de 10 de Maio
1. O Governo não desconhece a importância e a premência da reforma da nossa antiquada legislação sobre sociedades comerciais. Para a prossecução desse objectivo constituiu-se uma comissão, de que fazem parte especialistas das Faculdades de Direito. E têm sido também chamadas a colaborar outras pessoas ligadas à vida prática.Os estudos vão progredindo. Alguns anteprojectos encontram-se publicados e foram remetidos a várias entidades, a fim de que estas possam, com o devido tempo, apreciá-los e apresentar sugestões. Assim se continuará a proceder.
A magnitude e o melindre da matéria exigem, todavia, investigação e reflexão que travam a rapidez desejada. Resulta consequentemente indicado que, entretanto, sejam introduzidas modificações de oportunidade manifesta e susceptíveis de realização fragmentária. Aos naturais inconvenientes das medidas parcelares contrapõem-se as inegáveis vantagens que também apresentam: a de se corrigirem imediatamente deficiências significativas e a de se abrir caminho à reforma de conjunto. Este último aspecto não parece irrelevante se nos lembrarmos que a lei francesa das sociedades comerciais, com cerca de seis anos de existência, sofreu já treze revisões legislativas.
Em tal espírito foram promulgadas as recentes normas respeitantes à fiscalização das sociedades e à responsabilidade civil dos administradores, dos membros do conselho fiscal e das entidades afins (Decreto-Lei 49381, de 15 de Novembro de 1969, Decreto-Lei 648/70, de 28 de Dezembro, e Decreto-Lei 1/72, de 3 de Janeiro). E nessa precisa ordem de ideias se inspiram as medidas agora adoptadas, que procuram acudir a outros aspectos do direito das sociedades. Embora se trate de temas diversos, pareceu preferível reuni-los num único texto, pois são vizinhos e mostra-se aconselhado reduzir ao mínimo as desvantagens do aumento do número de diplomas que integram o referido ramo jurídico.
Cabe salientar que a versão definitiva do presente decreto-lei assenta num projecto submetido pelo Governo à Câmara Corporativa. O seu importante parecer ocasionou o reexame de algumas das soluções e formulações propostas.
2. Por força do artigo 183.º, § 3.º, do Código Comercial, nenhum accionista, qualquer que seja o número das suas acções, poderá representar mais da décima parte dos votos conferidos por todas as acções emitidas, nem mais de uma quinta parte dos votos que se apurarem na assembleia geral. Exceptua-se o Estado, que, nas sociedades a que se refere o artigo 178.º do mesmo diploma, terá tantos votos quantos os correspondentes às acções que a seu favor estiverem depositadas ou averbadas.
A primeira parte do parágrafo data da promulgação do Código. A excepção a favor do Estado foi introduzida pelo Decreto 12251, de 30 de Agosto de 1926.
Compreendem-se as intenções da lei ao limitar o número de votos de que um accionista pode dispor em assembleias gerais. A verdade, todavia, é que o preceito não tem encontrado na prática realização efectiva, conhecendo-se os vários expedientes utilizados para evitar a sua aplicação, tais como a constituição de sociedades fictícias apenas para deterem parte do capital de outras, os endossos «em branco» de acções nominativas e as transmissões de acções ao portador com o único fito de legitimar a participação do adquirente nas assembleias gerais.
Acresce que a referida disciplina se revela embaraçosa para os investidores de outros países, cujos sistemas jurídicos desconhecem esta limitação ao poder de voto, sendo, portanto, nociva em relação às associações de interesses portugueses e estrangeiros.
Dadas as razões que antecedem, afigura-se oportuno alterar o § 3.º do artigo 183.º do Código Comercial, no sentido de não impor uma limitação de votos, embora permitindo que os estatutos da sociedade o façam. Deve sublinhar-se que a mudança de forma alguma corresponde a um propósito de restringir a protecção das minorias nas sociedades anónimas. Simplesmente se reconheceu, à luz do que tem mostrado a experiência, entre nós e no estrangeiro, a inoperância, para o efeito, de um sistema como o do actual § 3.º do artigo 183.º As verdadeiras medidas de uma eficaz tutela das minorias são de índole diversa. Ponderar-se-á, naturalmente, a sua introdução ou reforço no âmbito da reforma do nosso direito das sociedades comerciais. E não se ignora também que várias providências dessa ordem se encontram já sancionadas pelo diploma relativo à fiscalização das sociedades anónimas, acima recordado.
De resto, a solução que fica adoptada no título I deste diploma segue a tendência das legislações mais modernas. Consagram-na, por exemplo, o direito brasileiro (Decreto-Lei 2627, de 26 de Setembro de 1946, artigo 80.º), o direito alemão (Lei de 11 de Setembro de 1965, § 134, alínea 1) e o direito francês (Lei de 24 de Julho de 1966, artigo 177.º).
Quanto às limitações de voto a estabelecer por via estatutária, admite-se que respeitem apenas a certas categorias de acções. No caso de os estatutos assim disporem, a situação será de algum modo semelhante, na prática, à que existiria se, em determinadas condições, correspondesse voto plural às acções das categorias não sujeitas a limitação. Não se adoptou sem hesitações esta solução, que é afastada expressamente pela citada norma da lei francesa. Pareceu, contudo, que a orientação perfilhada - que o direito alemão consagra no preceito também acima mencionado - pode satisfazer razoáveis interesses da prática e não apresenta inconvenientes sensíveis. Uma limitação estatutária do voto que dissesse respeito não a categorias de acções, mas a accionistas determinados, é que já estaria desaconselhada, em face da natureza própria das sociedades anónimas.
Pelo que respeita às sociedades constituídas antes da entrada em vigor do regime agora estabelecido, preferiu-se eximi-las da sua aplicação, sem prejuízo da faculdade de os sócios alterarem os estatutos nesse sentido. Afigurou-se menos razoável que a lei viesse interferir na relação de poder entre os accionistas das referidas sociedades, tal como ela se apresenta actualmente - isto é, em resultado da aplicação do § 3.º do artigo 183.º, com a redacção que possuía à data da constituição da sociedade -, pois bem pode acontecer que, ao ingressarem nesta, os sócios tenham entrado em linha de conta com a disciplina legal. Não deve excluir-se, na verdade, que a limitação de voto até agora legalmente imposta correspondesse à vontade dos sócios, que só a não teriam incluído nos estatutos por isso ser desnecessário, mercê da lei vigente no momento da constituição da respectiva sociedade. Quis-se, em suma, ressalvar as expectativas criadas à sombra da lei.
Consideraram-se ainda os reflexos da modificação do § 3.º do artigo 183.º do Código Comercial relativamente às acções com voto privilegiado, porquanto tal modificação suprime os limites dentro dos quais têm funcionado esses privilégios. Havia, assim, que evitar que o novo regime importasse pràticamente um reforço destes, que não se julga desejável e estaria em contraste com a tendência legislativa dominante. Daí o que passa a dispor o § 4.º do artigo 183.º Por último, atendeu-se à situação do Estado accionista perante a nova disciplina do voto. Pareceu, desde logo, curial reconhecer ao Estado a posição que a lei já atribui a outras entidades (Decreto 20332, de 22 de Setembro de 1931, artigo 1.º;
Decreto-Lei 48953, de 5 de Abril de 1969, artigo 66.º; Decreto-Lei 49273, de 27 de Setembro de 1969, artigo 9.º, n.º 1, e Decreto-Lei 103/72, de 29 de Março, artigo 1.º, n.º 2), pelo que se lhe não aplicam as limitações de voto, legais ou estatutárias, em todas e quaisquer sociedades e não sòmente nas abrangidas pela anterior redacção do § 3.º do artigo 183.º Além disso, ponderou-se que, nas sociedades actualmente existentes, a supressão por via estatutária da limitação de voto possibilitaria a alteração da posição relativa do Estado e dos demais accionistas: torna-se, em consequência, tal modificação dos estatutos dependente do assentimento daquele.
3. Em numerosas sociedades comerciais ocorrem divergências entre sócios ou grupos de sócios com igual poder de voto. Os estudiosos da matéria não têm deixado de salientar os inconvenientes que a situação comporta, resumindo-se as suas conclusões no título de um importante trabalho publicado no estrangeiro: «Beco sem saída ou arbitragem». Poderia recorrer-se a uma arbitragem a fim de pôr termo às divergências, mas ela pressupõe que os sócios acordem em realizá-la, o que na quase totalidade dos casos não acontece, mercê da natural continuação dos seus radicais diferendos; e mesmo que a lei prescrevesse o recurso a um tribunal arbitral necessário, a que se aplicaria o disposto nos artigos 1525.º e 1526.º do Código de Processo Civil, o facto é que - segundo a Câmara Corporativa observou no n.º 8 do parecer emitido a propósito deste diploma -, «com as formalidades da instalação do tribunal arbitral, da propositura da acção que ele haveria de decidir e do seu julgamento, a solução do litígio seria extremamente morosa» (Actas da Câmara Corporativa, de 10 de Março de 1972).
Não parece aconselhado que o legislador atribua aos tribunais competência para dirimir toda e qualquer das aludidas divergências. Justifica-se, porém, que sancione a sua intervenção quando elas se mostrem susceptíveis de paralisar o funcionamento da sociedade e, assim, de determinar a respectiva dissolução, a prazo mais ou menos longo. É o que sucede com as divergências relativas às deliberações de nomeação de administradores ou de gerentes e de apreciação do balanço e contas. Nem será ousadia supor que, em muitos casos, a simples existência de meios de solução forçada desses conflitos concorrerá para atenuar a violência dos mesmos.
A experiência que vai admitir-se talvez aponte ao legislador, no futuro, um passo mais arrojado: a possibilidade de um sócio requerer que a divergência seja decidida por um tribunal arbitral, quando a deliberação tenha qualquer outro objecto e se prove que aquela é de molde a ocasionar grave prejuízo à sociedade. Por agora, com a prudência reclamada pelo melindre do tema, o presente diploma, no seu título II, admite tão-só algumas medidas que se julgam apropriadas para as situações consideradas mais instantes.
Nestes termos:
Ouvida a Câmara Corporativa:
Usando da faculdade conferida pela 1.ª parte do n.º 2.º do artigo 109.º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte:
TÍTULO I
Limitação do número de votos dos accionistas
Artigo 1.º O artigo 183.º do Código Comercial passa a ter a seguinte redacção:
..........................................................................
§ 1.º ..................................................................
§ 2.º ..................................................................
§ 3.º Os estatutos podem limitar o número de votos de que cada accionista dispõe na assembleia, quer pessoalmente, quer como procurador, admitindo-se que o façam para todas as acções ou apenas para acções de uma ou mais categorias, mas não para accionistas determinados; a limitação não funciona, todavia, nos casos em que a lei ou os estatutos exijam para a validade das deliberações sociais uma certa maioria de capital, salvo quando aqueles estabeleçam diversamente, e não funciona também em relação aos votos que pertençam ao Estado ou a entidades para o efeito a ele equiparadas por legislação especial.
§ 4.º Não obstante cláusula contratual diversa, e estipulada ao abrigo do parágrafo anterior, e com reserva da excepção constante da parte final do mesmo parágrafo, os privilégios de voto não podem ser exercidos na medida em que, por força deles, um accionista represente na assembleia mais da décima parte dos votos conferidos por todas as acções emitidas.
§ 5.º (Antigo § 4.º) § 6.º (Antigo § 5.º) Art. 2.º Nas sociedades constituídas antes da entrada em vigor do presente diploma continua a observar-se o preceituado na anterior redacção do § 3.º do artigo 183.º do Código Comercial, enquanto não for tomada deliberação que altere os estatutos no sentido de não haver limitações de número de votos, salvo a que derive da nova redacção do § 4.º do mesmo artigo, ou no de estabelecer as limitações permitidas pela redacção dada àquele § 3.º no artigo 1.º Art. 3.º Nas sociedades constituídas antes da entrada em vigor do presente diploma, em que o Estado ou as entidades para esse efeito a ele equiparadas por legislação especial beneficiam da excepção prevista na parte final do § 3.º do artigo 183.º do Código Comercial, a deliberação referida no artigo anterior só pode ser tomada com os votos concordantes do Estado ou de tais entidades.
TÍTULO II
Divergências entre sócios com igual poder de voto
Art. 4.º Podem ser requeridas as providências a que se referem os artigos seguintes quando, em duas reuniões da assembleia geral distanciadas entre si pelo menos sessenta dias, nas quais hajam participado todos os sócios com direito de voto ou, devidamente convocados, sócios que representem um mínimo de 90 por cento do capital social, não puderam ser tomadas, devido a ter-se verificado empate de votos, deliberações:
a) De nomeação de administradores ou de gerentes, desde que tornada necessária por força da lei ou dos estatutos;
b) De apreciação do balanço e contas.
Art. 5.º - 1. Se nos casos previstos no artigo anterior a deliberação tiver o objecto indicado na sua alínea a), pode qualquer sócio requerer a nomeação de um administrador judicial, que exercerá as respectivas funções conjuntamente com os outros administradores ou gerentes, quando os haja.
2. O tribunal fixará os poderes do administrador judicial e a duração das suas funções, sendo aplicável, quanto ao mais, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.os 5 e 6 do artigo 29.º do Decreto-Lei 49381, de 15 de Novembro de 1969.
3. As funções do administrador judicial cessam necessàriamente logo que a assembleia geral eleja um administrador ou gerente.
Art. 6.º - 1. Se nos casos previstos no artigo 4.º a deliberação tiver o objecto indicado na sua alínea b), pode qualquer sócio requerer a convocação judicial da assembleia, para apreciação do balanço e contas, nos termos do artigo 1486.º do Código de Processo Civil.
2. O juiz designará para as funções de presidente da assembleia geral uma pessoa estranha à sociedade, atribuindo-lhe o poder de desempatar, se voltar a verificar-se empate; a pessoa designada deve ser um revisor oficial de contas ou, na sua falta, outrem com semelhante idoneidade.
3. A pessoa designada pelo juiz para presidir à assembleia geral pode exigir da administração ou gerência e da entidade fiscalizadora que lhe sejam facultados os documentos sociais cuja consulta considere necessária ao desempenho das respectivas funções e que lhe sejam prestadas as informações de que careça para o mesmo fim.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros. - Marcello Caetano - Mário Júlio Brito de Almeida Costa.
Promulgado em 19 de Abril de 1972, nos termos do § 2.º do artigo 80.º da
Constituição.
Publique-se.Pelo Presidente da República, MARCELLO CAETANO.