Assento
Acordam, em plenário, no Supremo Tribunal de Justiça:
O Exmo. Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, invocando o disposto no artigo 669.º do Código de Processo Penal, interpôs recurso extraordinário para o tribunal pleno do acórdão daquela Relação, de 14 de Abril de 1982, por estar em oposição, quanto à mesma questão de direito, com o acórdão da mesma Relação, de 13 de Maio de 1981, pois, segundo afirma, o primeiro decidiu que os autuantes, participantes e descobridores de crimes contra a saúde pública têm comparticipação nas multas aplicadas pela prática dessas infracções, enquanto o segundo decidiu no sentido oposto, argumentando que o artigo 66.º do Decreto 20282, de 31 de Agosto de 1931, que estabelecia aquela comparticipação, foi revogado pelo artigo 63.º, § 3.º, do Código Penal de 1886 (Reforma de 1954), e, consequentemente, não podia ser ressalvado no artigo 5.º do Decreto-Lei 41204, de 24 de Julho de 1957.
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, em serviço na Secção Criminal, alegou oportunamente.
Colhidos os vistos, cumpre decidir:
1 - A Secção Criminal deste Supremo Tribunal, no seu acórdão de fl. 42, decidiu que se verificava a alegada oposição, pelo que mandou prosseguir o recurso.
Porém, esta decisão não vincula o tribunal pleno (artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Daí que comecemos por nos pronunciar sobre a oposição invocada.
Ora, a oposição entre os apontados acórdãos é evidente, o que nos dispensa de quaisquer considerações, que, para mais, seriam meramente repetitivas, passando-se, consequentemente, a conhecer do fundo da questão.
2 - O artigo 67.º do Código Penal de 1886 (na sua redacção primitiva) dispunha:
O condenado em multa é obrigado a pagar para o Estado uma quantia proporcional ao seu rendimento, até 3 anos, arbitrada na sentença, de modo que por dia não seja menor que 100 réis nem exceda a 2$00 réis, salvo nos casos em que a lei taxar quantias determinadas.
Por sua vez, o § único do artigo 226.º do Código das Custas Judiciais de 1940 veio estabelecer, além do mais, que as multas aplicadas em processo penal, quando a lei não lhes desse destino especial, dariam entrada nos cofres do Estado sob a rubrica «Imposto de justiça e multas criminais».
Posteriormente, o artigo 6.º do Decreto-Lei 35978, de 23 de Novembro de 1946, alterou esta orientação, preceituando que «da importância de todas as multas aplicadas em processo penal, incluindo as resultantes da conversão da pena de prisão, reverterá metade para o Estado e metade para o Cofre Geral dos Tribunais, salvo se, por disposição de lei especial, lhe for dado outro destino ou determinada outra forma de divisão».
É neste contexto que surge a Reforma Penal de 1954.
3 - Ora, cotejando o § 3.º do artigo 63.º do Código Penal de 1886 (na redacção resultante da Reforma de 1954) com o artigo 6.º do Decreto-Lei 35978, verifica-se que, para além de substituir a palavra «Estado» pela expressão «Tesouro Público», o legislador reproduziu naquele parágrafo o artigo 6.º do referido decreto-lei, eliminando, porém, a ressalva das disposições especiais.
O alcance desta eliminação é patente: o legislador quis acabar com todo e qualquer regime especial sobre o destino das multas penais.
É certo que, após a Reforma de 1954, não faltou quem sustentasse que o § 3.º do artigo 63.º do Código Penal, como norma geral, não podia revogar as leis especiais anteriores, mas sem razão, porquanto a letra e a história do preceito em causa conduzem à conclusão de que o legislador teve em vista abranger toda e qualquer multa aplicada em processo penal (cf. o artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil).
4 - Finalmente, o artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei 41204, de 24 de Julho de 1957, veio estabelecer o seguinte:
É aplicável às multas previstas neste diploma o disposto no artigo 63.º e respectivos parágrafos do Código Penal, sem prejuízo, porém, da comparticipação estabelecida pela legislação em vigor a favor dos participantes, autuantes ou descobridores dos crimes contra a saúde pública.
Visa-se aqui a liquidação e destino das multas previstas naquele decreto-lei.
Em anotação ao preceito transcrito, escreve o conselheiro Arala Chaves (Delitos contra a Saúde Pública e contra a Economia Nacional, 1961, p. 26):
A comissão que estudou o projecto do Decreto-Lei 41204 preocupou-se especialmente com a liquidação e destino das multas aplicadas por crimes contra a saúde pública.
Não se levantava já qualquer dúvida quanto às multas aplicadas pelos tribunais comuns e por delitos contra a economia.
Para o objectivo da comissão, que o legislador consagrou, o n.º 2 do artigo 5.º tem vantagem pela clareza com que abrange, dada a ressalva da comparticipação a que tenham direito os participantes, etc., dos crimes contra a saúde pública, as multas aplicadas pelo Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios.
5 - Mas será que o legislador quis, realmente, derrogar o artigo 63.º do Código Penal de 1886, no que concerne à comparticipação nas multas por crimes contra a saúde pública?
Como vimos, o § 3.º do artigo 63.º do referido Código revogou tacitamente todas as disposições anteriores que fixavam regimes específicos sobre o destino e divisão das multas, inclusive o artigo 66.º do Decreto 20282, de 31 de Agosto de 1931.
Mas o legislador do Decreto-Lei 41204 entendeu por bem ressalvar a comparticipação nas multas por infracções contra a saúde pública dos participantes, autuantes ou descobridores:
A posição da comissão revisora [...] foi no sentido de considerar desejável a extinção da comparticipação, mas conjugada com a revisão dos vencimentos dos fiscais da Inspecção Geral dos Produtos Agrícolas e Industriais.
A Câmara Corporativa também acentuou que «a evolução dos conceitos sobre a dignidade das funções tem-se feito no sentido de libertar os respectivos agentes da suspeição geral de actuarem mais na prossecução do seu próprio interesse do que na defesa do interesse público, não lhes dando, portanto, qualquer comparticipação nas multas».
Estava então ainda em causa manter ou eliminar o Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios, reorganizá-lo ou não.
Finalmente, abdicou-se de tratar esses pontos, bem como do relativo aos vencimentos dos fiscais, e por estas razões se justifica a salva da comparticipação nas multas, que somente respeita às que correspondem a infracções contra a saúde pública.
Parece, portanto, não poder duvidar-se de que o legislador quis derrogar o artigo 63.º do Código Penal de 1886, quanto à comparticipação dos participantes, etc., no quantitativo das multas por infracções contra a saúde pública.
A referência feita no artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei 41204, ao artigo 63.º não tem outro objectivo (cf. o parecer da Procuradoria-Geral da República, de 7 de Agosto de 1961, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 115, 221, nota 20).
6 - Argumenta a Relação de Lisboa, no seu acórdão de 13 de Maio de 1981:
[...] ao ser publicado o Decreto-Lei 41204, de 24 de Julho de 1957, aquele artigo (66.º do Decreto 20282) fora revogado pelo artigo 63.º, § 3.º, do Código Penal, pelo que não podia ser ressalvado no artigo 5.º daquele decreto-lei.
O argumento é irrelevante.
Como vimos, o legislador quis claramente ressalvar a comparticipação nas multas aplicadas por crimes contra a saúde pública, sendo que o não o impedia de fazer essa ressalva a circunstância de o artigo 66.º do Decreto 20282 estar revogado.
Põe-se, é claro, o problema de saber se pode considerar-se novamente em vigor a alínea a) do artigo 66.º daquele diploma, uma vez que o artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei 41204 não fixa a percentagem a que têm direito os participantes, etc., dos crimes contra a saúde pública.
Ora, a tal respeito, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 14 de Abril de 1982, sustenta que o n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei 41204 «fez revigorar» o artigo 66.º, alínea a), do Decreto 20282.
Será assim?
7 - Segundo o n.º 4 do artigo 7.º do Código Civil, a revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei revogada.
Quer dizer: não há repristinação.
Tem-se, porém, entendido que o renascimento da lei anterior se dá se essa for a intenção inequívoca do legislador, valendo aqui a ressalva contida na parte final do n.º 3 daquele artigo 7.º (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 3.ª ed., p. 56, e Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, p. 258, nota 1).
Ora, o n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei 41204 revela inequivocamente que o legislador quis repor em vigor a alínea a) do artigo 66.º do Decreto 20282, segundo a qual «25% [das multas] reverterão para os autuantes, participantes ou descobridores, com a limitação estabelecida pelo Decreto 12101, de 12 de Agosto de 1926, devendo as correspondentes importâncias ser liquidadas nos respectivos processos».
Nem podia ser doutro modo.
Assente que o artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei 41204 é inequívoco no sentido de atribuir uma percentagem nas multas «a favor dos participantes, autuantes ou descobridores dos crimes contra a saúde pública», não se compreendia que, por um lado, o legislador não fixasse essa percentagem e, por outro, não quisesse repor em vigor a citada alínea a) do artigo 66.º do Decreto 20282.
(Claro que a alínea em causa só voltou a vigorar em relação às multas aplicadas por crimes contra a saúde pública.)
8 - Mas será que, pela publicação do Decreto-Lei 111/81, de 15 de Maio, que veio revogar o § 3.º do artigo 63.º do Código Penal de 1886, a situação se modificou, devendo considerar-se abolida a aludida comparticipação nas multas?
É manifesto que não.
Como se alcança do preâmbulo do Decreto-Lei 111/81, tornou-se necessário adaptar a redacção do § 3.º do artigo 63.º daquele Código «por forma a dar satisfação ao disposto na Lei 1/79», de 2 de Janeiro, que instituiu como receita dos municípios o produto de certas multas.
Assim, «dado o carácter adjectivo do conteúdo do citado § 3.º, aquele decreto-lei eliminou-o do Código Penal e acrescentou um § 2.º ao artigo 638.º do Código de Processo Penal, com a seguinte redacção:
Da importância de todas as multas aplicadas em processo penal, incluindo as resultantes de conversão da pena de prisão, reverterá metade para o Tesouro Público ou para o município respectivo, quando se tratar de multas cujo produto constitua receitas das autarquias locais, e metade para o Cofre Geral dos Tribunais.
Ora, a alteração introduzida não contende com o o regime especial de comparticipação previsto no artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei 41204.
Na realidade, o que acontece é que a metade das multas que pelo § 3.º do artigo 63.º do Código Penal de 1886 revertia sempre para o Tesouro Público passou a reverter, a partir da entrada em vigor do Decreto-Lei 111/81, para o município respectivo «quando se tratar de multas cujo produto constitua receita das autarquias locais».
9 - Tem-se dito que a comparticipação dos autuantes nas multas é eticamente condenável e, de facto, como vimos, a posição da comissão que estudou o projecto do Decreto-Lei 41204 foi no sentido de considerar desejável a extinção da comparticipação (Arala Chaves, ob. cit., p. 31).
Mas este ponto de vista não vingou e daí a ressalva da comparticipação nas multas, embora restrita às aplicadas por crimes contra a saúde pública.
(Cf. o artigo 41.º do Decreto-Lei 187/83, de 13 de Maio, que, não obstante as críticas que possam fazer-se, mantém a comparticipação nas multas aplicadas por crimes aduaneiros.)
10 - O artigo 85.º do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro (diploma que veio alterar o regime em vigor relativamente às infracções antieconómicas e contra a saúde pública), revogou expressamente os capítulos I e II do Decreto-Lei 41204, no primeiro dos quais se insere o tantas vezes citado artigo 5.º
Porém, tal revogação não tem a menor influência na decisão do presente recurso.
É claro que o recurso deixaria de ter razão de ser se a nova lei fosse meramente interpretativa, mas não é o caso.
Como o referido Decreto-Lei 28/84 não atribui qualquer percentagem nas multas «a favor dos participantes, autuantes ou descobridores dos crimes contra a saúde pública», o que surge agora é um problema de aplicação da lei no tempo, mas este problema está fora do âmbito do recurso.
11 - Em face do exposto, lavram o seguinte assento:
No domínio do Decreto-Lei 41204, de 24 de Julho de 1957, os participantes, autuantes ou descobridores dos crimes contra a saúde pública comparticipavam em 25% das multas aplicadas por esses crimes, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, daquele diploma e da alínea a) do artigo 66.º do Decreto 20282, de 31 de Agosto de 1931.
Lisboa, 3 de Maio de 1984. - Orlando de Paiva Vasconcelos de Carvalho - Manuel Amaral Aguiar - Manuel dos Santos Carvalho - José dos Santos Silveira - Manuel Batista Dias da Fonseca - Pedro Augusto Lisboa de Lima Cluny - Silvino Alberto Villa-Nova - João Fernandes Lopes Neves - Antero Pereira Leitão - Licurgo Augusto dos Santos - Manuel Flamino dos Santos Martins - António Júdice de Magalhães Barros Baião - Raul José Dias Leite Campos - Licínio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro - Abel Vieira Campos Carvalho Júnior - António Miguel Caeiro - Avelino da Costa Ferreira Júnior - Octávio Dias Garcia - Manuel Alves Peixoto (votei o assento, mas com a declaração junta) - Rui de Matos Corte Real (com a declaração anterior) - Amílcar Moreira da Silva - João Augusto Pacheco e Melo Franco - João Solano Viana - José Fernando Quesada Pastor - Joaquim Augusto Roseira de Figueiredo - Américo Fernando de Campos Costa - João de Sá Alves Cortês.
Declaração de voto
Em meu entender, os autuantes, participantes ou descobridores dos crimes contra a saúde pública, previsto, primeiro, pelo Decreto 20282, de 5 de Setembro de 1931, e, depois, pelo Decreto-Lei 41204, de 24 de Julho de 1957, só perderam o direito a comparticipar nas multas com a entrada em vigor do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro.
Rejeito, portanto, a tese de que a Reforma Penal de 1954 (Decreto-Lei 39688, de 5 de Junho), ao introduzir a regra do § 3.º do artigo 63.º do Código Penal, revogou todas as disposições especiais em contrário, nomeadamente a alínea a) do artigo 66.º daquele diploma de 1931.
É que, em princípio, a lei geral não revoga a especial (artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil). Isso apenas sucede quando o legislador revele inequivocamente essa intenção (idem).
Ora, para tanto não basta ter-se omitido naquele § 3.º a ressalva dos casos particulares da repartição de multas. Bem poderia ter-se por dispensável tal ressalva, precisamente pensando na dita regra de interpretação.
Mas é o próprio texto desse § 3.º que exclui as multas por delitos de saúde. É que elas só a partir da extinção do Tribunal dos Géneros Alimentícios passaram a ser «aplicadas em processo penal», no sentido que a esta expressão dá, com toda a justeza, a Procuradoria-Geral da República (parecer de 27 de Novembro de 1958, in Boletim do Ministério da Justiça, 84-351). Antes eram aplicadas por um tribunal especial e mediante processo também muito especial. Quer dizer, nenhuma razão havia, inclusive, para na multa comungar o Cofre Geral dos Tribunais, do departamento do Ministério da Justiça.
E a prova real de que a alínea a) do artigo 66.º do Decreto 20282 não havia sido revogada em 1954 está no teor do n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei 41204. Nele se manda aplicar o tal artigo 63.º e respectivos parágrafos, «sem prejuízo, porém, da comparticipação estabelecida pela legislação em vigor» [repare-se: «em vigor»] «a favor dos participantes, autuantes ou descvobridores dos crimes contra a saúde pública».
Consequentemente, o diploma de 1957 não revigorou coisa nenhuma, como quer o assento; limitou-se a ressalvar legislação vigente.
Manuel Alves Peixoto.