Invocou, para tanto, em síntese:
Que aquele Regulamento veio a instituir a concessão de um subsídio, com a natureza de subsídio de apoio social, a portugueses idosos residentes no estrangeiro que se encontrem em situação de carência absoluta não superável pelos mecanismos existentes nos países de residência;
Que, através do Decreto Regulamentar 33/2002, foi, por entre outras alterações, introduzida ao n.º 1 do item III do indicado Regulamento uma alínea e), de acordo com a qual a atribuição da concessão do benefício é condicionada à circunstância de os beneficiandos, que reúnam as demais condições ali previstas, não serem nacionais do país de residência;
Que tal condição não parece harmonizar-se com o princípio da igualdade, olvidando quer a norma do artigo 13.º quer a do artigo 14.º, ambos da Constituição, pois que, ao excluir da medida de apoio social em causa os binacionais, traduz uma «diferenciação arbitrária, desproporcionada e intolerável relativamente aos portugueses carenciados que residem no estrangeiro», sendo que aqueles preceitos constitucionais «apontam para a inviabilidade de qualquer norma de direito infraconstitucional poder operar [...] discriminação entre cidadãos portugueses que residem no estrangeiro, devendo, aliás, nas situações de plurinacionalidade, prevalecer sempre a cidadania portuguesa».
O Primeiro-Ministro, ouvido nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, ofereceu o merecimento dos autos.
Elaborado memorando pelo Presidente do Tribunal, veio a ser fixada a orientação deste órgão de administração de justiça.
Cumpre, pois, efectuar a elaboração de acórdão.
2 - Não olvidando que a norma de cuja apreciação ora se cura - e só sobre ela incide o pedido - corresponde a uma alteração introduzida no aludido despacho conjunto 17/2000 pelo também já citado Decreto Regulamentar 33/2002, torna-se evidente, atento o que se consagra no n.º 5 do artigo 51.º da Lei 28/82, que este Tribunal tão-só pode analisar essa mesma norma e a forma que revestiu o acto normativo que a produziu.
Não se entrará, justamente por isso, na apreciação decisória de eventuais vícios - designadamente formais e orgânicos - de que porventura padecerá o Regulamento aprovado por aquele despacho, pois que isso significaria um desbordar dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional.
3 - Por intermédio do Decreto Regulamentar 33/2002 foi aprovado o Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Emigrantes Carenciados das Comunidades Portuguesas (ASEC-CP) que, como deflui do exórdio daquele diploma, teve por objectivo a criação de um instrumento de apoio aos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro que se encontrem em situação de necessidade extrema e de manifesta excepcionalidade, complementando uma outra medida, já tomada em relação aos idosos carenciados das comunidades portuguesas, medida essa precisamente instituída pelo Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Idosos Carenciados das Comunidades Portuguesas (ASIC-CP), aprovado pelo despacho conjunto 17/2000.
Aproveitou-se, porém, a oportunidade para, neste último Regulamento (ASIC-CP), introduzir algumas alterações pontuais, de entre elas «relevando principalmente o campo pessoal de aplicação» (palavras do preâmbulo).
Foi assim que, referentemente às condições de atribuição da medida de apoio aos idosos carenciados das comunidades portuguesas residentes no estrangeiro (que eram definidas no n.º 1 do item III do ASIC-CP como sendo:
terem os candidatos idade igual ou superior a 65 anos; encontrarem-se no país de acolhimento em situação de residência legal e efectiva; encontrarem-se em situação de carência - definida no n.º 2, que também sofreu alteração de redacção -, e não haver familiares obrigados à prestação de alimentos ou, havendo-os, não se encontrarem estes em situação de os prestar), uma outra foi aditada pelo n.º 2 do artigo 1.º do Decreto Regulamentar 33/2002, e que consistiu na determinação de os idosos carenciados não serem nacionais do país de acolhimento.
É esta alteração que é questionada pela entidade requerente.
4 - Intentou-se por via do despacho conjunto 17/2000 - ponderando a realidade de existirem portugueses idosos que, nas diversas comunidades portuguesas no estrangeiro, viviam em situação de carência económica e social, não se encontravam abrangidos por sistemas de segurança social e, por nos países de acolhimento e nessas comunidades, terem criado raízes, não desejarem ser repatriados - proporcionar a tais cidadãos condições dignas de subsistência, criando-se, para o efeito, uma medida que foi caracterizada como um «subsídio de apoio social, personalizado, intransmissível, periódico e insusceptível de conferir um direito subjectivo» (cf. o n.º 1 do item II do Regulamento aprovado por meio daquele despacho).
Perante tal caracterização, aceitar-se-á, sem que grandes dúvidas se levantem a esse respeito, que a medida criada pelo ASIC-CP se enquadra no conjunto de medidas de apoio social desenvolvidas pelo Estado, no âmbito do sistema de segurança social e, dentro deste, no âmbito do subsistema de acção social [cf. a estrutura do sistema de segurança social, os objectivos de tal sistema e as características típicas de uma das modalidades das prestações de acção social, tais como resultam do n.º 1 do artigo 5.º, do artigo 82.º e da alínea a) do artigo 84.º, todos da Lei 32/2002, de 20 de Dezembro;
cf., ainda, Carlos Dinis da Fonseca, «Assistência social», em Dicionário Jurídico da Administração Pública, I vol., 1965, pp. 557 e 558, e Ilídio das Neves, Dicionário Técnico e Jurídico de Protecção Social, 2001, p. 36].
A isso ainda acresce que o apoio a que se reporta o ASIC-CP ficava «sujeito a dotação anual, sendo financiado por transferências do Orçamento do Estado a inscrever anualmente no orçamento da segurança social na dotação da acção social» (cf. o item XI do Regulamento), vindo, com a Lei 109-B/2001, de 27 de Dezembro (lei de aprovação do Orçamento do Estado para 2002) - cf. o artigo 28.º -, a ser constituído o «Fundo de Solidariedade para Emigrantes, destinado a suportar financeiramente a prestação de apoio social a cidadãos portugueses residentes no estrangeiro em situações de grave carência».
Assim, esta forma de financiamento estadual sem base contributiva a que o ASIC-CP ficou sujeito identicamente reforça outra sorte de caracterização da medida como algo típico das prestações de acção ou assistência social (cf., neste particular, António da Silva Leal, Temas de Segurança Social, União das Mutualidades Portuguesas, 1998, p. 122), anotando-se que, independentemente das diferenças (ao nível da diversidade de âmbito e intensidade da tutela concedida e do modo de funcionamento) que separam o regime contributivo do regime não contributivo, são comuns os objectivos sociais que lhes estão subjacentes.
De concluir é, pois, que o subsídio de atribuição instituído pelo ASIC-CP deve ser perspectivado como uma medida de acção social inserida no domínio do sistema de segurança social e, como tal, devendo pautar-se pelas regras e princípios desse sistema.
5 - Atribui o diploma básico ao sistema de segurança social e à terceira idade um elevado relevo, podendo, exemplificativamente, citar-se a consagração constitucional do direito a esse sistema, do direito dos idosos à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social (sendo esses direitos integrados no capítulo II - Direitos e deveres sociais - do título III), das incumbências que comete ao Estado nesse domínio (artigos 63.º e 72.º), da determinação de inclusão do orçamento da segurança social no Orçamento do Estado [alínea b) do n.º 1 do artigo 105.º] e do cometimento à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República da definição das bases do sistema de segurança social [alínea f) do n.º 1 do artigo 165.º].
Releva, especialmente, este último cometimento, pois que do mesmo se extrai que é o Parlamento o órgão legislativo que haverá de definir, no que toca às prestações da segurança social e através da respectiva lei de bases, a composição, o âmbito da protecção e as características das prestações sociais, sendo certo que é sobre o Governo, enquanto órgão de condução da política geral do País e órgão superior da Administração Pública, que impende a responsabilidade pela implementação da política concreta de segurança social.
No caso em apreço, confrontamo-nos com a realidade segundo a qual a alteração introduzida no ASIC-CP e que agora se encontra sub iudicio foi prescrita por intermédio de um decreto regulamentar, o que é dizer que o foi por uma norma de cariz administrativo.
E, sem que, como já acima se disse, se possa entrar na apreciação da forma como foi editado o Regulamento cuja alteração está agora em causa, mister é dar resposta à questão de saber se a via regulamentar é, do ponto de vista da conformidade com a Constituição, adequada e suficiente para o estabelecimento normativo de um requisito condicionador do desfrute do apoio social que esse Regulamento instituiu, ou, se se quiser, saber se o Governo, no exercício da sua função administrativa, poderia alterar o específico programa de acção social que foi introduzido pelo dito Regulamento.
6 - Comanda o n.º 7 do artigo 112.º da lei fundamental (n.º 8 do artigo 112.º da versão da Constituição decorrente da revisão constitucional operada pela Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro) que os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visem regulamentar ou que eles sejam precedidos de lei prévia que defina a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão. Trata-se, pois, do denominado princípio da primariedade ou da precedência de lei.
A obrigatoriedade de a actividade regulamentar ser precedida de lei habilitante tem sido acolhida pela jurisprudência deste Tribunal (cf., v. g., os Acórdãos n.os 184/89, Diário da República, 1.ª série, de 9 de Março de 1989, 61/91, idem, 1.ª série-A, de 1 de Abril de 1991, e 217/95, idem, 2.ª série, de 26 de Junho de 1995).
Teve, aliás, este órgão de administração de justiça ocasião de, no segundo dos mencionados arestos, quanto ao particular em causa e citando o Acórdão 184/89, discretear assim:
«Por força do princípio da precedência da lei (primariedade da lei ou reserva vertical da lei) - consagrados nos n.os 6 e 7 do artigo 115.º [correspondente ao actual artigo 112.º] da nossa Constituição -, não existe exercício de poder regulamentar sem fundamento numa lei anterior, já que ao Governo, no exercício de funções administrativas, apenas compete fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis [artigo 202.º [correspondente ao actual artigo 199.º], alínea c), cabendo-lhe, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República. Isto é, e consoante se escreveu no mencionado aresto, são constitucionalmente ilegítimos os regulamentos quando 'contêm disciplina inicial, que só pode constar de diploma legislativo'.» Embora não desconhecendo a posição de alguns autores que admitem a possibilidade de existência de regulamentos sem prévia habilitação legal [cf.
Afonso Queiró, «Teoria dos regulamentos - 1.ª parte», em Revista de Direito e Estudos Sociais, n.os 1 a 4 (Janeiro-Dezembro, 1980), p. 13, Vieira de Andrade, «Autonomia regulamentar e reserva de lei», em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor. Afonso Rodrigues Queiró, separata do Boletim da Faculdade de Direito, 1987, Universidade de Coimbra, p. 14, Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, 1987, pp. 210 e 211, e Paulo Otero, O Poder de Substituição em Direito Administrativo, vol. II, Lex, 1995, p. 668], não vê o Tribunal razão para abandonar a sua postura, ilustrada no trecho que se transcreveu, de que, aliás, grande parte da doutrina comunga (cf. Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, vol. I, 1980, pp. 115 e 116, Coutinho de Abreu, Sobre os Regulamentos Administrativos e o Princípio da Legalidade, 1987, p. 44, Manuel Afonso Vaz, Lei e Reserva da Lei - A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976, 1992, p. 497, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 514, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. V, 3.ª ed., p. 220, e «Sobre a reserva constitucional da função legislativa», em Perspectivas Constitucionais - Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, 1997, p. 895, e Luís Pereira Coutinho, «Regulamentos independentes do Governo», em Perspectivas..., cit., vol. III, p.
1026).
Se é certo que o grau de vinculação do regulamento à lei varia consoante a matéria tratada - sendo mais intenso quando a Constituição impõe que determinada matéria seja regulada por lei -, menos não é que, perante o que se dispõe no n.º 7 do seu artigo 112.º, mesmo no limite mínimo, é a essa lei que caberá sempre fixar a competência objectiva e subjectiva para a emissão da normação regulamentar.
7 - Perante esta parametrização, começará por se analisar, num primeiro passo, se a matéria regulada no Decreto Regulamentar 33/2002, na parte a que se reporta o pedido (e que, como é claro, tem a ver com a definição das condições do âmbito subjectivo de atribuição do benefício), poderá, efectivamente, ser objecto de tratamento pela via regulamentar.
Não se vá sem dizer que alguns autores, dos já indicados, que sustentam que o poder regulamentar se pode fundar directamente na Constituição, não deixam de chamar a atenção para que, no domínio da estatuição dos critérios de atribuição e de garantias de prestações sociais a cargo do Estado, ao menos quando não estão em causa prestações de carácter «excepcionalíssimo», se deve reclamar a intervenção do legislador (cf. Sérvulo Correia, ob. cit., pp. 291, 292 e 306).
Ora, mesmo que se adoptasse uma perspectiva tal como a defendida pelos aludidos autores, o que é certo é que o apoio social aos idosos carenciados das comunidades portuguesas que veio a ser instituído pelo ASIC-CP não pode ser considerado como a adopção de uma medida de carácter excepcional. Basta, aliás, ponderar nos considerandos que precederam a emissão do despacho conjunto 17/2000 para se concluir que se não visou obstar a uma situação pontual e temporariamente marcada, mas antes se intentou minorar os inconvenientes sociais de uma realidade que perdura no tempo.
Sublinhe-se que tem sido entendimento de parte da doutrina o de que a disciplina primária da matéria das prestações sociais a cargo do Estado está reservada ao poder legislativo, havendo, mesmo, quem defenda que essa matéria se deveria inserir na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, como é o caso de Rogério Soares («Princípio da legalidade e administração constitutiva», em Boletim da Faculdade de Direito, vol. LVII, Universidade de Coimbra, pp. 181-184), dado que a administração de prestações, pela sua relevância nos valores que sensibilizam a comunidade, aconselharia a intervenção do órgão parlamentar na fixação dos «modos por que o administrador há-de vir a tocar os interesses das pessoas e dos grupos em pontos essenciais da conformação da sociedade».
7.1 - Entende o Tribunal que, por via de regra, a disciplina primária da matéria das indicadas prestações sociais (o mesmo é dizer, a regulação dos seus principais aspectos) está reservada ao poder legislativo, a fim de, de um lado, se estabelecerem procedimentos de controlo sólidos que assegurem a não discriminação na sua concessão e, de outro, para que seja devidamente ponderada a gestão do dinheiro público, quer na óptica das vantagens para os beneficiários quer dos concomitantes encargos para os demais cidadãos (já que o financiamento provém do Orçamento do Estado).
Na verdade, a relevância do direito à segurança social, a que, como se viu já, a Constituição atribui específico tratamento, não pode deixar de ser visualizada como tendo uma directa ligação à dignidade da pessoa humana (como, por mais de uma vez, tem sido anotado pela jurisprudência deste Tribunal - cf., por exemplo, o Acórdão 509/92, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 12 de Fevereiro de 2003) -, e, quando ela se traduz na atribuição de prestações sociais a cargo do Estado, a postura deste não pode deixar de ser iluminada pelo princípio da igualdade na escolha dos beneficiários, postura essa que, se traduzida em normação de cariz legislativo, é mais intensamente controlável do ponto de vista político (cf., no sentido da proximidade dos direitos sociais de prestações com o princípio da igualdade e da necessidade de controlo sólido da actuação da Administração para que, na matéria, se não verifiquem discriminações, António da Silva Leal, ob. cit., pp. 40-150, Jorge Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, 2004, p. 303, Freitas do Amaral, «Legalidade (princípio da)», em Polis, vol. 3.º, 1985, p. 991, e Martínez López-Muñiz, «Subvenciones e igualdad», em Civitas - Revista Española de Derecho Administrativo, Janeiro-Março de 1990, pp. 119, 124 e 128).
Aliás, será justamente por isso que se surpreendem disposições tais como as constantes dos artigos 6.º e 83.º da já referida Lei 32/2002.
No que diz respeito à definição do âmbito subjectivo dos instrumentos de acção social, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição ..., cit., p. 340) defendem que isso constitui uma opção política primária, pois que o que está em causa é decidir quem beneficia e quem fica excluído do apoio social do Estado.
Na verdade, dizem aqueles autores na anotação VII ao artigo 63.º da lei fundamental:
«As situações de carência ou de 'insegurança' cobertas pelo sistema público de segurança social não obedecem a um numerus clausus constitucional, pois o n.º 4, depois de enunciar algumas delas - que não podem deixar de ser abrangidas -, acrescenta uma cláusula genérica que admite outras. Trata-se, em geral, de todas as situações de carência dos meios de subsistência ou de perda ou diminuição de capacidade para o trabalho. A ampliação do sistema de segurança social, de modo a cobrir novas categorias, além das explicitamente mencionadas, é matéria de conformação política.» Na mesma senda doutrina Nuno Piçarra em A Reserva de Administração, separata de O Direito, ano 122.º, n.os 2 a 4, 1990, p. 42.
É esta, também, a postura deste Tribunal, que já reconheceu (cf. o Acórdão 184/89) que a definição dos requisitos de acesso e as condições de atribuição de apoios estaduais constitui tarefa que reclama, pela sua importância, a intervenção do legislador.
7.2 - Concluindo-se, assim, que a disciplina primária das prestações sociais do Estado (e nestas incluindo a definição do âmbito subjectivo dos beneficiários) não pode escapar ao poder legislativo, importa saber qual o alcance de uma tal reserva quando nos encontramos especificamente no domínio da administração de prestações.
Aquela disciplina primária abrangerá, seguramente, como decorre do que veio de ser exposto, os aspectos estruturantes do sistema, como sejam o seu regime geral, modalidades de acção social, âmbito pessoal de cada uma delas, eventualidades admitidas, prestações nestas incluídas, condições de atribuição e de duração e forma de determinação do valor dos benefícios, como refere Ilídio das Neves, ob. cit., p. 375 (identicamente, Coutinho de Abreu, ob. cit., pp. 155 e 163, sustenta que é à lei que cabe atribuir poderes à Administração «para que esta possa actuar, bem como definir os critérios a seguir pela Administração na atribuição de prestações - critérios de 'mediabilidade', critérios objectivos quanto aos sectores [ou pessoas] abrangidos, fins, condições, montantes, formas de concessão»).
Daqui resulta que a definição das condições para atribuição de um benefício tal como o consagrado pelo ASIC-CP é algo que tão-só pode ser levado a efeito por intermédio de acto legislativo.
8 - O decreto regulamentar em que se insere a norma questionada diz no respectivo preâmbulo:
«Constitui uma prioridade do Governo a implementação de medidas de apoio social às comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, representando o ASIC-CP (apoio social a idosos carenciados das comunidades portuguesas), em 2000, a primeira das iniciativas com esse propósito, até à data, com resultados de assinalável eficácia na sua aplicação.
Atendendo à necessidade de aprofundar a política de solidariedade com os portugueses emigrantes carenciados, particularmente os que em circunstâncias de necessidade extrema e de manifesta excepcionalidade podem vir a encontrar-se, situações contudo não enquadráveis ao nível da protecção social conferida pelo ASIC-CP, entende o Governo criar uma medida de apoio social de incidência complementar.
A Lei 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que aprova o Orçamento do Estado para 2002, previu no seu artigo 28.º a criação de uma medida desta natureza ao referi-la como um fundo de solidariedade social para as comunidades portuguesas para estes efeitos, que recebe a designação de ASEC-CP (apoio social a emigrantes carenciados das comunidades portuguesas).
Destina-se fundamentalmente o ASEC-CP a prestar um apoio de natureza social aos nossos emigrantes que pelos mecanismos dos países estrangeiros de residência mas também de protecção consular não lhes esteja assegurado, quando aqueles se encontrem em situações imprevistas de evidente fragilidade e carência em virtude de acontecimentos extraordinários, de que catástrofes naturais ou crimes contra a integridade física são apenas exemplos.
Por outro lado, entende igualmente o Governo ser oportuna a revisão do despacho conjunto 17/2000, de 7 de Janeiro, que regulamentou o ASIC-CP em aspectos pontuais, destes relevando principalmente o campo pessoal de aplicação, a actualização do valor de referência e a fixação de um montante mínimo, que passará a ser de (euro) 30.
A necessidade de permitir que, em situações de carência, os destinatários destes apoios sociais deles beneficiem o mais rapidamente possível justifica a aprovação imediata deste normativo.» Por outro lado, é o seguinte o teor global do artigo 28.º da Lei 109-B/2001, citado naquele preâmbulo:
«Artigo 28.º
Fundo de solidariedade com a emigração
1 - É criado o Fundo de Solidariedade para Emigrantes, destinado a suportar financeiramente a prestação de apoio social a cidadãos portugueses residentes no estrangeiro em situação de grave carência, em moldes a regulamentar em diploma próprio, ficando o Governo autorizado a transferir do orçamento da segurança social para o orçamento daquele Fundo, a título de despesa com acção social, um montante máximo de (euro) 498798.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, poderá ainda ser transferida para o Fundo de Solidariedade para Emigrantes uma dotação adicional, correspondente a uma parte dos eventuais saldos gerados no rendimento mínimo garantido, nos termos a definir por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e do Trabalho e da Solidariedade.» Do texto constante do transcrito artigo 28.º ressalta que as determinações nele ínsitas se reportam tão-somente a um programa, a implementar, destinado a suportar financeiramente cidadãos portugueses residentes no estrangeiro em situação de grave carência, não se reportando, assim, especificamente, a qualquer outro que contemplasse o apoio social a idosos carenciados residentes no estrangeiro, designadamente àquele que já tinha existência - o AISC-CP.
Ora, o programa a que imediatamente acima se fez a primeira referência veio a ser implementado pelo Decreto Regulamentar 33/2002, e, como se extrai do seu «relatório preambular», aproveitou o Governo a oportunidade do exercício normativo dele decorrente para introduzir, num outro programa que já se surpreendia no ordenamento, o ASIC-CP - e de que o então implementado constituía uma «incidência complementar» -, alterações em «aspectos pontuais».
Daí que se extraia que, não tendo o ASIC-CP alguma relação com o artigo 28.º da Lei 109-B/2001, a regulação do instrumento de acção social que o mesmo comporta - regulação essa que foi criada por um despacho conjunto da autoria dos Ministros dos Negócios Estrangeiros e do Trabalho e da Solidariedade - carece de qualquer enquadramento legal.
E, por outro lado, sendo, como se viu, silente o indicado artigo 28.º quanto àquele instrumento, extrair-se-á, igualmente, no que ora interessa, que a normação determinante do aditamento de mais uma condição definidora do âmbito subjectivo da medida, aditamento esse levado a efeito pela introdução da alínea e) no n.º 1 do item III do Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Idosos Carenciados das Comunidades Portuguesas aprovado pelo despacho conjunto 17/2000, também foi realizada por via não legislativa ou a coberto de qualquer enquadramento legal.
Isso significa que a instituição do ASIC-CP e, para o que ora importa, a alteração normativa em apreço, porque constitutiva de um critério autónomo de decisão no respeitante à atribuição do benefício, «tocando» directamente na concretização de um específico direito integrado no direito à segurança social em sentido amplo, assume, inquestionavelmente, uma característica de opção política primária na matéria, que não revestiu a forma de acto legislativo e que não teve, a precedê-la, qualquer comando de lei material.
Na realidade, independentemente da caracterização do artigo 28.º da Lei 109-B/2001, quer tão-só como representando uma mera norma de consignação financeira quer representando ainda norma habilitante de produção regulamentar de desenvolvimento de uma medida concreta de acção social que gizou, o que é certo é que, mesmo nesta última perspectiva, tal preceito não se reporta, de todo, a um programa de apoio social a idosos carenciados das comunidades portuguesas, sendo certo, além disso, que o Governo, ao editar o Decreto Regulamentar 33/2002 - e, por isso, actuando no exercício do seu poder regulamentar -, no particular das alterações que veio a introduzir no Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Idosos Carenciados das Comunidades Portuguesas, aprovado pelo despacho conjunto 17/2000, não invocou aquela disposição legal como o normativo permissor dessas alterações.
9 - Tem este Tribunal considerado (cf., v. g., o já citado Acórdão 61/91), no que é acompanhado, ao menos, por certa parte da doutrina, que o princípio da primariedade ou precedência de lei resulta do n.º 7 do artigo 112.º (anterior n.º 7 do artigo 115.º) da Constituição.
Dizem, a este respeito, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição..., cit., pp. 514 e 515), na anotação XXV ao artigo 115.º:
«O princípio da primariedade ou precedência da lei é claramente afirmado no n.º 7, onde se estabelece: a) a precedência da lei relativamente a toda a actividade regulamentar; b) o dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos. Esta dupla exigência torna ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal mas também os regulamentos que, embora com provável fundamento legal, não individualizam expressamente este fundamento.
A vinculação positiva do regulamento à lei não significa que, nos termos constitucionais, a lei que serve de base legal prévia ao exercício do poder regulamentar tenha sempre a mesma função relativamente aos regulamentos.
A rigorosa compreensão constitucional das relações entre lei e regulamento pressupõe, desde logo, a delimitação entre reserva de lei horizontal (ou material) e reserva de lei vertical. Através da primeira pretende-se definir as matérias que, de acordo com as normas constitucionais, devem ser objecto de regulamentação material através de um acto com força de lei.
[...] Da conjugação das duas dimensões da reserva de lei (horizontal e vertical) resulta a seguinte escala de vinculação da actividade regulamentar, definindo ao mesmo tempo três tipos de regulamentos: a) reserva legal material, com admissibilidade apenas de regulamentos estritamente executivos e instrumentais, nos casos em que a Constituição prevê que só através da lei possa regular-se determinada matéria [...]» Ora, como foi já concluído acima que a matéria atinente à segurança social, e em particular no domínio da administração de prestações e fixação das condições da respectiva atribuição, mormente quando estas representam uma opção política primária, deve ser regulada por lei material, torna-se claro que a normação traduzida no aditamento da alínea e) ao n.º 1 do item III do ASIC-CP efectuado pelo Decreto Regulamentar 33/2002 violou o princípio da primariedade de lei.
Alcançada esta última conclusão, não entrará o Tribunal no equacionamento da questão invocada pelo requerente como fundamento do vício de inconstitucionalidade que presidiu à sua pretensão. E, por outro lado, tal como já se disse, porque este Tribunal está limitado pelo princípio do pedido, não poderá ele apreciar neste processo eventuais vícios de que enfermaria o Regulamento aprovado pelo despacho conjunto 17/2000.
10 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do n.º 7 do artigo 112.º da Constituição - correspondente ao n.º 8 do artigo 112.º da versão da Constituição decorrente da revisão constitucional operada pela Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro -, da norma contida na alínea e) do n.º 1 do item III do Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Idosos Carenciados das Comunidades Portuguesas, aprovado pelo despacho conjunto 17/2000, proferido em 7 de Dezembro de 1999 pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros e do Trabalho e da Solidariedade, publicado na 2.ª série do Diário da República de 7 de Janeiro de 2000, norma essa introduzida pelo Decreto Regulamentar 33/2002, de 23 de Abril.
Lisboa, 1 de Junho de 2005. - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com a declaração junta) Maria Helena Brito - Paulo Mota Pinto (nos termos da declaração de voto junta) - Maria João Antunes - Maria Fernanda Palma (também votaria a inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade) - Vítor Gomes (com a declaração anexa) - Benjamim Rodrigues (com a declaração anexa) - Rui Manuel Moura Ramos (nos termos da declaração junta) - Gil Galvão - Mário José de Araújo Torres (com a declaração de voto junta) - Carlos Pamplona de Oliveira (vencido conforme a declaração que junta) - Artur Maurício.
Declaração de voto
1 - Voto a decisão - a inconstitucionalidade por violação do n.º 8 do artigo 112.º da Constituição, na redacção vigente à data da aprovação do Decreto Regulamentar 33/2002, correspondente ao actual n.º 7 do mesmo preceito - mas não acompanho parte da fundamentação do acórdão.Em síntese, porque, desde logo, discordo da afirmação de que a norma em apreciação neste processo versa sobre matéria que, por imposição constitucional, tem de ser tratada por acto legislativo. Nem creio, mesmo, que tal afirmação seja compatível com a conclusão de que foi infringido o referido n.º 8 do artigo 112.º, já que tal conclusão exigiria, a meu ver, que se aceitasse ser constitucionalmente admissível para o efeito a forma de regulamento.
Como escrevi na declaração de voto que juntei ao Acórdão 161/99 (Diário da República, 2.ª série, de 16 de Fevereiro de 1999), penso que «fora do âmbito da competência exclusiva da Assembleia da República a edição de regulamentos independentes só deve considerar-se vedada, entre nós, nas matérias que a Constituição coloca expressamente sob reserva de lei (reserva de lei em sentido material, segundo a expressão mais corrente, embora não desprovida de ambiguidade)».
Não tem assim «fundamento constitucional», também aqui, «uma reserva de lei filiada na 'importância' dos assuntos, da qual se pudesse deduzir 'naturalmente' a necessidade de disciplina legislativa directa, com a consequente proibição de reenvio para normas de segundo grau. Na falta de reserva constitucional expressa, este reenvio normativo é sempre possível, desde que respeitadas as regras de competência e de forma estabelecidas nos n.os 7 e 8 [6 e 7, na redacção actual] do artigo 112.º da Constituição».
Note-se, aliás, que, ao exigir a forma de decreto regulamentar para os regulamentos independentes, a Constituição está também a submetê-los ao crivo do Presidente da República (através da exigência de promulgação), assim se possibilitando a necessidade de controlo apontada pelo acórdão para a disciplina, no caso, das prestações sociais.
2 - Em meu entender, a inconstitucionalidade decorre de faltar à norma em apreciação a habilitação legal específica que a Constituição exige para os regulamentos independentes, que não podem ser elaborados sem que um acto legislativo anterior remeta certa matéria, concreta e especificamente, para o poder regulamentar do Governo. Como já escrevi anteriormente, «[a]o contrário dos regulamentos de execução, o Governo não exerce aqui uma competência genérica, conferida indeterminadamente pela Constituição para todas as matérias. O poder regulamentar autónomo pressupõe sempre uma norma legal de competência» (Forma Externa dos Actos Normativos do Governo, Lisboa, 1989, p. 25).
Note-se que, para mim, a verificação da falta de cumprimento do n.º 8 do artigo 112.º da Constituição assenta na circunstância de resultar expressamente da interpretação do preâmbulo do Decreto Regulamentar 33/2002 que o mesmo não assume como norma habilitante para a alteração que introduz no Regulamento do ASIC-CP o artigo 28.º da Lei 109-B/2001, de 27 de Dezembro, e não de uma suposta inadequação da mesma; tenho, aliás, as maiores dúvidas de que a verificação de tal adequação possa ser feita no âmbito de um processo de fiscalização da constitucionalidade. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
Declaração de voto
Pronunciei-me no sentido da inconstitucionalidade da norma em questão apenas com fundamento na violação do artigo 112.º, n.º 8, da Constituição da República (versão vigente em 2002), a que se alude na parte final do último parágrafo do n.º 8 do presente aresto.Por outro lado, entendo que o Tribunal não deveria ter deixado de apreciar a inconstitucionalidade invocada pelo requerente como fundamento do pedido - inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 13.º e 14.º da Constituição -, além do mais porque o alcance de tal fundamentação seria bem diverso (ou mesmo inverso) do da inconstitucionalidade orgânica que constituiu ratio decidendi (a qual, se consequentemente prosseguida, poderia mesmo levar, não à extensão da prestação social à categoria excluída pela norma em apreço, mas antes a considerá-la, toda ela, inconstitucional, contrariando manifestamente a intenção subjacente ao pedido). - Paulo Mota Pinto.
Declaração de voto
Não acompanho o acórdão na parte em que parece negar ao artigo 28.º da Lei 109-B/2001 potencialidade para servir de lei habilitante da medida de acção social em causa. Se o Decreto Regulamentar 32/2002, que editou a norma questionada e republicou o ASIC-CP, o assumisse como habilitação legal, também nesta parte, o referido preceito asseguraria a exigência constitucional de primariedade de lei, uma vez que contém a previsão dos meios prestacionais, a indicação da finalidade e do universo dos destinatários [ i) cidadãos portugueses; ii) residentes no estrangeiro; iii) em situação de grave carência] e a devolução da regulamentação ao Governo. Atendendo à sua natureza, ao universo de destinatários e à diminuta expressão quantitativa global e individual da medida de acção social em causa, esta densidade regulativa seria suficiente para cumprir a exigência constitucional de precedência de lei relativamente a um regulamento independente do Governo.É conteúdo suficiente para que o procedimento legislativo assegure o controlo político e democrático na matéria (aliás, o decreto regulamentar está também sujeito a controlo deste tipo pela via da promulgação).
Por outro lado, os idosos contemplados no ASIC-CP são também «cidadãos portugueses residentes no estrangeiro», que é a categoria prevista no artigo 28.º A circunstância de o ASIC-CP já existir, por ter sido criado pelo despacho conjunto 17/2000, não seria obstáculo, porque nada encontro no texto do artigo 28.º da Lei 109-B/2001 que permita afirmar ter sido intenção do legislador excluir essa medida de acção social do âmbito do Fundo de Solidariedade para Emigrantes, bem podendo o legislador assumir, pelo menos para o futuro, o que fora criado por iniciativa da Administração, assim providenciando a necessária cobertura legislativa, para que esta reeditasse a regulamentação, agora com invocação da previsão legal habilitante.
Sucede, porém, que o preâmbulo do Decreto Regulamentar 32/2002 restringe expressamente a invocação do artigo 28.º da Lei 109-B/2001 ao ASEC-CP, ou seja, ao Regulamento contido no anexo I, assim deixando sem invocação de norma habilitante tudo o que no diploma se refere ao Regulamento do ASIC-CP. Atendendo à necessidade de certeza e facilitação do controlo de legalidade da actividade normativa da Administração, que dita a imposição constitucional do requisito formal de citação da lei habilitante, não pode atribuir-se ao Regulamento uma cobertura que ele mesmo rejeita. Em resumo, não está cumprido o dever de citação da lei habilitante quanto à edição da norma agora em apreciação. Só nesta medida considero violado o n.º 8 do artigo 112.º da Constituição (na redacção anterior à Lei Constitucional 1/2004, de 24 de Julho, actual n.º 7 do artigo 112.º). - Vítor Gomes.
Declaração de voto
Teria julgado inconstitucional a norma em causa, desde logo e em primeiro lugar, por violação directa do disposto no n.º 8 (ao tempo de edição da norma) do artigo 112.º da Constituição, de pura falta de norma habilitante.Na verdade, na minha opinião, o artigo 28.º da Lei 109-B/2001, de 27 de Dezembro (lei de aprovação do Orçamento do Estado para 2002), não pode ser tido como norma habilitante da instituição de qualquer regime de prestações sociais, qualquer que seja a natureza das concretamente previstas no ASIC-CP.
A norma em causa tem natureza e função estritamente financeiras, cumprindo o escopo constitucional das leis de orçamento, de previsão e de discriminação das despesas do Estado [cf. o artigo 115.º, n.º 1, alínea a), da CRP].
A referência do fim a que se destina a verba, aí, prevista surge como elemento de identificação da despesa cuja realização foi autorizada, elemento este cuja conformação é, no caso, estritamente necessário, dada a falta de norma anterior que permitisse o enquadramento de previsão orçamental nela efectuado. Ou seja, a norma em crise cumpre a dupla função de norma de enquadramento orçamental e de norma de previsão orçamental de despesa.
Como quer que seja, a não valerem estas razões, não pode deixar de aceitar-se não cumprir essa norma as exigências constitucionais referidas na posição que fez vencimento e à qual por isso aderi. - Benjamim Rodrigues.
Não acompanhei a fundamentação do presente acórdão quando entende (n.º 8) que o artigo 28.º da Lei 109-B/2001, de 27 de Abril, apenas se pode reportar a uma das medidas criadas pelo Decreto Regulamentar 33/2002, de 22 de Abril (a instituição de um instrumento destinado à prestação de apoio social a cidadãos portugueses residentes no estrangeiro em situação de grave carência), e não já à outra, consistente esta em restringir o âmbito de aplicação pessoal de um instrumento preexistente, que contemplava o apoio social a idosos carenciados residentes no estrangeiro. Na verdade, não vejo fundamento para a recusa de reconduzir ao Fundo criado por aquela lei a regulamentação restritiva sindicada pelo requerente e introduzida pelo mesmo Decreto Regulamentar 33/2002, pelo simples facto de esta se referir exclusivamente a idosos carenciados residentes no estrangeiro, e não em geral a cidadãos portugueses residentes no estrangeiro em situação de grave carência. Não posso pois subscrever a conclusão de que a normação em apreço - o aditamento da alínea e) no n.º 1 do item III do Regulamento de Apoio Social a Idosos Carenciados das Comunidades Portuguesas, aprovado pelo despacho conjunto 17/2000 (de ora em diante referido como Regulamento) - foi realizada por «via não [...] a coberto de qualquer enquadramento legal».
Que tal valha para a instituição deste instrumento é uma coisa, mas algo diferente deve entender-se em meu juízo no que toca à alteração normativa sob apreciação, que sendo «constitutiva de um critério autónomo de decisão no respeitante à natureza do benefício» e assumindo «inquestionavelmente uma característica de opção política primária na matéria» não pode negar-se ter sido precedida de um comando de lei material (o acima referido artigo 28.º da Lei 109-B/2001).
Sucede, contudo, que também não entendo que esta última disposição, que, para além de criar um fundo destinado «a suportar a prestação de apoio social a cidadãos portugueses residentes no estrangeiro em situação de grave carência, em moldes a regulamentar em diploma próprio», se limita a autorizar determinadas transferências de verbas, satisfaça o princípio da primariedade ou precedência da lei que igualmente creio resultar do n.º 7 do artigo 112.º da Constituição. Na verdade, o mero anúncio, feito no referido artigo 28.º, de que o apoio social em causa será regulamentado em diploma próprio não é a meu ver bastante para legitimar, sem mais, a abertura da via regulamentar - razão por que subscrevo a conclusão do presente acórdão.
Finalmente, não ignoro que, muito embora o acórdão se limite, por obediência à vinculação ao pedido, a considerar a referida alínea e) do n.º 1 do item III do Regulamento, introduzida pelo Decreto Regulamentar 33/2002, a sua motivação alcança a globalidade do texto daquele instrumento normativo, tal como aprovado pelo despacho conjunto 17/2000, pondo-o radicalmente em causa. Razão por que teria preferido que o Tribunal se tivesse concentrado na análise da concreta questão de constitucionalidade suscitada pelo requerente:
a desconformidade constitucional daquela disposição por violação do preceituado nos artigos 13.º e 14.º da lei fundamental. - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto
1 - Discordei, desde logo, da orientação, traçada pelo memorando e com a qual a maioria dos juízes do Tribunal se conformou, de atribuir prioridade (e até exclusividade) ao conhecimento oficioso da questão de «inconstitucionalidade formal», por violação do actual n.º 8 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), em detrimento da «inconstitucionalidade material», por violação dos artigos 13.º e 14.º da CRP, único fundamento do pedido.Não se ignora que, nos termos do artigo 51.º, n.º 5, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro - LTC), o Tribunal Constitucional pode declarar a inconstitucionalidade de normas, cuja apreciação lhe tenha sido requerida, com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada. Mas se o pode fazer, entendi que no presente caso o não devia fazer, justificando-se que começasse o conhecimento do pedido pela apreciação da procedência do fundamento invocado pelo requerente, não só pela maior relevância e consistência deste fundamento como também por ser a maneira de evitar o «efeito perverso» ínsito na declaração de inconstitucionalidade formulada.
Uma das implicações do princípio da tutela jurisdicional efectiva - a que o Tribunal Constitucional também está sujeito, quer em sede de fiscalização concreta quer em sede de fiscalização abstracta - é a de que os tribunais devem procurar proferir decisões que, sendo admissíveis no quadro do processo a que respeitem e no âmbito dos respectivos poderes de cognição, assegurem uma mais eficaz e estável protecção dos direitos e interesses em causa. À semelhança do que, no âmbito do contencioso administrativo, se previa no artigo 57.º, n.º 2, alínea a), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, entendo que o Tribunal Constitucional deveria ter dado prioridade (ou mesmo exclusividade) ao conhecimento do vício (o da violação do princípio da igualdade, determinante de inconstitucionalidade material) cuja procedência determinava mais estável ou eficaz tutela dos interesses prosseguidos pelos requerentes. Na verdade, se o Tribunal Constitucional declarasse que a norma impugnada, ao excluir da prestação em causa os portugueses que também fossem nacionais do país de residência, era materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade, qualquer futura intervenção legislativa nesta matéria não deixaria de respeitar esse juízo de inadmissibilidade constitucional dessa discriminação. Diversamente, tendo o Tribunal Constitucional optado não apenas por tratar em primeiro lugar mas (o que é mais grave) só tratar da questão de inconstitucionalidade formal, nada impede que futura intervenção «legislativa», desde que dessa feita respeite os requisitos do artigo 112.º, n.º 8, da CRP, reproduza o conteúdo da solução discriminatória impugnada.
O «efeito perverso» gerado por essa metodologia radica em que, sob a aparência da procedência do pedido, o Tribunal Constitucional aponta para uma solução diametralmente oposta à pretendida pelo requerente. Este pretendia abolir a exclusão da concessão do apoio aos portugueses que fossem também nacionais do país de residência. Ao invés, a lógica da argumentação desenvolvida pelo Tribunal Constitucional aponta para a inconstitucionalidade de todo o sistema de apoio social em causa, que só não é formalmente declarada por a tal obstar o princípio do pedido, uma vez que neste não foi englobado o despacho conjunto 17/2000.
2 - Conhecendo do fundamento invocado pelo requerente, entendo que o mesmo procede.
Como noutro local referi [Mário Torres, «O estatuto constitucional dos estrangeiros», em Scientia Ivridica, t. L, n.º 290 (Maio-Agosto 2001), pp. 7-27, em especial pp. 9 e 10]:
«[...] não é uniforme o estatuto dos cidadãos portugueses. Para além do estatuto padrão, correspondente aos portugueses (originários ou não originários) residentes em Portugal, existem três estatutos diferenciados: um privilegiado e dois agravados. O estatuto privilegiado respeita aos portugueses de origem, aos quais está reservada em exclusivo a elegibilidade para Presidente da República (artigo 122.º). Os estatutos agravados respeitam aos portugueses detentores de dupla nacionalidade e aos portugueses residentes no estrangeiro. Na verdade, deve entender-se que os portugueses detentores de dupla nacionalidade também não são elegíveis para Presidente da República (ver nota 16) e o artigo 6.º, n.º 2, da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (Lei 14/79, de 16 de Maio, alterada pela Lei Orgânica 1/99, de 22 de Junho) dispõe que os cidadãos portugueses que tenham outra nacionalidade não podem ser candidatos a Deputados à Assembleia da República pelo círculo eleitoral que abranger o território do país dessa nacionalidade (ver nota 17). Por seu turno, aos portugueses residentes no estrangeiro não assistem (ver nota 18), em geral, os direitos que sejam incompatíveis com a ausência do país (artigo 14.º) e especialmente o direito de participarem nos referendos (artigo 115.º, n.º 1) - excepto se o referendo recair sobre matéria que lhes disser também especificamente respeito (artigo 115.º, n.º 12) e se se encontrarem recenseados ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 121.º (que veio permitir a participação na eleição para Presidente da República de portugueses residentes no estrangeiro quando existam 'laços de efectiva ligação à comunidade nacional') -, nas eleições dos órgãos das autarquias locais (artigo 239.º, n.º 2), nos referendos locais (artigo 240.º, n.º 1), nas eleições para os órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas (artigos 14.º, n.º 1, e 15.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores - Lei 39/80, de 5 de Agosto, alterada pelas Leis n.os 9/87, de 26 de Março, e 61/98, de 27 de Agosto - e artigos 16.º e 17.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira - Lei 13/91, de 5 de Junho, alterada pela Lei 130/99, de 21 de Agosto) (ver nota 19).
(nota 16) Neste sentido, Jorge Miranda, ob. cit., nota 1 [Manual de Direito Constitucional, t. III, Estrutura Constitucional do Estado, 3.ª ed., revista e actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1994], p. 132, e Estudos de Direito Eleitoral, Lisboa, Lex - Edições Jurídicas, 1995, p. 172; com dúvidas, J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada na nota 6 [Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., revista, Coimbra, Coimbra Editora, 1993], p. 560.
(nota 17) Já não parece, face ao n.º 2 do artigo 1.º da mesma lei (que dispõe que os portugueses havidos também como cidadãos de outro Estado não perdem por esse facto a capacidade eleitoral activa, constando preceito similar do artigo 2.º, n.º 1, da Lei Eleitoral para Presidente da República - Decreto-Lei 319-A/76, de 3 de Maio, alterado por último pela Lei Orgânica 3/2000, de 24 de Agosto), que se possa sustentar, como o faz Jorge Miranda, nos locais atrás citados, que esses plurinacionais tão-pouco possuem capacidade eleitoral activa quando se encontrem no território do Estado de que são também cidadãos.
No entanto, o artigo 2.º do projecto de código eleitoral de 1987 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 364, pp. 45-275) reconhecia capacidade eleitoral activa aos cidadãos portugueses havidos também como cidadãos de outros Estados, 'desde que não tenham a sua residência habitual no território desse Estado'.
Sobre a justificação do regime do artigo 6.º, n.º 2, da Lei 14/79 e sobre a não inconstitucionalidade da inexistência de norma similar na lei eleitoral para as autarquias locais, cf. o parecer 34/79 da Comissão Constitucional (Pareceres da Comissão Constitucional, 10.º vol., pp. 121-128, em especial pp. 122 e 123.
(nota 18) Assistem-lhes, porém, 'discriminações positivas', como a incumbência especial do Estado Português de assegurar 'a protecção das condições de trabalho e a garantia dos benefícios sociais dos trabalhadores emigrantes' [artigo 59.º, n.º 2, alínea e)], de 'assegurar aos filhos dos emigrantes o ensino da língua portuguesa e o acesso à língua portuguesa' [artigo 74.º, n.º 2, alínea i)] e de estabelecer condições especiais na expropriação de meios de produção em abandono propriedade de trabalhadores emigrantes (artigo 88.º, n.º 1). Até à segunda revisão constitucional (1989), o artigo 99.º mandava, na efectivação da reforma agrária, salvaguardar os interesses dos emigrantes.
(nota 19) Cf. Jorge Miranda, obra citada na nota 1, a pp. 125-131, e João Caupers, Breves Reflexões sobre o Estatuto Eleitoral dos Emigrantes, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1988.» No presente caso, o Estado Português, considerando «a existência de portugueses idosos que, nas diversas comunidades, vivem em situação de carência económica e social, não se encontrando abrangidos por sistemas de segurança social», que «por diversos motivos, especialmente por terem já criado raízes no país de acolhimento e na comunidade onde vivem, alguns emigrantes portugueses não desejam ser repatriados» e ainda «a necessidade de Portugal proporcionar a estes idosos condições dignas de subsistência» (do preâmbulo), assumiu, com a publicação do despacho conjunto 17/2000, a obrigação de atribuir apoio social «destinado a portugueses idosos residentes no estrangeiro que se encontrem em situação de absoluta carência de meios de subsistência, não superável pelos mecanismos existentes nos países de residência» (item I), através da concessão de um «subsídio de apoio social, personalizado, intransmissível, periódico e insusceptível de conferir um direito subjectivo» (item II, n.º 1), com periodicidade mensal e destinado a «fazer face a necessidades essenciais de subsistência, designadamente alojamento, alimentação e cuidados de saúde e higiene» (item II, n.º 2). A concessão do subsídio dependia da verificação cumulativa dos seguintes requisitos dos nacionais portugueses: i) terem idade igual ou superior a 65 anos; ii) encontrarem-se no país de acolhimento em situação de residência legal e efectiva; iii) encontrarem-se em situação de carência, e iv) não terem familiares obrigados à prestações de alimentos ou, tendo-os, estes não se encontrarem em condições de lha prestarem (item III, n.º 1). Considerava-se situação de carência a inexistência de recursos de qualquer natureza ou a existência de recursos inferiores ao valor do montante do subsídio a atribuir, que era o resultado da média aritmética entre os valores da pensão social portuguesa e a pensão social, ou equivalente, do país de residência, à data da entrada em vigor do Regulamento, ou, nos casos em que não for possível determinar este último valor, o valor equivalente à mais baixa pensão social, ou equiparada, dos países desse mesmo continente onde existisse uma comunidade portuguesa relevante (itens III, n.º 2, e VI, n.os 1 e 2).
Aos apontados quatro requisitos cumulativos de concessão do apoio o Decreto Regulamentar 33/2002 veio acrescentar um quinto: não ser o candidato nacional do país de residência.
É este requisito adicional [aliás não exigido no Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Emigrantes Carenciados das Comunidades Portuguesas (ASEC-CP)] que se reputa materialmente inconstitucional, por violador do princípio da igualdade, designadamente no âmbito do dever de protecção dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, consagrados nos artigos 13.º e 14.º da CRP.
O dever de o Estado proteger os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro abrange igualmente os portugueses que sejam detentores de outra nacionalidade. No presente caso, trata-se de assegurar o mínimo de subsistência, exigido pela dignidade da pessoa humana, a portugueses idosos (com idade igual ou superior a 65 anos), que se encontram «em situação de absoluta carência de meios de subsistência», e traduz-se na atribuição de um subsídio destinado «a fazer face a necessidades essenciais de subsistência, designadamente alojamento, alimentação e cuidados de saúde e higiene».
Tratam-se de portugueses que não têm familiares em condições de lhes prestarem alimentos.
Não se vislumbra fundamento constitucionalmente válido para negar a concessão desse apoio pela circunstância de o português carenciado ser também nacional do país da sua residência. Por um lado, esta segunda nacionalidade em nada releva para afastar a situação de carência, pois, apesar de ser também nacional do país de residência, essa qualidade não assegura protecção ao idoso em causa: relembre-se que é condição de concessão do apoio que a carência não seja «superável pelos mecanismos existentes nos países de residência». Por outro lado, a posse ou aquisição da nacionalidade do país de residência não foi impeditiva da manutenção da nacionalidade portuguesa; isto é, não estamos perante os casos em que a aquisição de outra nacionalidade representa um corte com a ordem jurídica portuguesa que é considerado incompatível com a manutenção da nacionalidade portuguesa.
Reconhecendo o ordenamento jurídico português que a binacionalidade do candidato a apoio não afecta a sua ligação à comunidade portuguesa e sendo certo que a circunstância de ser natural do país de residência é insuficiente para lhe assegurar, pelos mecanismos de apoio social existentes nesse país, as mínimas condições de subsistência exigidas pela dignidade da pessoa humana, surge como manifestamente destituída de fundamento razoável, constitucionalmente atendível, a edição da norma impugnada, votando à completa desprotecção cidadãos portugueses idosos e carenciados pela mera circunstância de serem também nacionais do país de residência.
Votei, por isso, no sentido de o Tribunal Constitucional declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma impugnada, por violação dos artigos 13.º e 14.º da CRP, não fazendo sentido, neste contexto, indagar da eventual violação do artigo 112.º, n.º 8, da CRP. - Mário José de Araújo Torres.
Declaração de voto
Vencido. O Regulamento de Atribuição do Apoio Social a Idosos Carenciados das Comunidades Portuguesas, aprovado pelo despacho conjunto 17/2000, não pretende inscrever-se no sistema de segurança social adoptado pelo Estado. Representa, bem pelo contrário, um modo expedito e desburocratizado de conferir ajuda, ou apoio social, de carácter excepcional a cidadãos portugueses idosos que vivam fora do território nacional em situação de carência económica e que não se encontrem abrangidos pelo sistema de segurança social vigente no país de acolhimento. Como, a meu ver, se torna evidente, o Estado não pode garantir, de forma global e universal, as condições mínimas de vida a todos os portugueses que vivam em países estrangeiros;por essa razão, as medidas de carácter excepcional com que se pretenda dotar para fazer face a casos particulares nunca poderão pautar-se pelas regras e princípios do sistema de segurança social, que, pelo contrário, conferem de forma universal verdadeiros direitos subjectivos.
Deste modo, a declaração de inconstitucionalidade agora decretada tem como única consequência acabar com o sistema excepcional de apoio social a idosos carenciados, pois não será evidentemente possível introduzir-lhe as regras próprias da segurança social. - Pamplona de Oliveira.