Acórdão 491/2004/T. Const. - Processo 308/01. - Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Requerente e pedido. - O Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira vem requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º do Decreto-Lei 40/2001, de 9 de Fevereiro.
2 - Conteúdo das normas. - As referidas normas têm o seguinte teor:
"Artigo 1.º
Objecto
1 - As taxas contributivas fixadas no n.º 1 do artigo 37.º do Decreto-Lei 328/93, de 25 de Setembro, quando aplicáveis aos trabalhadores por conta própria da Região Autónoma da Madeira referidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto Regional 26/79/M, de 7 de Novembro, são ajustadas progressivamente, com observância dos períodos de transição estabelecidos no presente diploma, sendo atingidas no ano de 2013.
2 - O disposto no número anterior é, igualmente, aplicável aos trabalhadores por conta própria referidos na alínea d) do n.º 1 do citado artigo 4.º, aos quais ainda não sejam aplicadas as taxas do Decreto-Lei 328/93, de 25 de Setembro.
Artigo 2.º
Ajustamento progressivo das taxas contributivas
1 - A transição para aplicação das taxas contributivas referidas no artigo anterior aos trabalhadores independentes nele referidos que, à data da entrada em vigor do presente diploma, já se encontrem a contribuir é feita, anual e progressivamente, de acordo com as taxas fixadas no anexo I ao presente diploma.
2 - As taxas contributivas fixadas no anexo I são, igualmente, aplicáveis, por referência à data em que se inicia a obrigação de contribuir, aos trabalhadores independentes referidos no artigo anterior que venham a ser enquadrados, no respectivo regime de segurança social, posteriormente à entrada em vigor do presente diploma.
3 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores e no caso de, no decurso do período transitório fixado até 2013, as taxas contributivas aplicáveis aos trabalhadores independentes sofrerem redução, o ajustamento das taxas constantes do anexo I será aplicável, no que se refere aos trabalhadores que venham a ser abrangidos por tal redução, apenas até ao limite e ao ano em que venham a ser atingidos os novos valores.
Artigo 3.º
Revogação
São revogadas as taxas contributivas fixadas nos artigos 28.º e 29.º do Decreto Regional 26/79/M, de 7 de Novembro, e, bem assim, todas as demais que contrariem o disposto no presente diploma.
Artigo 4.º
Produção de efeitos
O presente decreto-lei produz efeitos desde 1 de Janeiro de 2001."
3 - Fundamentação do pedido. - O requerente concluiu a fundamentação do pedido do seguinte modo:
"a) As normas contidas no Decreto-Lei 40/2001, nos respectivos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º, estabelecendo um regime, ao mesmo tempo revogatório e substitutivo do regime contido nos artigos 28.º e 29.º do Decreto Regional 26/79/M, versam matéria de interesse específico regional, porquanto enfrentamos domínio que carece de uma particular configuração regional, de acordo com as características regionais que são constitucionalmente relevantes para aí se recortar um poder legislativo específico;
b) Igualmente esse domínio normativo não se encontra sujeito a qualquer reserva de Constituição, pois que, observando-se o regime constitucional da segurança social, bem como os termos por que, ordinariamente, se pode legislar nessa matéria, facilmente se percebe que estão em causa opções do foro infraconstitucional, área em que o legislador constitucional conferiu discricionariedade legislativa;
c) De outro prisma, cumpre ainda referir que essa matéria não está sujeita a qualquer reserva de competência legislativa constitucionalmente atribuída em favor dos órgãos de soberania, Assembleia da República e Governo, uma vez que em nenhuma das referências que o articulado constitucional lhe faz é viável encontrar a alusão a este regime de segurança social;
d) Acresce finalmente que esta matéria, olhando às opções que se têm firmado desde a entrada em vigor do Decreto Regional 26/79/M, não é contrariada por qualquer princípio fundamental contido em lei geral da República, sendo ainda certo que esta não é uma opção que possa ter tal gravidade, nem sequer o regime geral da segurança social dos trabalhadores independentes proíbe - mas antes autoriza - a existência de regimes especiais, como será certamente o caso;
e) Não pode, pois, haver dúvidas quanto à legitimidade de esta matéria poder ser regulada pelo poder legislativo regional, que se pode exercer ao abrigo do artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição portuguesa;
f) Poder legislativo regional que, uma vez definido e especificamente se organizando contra o poder legislativo estadual, que é também um poder legislativo que se define por exclusão de partes, implica a impossibilidade de este poder interferir nas opções daquele, dada a respectiva exclusividade;
g) Assim sendo, os efeitos revogatório e dispositivo contidos no Decreto-Lei 40/2001, incidindo em matéria normativa privativa do poder legislativo regional, consubstancia[m] uma violação da autonomia legislativa regional, representada pelos seus direitos constitucionais, claramente condenada pela Constituição portuguesa.
Além de que o Decreto-Lei 40/2001, na sua eficácia retroactiva, ofende o princípio constitucional da não retroactividade das leis desfavoráveis aos cidadãos, sendo por isso materialmente inconstitucional."
Posteriormente ao pedido, o requerente solicitou a junção ao processo de um parecer jurídico.
4 - Resposta do autor da norma. - Notificado do pedido, veio o Primeiro-Ministro pronunciar-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma, concluindo assim:
"A) A revisão constitucional de 1982 e a Lei 28/84, de 14 de Agosto (Lei de Bases da Segurança Social), reduziram e condicionaram expressivamente o objecto material das competências legislativas regionais previamente existentes em matéria de segurança social;
B) Semelhante redução, não tendo afectado no plano orgânico a subsistência do Decreto Regional 26/79/M, que fixou um regime contributivo especial para os trabalhadores independentes dos sectores primário e terciário da Região Autónoma da Madeira, constrangeu, todavia, o exercício de futuras competências legislativas regionais que procedesse à revogação ou alteração do mesmo decreto;
C) Essa constrição e esse condicionamento das referidas competências em matéria de fixação de taxas relativas a regimes especiais de segurança social assumiram as seguintes características:
a) A Lei 28/84 passou a reduzir, ad futurum, no seu artigo 84.º, a esfera da sua 'regulamentação' pelas Regiões Autónomas, a qual ficou circunscrita a matérias de 'organização e funcionamento' e 'regionalização dos serviços de segurança social', áreas onde não se encontrava compreendida a determinação de taxas de regimes contributivos especiais;
b) A mesma lei determinou, no seu artigo 69.º, que todos os regimes especiais de segurança social, onde se encontrava compreendido o respeitante ao Decreto Regional 26/79/M, teriam uma vigência transitória até à integração progressiva dos seus contribuintes no regime geral, integração que, à luz do n.º 2 do artigo 63.º da CRP, incumbe ao Estado, e não às Regiões;
c) As taxas contributivas para o regime geral da segurança social seriam fixadas, nos termos do n.º 1 do artigo 53.º da referida lei, no orçamento da segurança social, o qual faz parte, nos termos constitucionais, da Lei do Orçamento do Estado;
d) A regra geral referida na alínea precedente limita-se a dar concretização aos efeitos da consagração, com a revisão constitucional de 1982, de um orçamento de Estado monista, que passou a conter o orçamento da segurança social, e não apenas os seus 'princípios fundamentais' como antes sucedia com a Lei do Orçamento;
e) As taxas contributivas para o regime geral, e indispensáveis para assegurar a componente das receitas do referido orçamento, passaram a ficar sujeitas ao regime geral da legalidade tributária (n.º 2 do primitivo artigo 106.º da CRP), e, como tal, a sua determinação foi claramente situada na esfera da reserva relativa de competências da Assembleia da República;
D) O Tribunal Constitucional (Acórdão 183/96) confirma inequivocamente a asserção anterior de que a determinação das taxas do regime geral da segurança social é, ao abrigo do n.º 2 do artigo 103.º e da alínea i) do artigo 165.º da CRP, uma matéria da reserva relativa de competência parlamentar;
E) Essa reserva é extensível a qualquer nova taxa que se assuma como transitória de um regime especial para um regime geral unificado, já que a referida transição [se assume] como uma tarefa pública de interesse geral, que incumbe ao Estado realizar à luz dos princípios da unidade, igualdade e solidariedade nacionais;
F) É, pois, o Governo, mediante decreto-lei autorizado, órgão plenamente competente para rever as taxas do Decreto Regional 26/79/M, tendo em vista o seu progressivo ajustamento às taxas do regime geral da segurança social, imperativo que se deve realizar até ao ano 2013;
G) Tendo o Decreto-Lei 40/2001, que procedeu à revisão das mesmas taxas, sido devidamente autorizado para a realização do fim descrito, por força do n.º 5 do artigo 36.º da Lei 3-B/2000, considera-se que a sua constitucionalidade se revela inatacável;
H) Tão-pouco é possível decantar, contrariamente ao que invoca o requerente, a existência de um interesse específico regional sobre a matéria em causa que tenha sido ofendido pelo diploma impugnado, dado que:
a) Havendo potencialmente interesse específico regional no âmbito da matéria da segurança social, haverá que atentar no facto de a existência efectiva desse mesmo interesse específico não se aferir automaticamente em razão de enumerações abstractas da matéria considerada, na Constituição ou nos Estatutos das Regiões Autónomas (Acórdão 326/86), mas sim por obra de uma determinação concreta, feita caso a caso;
b) Não existe, no caso sub iuditio, particular configuração regional que justifique a possibilidade de a Região Autónoma da Madeira determinar o valor de taxas transitórias para um regime geral da segurança social, dado que a mesma se mostraria passível de interferir nas receitas da segurança social e no equilíbrio do respectivo orçamento, áreas de interesse geral que se encontram cometidas à reserva de competência dos órgãos de soberania;
c) Especialidades que justificaram ab origine um regime contributivo especial e mais favorável para os trabalhadores independentes do sector primário e actividades conexas da Região Autónoma da Madeira alterar-se profundamente, de acordo com o preâmbulo do decreto-lei sindicado, impondo-se, em nome do princípio da igualdade, a sua transição para um regime geral do sistema unificado;
I) Esmaecem, assim, os argumentos do requerente favoráveis à inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei 40/2001;
J) Tão-pouco se pode falar em retroactividade em sentido próprio e em violação do princípio da protecção da confiança, em consequência do reporte da aplicação das novas taxas fixadas pelo Decreto-Lei 40/2001, de 9 de Fevereiro, para o início do mês de Janeiro do mesmo ano, dado que:
a) A revisão das taxas fora já anteriormente determinada, em abstracto, mas explicitamente, pela autorização conferida ao Governo pelo n.º 5 do artigo 36.º da Lei 3-B/2000, de 15 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para o ano 2001);
b) O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 183/96, considera, precisamente a este respeito, que não viola o princípio da protecção da confiança e da proibição da retroactividade da obrigação tributária um diploma que reporte a satisfação de novos encargos para um momento posterior à sua publicação, quando já exista no ordenamento uma previsão legal respeitante ao esquema contributivo em causa;
c) No que toca às taxas para o ano 2001, previstas no anexo I do diploma sindicado, o seu baixo valor exclui a verificação de um aumento arbitrário, exorbitante e imprevisível de encargos para os cidadãos, susceptível de violar o princípio da tutela da confiança (v. o Acórdão 634/98);
K) Em consequência do exposto, o conteúdo do Decreto-Lei 40/2001 mostra-se plenamente compatível com os princípios e as normas constitucionais, improcedendo as razões aduzidas pelo requerente a favor da sua inconstitucionalidade; [...]"
5 - Memorando e debate. - Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando previsto no artigo 63.º da Lei do Tribunal Constitucional e entregue a todos os juízes, foi o mesmo submetido a debate, sendo fixada a orientação do Tribunal. Cumpre, assim, dar corpo à decisão, de harmonia com o que então se estabeleceu.
II - Questão prévia. - 6 - Legitimidade processual do Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira. - A legitimidade do Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira para requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade de normas resulta do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição.
As entidades referidas neste preceito têm uma legitimidade processual limitada (ao contrário do que acontece com os restantes órgãos elencados naquele n.º 2 do artigo 281.º): o pedido de declaração de inconstitucionalidade apenas pode basear-se em "violação dos direitos das Regiões Autónomas". Como se reconhece no parecer que acompanha o pedido, "se se tratar de uma norma inconstitucional, mas cujo pedido de fiscalização não possa ter este fundamento, não se confere às entidades regionais mencionadas qualquer legitimidade processual activa".
Importa assim verificar se os fundamentos do pedido em análise se enquadram na previsão da referida norma constitucional.
O requerente fundamenta o seu pedido de declaração de inconstitucionalidade em violação da autonomia legislativa regional. Alega, igualmente, violação do princípio da não retroactividade das leis.
A violação da autonomia legislativa regional enquadra-se na previsão na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição. Já a violação do princípio da não retroactividade das leis não pode ser subsumida à previsão daquela norma constitucional.
As normas cuja retroactividade poderia estar em causa alteram as contribuições para a segurança social de "trabalhadores por conta própria da Região Autónoma da Madeira". Assim, a invocada retroactividade - a existir - seria lesiva de eventuais interesses destes trabalhadores e, em caso algum, de direitos da própria Região Autónoma. Não pode assim haver dúvidas quanto à falta de legitimidade processual da entidade requerente (Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira) para fundamentar o pedido de apreciação de inconstitucionalidade com base em violação do princípio da não retroactividade.
A limitação à legitimidade processual da entidade requerente leva, por seu turno, à limitação dos poderes de cognição deste Tribunal. Na verdade, se a entidade requerente apenas pode pedir a declaração de inconstitucionalidade com base em violação dos direitos das Regiões Autónomas, não pode o Tribunal, em processo de fiscalização abstracta desencadeado por pedido daquela entidade, apreciar outros fundamentos.
Não cabe, assim, a este Tribunal, neste momento, apreciar a inconstitucionalidade das normas questionadas pelo requerente com base em violação do princípio da não retroactividade, mas tão-só com base na violação da autonomia legislativa das Regiões Autónomas.
III - Fundamentos. - 7 - O diploma legislativo em que se integram as normas cuja inconstitucionalidade é suscitada (Decreto-Lei 40/2001) foi emitido ao abrigo de autorização legislativa concedida pela Lei 3-B/2000, de 4 de Abril (Lei do Orçamento para 2000). O objecto dessa autorização era a revisão das taxas contributivas previstas no Decreto Regional 26/79/M, de 7 de Novembro.
Este diploma regional continha, inicialmente, o regime de segurança social aplicável aos "produtores agrícolas e trabalhadores por conta própria das actividades artesanais e subsidiárias do sector primário". Estes foram, entretanto, integrados pelo Decreto Legislativo Regional 6/83/M, de 21 de Julho (que adaptou, para a Região, o Decreto-Lei 8/82, de 18 de Janeiro), no regime dos trabalhadores independentes. Subsistiu, porém, a aplicação das taxas contributivas previstas no diploma de 1979, as quais só foram revogadas com a entrada em vigor do referido Decreto-Lei 40/2001, que, por sua vez, estabeleceu um "ajustamento progressivo" das taxas contributivas aplicáveis, ajustamento esse que terminará em 2013.
O ponto fulcral da argumentação do requerente é o de que, tratando-se de matéria de interesse específico já regulada por diploma regional, se verifica uma impossibilidade de o poder central interferir nas opções tomadas pelo poder regional. Nessa medida, seria inconstitucional a revogação do Decreto Regional 26/79/M por acto legislativo emanado do poder central.
Para que seja procedente a argumentação do requerente, torna-se, assim, necessário que haja, cumulativamente, resposta afirmativa a três questões:
A) Que a matéria em causa possa ser regulada por acto legislativo regional, isto é, que se trate de matéria com interesse espe cífico para a Região - limite positivo -, e não reservada à competência própria de um órgão de soberania - limite negativo [cf. o artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição];
B) Que a regulação feita pelo diploma regional respeite "os princípios fundamentais das leis gerais da República" (ibidem);
C) Que deva admitir-se a existência de um espaço normativo reservado à intervenção dos órgãos regionais, excluindo do mesmo passo a possibilidade de regulação posterior por acto legislativo emanado dos órgãos de soberania.
Como é bom de ver, a resposta negativa a qualquer destas questões implicará a improcedência da argumentação do requerente. Ora, como se passará a explanar, logo na primeira das questões (estar a matéria enquadrada no âmbito do poder legislativo regional) a resposta é negativa, o que tornará desnecessária a análise das outras.
8 - O requerente deduz da conjugação de várias alíneas do artigo 228.º da Constituição a ideia de que existe interesse específico regional na definição de um regime especial para as taxas contributivas dos produtores agrícolas e trabalhadores por conta própria das actividades artesanais. Fá-lo, nomeadamente, a partir das alíneas que qualificam como de interesse específico o "desenvolvimento agrícola e piscícola" - alínea e) - e o "desenvolvimento comercial e industrial" - alínea j). É, todavia, patente que as normas em apreço apenas indirectamente se relacionam com tais matérias, versando antes sobre segurança social - facto que o próprio requerente de certa forma admite. A circunstância de a segurança social não figurar no elenco das matérias consideradas de interesse específico não é, contudo, obstáculo decisivo a que a questão em apreço assim possa ser qualificada. Na verdade, a alínea o) do mesmo artigo da lei fundamental estatui que outras matérias, não tipificadas, podem ser consideradas de interesse específico, desde que "respeitem exclusivamente à Região ou nela assumam particular configuração".
Vejamos, então.
9 - A Constituição estatui, no seu artigo 53.º, n.º 2, que incumbe ao Estado "organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado". Além disso, reserva à Assembleia da República a competência para legislar sobre as "bases do regime de segurança social". Assim, é no quadro de um sistema de segurança social unificado, constitucionalmente imposto e que implica uma regulação unitária ao nível nacional, que deve analisar-se a questão da qualificação da matéria em causa como sendo, ou não, de interesse específico.
9.1 - Entre o diploma regional revogado e o momento presente sucederam-se três leis de bases da segurança social, que, todas elas, têm dado expressão a esta imposição constitucional de organização de um sistema de segurança social unificado.
Na Lei 28/84, de 14 de Agosto, estatuía-se um "princípio da unidade" enquanto "unificação" dos "regimes constitutivos do sistema" (artigo 5.º, n.º 3), admitindo-se apenas o poder de as Regiões Autónomas emitirem regulação própria em matéria de "organização e funcionamento" e "regionalização dos serviços". Um princípio de unidade estava também presente no artigo 15.º da Lei de Bases de 2000 (Lei 17/2000, de 8 de Agosto, que entrou em vigor no dia anterior à publicação do decreto-lei que contém as normas ora questionadas) e está previsto no artigo 17.º da actual Lei de Bases da Segurança Social (Lei 32/2002, de 20 de Dezembro), que, uma vez mais, apenas refere um poder das Regiões Autónomas para emitirem regulação própria em matéria de "organização e funcionamento" e "regionalização dos serviços" (artigo 131.º).
9.2 - Por outro lado, em face do desenho do sistema de segurança social português, resultam importantes consequências da fixação, por um acto normativo regional, de um regime, para certa categoria de trabalhadores, diferente do regime geral, nomeadamente no caso de estabelecimento de contribuições mais baixas. Com efeito, as possibilidades de pagamento de pensões dependem essencialmente da receita obtida das quotizações (dos trabalhadores) e das contribuições (dos empregadores). Como a receita não está segmentada geograficamente ou por grupos profissionais (em cumprimento, aliás, do disposto no já citado artigo 63.º, n.º 2, da Constituição), a redução das contribuições de um segmento de trabalhadores afecta as possibilidades de pagamento das pensões à generalidade dos pensionistas e as receitas do fundo de capitalização.
É, aliás, por esta razão que a generalidade das medidas que reduzem as contribuições de certas categorias de pensionistas estabelece uma receita compensatória para a segurança social, de modo a não afectar o nível global de receita do sistema. Veja-se, como exemplo, o disposto no artigo 12.º do Decreto-Lei 158/2001, de 18 de Maio, no qual se estabelece que a redução temporária das contribuições de trabalhadores agrícolas é compensada por transferências do orçamento do Ministério da Agricultura para o orçamento da segurança social.
Aspecto igualmente relevante é o facto de a redução das taxas contributivas a cargo dos trabalhadores não afectar o cálculo das futuras pensões destes. Na verdade, esse cálculo é hoje efectuado nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei 35/2002, de 19 de Fevereiro - que veio concretizar o preceituado no artigo 35.º da Lei 32/2002 -, daí resultando que o montante da futura pensão depende das remunerações auferidas, independentemente da taxa da quotização que é suportada. Tal significa que a redução, por parte de acto legislativo regional, das contribuições pagas por trabalhadores que exercem a sua actividade na Região implica, desde logo, a redução das receitas de um fundo que é geral para todo o País e do qual são pagas as pensões actuais de todos os pensionistas portugueses. Por outro lado, tal redução é feita sem que seja aliviado, para o futuro, o encargo que haverá de ser suportado por todos os contribuintes do sistema no pagamento das pensões desses trabalhadores.
Assim, é claro que a definição de um regime especialmente favorável de quotização é matéria que requer a intervenção do legislador nacional, não se podendo qualificar como "matéria que respeite exclusivamente à respectiva Região ou que nela assuma particular configuração". Havendo um interesse geral que requer regulação unitária ao nível nacional, está excluída a existência de um interesse específico legitimador de intervenção legislativa regional. Não se pode, portanto, concluir que esteja verificado o primeiro pressuposto que poderia conduzir à inconstitucionalidade das normas em causa - revogar um diploma regional que legislou em matéria de interesse especifico regional.
9.3 - Aliás, a jurisprudência deste Tribunal - e, anteriormente, da Comissão Constitucional - sempre se pronunciou no sentido de procurar o justo equilíbrio entre os interesses das Regiões Autónomas e as exigências da unidade nacional, afirmando que "o interesse específico se encontra negativamente delimitado pela unidade do Estado e pelo interesse nacional" (Parecer da Comissão Constitucional n.º 11/78, in Pareceres da Comissão Constitucional, 5.º vol., pp. 57 e segs. Cf. ainda os Pareceres n.os 5/77 e 7/77, in Pareceres da Comissão Constitucional, 1.º vol., pp. 89 e segs. e 113 e segs.).
De facto, como podemos ler no Acórdão 473/2002 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 54.º vol., pp. 5 e segs.), "o interesse específico constitucionalmente relevante é [...] apenas o que respeite a matérias que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania, sendo, por isso, desde logo um conceito condicionado pela relação entre a 'razão regional' e a 'razão nacional'."
Assim, nos casos em que claramente prevaleça essa "razão nacional" não há interesse específico constitucionalmente relevante.
Por isso, como este Tribunal tem sustentado (Acórdão 91/84, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., p. 7), "o carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses exigem que a legislação sobre matéria com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos seja produzida pelos órgãos de soberania (Assembleia da República ou Governo), devendo ser estes a introduzir as especialidades ou derrogações que se mostrem necessárias, designadamente por, no caso, concorrerem interesses insularmente localizados".
E a mesma perspectiva foi posteriormente reafirmada (Acórdão 164/86, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol., t. I, p. 219):
"Mas então, tratando-se de adoptar medidas legislativas que respeitam ou se repercutem nas varias parcelas do território nacional [...], para a sua edição haverão de intervir os órgãos legislativos nacionais, como órgãos representativos que são dos cidadãos de todas essas partes."
Existem, pois, matérias que, devido ao seu relevo para a generalidade dos cidadãos, constituem, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, reserva de competência do legislador nacional. Tais matérias não podem, logicamente, ser consideradas como de interesse específico das Regiões Autónomas.
9.4 - Ora, no quadro de um sistema de segurança social unificado imposto constitucionalmente, tem manifesto relevo para a generalidade dos cidadãos a determinação das receitas globais da segurança social e do futuro esforço financeiro nacional no pagamento das respectivas pensões, pelo que, não se excluindo a possibilidade de existência de regimes diferenciados (inclusivamente de âmbito regional), essa ponderação, dados os reflexos nacionais da decisão, deve ser tomada pelos órgãos de soberania com competência legislativa. Verifica-se, assim, que o Decreto-Lei 40/2001, de 9 de Fevereiro, regulou matéria que deveria, necessariamente, ser regulada por acto normativo emanado do poder legislativo nacional, não se tratando de matéria de interesse específico das Regiões Autónomas. Deste modo, não se vê como, à luz do nosso ordenamento constitucional, poderiam as Regiões Autónomas adoptar aqui uma regulamentação parcelar, já que esta sempre teria implicações relevantes ao nível nacional.
Pelo exposto, há que concluir que as normas impugnadas não padecem do vício que lhes foi atribuído, já que - independentemente de quaisquer outras razões - não versaram sobre matéria de interesse específico regional.
IV - Decisão. - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º do Decreto-Lei 40/2001, de 9 de Fevereiro.
Lisboa, 7 de Julho de 2004. - Gil Galvão (relator) - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Bravo Serra - Paulo Mota Pinto - Maria Helena Brito - Benjamim Rodrigues - Vítor Gomes - Artur Maurício - Rui Manuel Moura Ramos - Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração em anexo) - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com declaração junta) - Luís Nunes de Almeida.
Declaração de voto
Voto a decisão, mas não acompanho a fundamentação na parte relativa à definição e qualificação do "interesse específico regional".
Para solucionar a questão in judicio, não é, a meu ver, sequer necessário analisar a conformidade do Decreto Regional 26/79/M, de 7 de Novembro, com o interesse específico regional, uma vez que, neste caso, ao impor a existência de um sistema de segurança social unificado, o artigo 63.º, n.º 2, da Constituição não permite afirmar que as normas em análise - que concretizam esse sistema - ofendem a competência legislativa regional. - Carlos Pamplona de Oliveira.
Declaração de voto
Votei a não inconstitucionalidade, mas tê-la-ia fundamentado de forma parcialmente diferente.
Em primeiro lugar, porque creio que haveria de ter sido ponderada, na averiguação da existência ou ausência de interesse específico, a eventual existência de "específicos condicionalismos regionais" (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei 40/2001), a par do interesse nacional, assim procurando a "relação entre a 'razão regional' e a 'razão nacional'" a que se refere o Acórdão 437/2002, citado no acórdão; em qualquer caso, penso que tal averiguação não pode ser feita tomando como quadro uma lei ordinária, como é a Lei de Bases da Segurança Social, e o sistema por ela definido.
Em segundo lugar, porque, independentemente de saber se poderia ou não considerar-se preenchido o requisito do interesse específico, não se encontra na Constituição qualquer base que permita considerar exclusivo o poder legislativo regional correspondente, o que sempre afastaria qualquer juízo de inconstitucionalidade. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.