo Decreto 44 623 de 10 de outubro de 1962 -, cuja moldura penal se situa entre os 10 e os 30 dias de prisão, é inconstitucional, porque, dessa forma, a pena aplicável, passa a ser uma pena fixa de um mês de prisão.

Deve, pois, nesta parte, ser negado provimento ao recurso.

2.2 - Segunda questão de inconstitucionalidade

2.2.1 - O artigo 65.º do Regulamento estabeleceu para além da pena de prisão que o crime também é punível com multa de 2,99 a 74,82 euros.

Por força do juízo da inconstitucionalidade da aplicação da pena de prisão poderíamos ser levados a concordar com o Senhor Juiz, no sentido de que tudo o que tenha a ver com pena de prisão, aí se incluindo naturalmente uma pena de multa em substituição da prisão em abstrato aplicável, não seria de aplicar.

Essa pena poderia surgir como uma sanção "substitutiva" da pena de prisão considerada inconstitucional.

Porém, em nossa opinião, a questão pode e deve ser vista numa outra perspetiva.

Embora indiretamente, o artigo 3.º do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, altera a punição do crime de pesca ilegal passando o mesmo a ser punível com uma pena fixa de prisão.

Ora, se a norma é nessa parte inconstitucional, não podendo ser aplicada, deverá ser repristinado o regime anterior.

A repristinação, mesmo quanto a normas penais, não significa, por si só, a violação do princípio da legalidade penal, aceitando Tribunal Constitucional este entendimento (Acórdão 56/84).

Outros problemas se levantariam se a repristinação levasse a que fosse aplicável um regime mais grave do que aquele considerado inconstitucional (Acórdão 427/91).

Porém, não é essa a situação que no caso se verifica.

Aliás, em decisões que recursaram aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, uma pena fixa, entendeu-se que a conduta dos arguidos continuava a ser punível (vd. nesse sentido os relatórios dos Acórdãos n.os 22/2003 e 80/2012 e das Decisões Sumárias n.os 189/2003 e 190/2003)

2.2.2 - Como vimos, o crime em causa também é punível com pena de multa.

Ora, mesmo que se entenda que, como consequência da inconstitucionalidade da punição em pena de prisão, esta não poderá ser aplicada, ainda que de forma imediata ou indireta, parece-nos possível a punição da conduta com pena de multa e que tal entendimento, contrariamente ao afirmado na decisão recorrida, não viola os artigos 164.º e 29.º da Constituição, ou qualquer outro preceito constitucional.

2.2.3 - Em primeiro lugar dir-se-á que, sendo o diploma anterior à Constituição de 1976, não se colocam em relação à norma em causa, problemas de inconstitucionalidade orgânica (vd. vg. Acórdão 79/2003).

2.2.4 - No artigo 65.º do Regulamento, está prevista uma pena de multa de 2,99 a 74,82 euros.

Sobre este tipo de pena pecuniária (pena de multa) que o Código Penal de 1982 abandonou, diz Figueiredo Dias (O Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Noticias, 1993, pág. 197):

"O CP vigente limitou-se por isso, por um lado, a eliminar os modelos da multa de quantia legalmente determinada ou a fixar entre limites legais, se bem que casos destes persistissem na legislação penal extravagante não revogada pelo CP (e, infeliz e escandalosamente, também em legislação posterior!)"

Ou seja, embora criticável, a punição do crime com pena de multa em quantia a fixar entre limites legais, mantém-se em vigor, o que, aliás, não é questionado na decisão recorrida.

2.2.5 - Também nos parece importante referir que a pena de multa em causa, após a entrada em vigor do Código Penal de 1982, não é convertível em prisão alternativa.

Sobre este ponto diz-se no Acórdão 97/98:

"Na verdade - como se escreveu no Acórdão 188/87 deste Tribunal, publicação no Diário da República, 2.ª série, de 5 de agosto de 1987 - ,«embora o artigo 7.º citado Decreto-Lei 440/82 tivesse disposto que se mantêm em vigor 'as normas de direito substantivo e processual relativas a contravenções', acrescentou que ' aos limites da multa e à prisão em sua alternativa aplicam-se, porém, as disposições do novo Código Penal.»"

Mas, sendo assim, como também se acentuou no citado Acórdão 188/87, presentemente, por força do que se dispõe no artigo 46.º do Código Penal de 1982, "só há lugar a condenação alternativa em prisão quando se condene num determinado número de dias de multa, e, não também quando a condenação em multa seja numa determinada quantia. Esta é, com efeito, a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça".

Estamos, pois, perante uma pena exclusivamente de natureza patrimonial.

2.2.6 - Ora, nestas circunstâncias, parece-nos que não se suscitando qualquer dúvida constitucional quanto à punição com pena de multa, a sua aplicação, mesmo nos casos em que se entenda que, por inconstitucionalidade, não poder ser aplicada qualquer pena de prisão, não é inconstitucional.

Com efeito, nem sequer se trata de saber se a quantia da pena de multa concreta que deve ser aplicada, poderá ou deverá refletir o facto de não poder ser aplicável ao crime a pena de prisão.

Trata-se exclusivamente de saber se a conduta do arguido continua a ser punível, ainda que, exclusivamente, com pena de multa.

2.2.7 - Efetivamente, não existe uma relação de absoluta dependência entre a pena de prisão e a pena de multa.

Ainda que de forma necessariamente mais leve, a punição mantém-se, estando clara e expressamente contidos na lei, quer os elementos do crime, quer a punição com pena de multa, não vemos como possa ser violado o princípio da legalidade penal.

Como se pode ver pelo Acórdão 97/88, em situação com contornos idênticos àqueles que agora apreciamos, foi esse o entendimento do Tribunal Constitucional.

Para enquadramento da situação pode ler-se no relatório daquele aresto:

"Embora a sua conduta fosse havida como ilícita, porque prevista e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, e 6.º, n.os 1 e 3, do Decreto-Lei 147/79, de 24 de maio, a ré veio, porém, a ser absolvida. É que o Mmo. Juiz recusou-se a aplicar o mencionado artigo 6.º, n.º 1, por considerar que, tendo o Decreto-Lei 147/79 sido emitido sem autorização legislativa, tal norma viola os artigos 168.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 201.º, n.º 3, da Constituição, pois que tipifica «como crime uma conduta» e impõe «uma pena para a inobservância da respetiva estatuição». Para além de que, mesmo quando seja uma contravenção o ilícito previsto em tal norma, sempre o Governo carecia de autorização legislativa para cominar uma pena de prisão e, no tocante à multa, sempre a norma será consequencialmente inconstitucional, uma vez que «inconcebível que se mantenha, por si só, a punição desse comportamento com uma multa de 10 000$ sem mais. E o que o legislador considerou como punição adequada e equilibrada não apenas a multa, mas sim a multa conjugada com a prisão, sendo, portanto, impensável a manutenção de parte da punição»". (sublinhado nosso)

Ora, o Acórdão confirmou o juízo de inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 6.º, n.º 1, conjugado com o n.º 1 do artigo 2.º, ambas do Decreto-Lei 147/99, de 24 de maio, mas apenas na parte em que estabelecia a punição com pena de prisão.

Sobre se a punição com pena de multa se mantinha, diz-se, de forma clara, o seguinte:

"Só nesta parte há que julgar a norma inconstitucional.

Como pondera o Magistrado do Ministério Público, contrariamente ao que se decidiu na sentença recorrida, é de entender que o legislador, entre punir a infração em causa nos autos apenas com multa (em vez de com multa e prisão) e deixá-la impune, como veio a acontecer, preferisse aquela primeira solução.

É, pois, de concluir que entre as sanções cominadas para o ilícito que a norma prevê (multa até 10 000$ e prisão até um mês) não existe uma relação de dependência - ao menos, de uma dependência tal que seja suscetível de impor que, julgada inconstitucional a norma no segmento apontado, deva ela também ser julgada inconstitucional, consequencialmente, na parte em que prevê uma pena de multa como punição para o ilícito que tipifica".

Como se vê, apesar de naquele processo o ilícito ser de natureza contravencional e de a inconstitucionalidade detetada ser uma inconstitucionalidade orgânica, o essencial da argumentação é transponível para o presente recurso.

2.2.8 - Sobre as questões de constitucionalidade que agora constituem objeto do recurso encontra-se pendente neste Tribunal Constitucional o Proc. n.º 546/15, da 2.ª Secção.

3 - Conclusão

1 - A existência de penas de prisão fixas não é constitucionalmente admissível, em face dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.

2 - A norma do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, enquanto manda aplicar o limite mínimo (1 mês) previsto no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal (atualmente artigo 41.º), a um tipo penal previsto em legislação avulsa - no caso o crime de pesca ilegal previsto no artigo 40.º, § 1.º, e punido nos termos do artigo 65.º, ambos do Regulamento aprovado pelo Decreto 44 623 de 10 de outubro de 1962 -, cuja moldura penal se situa entre os 10 e os 30 dias de prisão, é inconstitucional, porque, dessa forma, a pena aplicável, passa a ser uma pena fixa de um mês de prisão.

3 - Para além da pena de prisão, no artigo 65.º do Regulamento está prevista uma pena de multa de 2,99 a 74,82 euros.

4 - Não podendo ser aplicada a pena fixa, como consequência da inconstitucionalidade da norma que a prevê, não é inconstitucional a aplicação do regime anterior, resultante da sua repristinação.

5 - Mesmo que se considere que, como consequência da inconstitucionalidade (n.os 1 e 2), à conduta do arguido não possa ser aplicada, direta ou indiretamente, qualquer pena de prisão, sempre a mesma continuaria a ser punível com a pena de multa, não sendo tal entendimento violador da Constituição.

6 - Assim, a norma do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, "quando interpretado no sentido de que é aplicável às condutas ali enquadráveis apenas a pena de multa ali prevista ou, cumulativamente, a multa ali prevista e a pena de multa em substituição da pena de prisão que concretamente fosse fixada dentro dos limites (da pena de prisão) ali estipulados", não viola os artigos 165.º e 29.º da Constituição, não, sendo por isso, inconstitucional.

7 - Pelo exposto, deve ser negado provimento ao recurso quanto à primeira questão de inconstitucionalidade e ser-lhe concedido provimento quanto à segunda.

[...]".

II - Fundamentação

2 - Relatada a marcha do processo, importa apreciar a questão de inconstitucionalidade subjacente à decisão de recusa acima transcrita.

Contém a decisão dois segmentos formalmente autónomos de recusa de aplicação de normas por inconstitucionalidade: (i) um referido ao artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei 400/82, por violação dos artigos 13.º, 18.º e 27.º da CRP, quando interpretado no sentido de que prevendo o Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 de 10/10/1962 uma pena de prisão de 10 a 30 dias, é aplicável uma pena de prisão de 30 dias (em bom rigor, a inconstitucionalidade delimitada na decisão recorrida emerge da conjugação entre o artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, e os artigos 40.º do Código Penal e 40.º, § 1, e 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, visto que é do conjunto das referidas normas que resulta uma pena de prisão fixa); e (ii) outro referido ao "artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 de 10.10.1962 por violação dos artigos 29.º e 165.º da CRP, quando interpretado no sentido de que é aplicável às condutas ali enquadráveis apenas a pena de multa ali prevista ou, cumulativamente, a multa ali prevista e a pena de multa em substituição da pena de prisão que concretamente fosse fixada dentro dos limites (da pena de prisão) ali estipulados".

Sucede que, no segundo segmento, estão reunidos dois julgamentos de inconstitucionalidade distintos: um referido à aplicação unicamente da pena de multa (principal); outro referente à aplicação da multa como pena de substituição da pena (principal) de prisão.

Quanto à multa como pena de substituição da prisão, em rigor, o julgamento de inconstitucionalidade incluiu não apenas o artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, mas também o artigo 43.º, n.º 1, do Código Penal (que estabelece a possibilidade de substituição da pena de prisão por pena de multa), norma que deste modo foi, também, implicitamente recusada.

Importa, pois, considerar separadamente as três questões.

Artigos 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, 40.º do Código Penal e 40.º, § 1, e 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, na medida em que deles resulta a aplicação de uma pena de prisão fixa

2.1 - O artigo 40.º, § 1.º, do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962 (alterado pelo Decreto 312/70, e pela Lei 30/2006, de 11 de julho, todavia sem reflexos nas normas citadas na presente decisão), prevê o seguinte:

"[...]

Não é permitido ao pescador utilizar simultaneamente mais do que dois aparelhos (cana ou linha de mão), devendo estes estar sempre ao alcance da sua mão.

[...]".

O artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, pune a prática da pesca com inobservância do disposto no artigo 40.º, § 1.º, com a pena de 10 a 30 dias de prisão e multa de 2,99 euros a 74,82 euros.

Quanto à pena de prisão, o artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, que aprovou o Código Penal, previu:

"[...]

Ficam alterados para os limites mínimo e máximo fixados no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal todas as penas de prisão que tenham duração inferior ou superior aos limites aí estabelecidos.

[...]".

A pena mínima fixada no artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal (na aludida redação, correspondendo ao artigo 41.º, n.º 1 na redação atual) é de um mês de prisão.

Do exposto resulta que, por força da conjugação das normas citadas, a pena (de prisão) mínima fixada para a infração ao disposto no artigo 40.º, § 1, do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, passou a coincidir com a pena máxima prevista para o mesmo crime, transformando-se em pena de prisão fixa, tendo passado o aplicador, pois, a não dispor de espaço algum para doseamento da pena.

2.1.1 - O Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar, por diversas vezes, sobre a inconstitucionalidade das penas fixas. Assim sucedeu no Acórdão 102/15 (no qual estava em causa, precisamente, a inconstitucionalidade das mesmas normas que constituem objeto do presente recurso):

"[...]

Logo nas primeiras décadas da sua atividade, o Tribunal desenvolveu o seu entendimento sobre quais seriam os princípios fundantes (e fundantes, porque impostos pela Constituição) do Direito Penal e do Direito Processual Penal. Numa série de decisões que se iniciaram em 1984 e se prolongaram pela década de 90 do século passado o Tribunal foi dizendo que a política criminal de um Estado de direito não poderia deixar de ser uma política assente no princípio da culpa; no princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança; no princípio da subsidiariedade e no princípio da humanidade.

Uma síntese de todo este entendimento pode ler-se, por exemplo, no Acórdão 83/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º Vol., 1995, pp. 525 e 528):

'O direito penal é um direito de proteção. Ele só deve, por isso, intervir para proteger bens jurídicos. E mais: a sua intervenção apenas se justifica se não for possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos «violentas» que as sanções criminais. [...] O direito penal tem, assim, um caráter fragmentário e subsidiário, cumprindo uma função de última ratio. [...] O legislador, na sua decisão de criminalizar os comportamentos lesivos de bens jurídico-penais, tem ainda que observar outros princípios. Alguns deles, sendo embora princípios meta-jurídicos, acham-se precipitados, desde logo, na ideia de Estado de direito. É o caso do princípio da justiça, que impede que o legislador, quando decide punir uma conduta, atue de forma voluntarista e arbitrária: ele deve sentir-se, antes e sempre, limitado [...] «pelas conceções de justiça que todo o ordenamento jurídico pressupõe». É o caso ainda do princípio da humanidade que reclama que as penas que o legislador cominar (o que só deve fazer se forem necessárias) sejam tão suaves quanto possível. Mas mais: a liberdade de conformação do legislador, na sua decisão de criminalizar comportamentos humanos, acha-se limitado pelo princípio da proporcionalidade [...].'

Contudo, antes de enunciar todos estes princípios enquanto princípios fundantes de qualquer política criminal de um Estado de direito, o Tribunal, no mesmo acórdão, já tinha aludido a um elemento matricial de toda a sua construção, e ao qual atribuiu a designação de princípio da culpa. O sentido atribuído a este princípio vinha em continuidade com o que já fora dito em jurisprudência anterior (desde logo, no Acórdão 16/84). O Tribunal resumiu-o da seguinte forma (Acórdãos, cit., p. 525):

'O direito penal, no Estado de direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser responsável e livre - do homem que, sendo responsável pelos seus atos e responsável pelo estar com os outros, é capaz de se decidir pelo direito ou contra o direito. Há de ser, assim, um direito penal ancorado sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, que tenha a culpa como fundamento e limite da pena, pois não é admissível a pena sem culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa (sublinhado nosso).'

Daqui decorreria logicamente a censura constitucional de qualquer norma que previsse uma pena fixa de prisão, que, precisamente por ser fixa, não poderia nunca modelar-se, na sua aplicação ao caso concreto, em função da culpa do agente. No entanto, alguns anos mais tarde, o Tribunal teve ocasião de se pronunciar expressamente sobre a questão da conformidade constitucional das penas fixas. Fê-lo no Acórdão 95/2001, em que estava m juízo «norma» muito próxima - mas não totalmente coincidente - com a que forma o objeto do presente recurso, porque constante do § único do artigo 67.º do Decreto 44.623.

[...]".

No Acórdão 95/2001, o Tribunal julgou inconstitucional a norma constante da parte final do § único do artigo 67.º do Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, tratando-se, na aplicação concreta ao caso daqueles autos, de pena de prisão fixa. Ali se escreveu:

"[...]

Como este Tribunal sublinhou no Acórdão 83/95 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 30.º, página 521), o direito penal, no Estado de Direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre - do homem que, sendo responsável pelos seus atos, é capaz de se decidir pelo Direito ou contra o Direito. há de ser, por isso, um direito penal ancorado na dignidade da pessoa humana, que tenha a culpa como fundamento e limite da pena, pois não é admissível pena sem culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa. Ou seja: há de ser um direito penal de culpa [cf. sobre isto, embora em termos não inteiramente coincidentes, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS ("Sobre o Estado Atual da Doutrina do Crime", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, páginas 28 e seguintes) e JOSÉ DE SOUSA E BRITO ("A lei penal na Constituição", in Estudos sobre a Constituição, volume 2.º, Lisboa, 1978, página 218)]. É um direito penal que só pode intervir para a proteção de bens jurídicos, mas de bens jurídicos com dignidade penal (é dizer: com ressonância ética), sendo que a danosidade social capaz de justificar a imposição de uma punição - como adverte EDUARDO CORREIA ("Estudos sobre a reforma do Direito Penal depois de 1974", in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 119.º, página 6) - há de ser ajuizada no plano ético-jurídico, e não num plano meramente sociológico.

O direito penal, enquanto direito de proteção, cumpre, por isso, uma função de ultima ratio, pois só se justifica que intervenha, se a proteção dos bens jurídicos não puder ser assegurada com eficácia mediante o recurso a outras medidas de política social menos violentas e gravosas do que as sanções criminais [cf. também JORGE DE FIGUEIREDO DIAS ("O sistema sancionatório no Direito Penal Português", in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, I, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, 1984, página 807) e JOSÉ DE SOUSA E BRITO (ob. e loc. cit.)].

A necessidade da pena - que, repete-se, há de ser uma pena de culpa - limita, pois, o âmbito de intervenção do direito penal, sendo mesmo o critério decisivo dessa intervenção (cf. EDUARDO CORREIA, loc. cit.)

O legislador, que deve observar também um princípio de humanidade na previsão das penas (cf. artigo 25.º, n.os 1 e 2, da Constituição), há de ainda ter em conta que a ideia de necessidade da pena leva implicada a da sua adequação e proporcionalidade. Ou seja: na previsão das penas, deve ele procurar uma justa medida - uma adequada proporção - entre as penas e os factos a que elas se aplicam: a gravidade das penas deve ser proporcional à gravidade das infrações.

O Tribunal, quando teve que ajuizar uma norma penal à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, sublinhou sempre que o legislador goza de ampla liberdade na definição dos crimes e no estabelecimento das penas correspondentes. E sublinhou, bem assim, que, nessa matéria, ele só pode censurar, ratione constitutionis, as decisões legislativas que contenham incriminações arbitrárias ou punições excessivas: é que, no Estado de Direito, o legislador está vinculado por conceções de justiça; ora, o princípio de justiça impede-o de atuar arbitrariamente ou de forma excessiva [cf. neste sentido, entre outros, o citado Acórdão 83/95 e os acórdãos n.os 634/93 e 480/98 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 26.º, página 205, e 40.º, página 507) e 108/99 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de janeiro de 1999)].

Em síntese: como sublinha EDUARDO CORREIA (loc. cit.), "o ponto de referência de um conceito material de crime supõe sempre que o agente seja merecedor da pena". E esta ideia - sublinha o mesmo Autor - tem de ser conjugada com a ideia de necessidade social. E citando SAX, acrescenta: "necessidade da pena como o caminho mais humano para proteger certos bens jurídicos. Merecedor da pena como qualidade de alguém que a deva sofrer".

O que se disse resulta, aliás, entre outros, dos seguintes artigos da Constituição: do artigo 1.º, que baseia a República na dignidade da pessoa humana; do artigo 18.º, n.º 2, que condiciona a legitimidade das restrições de direitos à necessidade, adequação e proporcionalidade das mesmas; do artigo 25.º, n.º 1, que sublinha a inviolabilidade da integridade pessoal; e do artigo 30.º, n.º 1, que proíbe penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.

5.2 - O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de Direito, proíbe - já se disse - que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.

Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de JOSÉ DE SOUSA E BRITO (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (artigo 1.º da Constituição), e do direito de liberdade (artigo 27.º, n.º 1); e, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, vai buscar o seu fundamento axiológico "ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de Direito democrático" (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, página 73).

Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de prevenção) que, em cada caso, se há de encontrar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de culpa do agente - é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.

A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente, nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.

Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam.

Mas, o princípio da igualdade - que impõe se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes - também vincula o juiz.

A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infração, assim deixando de observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções criminais seja proporcional à gravidade das infrações.

Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa, que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há de observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena de prisão, quer seja uma pena de multa.

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português cit., página 193), depois de dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação - "mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão nítida quanto possível - entre o legislador e o juiz", sublinha que "uma responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade".

Este Tribunal, no seu Acórdão 202/2000 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 11 de outubro de 2000), debruçou-se sobre a norma constante do artigo 31.º, n.º 10, da Lei 30/86, de 27 de agosto - que mandava aplicar a pena fixa de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele que caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos - e concluiu que a mesma era inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.

Escreveu-se aí:

'Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das suas "circunstâncias") corresponda também uma diferenciação da sanção penal que lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal situação concreta.

Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de caçar invariável de cinco anos para o 'crime de caça' do artigo 31.º, n.º 10, da Lei 30/86 é materialmente inconstitucional.'

[...]".

E prossegue este Acórdão 95/2001, após afastar jurisprudência anterior que não julgou inconstitucional a mesma norma (no caso o Acórdão 83/91):

"[...]

Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias), por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são, em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas desproporcionadas às infrações cometidas, tendo em consideração todo o quadro que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.

Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que faz apelo o Acórdão 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73.º do Código Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor fortemente atenuativo ("quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena", diz o n.º 1 do artigo 72.º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infração de pequena gravidade (recte, uma infração punível com prisão não superior a seis meses, ou só com multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são "diminutas" "a ilicitude do facto e a culpa do agente"; que o "dano" já foi "reparado"; e que "à dispensa de pena" se não opõem "razões de prevenção" (cf. o artigo 74.º do mesmo Código).

Estes mecanismos são, de facto inaptos para - como se escreveu no citado Acórdão 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena - 'dar conta da necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar - à culpa do agente e às necessidades de prevenção'.

Recorrendo, de novo, aos dizeres do Acórdão 202/2000:

'Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como prevendo uma pena apenas "tendencialmente fixa" ela não viola o princípio da igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e das medidas de segurança) há de ser proporcional à gravidade das infrações, encaradas sob o ponto de vista, respetivamente, da culpa e das necessidades de prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a perigosidade do agente).'

E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo Acórdão 202/2000:

'A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral - de atenuação especial da pena e de dispensa de pena -, bastaria para permitir a graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa, assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida, conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer molduras penais abstratas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais.'

[...]".

Do Acórdão 95/01 foi interposto recurso para o Plenário, que confirmou a decisão pelo Acórdão 70/02, remetendo para a respetiva fundamentação.

Também foi declarada a inconstitucionalidade de normas que preveem penas criminais fixas nos Acórdãos n.os 485/02, 22/03, 124/04 (que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante da parte final do § único do artigo 67.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962), 63/04, 679/06, 5/07, 80/12 e 712/14, bem como no já citado Acórdão 102/15, referindo-se as três últimas decisões, à semelhança da presente, ao artigo 65.º do referido Regulamento.

Nos Acórdãos supra elencados, o Tribunal concluiu, reiteradamente, que as penas de prisão fixas não são conformes à Constituição, mostrando-se incompatíveis com os princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.

É essa a conclusão que ora importa reafirmar, remetendo-se para a fundamentação dos Acórdãos supra indicados.

2.1.2 - Devem, pois, julgar-se inconstitucionais, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, as normas dos artigos 40.º, § 1.º, e 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, em conjugação com o disposto nos artigos 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, e 40.º, n.º 1, do Código Penal, na interpretação segundo a qual a infração ao disposto na primeira daquelas normas, é punida, nos termos da segunda, com pena de prisão cuja moldura penal tem um limite máximo, de 30 dias, coincidente ao limite mínimo.

Artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, enquanto dele resulta unicamente a aplicação de uma pena de multa

2.2 - A decisão recorrida recusou também a aplicação do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, no sentido de, uma vez afastado o segmento referente à pena de prisão, ser unicamente aplicada a pena principal de multa ali prevista. Entendeu o tribunal a quo, a este propósito, que tal solução equivaleria a ficcionar uma "nova" pena reduzida uma parte da pena aplicável, invadindo matéria da competência legislativa da Assembleia da República, o que colidiria com a aludida reserva e, também, com o princípio da legalidade da pena. Pelas mesmas razões, foi recusada a aplicação de pena de multa de substituição da pena de prisão, porque esta se reconduziria à criação de uma pena de multa não prevista na lei.

Saliente-se, todavia, que não cabe ao Tribunal Constitucional determinar o regime jurídico aplicável na sequência do julgamento de não inconstitucionalidade, seja no sentido da repristinação do regime do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623 anterior às inovações introduzidas pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, seja em qualquer outro. Trata-se de uma competência exclusiva do tribunal recorrido.

2.2.1 - De todo o modo, ainda que o tribunal a quo, aplicando o direito aos factos após o julgamento de inconstitucionalidade resultante do exposto no item 2.1. supra, se veja confrontado com a possibilidade de aplicar unicamente a pena de multa, não estará, nesse caso, comprometida tal possibilidade, face à Constituição.

2.2.2.1 - Antes de mais, há a salientar que - como o Ministério Público refere nas suas alegações - sendo o diploma anterior à Constituição de 1976, não se colocam em relação à norma em causa, problemas de inconstitucionalidade orgânica, visto que "a inconstitucionalidade superveniente só opera relativamente a inconstitucionalidades materiais, que não a inconstitucionalidades orgânicas ou formais" (Acórdão 279/04, na linha dos Acórdãos n.os 29/83, 313/85, 201/86, 261/86, 468/89, 330/90, 352/92, 597/99, 556/00 e 110/02).

2.2.2.2 - A pena de multa complementar foi alvo de forte crítica pela doutrina pelo seu sinal contrário à função político-criminal da pena de multa alternativa à prisão, cuja aplicação o Código Penal favorece (cf., por todos, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, parte geral II: as consequências jurídicas do crime, Lisboa, 1993, pp. 154 e s.) e consiste na previsão legal da aplicação de pena de prisão e, simultaneamente, de uma pena de multa pela prática de um crime.

Estabelecendo-se duas consequências para a prática da infração, nada obsta a que, suprimida uma delas, a outra se mantenha. Ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, nada impede que se - por algum fundamento válido - o juiz se vir confrontado com a possibilidade de aplicar apenas a pena de multa, por não poder aplicar a pena de prisão que integra a pena mista de prisão e de multa, venha a aplicar apenas a pena de multa.

Sobre a matéria existe, aliás, na jurisprudência deste Tribunal, um precedente que aqui assumimos com valor persuasivo.

Perante uma pena de prisão e multa (artigo 6.º, n.º 1, conjugado com o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 147/79, de 24 de maio, que previa o ilícito que consiste na compra de pescado fresco transacionado, em primeira venda, fora da lota) o Tribunal, no Acórdão 97/88, julgou a norma inconstitucional na parte em que estabelecia a punição com pena de prisão, acrescentando:

"[...]

Só nessa parte há que julgar a norma inconstitucional.

Como pondera o magistrado do Ministério Público, contrariamente ao que se decidiu na sentença recorrida, é de entender que o legislador, entre punir a infração em causa nos autos apenas com multa (em vez de com multa e prisão) e deixá-la impune, como veio a acontecer, preferisse aquela primeira solução.

É, pois, de concluir que entre as sanções cominadas para o ilícito que a norma prevê (multa até 10 000$00 e prisão até um mês) não existe uma relação de dependência - ao menos, de uma dependência tal que seja suscetível de impor que, julgada inconstitucional a norma no segmento apontado, deva ela também ser julgada inconstitucional, consequencialmente, na parte em que prevê uma pena de multa como punição para o ilícito que tipifica.

[...]" (sublinhado acrescentado.)

A este argumento poderíamos acrescentar, complementarmente, ponderando a circunstância do legislador ter sempre mantido ativo o seu juízo de censura penal sobre o comportamento aqui em causa, jamais revogando ou substituindo a definição como crime da pesca ilegal, ponderando esta circunstância, dizíamos, sempre terá sentido extrair um propósito de continuada punição da conduta que preencha este tipo (definido como crime desde os anos sessenta do século passado), alicerçando o respaldo à punição da conduta por via da pena de multa que subsiste dentro do tipo. Continuamos, com efeito - cf. artigos 29.º, n.º 1 da CRP e 1.º, n.º 1 do CP -, a ter um facto descrito e este, suprimida a pena de prisão, continua a ser declarado passível de pena: a pena de multa.

É esta a posição que aqui cumpre reafirmar, concluindo-se pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10/10/1962, quando interpretado no sentido de que é aplicável às condutas ali enquadráveis apenas a pena (principal) de multa que ali continua a estar prevista.

Artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, conjugado com o artigo 43.º, n.º 1, do Código Penal, enquanto deles resulta a aplicação de uma pena de multa de substituição da pena de prisão fixa

2.3 - O juízo de inconstitucionalidade sobre a norma do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, enquanto dele resulta a aplicação de uma pena de multa de substituição da pena de prisão fixa deve ser confirmado, na medida em que, uma vez afastado o regime da pena fixa (pena principal), prejudicada fica a aplicação de uma pena substitutiva, desde logo porque esta pressupõe logicamente a prévia fixação da pena de principal e esta não é possível. Assim, o julgamento de inconstitucionalidade da norma que estabelece a pena fixa estende-se à norma consequencial que prevê a pena de substituição.

Uma ressalva deve fazer-se a este respeito.

A inconstitucionalidade confirma-se na estrita medida do que se assinalou, ou seja, por estar em causa substituir uma pena de prisão fixa. No entanto, deve ter-se em consideração que, caso o tribunal recorrido - determinando o regime jurídico que entender aplicável na sequência do juízo de não inconstitucionalidade - venha a aplicar pena concretamente determinada entre mínimo e máximo não coincidentes, tal juízo de inconstitucionalidade poderá não se justificar. Dito de outro modo, pode afirmar-se (e manter-se) contrário à Constituição substituir por pena de multa uma pena de prisão fixa, mas assim poderá não ser se o tribunal vier a considerar que deve aplicar um regime de pena de prisão determinável dentro de uma moldura. Salienta-se - uma vez mais - que tal determinação (aplicar apenas a pena de multa ou (re)constituir um regime que permite determinar a pena de prisão dentro de uma moldura e, nesse caso, aplicar também a pena de prisão) é da sua competência exclusiva.

2.4 - Tudo para concluir pela improcedência parcial do recurso, que procede apenas no que respeita ao artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, enquanto dele resulta unicamente a aplicação de uma pena principal de multa, improcedendo no demais.

2.5 - Porém, antes de dar expressão decisória às antecedentes considerações, aqui deixamos sumariado o percurso argumentativo conducente a essa decisão:

I - O artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, pune a prática da pesca com inobservância do disposto no artigo 40.º, § 1 do mesmo diploma com a pena de 10 a 30 dias de prisão e multa de (euro)2,99 a (euro)74,82 (considerando a alteração das "importâncias de licenças, taxas, multas e seus limites" introduzida pelo Decreto-Lei 131/82, de 23 de abril). Trata-se, pois, de pena mista de prisão e de multa;

II - Todavia, por força da conjugação dos artigos 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, e 40.º, n.º 1 do Código Penal (na redação daquele decreto-lei, correspondendo ao artigo 41.º, n.º 1, na redação atual), a pena de prisão mínima fixada para a infração ao disposto no artigo 40.º, § 1, do citado Regulamento passou a coincidir com a pena máxima prevista para o mesmo crime, transformando-se em pena de prisão fixa de 30 dias;

III - Constitui jurisprudência reiteradamente afirmada pelo Tribunal Constitucional que as penas de prisão fixas não são conformes à Constituição, mostrando-se incompatíveis com os princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade (cf. os Acórdãos n.os 95/01, 70/02 e 102/15, entre outros);

IV - Devem julgar-se inconstitucionais, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, as normas dos artigos 40.º, § 1, e 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, em conjugação com o disposto nos artigos 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, e 40.º, n.º 1, do Código Penal, na interpretação segundo a qual a infração ao disposto na primeira daquelas normas, é punida, nos termos da segunda, com pena de prisão cuja moldura penal tem um limite máximo, de 30 dias, coincidente ao limite mínimo;

V - Em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, uma vez confirmada a decisão de recusa de aplicação da norma do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, por inconstitucionalidade, cabe ao tribunal a quo a determinação do regime legal aplicável, em conformidade com o julgamento sobre a questão de inconstitucionalidade;

VI - Estabelecendo-se duas consequências para a prática de uma infração, por previsão de uma pena mista de prisão e multa, nenhuma objeção de princípio existe a que, suprimida uma delas (em virtude de julgamento de inconstitucionalidade), a outra se mantenha;

VII - A inconstitucionalidade superveniente só opera relativamente a inconstitucionalidades materiais, mas não a inconstitucionalidades orgânicas ou formais;

VIII - Uma vez afastado o regime da pena fixa (pena principal), fica prejudicada a aplicação de uma pena substitutiva. Assim, o julgamento de inconstitucionalidade da norma que estabelece a pena fixa estende-se à norma consequencial que prevê a pena de substituição.

III - Decisão

3 - Em face do exposto, concedendo parcial provimento ao recurso, decide-se:

a) Julgar inconstitucionais as normas dos artigos 40.º, § 1.º, e 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, em conjugação com o disposto nos artigos 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei 400/82, de 23 de setembro, e 40.º, n.º 1, do Código Penal, na interpretação segundo a qual a infração ao disposto na primeira daquelas normas, é punida, nos termos da segunda, com pena de prisão cuja moldura penal tem um limite máximo, de 30 dias, coincidente ao seu limite mínimo.

b) Julgar inconstitucional a norma do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, conjugada com o disposto no artigo 43.º, n.º 1, do Código Penal, na interpretação segundo a qual a pena de prisão fixa descrita em "a)" pode ser substituída por pena de multa.

c) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 65.º do Regulamento aprovado pelo Decreto 44623, de 10 de outubro de 1962, na interpretação segundo a qual dele resulta unicamente a aplicação da pena principal de multa ali prevista.

d) Determinar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para que este reforme a decisão proferida, em conformidade com o julgamento de não inconstitucionalidade referido em c).

Sem custas.

Lisboa, 2 de fevereiro de 2016. - Teles Pereira - Maria de Fátima Mata-Mouros - João Pedro Caupers - Maria Lúcia Amaral - Joaquim de Sousa Ribeiro.

209398491

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2528751.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1913-07-16 - Decreto 44 - Ministério das Colónias - 9.ª Repartição da Direcção Geral da Contabilidade Pública

    Decreto n.º 44, regulando a execução do artigo 9.º da lei orçamental do Ministério das Colónias

  • Tem documento Em vigor 1959-06-06 - Lei 2097 - Presidência da República

    Promulga as bases do fomento piscícola nas águas interiores do país.

  • Tem documento Em vigor 1962-10-10 - Decreto 44623 - Ministério da Economia - Secretaria de Estado da Agricultura - Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas

    Aprova o regulamento da Lei 2097, de 6 de Junho de 1959, que promulga as bases do fomento piscícola nas águas interiores do País.

  • Tem documento Em vigor 1970-07-06 - Decreto 312/70 - Ministério da Economia - Secretaria de Estado da Agricultura - Direcção-Geral dos Serviços Florestais Aquícolas

    Dá nova redacção a várias disposições do Decreto n.º 44623, que aprova o regulamento da Lei n.º 2097, que promulga as bases do fomento piscícola nas águas interiores do País.

  • Tem documento Em vigor 1979-05-24 - Decreto-Lei 147/79 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios da Agricultura e Pescas e do Comércio e Turismo

    Torna obrigatória a primeira venda, na lota, do pescado fresco.

  • Tem documento Em vigor 1982-04-23 - Decreto-Lei 131/82 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Orçamento

    Actualiza as importâncias de licenças, taxa e multas, cuja última actualização havia sido feita pelo Decreto-Lei n.º 667/76, de 5 de Agosto.

  • Tem documento Em vigor 1982-09-23 - Decreto-Lei 400/82 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código Penal.

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-04 - Decreto-Lei 440/82 - Ministério da Administração Interna

    Aprova o Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública.

  • Tem documento Em vigor 1984-08-09 - Acórdão 56/84 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 1.º, 2.º, n.os 1, 2 e 3, 3.º a 5.º, 6.º, n.os 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8 e 9, 7.º, n.os 1 e 2, 8.º a 12.º e 27.º a 29.º do Decreto-Lei n.º 349-B/83, por violação dos artigos 168.º, n.º 1, alíneas c) e d), e 189.º, n.º 5, da Constituição.

  • Tem documento Em vigor 1986-08-27 - Lei 30/86 - Assembleia da República

    Aprova e publica a lei da caça.

  • Tem documento Em vigor 1999-05-04 - Decreto-Lei 147/99 - Ministério das Finanças

    Autoriza a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, E.P., a cunhar uma moeda comemorativa de prata alusiva ao 25º Aniversário do 25 de Abril.

  • Tem documento Em vigor 2004-03-31 - Acórdão 124/2004 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante da parte final do § único do artigo 67.º do Decreto n.º 44623, de 10 de Outubro de 1962, (aprova o regulamento da Lei 2097, que promulga as bases do fomento piscícola nas águas interiores do País), enquanto manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64.º do mesmo diploma para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada - por violação dos princípios cons (...)

  • Tem documento Em vigor 2006-07-11 - Lei 30/2006 - Assembleia da República

    Procede à conversão em contra-ordenações de contravenções e transgressões em vigor no ordenamento jurídico nacional.

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