Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Relatório:
1.1 - O representante do Ministério Público no Tribunal Judicial de Gondomar deduziu acusação contra, entre outros, José Luís da Silva Oliveira, a quem imputou a autoria de vinte e seis (26) crimes dolosos de corrupção activa, sob a forma de autoria, previstos e punidos pelo artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal, por referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal, aos artigos 21.º, 22.º e 24.º da Lei 1/90, de 13 de Janeiro (agora artigos 20.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º da Lei 30/2004, de 21 de Julho), aos artigos 7.º, 8.º e 11.º do Decreto-Lei 144/93, de 26 de Abril, e Despacho 56/95 da Presidência do Conselho de Ministros, de 1 de Setembro de 1995, in Diário da República, 2.ª série, de 14 de Setembro de 1995 (factos descritos nos pontos 1.1, 1.3, 1.2, 1.3.1, 1.3.3, 1.3.4, 1.3.5, 1.3.6, 1.3.7, 1.3.8, 1.3.9, 1.3.10, 1.3.11, 1.3.12, 1.3.13, 1.3.15, 1.3.16, 1.3.17, 1.3.19, 1.3.21, 1.3.22, 1.3.23, 1.3.24, 1.3.25, 1.3.26, 1.3.27, 1.3.28 e 1.3.29); e de vinte e um (21) crimes dolosos de corrupção desportiva activa, sob a forma de autoria, previstos e punidos pelo artigo 4.º, n.º s 1 e 2, por referência aos artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, todos do Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro (factos descritos nos pontos 1.1, 1.3, 1.2, 1.3.2, 1.3.3, 1.3.4, 1.3.5, 1.3.6, 1.3.8, 1.3.9, 1.3.10, 1.3.14, 1.3.15, 1.3.16, 1.3.17, 1.3.18, 1.3.20, 1.3.21, 1.3.22, 1.3.25, 1.3.26, 1.3.27 e 1.3.29).
1.2. Notificado da acusação, o arguido apresentou requerimento de abertura de instrução, cujo teor sintetizou no seguinte resumo:
«1. Ainda que fosse verdadeira - o que não se concede - , a matéria de facto descrita na acusação não é passível de censura penal mediante recurso aos artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1, 4.º, n.º s 1 e 2, do Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro, nem se enquadra na previsão normativa do artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal.
2. A Lei 49/91, de 3 de Agosto, e o Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro, são inconstitucionais por violação dos n.º 1, alínea c), e 2 do artigo 165.º do CRP, como tal devendo ser declarados.
3. Assim sendo, como se tem por certo, ainda que fossem verdadeiros - mas não são - os factos descritos nos pontos. 1.1, 1.3, 1.2, 1.3.2, 1.3.3, 1.3.4, 1.3.5, 1.3.6, 1.3.8, 1.3.9, 1.3.10, 1.3.14, 1.3.15, 1.3.16, 1.3.17, 1.3.18, 1.3.20, 1.3.21, 1.3.22, 1.3.25, 1.3.26, 1.3.27 e 1.3.29 da acusação, não poderiam os mesmos ser sancionados mediante recurso aos artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1, e 4.º, n.º s 1 e 2, do Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro, pelo que, nessa parte, se impõe a não pronúncia do arguido.
4. Tais factos, declarada a inconstitucionalidade daqueles diplomas legais, jamais poderão ser sancionados mediante o recurso aos preceitos do Código Penal que prevêem e punem a corrupção, em especial o artigo 374.º, n.º 1, por referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea c), além do mais porque nenhuma das entidades referenciadas naqueles pontos da matéria de facto poderá ser considerada funcionário público.
5. Os tipos criminais descritos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do Código Penal não abrangem os actos praticados no domínio do futebol profissional, não profissional e amador.
6. O bem jurídico corporizado na verdade, lealdade e correcção da competição e do seu resultado e no respeito pela ética das competições desportivas apenas recebeu protecção criminal com a publicação do Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro, embora de modo juridicamente inoperante, tendo em consideração a inconstitucionalidade deste diploma.
7. É insustentável a incriminação do arguido pela suposta prática de 26 crimes dolosos de corrupção activa, previstos e punidos pelo artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal.
8. A interpretação do artigo 374.º, e, bem assim, dos artigos 372.º e 373.º do Código Penal que considera estes preceitos aplicáveis aos actos praticados no âmbito do desporto em geral e do futebol em particular que ofendam a verdade, lealdade e correcção da competição e do seu resultado e o respeito pela ética das competições desportivas é inconstitucional, por violação do princípio da subsidiariedade e intervenção mínima do direito penal consagrados no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
9. A incriminação do arguido por 26 crimes dolosos de corrupção reporta-se à suposta solicitação feita por si ao Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol José António Gonçalves Pinto de Sousa (também arguido no processo) para que, de entre os que reuniam condições para serem por ele nomeados, apenas escolhesse para dirigir jogos do Gondomar Sport Clube árbitros constantes de uma lista que lhe era apresentada para o efeito.
10. A acusação não descreve nenhuma irregularidade ou ilegalidade que afectem o conteúdo, a substância ou o fundo do acto de nomeação dos árbitros efectuada pelo co-arguido Pinto de Sousa nessas circunstâncias nem enuncia sequer as regras das nomeações que pudessem ter sido violadas.
11. A ser punido pelo Código Penal - o que se repudia - , aquele comportamento só poderia enquadrar-se no n.º 2 do artigo 374.º, por referência ao artigo 373.º, e nunca no seu n.º 1.
12. A incriminação da corrupção activa para acto lícito no domínio do fenómeno desportivo ofenderia em medida de todo incomportável o citado princípio da intervenção mínima e da subsidiariedade do direito penal.
13. A interpretação do artigo 374.º, n.º 2, do Código Penal que estendesse o respectivo âmbito de aplicação aos actos praticados no âmbito do desporto em geral e do futebol em particular sempre seria, por conseguinte, inconstitucional, por violação do princípio da subsidiariedade e intervenção mínima do direito penal consagrados no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
14. O conceito de funcionário previsto para efeitos da lei penal é integrável apenas nos casos em que o agente activo do crime seja funcionário.
15. É manifesto que o Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol não é reconhecido pelo cidadão comum como funcionário público, mesmo admitindo que o seja por ele próprio, do que se duvida.
16. Assim sendo, como é, não existe a indispensável avaliação paralela na esfera do leigo quanto a essa qualidade de funcionário para que possa estender-se a previsão do artigo 374.º do Código Penal à hipótese vertente.
17. Também por isso, os factos descritos na acusação não poderiam jamais ser enquadrados na previsão do artigo 374.º, n.º 1, por referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea c), parte final, do Código Penal.
18. Estender o campo de aplicação deste último preceito ao Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol para efeitos de incriminação da corrupção activa prevista e punida pelo n.º 1 do artigo 374.º do Código Penal, implicaria uma interpretação inadmissível dessas normas, por ofensivo da tipicidade e subsidiariedade do direito penal decorrentes dos artigos 18.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, da CRP.
19. Os actos e omissões praticados por dirigentes desportivos com violação da verdade, lealdade, correcção e ética ou a solicitação por outrem para a prática desse tipo de actos seriam puníveis apenas pelo Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro, e nunca pelo Código Penal.
20. O Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol não pode senão considerar-se dirigente desportivo, maxime para todos os efeitos previstos no citado Decreto-Lei.
21. Ainda que este diploma não estivesse enfermo de inconstitucionalidade, a conduta do requerente visando a prática de actos lícitos pelo Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol jamais poderia implicar responsabilidade criminal, atenta a sua qualidade de dirigente desportivo.
22. Por último, a entender-se que a conduta que a acusação imputa ao requerente tinha por escopo a prática de actos ilícitos pelo Presidente do Conselho de Arbitragem, sempre seria indiscutível, pelas invocadas razões, que a mesma seria punível, quando muito, pelo n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei 390/91, e não pelo n.º 1 do artigo 374.º do Código Penal.
23. No sentido da insuperável improcedência da acusação converge ainda a circunstância de nela se não descreverem factos indispensáveis para consubstanciar qualquer tipo de corrupção activa.
24. Desde logo porque, quanto aos actos relacionados com o Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, a acusação não descreve nenhum facto susceptível de ser considerado ofensivo da verdade, correcção, lealdade e ética desportivas.
25. Bem pelo contrário, o que ressalta do próprio libelo é que a intervenção do requerente tinha como único escopo prevenir e impedir a viciação dos resultados desportivos, evitando que fossem nomeados árbitros que pudessem prejudicar o Gondomar Sport Clube.
26. Depois, porque não estão descritos na acusação actos susceptíveis de consubstanciar qualquer vantagem patrimonial ou não patrimonial que o requerente tenha dado ou prometido, ainda que por interposta pessoa, a troco dos comportamentos que lhe imputam ter solicitado de qualquer dos intervenientes no processo.
27. Nenhuma das «ofertas» a que se alude na acusação poderá considerar-se relevante ou ofensiva dos hábitos sociais instituídos na actividade do futebol, ou adequada a criar um clima de permeabilidade ou simpatia propício à obtenção futura de favores ilícitos.
28. A extensa e a todos os títulos imprópria citação de excertos de conversações telefónicas contida na acusação implica nulidade, por ofensa do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, que fica alegada.
29. E a verdade é que os meios de recolha de prova utilizados enfermam de gravíssimas nulidades que lhes retiram em definitivo e sem remissa qualquer réstia de valor.
30. É esse o caso, antes do mais, das escutas telefónicas, que são nulas, em síntese, porque:
30.01. Têm origem num despacho judicial nulo, porque:
Não concretiza nem descreve qualquer indício probatório;
Não concretiza nem especifica qualquer facto relativo ao crime que diz mostrar-se indiciado;
Não descreve nem especifica qualquer facto/razão que permita concluir que as escutas se revelam de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova ou que justifique não se poder alcançar o escopo pretendido através de outros meios de prova menos ofensivos da liberdade e privacidade do arguido; e
Não fixa nenhum prazo para duração das escutas.
Estas omissões ofendem o disposto nos artigos 97.º, n.º 4, e 187.º, n.º 1, parte final, do CPP, e 205.º, n.º 1, da CRP, e implicam, como efeito directo e imediato, a nulidade de todas as escutas que são consequência adequada e exclusiva das escutas iniciais.
Sob pena de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP, este conjunto normativo não pode ser interpretado como dispensando o Juiz de Instrução de concretizar através de factos os elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime, os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova e, bem assim, de fixar um prazo para a respectiva duração.
30.02. Não respeitaram as exigências legais e constitucionais da imediação, acompanhamento e controlo pela autoridade judicial, ocorrendo enormes lapsos de tempo, por vezes superiores a dois meses, entre a data da intercepção e gravação das conversações e a audição pelo JIC das sessões que a Polícia Judiciária considerou de interesse, audição que, na falta dos correspondentes autos, se presume ter sido feita nas datas de prolação dos despachos em que o JIC ordena a transcrição e ou destruição das gravações;
Interpretado no sentido de permitir a ocorrência de tais lapsos de tempo, o artigo 188.º, n.º 1, do CPP é inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
30.03. A entidade que lavrava os autos de intercepção e gravação, nos quais seleccionava logo as sessões consideradas com interesse, retinha sistematicamente esses elementos na sua posse, só os apresentando ao JIC muitos dias depois de os recolher.
A interpretação do artigo 188.º, n.º 1, que admita a ocorrência de grandes lapsos de tempo, da ordem de vários dias, entre a elaboração do auto de intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos considerados com interesse e a sua apresentação ao Juiz é inconstitucional, por ofensa das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.º s 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP. 30.04. Mantiveram-se, mediante prorrogações de autorização judicial, mesmo quando se reconhece e certifica que nenhuma ou apenas uma ínfima parte das sessões anteriores tinha interesse para a investigação.
Interpretado no sentido de permitir a prorrogação do prazo das escutas nestas circunstâncias, o artigo 187.º, n.º 1, do CPP é inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
30.05. Não respeitaram o formalismo que regula a sua execução:
Por um lado, de nenhum dos inúmeros autos de intercepção e gravação lavrados no processo constam 'a identidade da pessoa que procedeu à intercepção [...] e o circunstancialismo de tempo, modo e lugar da intercepção e da gravação', com o que foi preterido, assim e desde logo, o disposto no artigo 99.º, 3.º, alínea a).
Por outro lado, não foi lavrado nenhum auto de audição das gravações pelo Mmo.Juiz de Instrução, para documentar, da única forma aceitável, tendo em consideração a natureza dos direitos fundamentais em causa, a prática do acto e as circunstâncias, sobretudo de tempo, em que foi praticado, com o que foram preteridos, entre outros, os artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º 1.
A interpretação do conjunto normativo formado pelos artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º s 1 e 3, alínea a), que considere tais preceitos inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas telefónicas é inconstitucional, por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
30.06. Estão feridas pela destruição de grande parte dos suportes magnéticos da respectiva gravação, ordenada pelo JIC.
A segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º é inconstitucional, por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 43.º, n.º s 1 e 4, da CRP.
30.07. Arrastaram-se por um período de tempo superior a treze meses, incompatível com a natureza excepcional deste meio de recolha de prova e que excede em muito os prazos legais para a conclusão do inquérito.
A interpretação do artigo 187.º que permita a autorização e manutenção das escutas telefónicas por um período de tempo superior ao da duração do prazo máximo do inquérito é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
30.08. Foi prorrogada a respectiva autorização mesmo quando estava reconhecido e certificado que as sessões já gravadas não tinham qualquer interesse ou se revestiam de interesse residual.
A interpretação deste preceito que legitime a prorrogação de escutas que se revelaram de interesse nulo ou residual é inconstitucional, porque ofende os artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
31. Em suma, as escutas alimentam-se a si próprias num processo de justificação autofágico que reduziu a investigação a um inconcebível voyerismo auto-suficiente e preguiçoso, altamente lesivo da privacidade dos arguidos e de terceiros.
32. Dos mesmos vícios sofre a recolha de prova que se realizou nos autos através do registo de imagens e som, que, por isso, é de igual modo nula.
33. A esses vícios acresce o de, entre Março de 2003 e Abril de 2004, terem sido recolhidos som e imagem do arguido sem que o despacho que as autorizou tenha sido renovado uma única vez.
34. Não existe, por outro lado, nos autos nenhum indício, seja de que ordem for, que demonstre ou certifique ter o Mmo.Juiz de Instrução acompanhado e controlado a execução deste meio de recolha de prova: não foi lavrado nenhum auto de recolha de imagens e som que tenha sido apresentado ao JIC com os respectivos elementos de suporte, para visionamento e ou audição.
35. Todas as imagens e registos de voz que foram recolhidas e estão documentadas nos autos são nulos, por manifesta violação do disposto no artigo 190.º, conjugado com o artigo 189.º do CPP, artigos 1.º, n.º s 1, alínea d), e 3, 6.º, n.º s 1, 2 e 3, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, e artigo 1.º, n.º 1, alínea a), da Lei 26/94, de 25 de Setembro.
36. A interpretação deste conjunto normativo que sancione o registo de imagem e de voz sem o efectivo e permanente controlo do Juiz de Instrução é inconstitucional, porque viola os artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.»
1.3. O Juiz de Instrução Criminal de Gondomar, em 6 de Março de 2007, proferiu decisão instrutória, em que, além do mais, desatendeu as arguições de nulidade feitas pelo ora recorrente e as questões de inconstitucionalidade por ele suscitadas, tendo, a final, pronunciado o arguido pelos crimes por que vinha acusado pelo Ministério Público.
1.4. O arguido interpôs recurso da decisão instrutória para o Tribunal da Relação do Porto, tendo sintetizado a respectiva motivação nas seguintes conclusões:
«1. Nulidade das escutas:
As escutas telefónicas efectuadas no decurso do inquérito são nulas, em síntese porque:
1.1.1. Têm origem num despacho nulo, porque:
Não concretiza nem descreve qualquer indício probatório;
Não concretiza nem especifica qualquer facto relativo ao crime que diz mostrar-se indiciado;
Não descreve nem especifica qualquer facto/razão que permita concluir que as escutas se revelam de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova ou que justifique não se poder alcançar o escopo pretendido através de outros meios de prova menos ofensivos da liberdade e privacidade do arguido; e
Não fixa nenhum prazo para a duração das escutas.
Estas omissões ofendem o disposto nos artigos 97.º, n.º 4, e 187.º, n.º 1, parte final, do CPP, e 205.º, n.º 1, da CRP, e implicam, como efeito directo e imediato, a nulidade de todas as escutas que são consequência adequada e exclusiva das escutas iniciais.
Sob pena de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP, este conjunto normativo não pode ser interpretado como dispensando o Juiz de Instrução de concretizar através de factos os elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime, os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal abstracta aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova e, bem assim, de fixar um prazo para a respectiva duração.
A falta de fundamentação do despacho que ordena as escutas integra uma verdadeira e própria nulidade, não uma simples irregularidade.
Ainda que o não fosse, teria sido invocada no prazo legal previsto no artigo 123.º pelo arguido José António Gonçalves Pinto de Sousa, aproveitando essa invocação a todos os demais arguidos.
A interpretação que o douto despacho adoptou do conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, n.º 1 do artigo 187.º e 189.º do CPP, de acordo com a qual constitui simples irregularidade, como tal sanável, a falta de concretização através de factos [d]os elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime e, bem assim, os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova, é inconstitucional, por ofensa do disposto, entre outros, nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
1.1.2. Ainda que aquele despacho não fosse nulo por falta de fundamentação, sempre seria certo que, do ponto de vista substancial, não existiam, à data em que foi proferido, quaisquer indícios probatórios (fosse de que natureza fosse) da prática pelo arguido do crime de que foi considerado suspeito - corrupção activa do artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal, pelo que sempre estaria violado o disposto no artigo 187.º, n.º 1.
1.2. As escutas não respeitaram as exigências legais e constitucionais da imediação, acompanhamento e controlo pela autoridade judicial, como se manifesta:
Na prorrogação pelo JIC da autorização de escutas sem que previamente tenha procedido à audição das gravações das escutas anteriores e mesmo sem que tenha tido acesso aos suportes magnéticos destas, ou sequer sem que tenha procedido à leitura dos respectivos autos de selecção, que não lhe tinham sido entregues nem estavam elaborados;
Nos enormes e, a todos os títulos, inadmissíveis períodos de tempo que decorreram entre a apresentação ao Juiz do suporte magnético das gravações, acompanhado da selecção dos elementos que a Polícia Judiciária considera relevantes, e a respectiva audição;
Nos enormes lapsos de tempo verificados entre a data em que é feita e documentada aquela selecção e a entrega ao Juiz dos autos de gravação e dos suportes magnéticos das gravações;
Interpretado no sentido de permitir a prorrogação das escutas sem prévia audição das anteriores e a ocorrência de tais lapsos de tempo, o artigo 188.º, n.º 1, do CPP é inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
1.3. A entidade que lavrava os autos de intercepção e gravação, nos quais seleccionava as sessões consideradas com interesse, retinha sistematicamente esses elementos na sua posse, só os apresentando ao JIC muitos dias depois de os recolher.
A interpretação do artigo 188.º, n.º 1, que admita a ocorrência de grandes lapsos de tempo, da ordem de vários dias, entre a elaboração do auto de intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos considerados com interesse e a sua apresentação do Juiz é inconstitucional, por ofensa das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.º s 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP.
1.4. As escutas mantiveram-se, mediante prorrogações da autorização judicial, mesmo quando se reconhece e certifica que nenhuma ou apenas uma ínfima parte das sessões anteriores tinha interesse para a investigação.
Interpretado no sentido de permitir a prorrogação do prazo das escutas nestas circunstâncias, o artigo 187.º, n.º 1, do CPP, é inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
1.5. As escutas não respeitaram o formalismo que regula a sua execução:
Por um lado, de nenhum dos inúmeros autos de intercepção e gravação lavrados no processo constam 'a identidade da pessoas que procedeu à intercepção [...] e o circunstancialismo de tempo, modo e lugar da intercepção e da gravação', com o que foi preterido, assim e desde logo, o disposto no artigo 99.º, n.º 3, alínea a);
Por outro lado, não foi lavrado nenhum auto de audição das gravações pelo Juiz de Instrução, para documentar, da única forma aceitável, tendo em consideração a natureza dos direitos fundamentais em causa, a prática do acto e as circunstâncias, sobretudo de tempo, em que foi praticado, com o que foram preteridos, entre outros, os artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º 1.
A interpretação do conjunto normativo formado pelos artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º s 1 e 3, alínea a), que considere tais preceitos inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas telefónicas é inconstitucional, por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
1.6. As escutas estão feridas pela destruição de grande parte dos suportes magnéticos da respectiva gravação, ordenada pelo JIC e levada a cabo sem a audição dos arguidos.
A segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º do CPP é inconstitucional, por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 43.º, n.º s 1 e 4, da CRP.
1.7. As escutas arrastaram-se por um período de tempo superior a treze meses, sem a prática ou recolha de quaisquer outros elementos relevantes de prova, sendo esse prazo incompatível com a natureza excepcional deste meio de recolha de prova, até porque excede em muito os prazos legais para a conclusão do inquérito.
A interpretação do artigo 187.º que permita a autorização e manutenção das escutas telefónicas por um período de tempo superior ao da duração do prazo máximo do inquérito, sobretudo sem a prática ou recolha de quaisquer outros meios relevantes de prova, é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
1.8. Foi prorrogada a autorização das escutas mesmo quando estava reconhecido e certificado que as sessões já gravadas não tinham qualquer interesse ou se revestiam de interesse residual.
A interpretação deste preceito que legitima a prorrogação de escutas que se revelaram de interesse nulo ou residual é inconstitucional, porque ofende os artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
2. Inaplicabilidade do conceito de funcionário da alínea c) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal ao presidente do conselho de arbitragem da FPF
2.1. Como resulta do n.º 6 do artigo 267.º da Lei Fundamental, as pessoas colectivas de utilidade pública não estão incluídas, por definição, no conceito de 'entidades públicas' a que se reportam os artigos 269.º e 271.º da CRP, ainda que 'exerçam poderes públicos'.
2.2. De acordo com o que dispõe o n.º 1 daquele artigo 271.º da CRP, só os 'agentes' que actuam no âmbito de pessoas colectivas de direito público estão submetidos a uma responsabilização por crimes cometidos no exercício de funções públicas (com efeito externo, ou seja, perante terceiros).
2.3. Quem exerce funções (ou nelas participe) em entidades privadas não está submetido ao regime jurídico (incluindo, para efeitos penais) que regula as pessoas colectivas de direito público.
2.4. Assim, não se pode considerar funcionário, para efeitos da lei penal, quem exerça funções em pessoas colectivas de utilidade pública.
2.5. A Federação Portuguesa de Futebol não pode, em caso algum, ser considerada pessoa colectiva de direito público (melhor dizendo, não pode sequer ser considerada 'entidade pública', na expressão constitucional - citado artigo 269.º, n.º 1 - de 'Estado e demais entidades públicas').
2.6. Nenhum 'titular de órgão social' da FPF pode cometer um crime que suponha, como elemento típico, um 'cargo', elemento este que, para efeitos penais, terá de corresponder a um 'cargo público'.
2.7. Os crimes que no Código Penal pressupõem os deveres do cargo (público) - de que são exemplo os diversos tipos do crime de corrupção - são inaplicáveis a agentes que desempenhem funções ou participem em actividades compreendidas nos fins de uma pessoa colectiva de direito privado (mesmo que de utilidade pública) - como é o caso da FPF, pelo que nenhum dos titulares dos seus órgãos sociais pode cometer tais crimes.
2.8. O Presidente do Conselho de Arbitragem da FPF não é titular de qualquer poder de natureza pública, participando numa área de actividade desta pessoa colectiva - o sector da arbitragem - que se integra manifestamente no âmbito estritamente desportivo e normativo privado, como, aliás, acentua o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27 de Outubro de 2004, ao decidir que 'a violação das regras sobre nomeação de árbitros se enquadra no âmbito das questões estritamente desportivas'.
2.9. O Presidente do Conselho de Arbitragem da FPF não exerce qualquer função pública e, por isso, nunca poderia, mesmo numa interpretação extensiva da lei penal, ser considerado funcionário.
2.10. Todos aqueles que tomam parte no sector da arbitragem não podem, mesmo numa interpretação extensiva do conceito de funcionário, cometer crimes no exercício de funções públicas em consequência de violação das regras (seja qual for a razão de ser dessa violação) referentes à designação de árbitros.
2.11. A interpretação do conjunto normativo formado pelos artigos 372.º, 373.º, 374.º e 386.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal que inclua nas respectivas previsões o Presidente do Conselho de Arbitragem da FPF enferma de inconstitucionalidade material, por ofensa do disposto, entre outros, nos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 267.º, n.º 6, 269.º, n.º 1, e 271.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2.12. Assim sendo, nenhum dos actos imputados ao arguido poderá jamais ser enquadrado na previsão normativa do artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal.
3 - Inconstitucionalidade da lei de autorização 49/91, de 3 de Agosto, e do Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro.
A Lei da Autorização 49/91, de 3 de Agosto, é inconstitucional porque, não definindo com rigor a respectiva extensão e sentido, ofende o disposto no n.º 2, por referência à alínea c) do n.º 1, do artigo 165.º da CRP, sendo, por isso e por violação dos mesmos preceitos da Lei Fundamental, inconstitucional o Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro.
4. Ao decidir de modo diverso, considerando válidas as escutas telefónicas executadas no decurso do inquérito, considerando aplicável aos factos sub judice o conceito extensivo de funcionário previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal e aceitando a conformidade constitucional da Lei de Autorização 49/91 e do correlativo Decreto-Lei 390/91, o douto despacho em mérito ofendeu os preceitos legais que ficaram indicadas nos antecedentes números destas conclusões.»
1.5. Por acórdão de 14 de Novembro de 2007, o Tribunal da Relação do Porto. (i) negou provimento ao recurso na parte em que se refere à arguida nulidade das escutas telefónicas e, consequentemente, nessa parte confirmou a decisão recorrida; e (ii) não conheceu das demais questões suscitadas - inaplicabilidade do conceito de funcionário previsto no artigo 386.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal ao Presidente do Conselho de Arbitragem da FPF (com a consequente impossibilidade de enquadramento dos factos imputados ao recorrente na previsão do artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal e inerente insubsistência da pronúncia pelos mencionados 26 crimes de corrupção activa) e inconstitucionalidade da Lei 49/91 e do Decreto-Lei 390/91 (com a consequente impossibilidade de ser pronunciado pelos mencionados 21 crimes de corrupção desportiva activa) - por, nessa parte, o recurso ser inadmissível. Na verdade, relacionando-se estas questões com o mérito do despacho de pronúncia (e não com quaisquer nulidades ou questões prévias ou incidentais), aplica-se o disposto no artigo 310.º, n.º 1, do CPP, que declara inadmissível o recurso do despacho que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público (como no caso ocorreu).
1.6. Notificado deste acórdão, endereçou o arguido ao Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), tendo por objecto quer o aludido acórdão quer a decisão instrutória de 6 de Março de 2007, para apreciação da inconstitucionalidade das seguintes normas:
«A - Conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, e 187.º, n.º 1, parte final, do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado como dispensando o Juiz de Instrução de concretizar através de factos os elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime, os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal abstracta aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova e, bem assim, de fixar um prazo para a respectiva duração, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
Conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, 187.º, n.º 1, e 189.º do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de que constitui simples irregularidade, como tal sanável, a falta de concretização através de factos dos elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime e, bem assim, os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova, por ofensa do disposto, entre outros, nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
Artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de permitir a prorrogação das escutas sem prévia audição das anteriores pelo JIC e sem que este tenha procedido à leitura dos respectivos autos de selecção, e no sentido de permitir a ocorrência de lapsos de tempo superiores a 15 dias entre a apresentação ao JIC do suporte magnético das gravações, acompanhado da selecção dos elementos que a Polícia Judiciária considera relevantes e a respectiva audição e entre a data em que é feita e documentada aquela selecção e a entrega ao Juiz dos autos de gravação e dos suportes magnéticos das gravações, por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
Artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 9 de Agosto, interpretado no sentido de admitir a ocorrência de grandes lapsos de tempo, da ordem de vários dias, entre a elaboração do auto de intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos considerados com interesse e a sua apresentação ao Juiz, por ofensa das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.º s 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP;
Artigo 187.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de permitir a prorrogação de escutas quando se reconhece e certifica que nenhuma ou apenas uma ínfima parte das sessões anteriores tinha interesse para a investigação, por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
Conjunto normativo integrado pelos artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º s 1 e 3, alínea a), do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de considerar tais preceitos inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas telefónicas, por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
Segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de permitir a destruição dos elementos recolhidos através de escutas telefónicas e dos respectivos suportes magnéticos sem que o arguido escutado tenha tido acesso a tais elementos nem tenha consentido na sua destruição, por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 43.º, n.º s 1 e 4, da CRP;
Artigo 187.º do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, na interpretação que permite a autorização e manutenção das escutas telefónicas por mais de treze meses e um período de tempo superior ao da duração do prazo máximo do inquérito, sobretudo sem a prática ou recolha de quaisquer outros meios relevantes de prova, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
Artigo 187.º do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, na interpretação que legitima a prorrogação de escutas que se revelaram de interesse nulo ou residual, por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP;
B - Conjunto normativo formado pelos artigos 372.º, 373.º, 374.º e 386.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na versão anterior à Lei 59/2007, de 4 de Setembro, na interpretação que inclui nas respectivas previsões o Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, por ofensa do disposto, entre outros, nos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 267.º, n.º 6, 269.º, n.º 1, e 271.º, n.º 1, da CRP;
Lei de Autorização 49/91, de 3 de Agosto, e Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro, por ofensa do n.º 2, por referência à alínea c) do n.º 1, do artigo 165.º CRP.»
Como pretendia impugnar duas decisões proferidas por tribunais diferentes (o Tribunal da Relação do Porto, quanto às questões enunciadas na parte A. do requerimento de interposição de recurso, e Tribunal de Instrução Criminal de Gondomar, quanto às questões enunciadas na parte B. do mesmo requerimento), o arguido, à cautela, apresentou na mesma data requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional endereçado ao Juiz de Instrução Criminal de Gondomar, restrito às duas questões enunciadas na parte B.
Porém, o Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto proferiu despacho em que admitiu os dois recursos.
1.7. No Tribunal Constitucional, o relator, no despacho em que determinou a apresentação de alegações, consignou que as partes se deveriam pronunciar, querendo, sobre a eventualidade de não se conhecer do recurso na parte relativa às 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ª, 8.ª e 9.ª questões de inconstitucionalidades referidas na parte A do dito requerimento, por duas ordens de razões: (i) por não se revestirem das características de generalidade e abstracção próprias das questões de inconstitucionalidade normativa, antes serem susceptíveis de ser vistas como representando a imputação directa da violação da Constituição a decisões judiciais, em si mesmas consideradas, em termos inseparáveis das especialidades irrepetíveis do presente caso concreto; e (ii) por não existir inteira coincidência entre os critérios normativos que o recorrente reputa inconstitucionais e os critérios normativos efectivamente aplicados, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido.
1.8. O recorrente apresentou alegações, que terminam com a formulação das seguintes conclusões:
«1. O conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, e 187.º, n.º 1, parte final, do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, é inconstitucional por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP, quando interpretado como dispensando o Juiz de Instrução de concretizar:
Através de factos, os elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizada,
Os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime,
Os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal abstracta aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova e, bem assim,
De fixar um prazo para a respectiva duração.
2. O conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, 187.º, n.º 1, e 189.º do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de que constitui simples irregularidade, como tal sanável, a falta de concretização através de factos dos elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime e, bem assim, os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova, é inconstitucional por ofensa do disposto, entre outros, nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
3. O artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de permitir a prorrogação das escutas sem prévia audição das anteriores pelo JIC e sem que este tenha procedido à leitura dos respectivos autos de selecção, e no sentido de permitir a ocorrência de lapsos de tempo superiores a 15 dias entre a apresentação ao JIC do suporte magnético das gravações, acompanhado da selecção dos elementos que a Polícia Judiciária considera relevantes, e a respectiva audição e entre a data em que é feita e documentada aquela selecção e a entrega ao Juiz dos autos de gravação e dos suportes magnéticos das gravações, é inconstitucional por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
4. O artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de admitir a ocorrência de grandes lapsos de tempo, da ordem de vários dias, entre a elaboração do auto de intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos considerados com interesse e a sua apresentação do Juiz, é inconstitucional por ofensa das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.º s 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP.
5. O artigo 187.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretado no sentido de permitir a prorrogação de escutas quando se reconhece e certifica que nenhuma ou apenas uma ínfima parte das sessões anteriores tinha interesse para a investigação, é inconstitucional por ofensa do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
6. O conjunto normativo integrado pelos artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º s 1 e 3, alínea a), do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de considerar tais preceitos inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas telefónicas, é inconstitucional por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
7. A norma contida na segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretada no sentido de permitir a destruição dos elementos recolhidos através de escutas telefónicas e dos respectivos suportes magnéticos sem que o arguido escutado tenha tido acesso a tais elementos nem tenha consentido na sua destruição, é inconstitucional por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 43.º, n.º s 1 e 4, da CRP.
8. O artigo 82.º da LTC (Lei 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações nela introduzidas por diversos diplomas) é inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 281.º da CRP, se interpretado no sentido de permitir que o Tribunal Constitucional profira, em qualquer processo, decisão contrária ao juízo de inconstitucionalidade duma norma que tenha sido proferido em três casos concretos e, por conseguinte, no sentido de que, neste caso concreto, pode pronunciar-se pela constitucionalidade da segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º da CPP na interpretação sub judice.
9. O artigo 187.º do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, na interpretação que permite a autorização e manutenção das escutas telefónicas por mais de treze meses e um período de tempo superior ao da duração do prazo máximo do inquérito, sobretudo sem a prática ou recolha de quaisquer outros meios relevantes de prova, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
10. O artigo 187.º do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, na interpretação que legitima a prorrogação de escutas que se revelaram de interesse nulo ou residual, é inconstitucional por ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
11. O conjunto normativo formado pelos artigos 372.º, 373.º, 374.º e 386.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, interpretado no sentido de incluir nas respectivas previsões o Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, é inconstitucional, por ofensa do disposto, entre outros, nos artigos 18.º n.º 2, 29.º, n.º 1, 267.º, n.º 6, 269.º, n.º 1, e 271.º, n.º 1, da CRP.
12. A Lei da Autorização 49/91, de 3 de Agosto, é inconstitucional porque, não definindo com rigor a respectiva extensão e sentido, ofende o disposto no n.º 2, por referência à alínea c) do n.º 1, do artigo 165.º CRP, sendo, por isso e por violação dos mesmos preceitos da Lei Fundamental, também inconstitucional o Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro.»
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou contra-alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
«1. Por não estarem reunidos todos os requisitos e pressupostos, não deverá conhecer-se do objecto do recurso relativamente às 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ª, 8.ª, 9.ª e 10.ª questões de constitucionalidade referidas nas conclusões do recorrente.
2. Não é inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 188.º do Código de Processo Penal (na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto), interpretada no sentido de permitir a destruição de escutas telefónicas e dos respectivos suportes magnéticos, quando considerados não relevantes, sem que antes o arguido deles tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a sua defesa.
3. Não é inconstitucional o conjunto normativo composto pelas normas dos artigos 374.º, n.º 1, e 386.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, interpretado no sentido de incluir na respectiva previsão o Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, sendo esta uma pessoa colectiva de direito privado, com o Estatuto de Utilidade Pública Desportiva.
4. Quer a Lei de Autorização 49/91, de 3 de Agosto, quer o Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro, emitido ao seu abrigo, não enfermam de quaisquer inconstitucionalidades.
5. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.»
Por despacho do relator foi determinada a notificação do recorrente para se pronunciar, querendo, sobre as novas questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, tendo sido apresentada resposta, que será considerada à medida que forem apreciadas essas questões.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação:
2.1. Recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto
2.1.1. Dada a sua conexão, tratar-se-ão conjuntamente as primeira e segunda questões suscitadas na alegação do recorrente, ambas relativas às exigências de fundamentação da decisão judicial de autorização de intercepções telefónicas, sendo que:
A primeira tem por objecto a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP, do conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, e 187.º, n.º 1, parte final, do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretado como dispensando o Juiz de Instrução de concretizar: (i) através de factos, os elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas; (ii) os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime; (iii) os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal abstracta aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova; e, bem assim (iv) de fixar um prazo para a respectiva duração; e
A segunda tem por objecto a inconstitucionalidade, por violação das mesmas normas constitucionais, do conjunto normativo integrado pelos artigos 97.º, n.º 4, 187.º, n.º 1, e 189.º do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de que constitui simples irregularidade, como tal sanável, a falta de concretização através de factos dos elementos da tipicidade do crime concreto cuja investigação se pretende melhorar mediante o recurso às escutas telefónicas autorizadas, os factos concretos que condensam os indícios da prática de tal crime e, bem assim, os factos e as razões, diferentes da mera natureza do crime ou da simples moldura penal aplicável, que justificam a opção por este meio de recolha de prova.
No despacho do relator que determinou a apresentou de alegações, advertiu-se o recorrente da possibilidade de não conhecimento destas questões, por duas ordens de razões: (i) por não se revestirem das características de generalidade e abstracção próprias das questões de inconstitucionalidade normativa, antes serem susceptíveis de ser vistas como representando a imputação directa da violação da Constituição a decisões judiciais, em si mesmas consideradas, em termos inseparáveis das especialidades irrepetíveis do presente caso concreto; e (ii) por não existir inteira coincidência entre os critérios normativos que o recorrente reputa inconstitucionais e os critérios normativos efectivamente aplicados, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido.
O não conhecimento desta parte do recurso é sustentado nas contra-alegações do Ministério Público, não só por não ter sido suscitada uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, mas também porque, mesmo que o tivesse sido, a norma de que foi interposto recurso não foi aplicada na decisão recorrida e da que foi efectivamente aplicada não houve recurso. Na verdade, sustentando, no fundo, o recorrente, nesta parte do recurso, que o despacho que autorizou as escutas não está devidamente fundamentado e que as normas do artigo 97.º, n.º 4, e 187.º, n.º 1, parte final, do CPP, interpretadas como não exigindo esse grau de fundamentação que ele considera essencial, são inconstitucionais, mas tendo o acórdão recorrido, após análise pormenorizada da fundamentação do despacho que autorizou as escutas, concluído que o mesmo estava suficientemente fundamentado, «apurar pormenorizadamente qual o exacto grau de fundamentação é estar a apreciar a própria decisão e já não qualquer questão de inconstitucionalidade normativa». Por outro lado, o acórdão recorrido, após concluir que a decisão se encontrava fundamentada, afirma que, mesmo que assim não fosse, se estaria apenas perante uma irregularidade prevista no artigo 123.º, n.º 1, do CPP, que se encontrava sanada porque não arguida atempadamente pelo recorrente, pelo que «as normas referentes à exigência de fundamentação não constituem a ratio decidendi da decisão, daqui resultando que independentemente do juízo que viesse a ser formulado sobre a constitucionalidade de tais normas, o acórdão, nesta parte, sempre se manteria (cf. nesse sentido Acórdão 102/2001)». Assim sendo, dado que «as normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida e que constituem a sua ratio decidendi são as referentes à qualificação do vício de falta ou de insuficiente fundamentação, isto é, os artigos 118.º a 123.º do CPP» e que, «apesar de o acórdão recorrido se referir expressamente a tais normas e até ter apreciado o regime nelas previsto, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, o recorrente não inclui tais normas (maxime o artigo 123.º) no objecto do recurso, não o fazendo nem no requerimento de interposição (o momento próprio), nem nas alegações apresentadas neste Tribunal (cf. Acórdão 166/2003)», entende o Ministério Público que não deve conhecer-se desta parte do recurso.
Respondendo a estas objecções, diz o recorrente:
«Ao contrário do que está pressuposto na peça em análise, o recorrente não suscitou no seu recurso a questão da medida ou do quantum de fundamentação das decisões recorridas.
Colocou a questão sob um ângulo muito diverso desse, submetendo à análise do Tribunal Constitucional o critério (ou o sentido interpretativo/normativo) aplicado nessas decisões, critério esse que consiste, em suma, na assumida possibilidade de fundamentação por remissão implícita.
Não se trata - nem foi essa a perspectiva do recorrente - de conferir se a fundamentação das concretas decisões proferidas é mais ou menos esclarecedora, mais ou menos rigorosa, mais ou menos extensa.
Trata-se, repete-se, duma questão diferente, de saber se é ou não admissível a fundamentação por remissão e, mais do que isso, por remissão implícita.
De resto, ainda que a questão tivesse sido colocada em termos de amplitude ou grau de fundamentação, nem por isso deixava, na circunstância concreta deste caso, de ter uma dimensão normativa e de comportar uma vertente de abstracção e generalidade susceptíveis de permitir a sua análise, na exacta medida em que se poderia formular, quanto a ela, a dúvida sobre se o grau de fundamentação pode ser tão exíguo que prescinda, no caso das escutas telefónicas, da invocação dos factos concretos que justificam esse meio de recolha de prova.
Julga-se que mesmo essa limitativa incidência - a que não pode reduzir-se este recurso - ainda comportaria uma dimensão normativa capaz de justificar a intervenção do Tribunal Constitucional.
Daí que não pareça adequada a afirmação de que o recorrente pretende que se 'apure pormenorizadamente qual o exacto grau de fundamentação'.
Também não pode o recorrente subscrever a conclusão de que 'as normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida e que constituem a sua ratio decidendi são as referentes à qualificação do vício de falta ou de insuficiente fundamentação, isto é, os artigos 118.º a 123.º do Código de Processo Penal'.
O artigo 123.º do CPP é uma norma em branco e residual.
Não contém a enumeração taxativa das irregularidades.
Qualificar um determinado vício como irregularidade é, por isso, uma questão que antecede a aplicação do regime do artigo 123.º, em especial se, como no caso vertente, a natureza do vício contende com uma questão de constitucionalidade.
Dito de outro modo: a decisão recorrida comporta dois momentos.
Num primeiro momento, considera que o critério de fundamentação utilizado (por remissão implícita) não ofende a Constituição; num segundo momento, considera que, a ocorrer um vício da decisão, se trataria duma simples irregularidade.
O recorrente considera que a questão não pode ser retalhada nesses dois momentos: do que se trata é de saber se a interpretação adoptada das normas relativa à fundamentação das decisões sobre escutas é ou não inconstitucional.
Se o for, como sugere, não se coloca sequer a questão da aplicação do artigo 123.º do CPP: um vício de ofensa à Constituição não poderá jamais ser qualificado como irregularidade.
Daí que o recorrente não tenha suscitado directamente a questão da constitucionalidade do artigo 123.º do CPP.
Insiste-se em que o artigo 123.º é uma norma em branco, residual.
É através da interpretação de cada uma das normas concretas relativas aos actos processuais que se concluirá se a sua ofensa é ou não mera irregularidade.
Se se concluir que uma determinada interpretação duma norma concreta ofende a Constituição, está, por definição, excluída a aplicação do artigo 123.º do CPP.
Daí que o Tribunal Constitucional possa e deva declarar se a interpretação das normas em causa é ou não conforme à CRP.
Se declarar essa inconstitucionalidade, o Tribunal recorrido terá de rever a decisão proferida e retirar daí as consequências inevitáveis, uma vez que o vício da inconstitucionalidade não pode jamais enquadrar-se na categoria residual das irregularidades.»
Relativamente a estas questões, o acórdão recorrido, após descrição da evolução legislativa pertinente e das posições doutrinárias relevantes, consignou o seguinte:
«Interpretando o teor deste despacho decisório em crise (acima transcrito), verifica-se que o mesmo, na sua fundamentação, ainda que exígua, remete implicitamente para o teor da promoção do Ministério Público (referindo, depois, até expressamente, 'porque se mostra indiciada a prática pelo mesmo de um crime de corrupção activa previsto e punido pelo artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal'), acabando por concluir estarem preenchidos os pressupostos previstos 'nos artigos 187.º, n.º 1, alínea a), e 188.º do Código de Processo Penal', razão pela qual autorizou, além do mais, as promovidas (nos pontos 1 e 2) intercepções e gravações das conversações efectuadas de e para o telemóvel com o n.º (...) e de e para o telefone da rede fixa com o n.º (...), ambos utilizados pelo recorrente.
Esta interpretação é lógica e clara uma vez que o inquérito (cuja direcção cabe exclusivamente ao Ministério Público - artigo 263.º do CPP) apenas foi concluso à Sr.ª Juiz de Instrução Criminal para ela se pronunciar sobre aquela promoção (o juiz de instrução só exerce funções jurisdicionais em inquérito - artigo 17.º do CPP, na versão anterior à actual).
Obviamente que para se pronunciar (e poder proferir a decisão pessoal em questão), a Sr.ª Juiz de Instrução Criminal teve de ponderar o teor da promoção do Ministério Público, titular do inquérito (promoção essa que provocou a intervenção jurisdicional e delimitou o seu âmbito da intervenção - v. g. artigo 269.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na versão anterior à actual), os elementos existentes nos autos, nomeadamente, os indicados expressamente naquela promoção de fls. 95.
E, não estando em causa (nem o próprio recorrente coloca essa questão) que aquela decisão de autorização de intercepções e gravações das conversações efectuadas de e para aqueles telemóvel e telefone da rede fixa (utilizados pelo então suspeito José Luís da Silva Oliveira), se tratou de uma decisão pessoal do JIC, como 'garante das liberdades', embora se possa discordar dessa forma de fundamentação, a verdade é que, ainda assim, a mesma não ofende o 'dever constitucional de fundamentação' (artigo 205.º, n.º 1, da CRP).»
E depois de transcrever passagens pertinentes da decisão instrutória, prossegue o acórdão:
«Atenta a natureza do crime em análise (independentemente da qualificação jurídico-penal então efectuada, sempre crime que, em abstracto, era punido com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos), a diligência de autorização de escutas telefónicas, nos termos em que foi promovida, tornava-se decisiva e imprescindível para a investigação, havendo razões objectivas e sérias para as autorizar (o interesse da eficácia da investigação do crime de corrupção activa previsto no artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal, que então se mostrava indiciado, era bem superior ao direito à privacidade e à palavra falada do então suspeito José Luís da Silva Oliveira, face aos factos denunciados, que eram sustentados pelo teor das diligências efectuadas, v. g. do depoimento da testemunha Rui Vieira Mendes, não obstante este último ter sido prestado em 30 de Agosto de 2001), por revelarem grande interesse para a descoberta da verdade e para a recolha de prova.
E, claro, a promoção do Ministério Público de fls. 95 (acima transcrita) sustentava-se nas referidas diligências efectuadas pela própria Polícia Judiciária, documentadas nos autos de inquérito já iniciado.
A decisão judicial em crise está alicerçada na promoção do Ministério Público e nos elementos constantes dos autos (não sendo ao tempo exigível que devesse repetir o que constava daquela promoção e dos elementos dos autos), o que permitiu à Sr.ª Juiz de Instrução Criminal deferir ao promovido, por considerar verificados os requisitos que mencionou, previstos no artigo 187.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
Efectivamente, o crime que o Ministério Público se propôs investigar com base nas pretendidas intercepções telefónicas era o de corrupção activa, previsto no artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal (um dos que cabiam no artigo 187.º, n.º 1, alínea a), do CPP) que então se indiciava, sendo o recurso à intercepção e gravação de conversas telefónicas o meio imprescindível ao desenvolvimento da investigação, atento o tipo e natureza de crime em causa e carácter dos actos sujeitos a investigação (v. g. modus operandi).
E, ainda que se viessem a indiciar, ao longo das investigações (sendo conhecimentos decorrentes da própria investigação, por estarem com ela relacionados), crimes de corrupção desportiva activa (...), também da responsabilidade do recorrente (independentemente da questão suscitada da eventual inconstitucionalidade do Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro), como, aliás, veio a ser pronunciado, os conhecimentos obtidos através das escutas telefónicas, uma vez que respeitavam a crimes (previstos no artigo 4.º, n.º 2, do citado Decreto-Lei 390/91, tal como acabou por ser pronunciado) incluídos no catálogo do artigo 187.º, n.º 1, alínea a), do CPP (na versão anterior à actual), eram válidos e lícitos, sendo admissível a valoração das provas dessa forma obtidas.
(...)
Assim, podemos concluir que no despacho judicial de fls. 98 e 99 foi ponderada a necessidade das intercepções telefónicas, ainda que, em parte, por remissão implícita para o teor da promoção do Ministério Público e elementos probatórios que a sustentavam.
Estavam, pois, reunidos os requisitos e condições legalmente exigíveis para serem autorizadas judicialmente as escutas telefónicas em questão, que requeriam cuidados especiais, sob pena de se inviabilizar a investigação.
Portanto, ainda que de forma muito resumida e pouco modelar, a decisão judicial em crise mostra-se minimamente fundamentada, não havendo qualquer violação do disposto nos invocados artigos 97.º, n.º 4, 187.º e 189.º do CPP, e 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 205.º, n.º 1, da CRP.
Ainda que assim não fosse (hipótese que também se coloca, por se poder, ainda assim, sustentar que não haviam sido revelados todos os motivos que levaram o juiz a proferir esse despacho decisório que, no entanto, não se pode confundir com o grau de exigência imposto quando está em causa a fundamentação de uma sentença), como acima já se referiu, estaríamos apenas perante uma irregularidade prevista no artigo 123.º, n.º 1, do CPP, que, todavia, se mostrava sanada, por não ter sido arguida em tempo pelo recorrente (interessado na invalidade desse despacho judicial que autorizava escutas telefónicas a telefones por si utilizados).
Alega também o recorrente (mas sem conceder) que, mesmo numa tese minimalista, que considerasse que estávamos em presença de uma irregularidade, o certo é que a mesma havia sido invocada no prazo legal, pelo arguido José Pinto de Sousa e, como tal, também lhe aproveitava.
Porém (independentemente da questão da irregularidade invocada por um arguido poder ou não aproveitar aos demais), podemos aqui acompanhar também o Ministério Público, na 1.ª instância, quando, na respectiva resposta ao recurso, refere:
'Com efeito, o arguido José António Gonçalves Pinto de Sousa em lado nenhum invocou a nulidade ou sequer a irregularidade do despacho inicial. (...)'
E isso mesmo resulta da leitura do dito requerimento constante de fls. 1559 a 1586 da certidão que constitui este processo de recurso.
Conclusão: não tendo sido arguida, em tempo, a referida irregularidade do despacho decisório de fls. 98 e 99 (a entender-se que enfermava de deficiente fundamentação), a mesma encontra-se sanada, como bem se concluiu na decisão instrutória.
E, embora o recorrente, neste aspecto da falta de fundamentação do despacho judicial que autorizou escutas a telefones por si utilizados, apenas se reporte em concreto ao despacho judicial de fls. 98 e 99, podemos acrescentar que o mesmo raciocínio que acima fizemos vale, com as devidas adaptações, quanto aos despachos judiciais que autorizaram as escutas telefónicas em relação aos telemóveis com os n.º s (...) e n.º (...), utilizados também pelo recorrente.
Quanto à questão suscitada pelo recorrente, da falta de fixação de prazo para duração dessas escutas telefónicas autorizadas, é certo que, nomeadamente na decisão de fls. 98 e 99, nada se diz a esse respeito e a lei (artigo 187.º do CPP então vigente), na altura, também não impunha a indicação desse prazo, embora fosse prática corrente (fazer constar esse prazo na decisão judicial respectiva), até como forma de melhor controlar as escutas telefónicas que fossem efectuadas pelos OPC, autorizadas judicialmente.
Mas também é certo que, estando a Sr.ª Juiz de Instrução Criminal (JIC) limitada pela promoção que provocara a sua intervenção, uma vez que não fez constar do seu despacho qualquer prazo, também não podia ir além do prazo que lhe fora pedido nessa promoção, que era o mínimo de 30 (trinta) dias.
De qualquer modo, nos ofícios, datados de 26 de Março de 2003, que a Sr.ª JIC endereçou ao Director da Portugal Telecom e à Optimus, SA - e que também foram recebidos pela Coordenadora de Investigação Criminal da Directoria do Porto da Polícia Judiciária, cujas cópias endereçou ao Chefe da Área do Departamento de Telecomunicações da Polícia Judiciária, em Lisboa - (fls. 5718 e 5721 da certidão que constituiu este processo), por si assinados, para colmatar aquele «lapso» (a entender-se como «lapso» a falta de indicação de prazo da autorização da intercepção e gravação das comunicações efectuadas de e para os identificados telefones, da rede fixa e móvel, concedida no despacho decisório de fls. 98 e 99, não obstante a lei a não impor), fez constar que era autorizada 'a intercepção e gravação das conversações ..., pelo período de 30 dias'.
Ou seja, pelo facto de não ter sido fixado no despacho de fls. 98 e 99 o prazo de duração da autorização judicial concedida (que então não era legalmente exigido, como acima se referiu) não ocorre qualquer nulidade ou inconstitucionalidade (v. g. violação dos invocados artigos 187.º, n.º 1, do CPP, e 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP), tanto mais que a mesma foi colmatada através dos referidos ofícios acima mencionados, assinados pela Sr.ª JIC, que mencionaram o dito prazo de 30 dias (era, portanto, esse o prazo que tinha de ser atendido).»
Como é patente, o acórdão recorrido não adoptou como critério normativo o de que a fundamentação do despacho que autoriza intercepções telefónicas se basta com a invocação da mera natureza do crime e da moldura abstracta aplicável; o que aí se entendeu foi que a exigível substanciação da fundamentação, quer na perspectiva da suficiência dos indícios da prática dos crimes em causa, quer na perspectiva da enunciação das razões justificativas do uso deste meio de recolha de prova, havia sido satisfeita pelo despacho em causa, designadamente por remissão (implícita) para a promoção do Ministério Público que acolheu. E, por outro lado, o mesmo acórdão também entendeu que, embora de modo indirecto (ou por aceitação tácita do prazo proposto na promoção ou pela explicitação do prazo nas comunicações que, na sequência desse despacho, a própria juíza de instrução endereçou às operadoras de telecomunicações, com conhecimento ao órgão de polícia criminal encarregado da efectivação das intercepções), foi fixado o prazo inicial de 30 dias para tais intercepções, embora considerasse que, ao tempo, a lei não exigia tal fixação prévia. Não tendo o acórdão recorrido adoptado o critério normativo enunciado pelo recorrente a propósito da primeira questão de inconstitucionalidade, o recurso, nesta parte, é inadmissível, sendo irrelevante que só agora, na última resposta apresentada pelo recorrente, ele ensaie a alteração da definição desse critério para passar a questionar a constitucionalidade da admissibilidade de remissões implícitas da fundamentação do despacho autorizativo das escutas.
Assente que não há que conhecer do recurso quanto à primeira questão, fica prejudicada a apreciação da segunda questão, atinente à qualificação como mera irregularidade da falta ou deficiência de fundamentação do despacho que autorizou as escutas. É que o acórdão recorrido só adiantou essa qualificação para a hipótese - que ele deu por não verificada - de o despacho em causa carecer de fundamentação suficiente. Afastada definitivamente esta hipótese (uma vez que o não conhecimento da primeira questão implica que se considere definitivo o juízo de suficiência da fundamentação do despacho, constante da correspondente parte do acórdão recorrido), carece de sentido apurar se, se se tivesse perfilhado entendimento oposto, seria constitucionalmente admissível qualificar essa (afinal inexistente) deficiência do despacho como mera irregularidade, e não como nulidade.
Não se conhece, assim, das primeira e segunda questões de inconstitucionalidade suscitadas na alegação do recorrente.
2.1.2. As terceira, quarta, quinta, nona e décima questões, que se agrupam por respeitarem todas aos requisitos do acompanhamento judicial da execução das escutas, são reportadas, as duas primeiras, à norma do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão anterior à Lei 48/2007, quer «interpretado no sentido de permitir a prorrogação das escutas sem prévia audição das anteriores pelo JIC e sem que este tenha procedido à leitura dos respectivos autos de selecção, e no sentido de permitir a ocorrência de lapsos de tempo superiores a 15 dias entre a apresentação ao JIC do suporte magnético das gravações, acompanhado da selecção dos elementos que a Polícia Judiciária considera relevantes, e a respectiva audição e entre a data em que é feita e documentada aquela selecção e a entrega ao Juiz dos autos de gravação e dos suportes magnéticos das gravações», quer «interpretado no sentido de admitir a ocorrência de grandes lapsos de tempo, da ordem de vários dias, entre a elaboração do auto de intercepção e gravação contendo a selecção dos elementos considerados com interesse e a sua apresentação do Juiz»; e as três últimas ao artigo 187.º, n.º 1, do mesmo diploma, na mesma versão, quer «quando interpretado no sentido de permitir a prorrogação de escutas quando se reconhece e certifica que nenhuma ou apenas uma ínfima parte das sessões anteriores tinha interesse para a investigação», quer «na interpretação que permite a autorização e manutenção das escutas telefónicas por mais de treze meses e um período de tempo superior ao da duração do prazo máximo do inquérito, sobretudo sem a prática ou recolha de quaisquer outros meios relevantes de prova", quer"na interpretação que legitima a prorrogação de escutas que se revelaram de interesse nulo ou residual».
Nenhuma destas questões pode ser conhecida, pelas duas razões avançadas no despacho inicial do relator. Por um lado, e pese embora o esforço do recorrente de as revestir de fórmulas aparentemente gerais e abstractas, o certo é que, de facto, o que se questiona é o concreto comportamento dos intervenientes processuais e as decisões judiciais que os admitiram, sendo as questões colocadas de modo indissociavelmente ligado às especificidades, dificilmente repetíveis, do caso concreto. Por outro lado, o acórdão recorrido não acolheu, em geral, nem os factos nem os critérios avançados pelo recorrente, como resulta das seguintes transcrições:
«Mas, fixando ou não prazo de duração da autorização judicial concedida, o juiz que autorizou as escutas pode sempre, em qualquer altura, contactar o OPC que está encarregado de as efectuar e exigir que lhe sejam remetidos os respectivos suportes técnicos ou deslocar-se às instalações do OPC e fazer em directo o respectivo controlo do conteúdo das conversações que vão sendo gravadas (através do computador terminal que está ligado em rede ao sistema central, com sede em Lisboa).
A questão fulcral, nesse aspecto, é que as escutas telefónicas sejam controladas (de forma efectiva, contínua e próximo-temporal) pelo juiz, enquanto forem autorizadas (isto é, enquanto as mesmas continuarem e se prolongarem com autorização judicial, por subsistirem os requisitos e pressupostos que justificavam a sua admissibilidade, naquele juízo de ponderação vinculada que a juiz de instrução foi efectuando em cada momento que autorizou a prorrogação das ditas escutas).
Como é evidente, uma vez que não partilhamos o ponto de vista do recorrente (no sentido de existir nulidade do 'despacho matricial de fls. 98', que afectaria todos os demais despachos subsequentes, por força do disposto no artigo 122.º, n.º 1, do CPP), não podemos concluir, como o mesmo faz, que 'nenhuma escuta foi autorizada a partir do primeiro despacho' e que o vício do primeiro despacho contamina todos os restantes, por se basearem 'nos resultados obtidos nas escutas anteriormente efectuadas'.
É que, pelos motivos já acima expostos, entendemos que não é caso de aplicar o disposto no invocado artigo 122.º, n.º 1, do CPP.
Agora, quanto à questão suscitada de não terem sido respeitadas 'as exigências legais e constitucionais da imediação, acompanhamento e controlo pela autoridade judicial' daquelas escutas telefónicas, efectuadas em relação ao recorrente, também podemos, desde já, adiantar, que não lhe assiste razão.»
E, após reproduzir a argumentação do recorrente e explicitar quais as formalidades exigidas pelo artigo 188.º do CPP, na versão aplicável ao caso dos autos, prossegue o acórdão:
«No que respeita a autos, temos, assim, dois tipos: um é o previsto no referido artigo 188.º, n.º 1, do CPP (auto de intercepção e gravação) e o outro o indicado no n.º 3 do mesmo preceito (o chamado auto de transcrição).
A disposição legal em questão não exige a realização de 'auto de início da intercepção de comunicações', nem tão-pouco de 'auto de audição do Juiz' que atestasse que este ouvira as gravações enviadas pelo OPC e, portanto, formalmente confirmasse o acompanhamento das escutas que autorizara.
No entanto, a PJ lavrou 'autos de início da intercepção de comunicações', os quais, no que respeita ao recorrente (...), constam de fls. 108, 109 e 134 (...).
(...)
Tratava-se de uma prática seguida pela PJ, de todo o interesse, na medida em que dessa forma se tornava mais fácil ao juiz que autorizara a escuta telefónica controlar a mesma e ver que a sua autorização não era usada de forma abusiva ou conforme interesses alheios à investigação (v. g. juízos de oportunidade por parte do OPC).
Nesses autos (cada um deles relativo ao respectivo n.º de telefone aí identificado), consta quer a identificação do inspector da PJ que iniciou as respectivas intercepções das comunicações, bem como a referência à data (de início) e local onde se procedia a tal intercepção de comunicações (obviamente o local onde iriam ser feitas as gravações das respectivas conversações telefónicas interceptadas, enquanto não fossem 'canceladas'), a referência ao despacho judicial que as autorizava, bem como a indicação de que o 'conteúdo das comunicações interceptadas' podia, a partir daquelas datas iniciais indicadas, 'ser a todo o tempo verificado directamente pela Mma. JIC, também através de cassetes áudio'.
Conjugados esses autos (de início de intercepção), mais concretamente os dos telemóveis com os n.º (...) e n.º (...), com os autos de gravação que se seguiram em relação a cada um daqueles telefones 'sob escuta', é evidente que não sobram dúvidas quanto ao cumprimento das formalidades dos autos de intercepção e gravação, tendo em atenção, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 99.º, n.º 3, do CPP.
Mesmo nos autos de gravação respectivos, relativos a cada intercepção telefónica quanto ao recorrente (onde, além do mais que neles se menciona, é identificado o 'alvo', o n.º de telefone correspondente, a pessoa que procedeu àquela gravação, o local, a data de elaboração do auto e a menção de terem sido reproduzidas em CD todas as conversações telefónicas gravadas nas sessões que identificam por números) consta - consoante os casos - a referência de as conversações não terem interesse para a investigação (nuns casos) ou (noutros casos) a indicação daquelas sessões 'consideradas como tendo eventual interesse para a investigação em curso', referindo-se os dias respectivos a que respeitavam (ou seja, o OPC, consoante os casos, indicava as passagens das gravações consideradas relevantes ou então, quando não tinham interesse, também fazia essa menção - artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão então vigente).
E, também, quando, por despacho judicial, foi ordenada a cessação daquelas escutas telefónicas ou terminou o período de prorrogação das ditas intercepções telefónicas (apesar de a lei o não exigir expressamente), foram lavrados os respectivos autos de cessação (...).
(...)
Ou seja, quanto a esses aspectos formais dos autos de intercepção e gravações em questão, foram cumpridas as formalidades legais (sendo certo que o recorrente, quando afirma o contrário, também só o faz em termos abstractos, o que, só por si, é insuficiente para o efeito que pretende), razão pela qual não ocorre qualquer violação do disposto no artigo 99.º, n.º 3, do CPP e, muito menos (consequência que o recorrente pretende retirar de um abstracto incumprimento do disposto naquele artigo 99.º, n.º 3), a nulidade prevista no artigo 189.º do CPP.
De resto, mesmo considerando o momento (datas) em que esses autos de intercepção e gravações foram apresentados ao juiz (por confronto com a data que deles consta) ou mesmo considerando o momento de realização de cada uma daquelas intercepções (vistas as datas dos despachos judiciais, quer de autorização daquelas escutas telefónicas, quer das respectivas prorrogações), não se pode concluir que tivessem de alguma forma afectado ou impossibilitado o contínuo (próximo e temporal) e efectivo acompanhamento judicial daquelas operações ou que, dessa forma, tivesse sido manipulada a autorização judicial concedida.
Tão-pouco deles resulta qualquer restrição intolerável dos direitos de privacidade e da palavra falada do recorrente.
Esse cumprimento de formalidades legais estende-se, também, aos respectivos autos de transcrição das conversações, feitos de acordo com o que ia sendo decidido pela Sr.ª JIC, à medida que ia ouvindo as sessões gravadas nos CDs que eram entregues no tribunal, com os respectivos autos de gravação.
Daí que se concorde com o Sr. JIC, que proferiu a decisão instrutória, quando afirma:"Não é pois por aqui que se pode afirmar ter perigado a exigência de acompanhamento judicial da operação, acompanhamento que em rigor assume decisiva relevância perante o auto referido no n.º 1 do artigo 188.º do CPP, revestindo-se o 'auto de início de gravação' de uma função meramente instrumental, para controlo futuro do respeito dos prazos de duração máxima das intercepções".
Quanto à invocada falta de 'auto de audição' das gravações pela Sr.ª JIC, também não tem razão, como acima já se referiu, uma vez que os mesmos não são exigidos legalmente (nem o disposto nos invocados artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º s 1 e 3, do CPP o impõe ou assim determina e tão-pouco se pode considerar que entendimento contrário viola o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP), razão pela qual não existem no processo.
Para se ver se houve um 'acompanhamento efectivo, contínuo e próximo-temporal' de escutas telefónicas autorizadas judicialmente não é preciso lavrar 'autos de audição' que atestem ter o juiz ouvido as conversações interceptadas gravadas: basta atentar nos sucessivos despachos que a Sr.ª JIC foi proferindo, ao longo das investigações, de onde resulta, de modo inequívoco, que ia procedendo à audição dos CDs (relacionados com gravações de conversações não só do recorrente, como das demais conversações, resultantes das escutas telefónicas que autorizara a outros suspeitos e arguidos) que ia recebendo e, só depois de concretizar essa tarefa, é que seleccionava, por si (de modo autónomo e pessoal), aquelas sessões que depois ordenava (em despacho judicial) a respectiva transcrição.
De resto, o conceito de 'imediatamente' (inserido no artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na versão então vigente), assume, como diz Damião da Cunha,"uma dupla finalidade: 'a) a de garantir que a inviolabilidade do sigilo das telecomunicações seja sempre de reserva de um juiz, cabendo-lhe auto-responsavelmente, não só decidir da legitimação do recurso às escutas telefónicas, como da utilização dos elementos recolhidos para efeitos de investigação criminal; b) e a de garantir que, face aos elementos recolhidos, este proceda a um autónomo juízo substancial quanto ao grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova'".»
E depois de citar o que a esse respeito constava da decisão instrutória e do dito na resposta do Ministério Público à motivação do recurso, prossegue o acórdão:
«De facto, basta ler com atenção os diversos despachos proferidos pela Sr.ª JIC (ver inclusive datas em que foram proferidos), na sequência das promoções do Ministério Público, e, bem assim, o teor das transcrições que foram efectuadas, por ordem daquela Magistrada, considerando o número de pessoas alvo de intercepções telefónicas, para se poder concluir que foi adequado e apenas o estritamente necessário o tempo que mediou entre a realização (em tempo real) das intercepções e gravações das comunicações telefónicas respeitantes ao recorrente, a elaboração dos respectivos autos de intercepção e gravação e a sua entrega no tribunal (incluindo respectivos CDs), bem como entre aqueles autos e as decisões judiciais que ordenaram as transcrições que constam do processo.
Aliás, é patente que a Sr.ª JIC não se limitou a ouvir as sessões das gravações das conversações telefónicas que o OPC apontava como sendo aquelas com eventual interesse e relevo para a prova, o que também mostra que a mesma não abdicou do seu papel de, efectivamente, acompanhar judicialmente, passo a passo, a execução daquela operação e de emitir o seu juízo pessoal e autónomo sobre a relevância dos elementos recolhidos, cuja transcrição ordenou (juízo esse que, sempre podia ser contraditado pelo recorrente - pessoa escutada - desde logo a partir do momento em que lhe fora facultado o exame das transcrições).
Acresce que o facto de a Sr.ª JIC não ter fixado um prazo, um período temporal máximo de tempo de gravação (fazendo constar do despacho que, v. g., desde que as gravações realizadas atinjam x horas ou quando não atinjam tal tempo de gravação, no período máximo de y dias deverão ser presentes, ou desde logo, quando o interesse imediato para a diligência de prova assim se justifique), para serem apresentados os respectivos elementos (autos de gravação e CDs) pela Polícia Judiciária, apenas pode ser entendido (aliás, de acordo, também, com o salientado pelo Ministério Público, na resposta ao recurso) como 'uma maior flexibilidade por parte dos investigadores na escolha do momento para apresentar os elementos para transcrição à supervisão judicial, dentro do período autorizado de intercepções, sem que, todavia, a autoridade judiciária ficasse inibida de, a qualquer momento, tendo em vista a própria natureza da matéria sob investigação e as necessidades decorrentes da mesma, determinar aquela apresentação'.
Não se pode, por isso, afirmar (nem sequer de modo conclusivo), como o faz o recorrente (que, ao longo do texto da motivações vai fazendo considerações genéricas, não especificando em concreto, salvo raras excepções, quais os particulares autos e decisões judiciais que enfermam dos vícios que aponta de modo abstracto, v. g., não indicando em que situações é que teria ocorrido a falta de acompanhamento e controlo das escutas que lhe foram feitas), que o OPC 'retinha sistematicamente esses elementos na sua posse', em violação do disposto no artigo 188.º, n.º 1, do CPP então vigente (na tese do recorrente, não os levava imediatamente após a sua realização e gravação no CD ao juiz).
Aliás, nem havia qualquer interesse da PJ em efectuar qualquer retenção dos autos de gravação e dos respectivos CDs, uma vez que, desde que as escutas se iniciaram, a qualquer momento, o juiz que as autorizara poderia verificar a sua gravação e, portanto, o conteúdo das comunicações interceptadas, em directo (deslocando-se às instalações onde está instalado o computador terminal) ou podia mesmo, em qualquer altura, solicitar cassetes áudio ou CDs.
De qualquer forma, o facto de a Sr.ª JIC não ter fixado prazo para a apresentação dos autos de gravação das conversações telefónicas não significa descontrolo judicial sobre as escutas telefónicas que haviam sido autorizadas (aliás, como decorre dos elementos constantes deste processo de recurso, os autos de intercepção e gravação foram sendo apresentados à Sr.ª JIC, no máximo e, apenas em casos pontuais, à volta de 30 dias, mas sempre dentro dos prazos de autorização das escutas telefónicas, atentas as prorrogações que foram sendo concedidas pelos respectivos despachos judiciais).
Também a Sr.ª JIC não fixou prazos para a elaboração dos autos de transcrição e, todavia, apesar das dimensões do processo (e número de escutas telefónicas que estavam a decorrer), os mesmos foram sendo realizados em tempo razoável, sempre antes do termo do inquérito (não tendo a data em que as transcrições foram feitas interferido no direito de defesa do recorrente ou limitado o seu direito de as examinar e, tão-pouco, restringido o 'direito à inviolabilidade de um meio de comunicação privada').
Aliás, o próprio arguido que exercer o direito que lhe assiste, concedido pelo artigo 188.º, n.º 5, do CPP, na versão então vigente, tem 'a possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que as inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entender que as mesmas assumem relevância própria quer por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido das passagens anteriormente seleccionadas'.
O que também significa que não é vedado ao juiz de instrução, por sua iniciativa ou a requerimento, vir, mais tarde, a ordenar a transcrição de conversações telefónicas gravadas, que anteriormente havia considerado irrelevantes.
Tudo isto mostra a irrelevância do tempo que levou a elaborar, quer os autos de gravação das intercepções telefónicas, quer os autos de transcrição que constam dos autos (estes últimos, na sequência das decisões da Sr.ª JIC, durante a fase do inquérito, antes de ser proferida a acusação pública).
Não existe, assim, qualquer nulidade por inobservância do formalismo estabelecido no artigo 188.º, n.º s 1 a 3, do CPP, na versão então vigente e, assim, também não ocorre qualquer inconstitucionalidade (dado que não houve violação dos invocados artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.º s 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP).
Acompanhamos, assim, a decisão instrutória quando, pelos motivos que vai indicando concretamente (para os quais remetemos), acaba por concluir que, neste processo, a Sr.ª JIC assegurou 'um acompanhamento contínuo, próximo temporal e material da fonte', tendo presente o princípio da proporcionalidade, garantindo sempre que a restrição dos direitos fundamentais afectados com as escutas telefónicas (concretamente quanto ao recorrente, que é o que aqui nos ocupa), se limitassem ao estritamente necessário tendo em vista, também, a 'salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente'.
Quanto à invocada nulidade por prorrogação de prazos de intercepções telefónicas, sem que tivessem sido ouvidas as anteriores gravações, esqueceu o recorrente que a Sr.ª JIC, não obstante ter algumas sessões anteriores por ouvir, já tinha, entretanto, ouvido outras gravações, designadamente de conversações telefónicas de outros suspeitos e arguidos (que também estavam a ser escutados, com autorização judicial da mesma magistrada), o que lhe permitia aperceber-se das interligações (uma vez que falavam uns com os outros) que existiam entre as várias pessoas escutadas e, desse modo, concluir que 'havia razões para crer' que as prorrogações das escutas que estavam em curso (ou seja, a sua continuação), relativamente ao recorrente, se revelavam 'de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova'.
O raciocínio do recorrente (de haver despachos a renovar e prorrogar a autorização de escutas sem audição prévia das anteriores) só fazia sentido se, no caso, ele fosse a única pessoa que estivesse a ser escutada (o que não foi claramente o caso dos autos).
Aliás, basta ler os volumes relativos às diversas transcrições das conversações consideradas relevantes (conferindo as datas em que essas conversas tiveram lugar, mormente antes dos despachos que autorizaram as ditas prorrogações) para se perceber que essas prorrogações não foram arbitrárias ou caprichosas.
E repare-se que a Sr.ª JIC ia ouvindo os CDs com as gravações das conversações interceptadas, mesmo antes de seleccionar e indicar (nos despachos judiciais que ia proferindo) aquelas que eram relevantes para a prova (e que, depois, em tempo adequado e, até, compatível com o volume de gravações das conversações telefónicas interceptadas que tinha para ouvir, mandava transcrever).
Como é evidente, não foi no momento em que ordenou as transcrições (na data dos respectivos despachos) que a Sr.ª JIC procedeu à sua audição: essa audição vinha sendo analisada desde que recebia os CDs com as gravações das conversações telefónicas interceptadas (juntamente com os respectivos 'autos de gravação') até à altura em que concluía a selecção das passagens relevantes para a prova (passados dias, desde que recebera os CDs, como era de esperar, sob pena de não ser credível - e até se poder questionar - que, de facto, os tivesse ouvido).
Aliás, isso mesmo foi exarado em alguns dos despachos da Sr.ª JIC, como acima já se salientou.
E não se esqueça que o juiz, quando indica os elementos recolhidos que considera relevantes (e que, portanto, devem ser transcritos) - artigo 188.º, n.º 3, do CPP, na versão então vigente - faz a selecção, guiando-se pela imparcialidade, objectividade, independência, estando aberto a todas as posições e soluções (portanto, quer considerando o ponto de vista da acusação, quer o ponto de vista da defesa), tendo em atenção os princípios da liberdade, da igualdade, da proporcionalidade e do respeito pela personalidade individual (pois só assim cumpre o seu papel de garante dos direitos e liberdades dos cidadãos, enquanto entidade distinta, imparcial e independente da acusação), tendo presente que as finalidades do processo penal são a descoberta da verdade material, a realização da justiça, bem como alcançar a paz jurídica (o que tem de ser feito, v. g., com respeito pela dignidade humana e com o asseguramento de todas as garantias de defesa).
Como lembra o Ministério Público, na resposta ao recurso: 'a reiteração de condutas sempre foi confirmada nas sessões telefónicas escutadas que já tinha ouvido e de que tinha determinado a transcrição e, tendo em conta que os campeonatos de futebol, em que os escutados intervinham, se prolongavam por toda a época desportiva, bem como a particular forma de actuação dos visados, continuava a haver fortes razões para crer que tais condutas se prolongavam pelo menos até ao fim de tais campeonatos de futebol, o que só iria ocorrer em Maio de 2004. E, de facto, sempre isso se confirmou ao longo das intercepções, o que confirma o acerto do juízo efectuado nas prorrogações.'
Afirmações essas que também constam da decisão instrutória, chamando-se ainda à atenção: 'Por outro lado, dos autos (das sessões efectivamente escutadas, que é certo não foram todas) resultava já aquando dos despachos de prorrogação que os utilizadores dos telefones sob intercepção falavam uns com os outros, quer entre telefones interceptados, quer através de telefones fixos ou móveis não interceptados, para telefones interceptados, pelo que ao ouvir as sessões telefónicas referentes a uns facilmente se concluía que havia fortíssimas razões para crer que a prorrogação das intercepções de uns e outros telefones era necessária para os efeitos a que alude a parte final do n.º 1 do artigo 187.º do CPP'.
Por isso, podemos acompanhar, relativamente ao recorrente, a decisão instrutória quando afirma, a propósito das prorrogações das escutas: 'Não foram assim, e também por isto, violadas as disposições legais constantes dos artigos 187.º e 188.º do CPP, tal como não se verifica qualquer violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º da CRP, uma vez que a quantidade de crimes a investigar e a comprovada reiteração das condutas criminosas dos intervenientes legitimava, de forma não desproporcional, a compressão do seu direito à palavra, à reserva da intimidade da vida privada, da correspondência e das telecomunicações - cf. artigo 34.º da CRP'.
Especificamente sobre a questão da excessiva duração das escutas telefónicas (a que respeita a 'nona questão' ora em apreço), lê-se no acórdão recorrido:
"Nesta matéria, repare-se que apenas estão em causa as escutas telefónicas relativas aos dois telemóveis com os números de telefone acima identificados, da operadora Optimus, utilizados pelo recorrente.
Por se concordar com a fundamentação da decisão instrutória, transcreve-se aqui a respectiva argumentação que se considera relevante: 'Como é por demais sabido, os prazos legalmente fixados para a duração do inquérito são meramente ordenadores, sob pena de impedirem a realização e o culminar de inúmeras investigações. É certo que no caso dos autos houve intercepções que se prolongaram para além do prazo máximo legalmente fixado para a duração do inquérito. Sucede, porém, que nem a lei impõe, pelo menos por agora, prazos máximos para a duração das intercepções telefónicas, nem tão-pouco a complexidade dos autos permitia que se tivesse actuado de outra forma. Na verdade, para além do elevado número de suspeitos (e depois arguidos), também o número e a diversidade de crimes em investigação era de tal forma que não se compaginava com o respeito pelo aludido prazo legal. Veja-se que, apesar de terem sido extraídas dos autos um elevado número de certidões (cerca de 80) para continuação da investigação ou despacho final a desenvolver ou a proferir noutras Comarcas, ainda assim são 27 os arguidos acusados nestes autos e inúmeros os crimes em apreço. A tudo isto acresce ainda o facto da actividade desenvolvida pelos arguidos se estender ao longo do tempo que duravam os campeonatos de futebol. Reduzir a possibilidade de utilizar o meio de obtenção da prova em apreço ao prazo máximo de duração do inquérito seria fazer com que a investigação ficasse coarctada do principal meio de obtenção da prova (uma vez que sempre seria física e humanamente impossível proceder à presente investigação naquele prazo legal) e imediatamente votada ao insucesso.'
E adiante-se mais o seguinte argumento, também relevante, utilizado na resposta ao recurso do Ministério Público na 1.ª instância: 'Acresce que a actividade dos arguidos em causa se estendia ao longo do tempo que duravam os campeonatos de futebol. Pelo que, coarctar a utilização de tal meio precioso de investigação, só porque se ultrapassara o prazo máximo de duração do inquérito (que não tem valor constitucional) seria impedir que a investigação fosse efectuada, e, por isso, que o Ministério Público exercesse a acção penal, nos termos do princípio da legalidade e da consequente oficiosidade, tal como o impõe o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.'
Acresce que a questão colocada pelo recorrente não faz sentido desde logo porque as escutas telefónicas ao arguido/recorrente aqui em questão sempre foram controladas, passo a passo, pela Sr.ª JIC que as autorizou.
Aliás, se essa Magistrada tivesse considerado que não havia interesse na continuação daquelas escutas telefónicas (naquele juízo de ponderação vinculada - que foi efectuando em cada momento que autorizou a prorrogação das escutas - entre, por um lado, o interesse público da investigação criminal e, por outro, o direito à palavra falada e à privacidade do recorrente) que estavam a ser feitas ao recorrente, assim o teria dito, como o fez relativamente ao telefone da rede fixa (que apenas esteve sob escuta desde a data em que foi autorizado - despacho proferido em 25 de Março de 2003 - até à data em que foi ordenada a cessação dessa intercepção - despacho judicial de 26 de Maio de 2003) e como o fez relativamente ao telemóvel n.º (...) (que apenas esteve sob escuta desde a data em que foi autorizado - despacho judicial de 15 de Outubro de 2003 - até à data em que foi ordenada a cessação dessa intercepção - despacho judicial de 12 de Dezembro de 2003).»
E quanto à alegada prorrogação de escutas sem interesse (a que respeita a «décima questão» ora em apreço), aduziu-se no acórdão recorrido:
«Ora, como já vimos, relativamente ao telefone da rede fixa utilizado pelo recorrente, as escutas telefónicas apenas se prolongaram entre a data em que foram autorizadas (despacho proferido em 25 de Março de 2003) e a data em que foi ordenada a cessação dessa intercepção (despacho judicial de 26 de Maio de 2003).
A cessação justificou-se precisamente por, apesar da prorrogação que existiu, ainda assim, não ter tido qualquer resultado útil.
Por isso, nada de mais adequado e ajustado, do que fazer cessar aquela escuta telefónica, assim acautelando os direitos fundamentais do arguido/recorrente que estavam em jogo com aquele meio de obtenção de prova.
O mesmo se diga em relação ao telemóvel com o n.º (...) (que, tendo sido autorizada a sua intercepção telefónica por despacho judicial de 15 de Outubro de 2003 foi, depois, determinada a cessação da mesma intercepção por despacho judicial de 12 de Dezembro de 2003, pelos motivos aí indicados, ou seja, cerca de 2 meses depois).
Situação diferente é a das escutas relativas aos mencionados telemóveis da operadora Optimus, que o recorrente utilizava, como decorre, desde logo, do teor das transcrições que constam dos volumes 12 a 14 deste processo de recurso.
E, a este respeito, esclarece-se bem na decisão instrutória: 'quanto ao facto de a Mma. Juíza de Instrução Criminal ter mantido a intercepção ao alvo (...) até 26 de Maio de 2003, mesmo depois de ter mandado destruir os suportes magnéticos das intercepções efectuadas entre a data do início da intercepção (4 de Abril de 2003) e a data do despacho de prorrogação (fls. 148), e sem qualquer resultado útil. É certo que a intercepção do alvo em questão nada de útil trouxe aos autos. Porém, o arguido era titular de um outro telefone em relação ao qual foi determinada a intercepção na mesma data (...), tendo sido vários os resultados úteis daqui surgidos (cf. fls. 112, 123, 137 e 148). Ou seja, apesar de aquele número de telefone se ter revelado inútil para a investigação, o certo é que não havia razões para ordenar de imediato a cessação da sua intercepção, uma vez que o outro telefone propriedade do arguido em questão e também interceptado vinha fornecendo elementos úteis à investigação. No momento em que foi verificado que persistia a inexistência de conversas com utilidade, e ponderadas as necessidades da investigação com a menor compressão possível dos direitos do arguido, foi decidido fazer cessar a intercepção, o que ocorreu por despacho de 26 de Maio de 2003, tendo sido lavrado o auto de cessação a 28 de Maio de 2003, ou seja, um mês e 24 dias após o início da mesma.'
De resto, como acima se referiu, as gravações de conversações telefónicas que foram destruídas, no que respeita ao recorrente, foram pontuais, não afectando de forma desproporcionada os seus direitos de defesa.
Não se pode, por isso, acompanhar o recorrente, uma vez que (além de não indicar, no recurso, aspectos concretos em que tivesse ocorrido a violação que aponta em termos abstractos), como acima se referiu, as escutas que lhe foram efectuadas foram sendo sempre acompanhadas e controladas judicialmente, de forma efectiva, contínua e próximo-temporal.
A circunstância de apenas parte daquelas intercepções telefónicas gravadas terem sido consideradas relevantes e, por isso, transcritas, não inutiliza o entendimento do interesse na prorrogação das escutas judicialmente autorizadas.»
Basta a leitura destas considerações do acórdão recorrido para se concluir que o mesmo manifestamente não adoptou os pretensos «critérios normativos» enunciados pelo recorrente nas terceira, quarta, quinta, nona e décima questões de inconstitucionalidade suscitadas, tendo, pelo contrário, sido afirmada a existência de efectivo controlo, de modo contínuo e temporalmente próximo, das diversas fases de execução da intercepção de conservações telefónicas, sua gravação, selecção e transcrição, por parte do juiz de instrução, sem dilações que pusessem em risco a efectividade desse controlo, e nunca tendo existido autorização de prorrogações das escutas sem prévia ponderação judicial, designadamente pelo confronto com as escutas simultaneamente feitas a outros intervenientes processuais, do interesse e relevância para a descoberta da verdade da manutenção da intercepção das conversações telefónicas do ora recorrente.
Por estas razões, não se conhece das terceira, quarta, quinta, nona e décima questões de constitucionalidade suscitadas na alegação do recorrente.
2.1.3. A sexta questão vem reportada ao conjunto normativo integrado pelos artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º s 1 e 3, alínea a), do CPP, na aludida versão, «interpretado no sentido de considerar tais preceitos inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas telefónicas», por alegada ofensa dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8, da CRP.
As citadas disposições determinam que nos «actos processuais que tiverem de praticar-se sob a forma escrita», «é obrigatória a menção do dia, mês e ano da prática do acto, bem como, tratando-se de acto que afecte liberdades fundamentais das pessoas, da hora da sua ocorrência, com referência do respectivo início e conclusão», e ainda a indicação do «lugar da prática do acto» (n.º 6 do artigo 94.º), devendo o escrito a que houver de reduzir-se um acto processual ser no final «assinado por quem a ele presidir, por aquelas pessoas que nele tiverem participado e pelo funcionário de justiça que tiver feito a redacção» (n.º 1 do artigo 95.º), devendo o «auto» - definido como o «instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem os redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido perante aquele» (n.º 1 do artigo 99.º) - conter, além dos requisitos previstos para os actos escritos, a menção da «identificação das pessoas que intervieram no acto» (alínea a) do n.º 3 do artigo 99.º).
Nas contra-alegações do Ministério Público o não conhecimento desta questão é propugnado por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, a alegação de que as referidas normas foram interpretadas «no sentido de considerar tais preceitos inaplicáveis no domínio da recolha de prova por escutas telefónica» constitui «uma afirmação genérica», sendo certo que «nunca se disse no acórdão que os autos lavrados no domínio das escutas telefónicas não têm de obedecer aos requisitos constantes dos artigos 94.º, 95.º a 99.º do Código de Processo Penal», «nem o recorrente alguma vez pôs em causa um auto, por ele não obedecer aos requisitos legais» - o que seria suficiente para não se conhecer desta parte do recurso. Ao que acresce que, na motivação de recurso para a Relação, o que o recorrente considerou inaceitável foi não ter sido lavrado auto de audição das gravações, pelo juiz, quando essa obrigatoriedade resultar dos preceitos do CPP atrás referidos; ora, o que estes preceitos estabelecem é simplesmente quais são os requisitos a que devem obedecer os «actos processuais que tiverem de praticar-se sob a forma escrita», aí não se discriminando quais são os actos processuais que estão sujeitos a essa forma, pelo que «qualquer questão que tenha a ver com a obrigatoriedade ou não de alguns actos referentes às escutas serem reduzidos a escrito, tem de passar necessariamente pelo artigo 188.º do CPP», e «é aí que se diz que apenas deve ser lavrado auto de intercepção e gravação (n.º 1) e de transcrição (n.º 3)», pelo que «uma eventual inconstitucionalidade consistente em não estar previsto que seja lavrado auto de audição de gravação pelo juiz radicará sempre e exclusivamente no artigo 188.º» - não tendo o recorrente incluído esta norma no objecto desta parte do recurso, também por este motivo dela não deverá conhecer-se.
Em resposta a esta questão prévia, aduziu o recorrente:
«O que está em causa no recurso sub judice é a questão de saber qual o âmbito normativo dos artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º s 1 e 3.
Pelo menos, foi desse enfoque que o recorrente colocou o problema, ou seja, da perspectiva de analisar se essas normas abrangem ou não os actos relativos à recolha de prova por escutas telefónicas.
Admite-se que houvesse outra forma de colocar o problema, enfocando-o da perspectiva do artigo 188.º do CPP.
Mas trata-se apenas e como ficou dito de uma outra forma de abordar a questão, não havendo nenhum motivo que exclua a abordagem do recorrente que, por isso, se reitera e considera válida.»
Como resulta da transcrição do acórdão feita no ponto anterior, aí se entendeu que do artigo 188.º do CPP apenas resulta a obrigatoriedade da elaboração do «auto de intercepção e gravação» (n.º 1) e do «auto de transcrição» (n.º 3), não exigindo essa disposição legal nem a elaboração de «auto de início da intercepção de comunicações» nem de «auto de audição das gravações pelo juiz». Não obstante, apesar de não legalmente exigidos, a Polícia Judiciária por sistema elaborou autos de início de intercepção das gravações, referindo-se no acórdão que: «Nesses autos (cada um deles relativo ao respectivo n.º de telefone aí identificado), consta quer a identificação do inspector da PJ que iniciou as respectivas intercepções das comunicações, bem como a referência à data (de início) e local onde se procedia a tal intercepção de comunicações (obviamente o local onde iriam ser feitas as gravações das respectivas conversações telefónicas interceptadas, enquanto não fossem 'canceladas'), a referência ao despacho judicial que as autorizava, bem como a indicação de que o 'conteúdo das comunicações interceptadas' podia, a partir daquelas datas iniciais indicadas, «ser a todo o tempo verificado directamente pela Mma. JIC, também através de cassetes áudio'.»
Do exposto resulta não ter o acórdão recorrido aplicado o «critério normativo» ora questionado pelo recorrente: em parte alguma dessa decisão se aceitou que os autos legalmente exigíveis no âmbito das escutas telefónicas não estavam subordinados aos requisitos formais dos artigos 94.º, n.º 6, 95.º, n.º 1, e 99.º, n.º s 1 e 3, alínea a), do CPP. O que se disse foi que o artigo 188.º do CPP não exigia a elaboração dos autos aludidos pelo recorrente, pelo que a única forma adequada de, a este propósito, suscitar uma questão relevante de inconstitucionalidade seria impugnar esta interpretação do artigo 188.º do CPP, o que o recorrente não fez, como, aliás, ele próprio reconhece.
Não se conhecerá, assim, da sexta questão de inconstitucionalidade suscitada na alegação do recorrente.
2.1.4. A sétima questão respeita à norma contida na segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º do CPP, na citada versão, «interpretada no sentido de permitir a destruição dos elementos recolhidos através de escutas telefónicas e dos respectivos suportes magnéticos sem que o arguido escutado tenha tido acesso a tais elementos nem tenha consentido na sua destruição».
Como se consignou no recente Acórdão 340/2008 desta 2.ª Secção:
«O Tribunal Constitucional, através dos Acórdãos n.º 660/2006, da 2.ª Secção, e n.º s 450/2007 e 451/2007, ambos da 3.ª Secção (...) pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, da norma do artigo 188.º, n.º 3, do CPP, na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância.
Atendendo à existência de vários votos de vencido apostos a esses Acórdãos e para evitar divergências jurisprudenciais, determinou o Presidente do Tribunal Constitucional, com a concordância do Tribunal, ao abrigo do artigo 79.º-A, n.º 1, da LTC, a intervenção do Plenário, que, pelo Acórdão 70/2008 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), embora com diversos votos dissidentes, inflectiu aquela orientação, decidindo 'não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a sua defesa'.
A orientação assim definida foi posteriormente seguida pelos Acórdãos n.º s 128/2008, 204/2008 e 205/2008 e pela Decisão Sumária n.º 202/2008.
É essa mesma orientação que ora se reitera.»
Julga-se, assim, improcedente a sétima questão de inconstitucionalidade suscitada.
2.1.5. A oitava questão de inconstitucionalidade vem reportada ao artigo 82.º da LTC, por alegada violação do n.º 3 do artigo 281.º da CRP, «se interpretado no sentido de permitir que o Tribunal Constitucional profira, em qualquer processo, decisão contrária ao juízo de inconstitucionalidade duma norma que tenha sido proferido em três casos concretos e, por conseguinte, no sentido de que, neste caso concreto, pode pronunciar-se pela constitucionalidade da segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º da CPP na interpretação sub judice».
Na contra-alegação do Ministério Público propugna-se o não conhecimento desta questão, pelas seguintes razões:
«O recorrente levanta esta questão, pela primeira vez, nas alegações produzidas neste Tribunal.
Em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade é com o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade que se fixa o seu objecto. Nas posteriores alegações ele apenas pode ser restringido, nunca alargado.
Tanto bastaria para não se conhecer, nesta parte, do recurso.
Outras razões há, no entanto, que levam à mesma conclusão.
Aquilo a que o recorrente se refere é ao facto de, após terem sido proferidos três acórdãos a julgarem inconstitucional o n.º 3 do artigo 188.º do Código de Processo Penal (destruição dos elementos recolhidos através de escutas telefónicas), o Plenário do Tribunal ter proferido decisão em sentido contrário (Acórdão 70/2008).
Ora, assim sendo, e a ter sido aplicado tal preceito, essa aplicação ocorreu no processo onde foi proferido aquele acórdão e, obviamente, não neste processo.
Mas verifica-se que nem naquele foi aplicado porque a intervenção do Plenário teve lugar ao abrigo do disposto no artigo 79.º-A da LTC e não do artigo do artigo 82.º da mesma Lei.
Por tudo isto, também não deve conhecer-se do recurso, nesta parte.»
A esta questão prévia respondeu o recorrente nos seguintes termos:
«O recorrente colocou nas suas alegações, pela primeira vez, a questão da constitucionalidade do artigo 82.º da LTC.
Não parece, todavia, que a circunstância de essa questão não ter sido suscitada no requerimento de interposição do recurso seja impeditiva da sua análise pelo Tribunal Constitucional, por duas razões que se conjugam.
Por um lado, porque, à data da interposição do recurso, não eram conhecidas as três decisões convergentes em que o recorrente funda a questão de constitucionalidade que suscitou nas suas alegações.
Por outro lado, porque a interpretação do artigo 82.º da LTC contrária à por si propugnada (no fundo, a que foi adoptada pelo Acórdão 70/2008 do Plenário do Tribunal Constitucional) constituiu para o recorrente uma verdadeira surpresa.
O recorrente considera que não era expectável que pudesse vir a publicar-se uma decisão que - salvo o devido respeito - implica uma ofensa clara e frontal do disposto no artigo 82.º da LTC e, sobretudo, do n.º 3 do artigo 281.º da CRP.
Acresce que - e assim se aborda a outra objecção proposta pelo Ministério Público - o recorrente não põe em causa directamente a constitucionalidade desse acórdão do Plenário.
Nem o poderia pôr, como é óbvio, uma vez, por um lado, que esse aresto não foi tirado neste processo e, por outro, que, apesar de ter vocação uniformizadora, não tem força obrigatória geral.
A questão, tal como o recorrente a suscita, é algo diferente e assenta numa espécie de inconstitucionalidade por omissão, passando por saber se o Tribunal Constitucional, em cada processo concreto submetido à sua decisão, é ou não obrigado a suprir a falta de decisão normativa imposta pelo artigo 281.º, n.º 3, da CRP.
Trata-se, se se quiser, de uma questão prévia à análise da constitucionalidade duma norma concreta: a questão de saber se o Tribunal Constitucional tem outra alternativa nessa análise que não seja a de decidir na conformidade das três anteriores decisões de sentido convergente.
Seja como for, a questão colocada pelo recorrente não tem o perfil do recurso de amparo, muito menos contra uma decisão proferida noutro processo.»
Aceita-se que, ao colocar, nos termos em que o fez, a presente questão de constitucionalidade, o recorrente não está a colocá-la em termos de recurso (isto é: de impugnação de uma decisão de outro tribunal que teria aplicado norma inconstitucional), mas antes está a suscitar uma questão de inconstitucionalidade visando evitar que o Tribunal Constitucional, ao decidir o presente recurso, vá, ele próprio, de forma directa, aplicar norma que o recorrente reputa inconstitucional. Isto é: uma vez que o Tribunal Constitucional, como qualquer outro tribunal, não deve aplicar, nas suas decisões, normas inconstitucionais, o que o recorrente pretende não é que o Tribunal Constitucional controle a constitucionalidade de uma norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida, mas antes que se recuse, na decisão do recurso, uma interpretação normativa que o recorrente reputa inconstitucional.
Entende-se, porém, que a aplicação - que acabou de ser feita no ponto anterior - de uma interpretação normativa do artigo 82.º da LTC que considera não estar o Tribunal Constitucional impedido de emitir, na apreciação de um processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, um juízo de não inconstitucionalidade de uma norma que já fora objecto de três anteriores decisões no sentido da inconstitucionalidade, não viola o artigo 281.º, n.º 3, da CRP.
Na verdade, como se referiu no citado Acórdão 340/2008:
«Como é sabido, a existência de três decisões do Tribunal Constitucional, proferidas em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, que tenham julgado inconstitucional determinada norma não determina necessariamente que, no processo de 'generalização' previsto no artigo 82.º da LTC, a decisão do Tribunal não possa ser outra senão a confirmação daqueles juízos de inconstitucionalidade. A 'generalização' dos juízos concretos de inconstitucionalidade não se produz automaticamente, sendo a existência de três decisões concretas de inconstitucionalidade mero pressuposto da instauração de um processo autónomo de fiscalização abstracta da constitucionalidade da norma em causa, que seguirá os termos do esquema comum dessa forma processual, designadamente com audição do autor da norma (que não teve lugar nos processos de fiscalização concreta). Assim, estando-se perante um processo autónomo, nada impede que a decisão do Plenário seja divergente dos juízos de inconstitucionalidade proferidos pelas Secções (decisões estas que inclusivamente podem ser provenientes de uma mesma Secção e ter sido aí aprovadas por uma maioria tangencial de três dos respectivos juízes, pelo que não faria sentido impor o sentido dessa decisão ao Plenário, integrado por treze juízes). Como refere Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, tomo VI, 3.ª edição, Coimbra, 2008, p. 280), 'uma automática declaração de inconstitucionalidade, concomitante com a terceira decisão em concreto, brigaria com a letra da Constituição, com o seu espírito e com a distinção de competência das secções e do plenário' (posição reafirmada em Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra, 2007, p. 811). No sentido da não automaticidade da 'generalização' dos juízos de inconstitucionalidade também se pronunciaram J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, 2003, p. 1025; e José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª edição, Coimbra, 2007, p. 91 e nota 122) e constitui entendimento desde sempre sustentado por este Tribunal, tendo-se referido no Acórdão 457/94: 'O facto de determinada norma ter sido julgada inconstitucional em três casos concretos não conduz, por sua vez, e como pondera o Acórdão 347/92 (...), na esteira de outros, a uma declaração automática da sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral, mas implica reapreciar a questão pelo Tribunal Constitucional: como então se observou, 'é um novo processo de fiscalização que se abre e uma nova decisão que se tem de tomar'.
A existência de juízos concretos de inconstitucionalidade por parte de Secções do Tribunal Constitucional, independentemente do número desses juízos, não tem força vinculativa fora dos processos em que foram proferidos, nem em relação aos restantes tribunais, nem sequer face ao próprio Tribunal Constitucional, nada impedindo que, quer em Secção, quer em Plenário, e seja este chamado a intervir ao abrigo do artigo 82.º ou dos artigos 79.º-A ou 79.º-C da LTC, venha a obter vencimento posição no sentido da não inconstitucionalidade. E, por outro lado - embora, em estrito rigor, não seja juridicamente vinculativa - , a pronúncia do Plenário chamado a intervir ao abrigo do artigo 79.º-A da LTC, intervenção motivada justamente por o Tribunal, colegialmente, a ter considerado 'necessária para evitar divergências jurisprudenciais', deva ser seguida em posteriores decisões do Tribunal, mesmo pelos juízes que dela divergiram, ao menos enquanto se mantiver a composição do Plenário e não sobrevierem alterações relevantes do quadro jurídico existente.»
Julga-se, assim, improcedente a oitava questão de inconstitucionalidade suscitada.
2.2. Recurso da decisão instrutória:
2.2.1. A primeira questão suscitada no âmbito do recurso da decisão instrutória (décima primeira questão enunciada na alegação do recorrente) respeita ao conjunto normativo formado pelos artigos 372.º, 373.º, 374.º e 386.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal «interpretado no sentido de incluir nas respectivas previsões o Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol».
Na contra-alegação do Ministério foi suscitada - para além da restrição do objecto do recurso às normas dos artigos 374.º, n.º 1, e 386.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal (únicas efectivamente aplicadas na decisão recorrida), com exclusão das dos artigos 372.º e 373.º desse Código - a questão do não conhecimento desta questão, com os seguintes argumentos:
«3.2.2. A questão essencial que é trazida pelo recorrente é a de saber se considerar-se o Presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol como funcionário para efeitos do crime de corrupção activa constitui uma interpretação daquelas normas, violadora do princípio da legalidade, consagrado no artigo 29.º, n.º s 1 e 2, da Constituição.
Estando nós no domínio de normas incriminadoras parece-nos óbvio que vigorará, no caso, em pleno, o princípio da legalidade penal.
3.2.3. Uma vez que o que está em causa é a violação do princípio da legalidade por uma certa interpretação normativa, poderia colocar-se a questão de competência do Tribunal Constitucional para conhecer do recurso.
Na verdade, poderá afirmar-se que no caso dos autos o que o recorrente verdadeiramente questiona, ratio constitutione, não é tanto um certo sentido ou dimensão normativa que a decisão recorrida tenha extraído das normas, mas, antes, o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido concluir que o Presidente do Conselho de Arbitragem é funcionário para efeitos do crime de corrupção activa (sobre a competência do tribunal nesta matéria, cf. Lopes do Rego, 'As Interpretações Normativas Sindicáveis pelo TC', in Jurisprudência Constitucional, n.º 3).
Sobre esta controversa questão da competência do Tribunal e após numerosa, diversa e diversificada jurisprudência, o Plenário proferiu recentemente o Acórdão 183/2008, que, por violação do princípio da legalidade, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e dos artigos 366.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.
Preliminarmente ao conhecimento da questão de fundo o Tribunal decidiu ser competente para conhecer do pedido.
Nesse aresto e citando os Acórdãos n.º s 412/2003 e 110/2007, o Tribunal entendeu que para que houvesse um objecto apto à apreciação da constitucionalidade bastaria que se estivesse perante um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas, sendo, pois, necessário que a questão se colocasse com um grau suficiente de generalidade e abstracção, de forma a poder dizer-se que se tratava de uma interpretação normativa que não dependia do circunstancialismo concreto dos factos.
Ora, no presente processo vem suscitada a questão da inconstitucionalidade de normas penais enquanto aplicáveis a uma pessoa: o Presidente do Conselho de Arbitragem. O que está em causa é saber se a interpretação que considera que o Presidente do Conselho de Arbitragem é funcionário para efeitos do crime de corrupção activa é ou não violadora do princípio da legalidade.
Parece-nos, portanto, que tal como a questão vem colocada, não se vislumbra nela a existência de um qualquer grau de abstracção e generalização.»
A esta questão prévia respondeu o recorrente nos seguintes termos:
«No que diz respeito à objecção desenvolvida sob o n.º 3.2.3, dir-se-á que o recorrente colocou a questão aí abordada em termos normativos, na medida em que o que propôs ao debate é a interpretação das normas contidas na parte final dos artigos 372.º, 373.º, 374.º e 386.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na perspectiva do âmbito subjectivo abstracto e genérico de aplicação de tais normas, ou seja, da definição do universo de entidades e pessoas abrangidas por elas.
A aplicação dessas normas a uma entidade concreta (a Comissão de Arbitragem da FPF e qualquer dos seus membros) tem como pressuposto a delimitação desse âmbito segundo critérios genéricos de interpretação cuja constitucionalidade o recorrente submeteu à sindicância deste Tribunal.
Assim sendo, não saímos do domínio normativo e da solicitação de um juízo de constitucionalidade abstracto e geral.»
No citado Acórdão 183/2008 foi feita desenvolvida exposição da problemática relativa à sindicabilidade pelo Tribunal Constitucional da alegada violação do princípio da legalidade penal (ou fiscal) imputada a interpretações analógicas feitas pelos restantes tribunais, tendo, a esse respeito, expendido o seguinte:
«Sabe-se que a Constituição não acolheu um sistema de recurso de amparo ou de queixa constitucional mas sim um sistema de fiscalização normativa da constitucionalidade, que impede que o Tribunal conheça de actos (não normativos) dos poderes públicos que sejam directamente lesivos de direitos fundamentais, constitucionalmente tutelados. Nessa medida, não pode também o Tribunal conhecer da eventual inconstitucionalidade de decisões judiciais em si mesmas tomadas.
Mantém-se exemplar, a este propósito, a explicação do Acórdão 674/99 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 25 de Fevereiro de 2000) que foi recentemente transcrito no já citado Acórdão 524/2007 e que aqui se repete:
"[...] mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma operação equivalente, designadamente a uma interpretação 'baseada em raciocínios analógicos', o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.[...]
[...] Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais - designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens - , uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu 'sentido natural' (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa."
Tudo isto é verdade e terá de se manter como boa jurisprudência.
De facto, como se disse, não vigora entre nós um sistema de recurso de amparo ou de queixa constitucional, existindo, sim, um sistema de fiscalização normativa da constitucionalidade que não permite que o Tribunal conheça do mérito constitucional do acto casuístico de subsunção de um pormenorizado conjunto de factos concretos na previsão abstracta de uma certa norma legal.
Contudo, o problema que agora se coloca - que é o de saber se não haverá porventura uma violação do princípio da legalidade criminal quando se considera que a declaração de contumácia constituía uma causa de suspensão da prescrição à luz do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 - tem uma especificidade que não poderá ser negligenciada.
Esta especificidade do problema poderá ser explicada partindo de uma distinção metodológica relativa ao referente da norma legal.
As normas podem referir-se (i) a factos concretos cujo circunstancialismo envolvente será sempre inabarcável, podem também referir-se (ii) a realidades típicas não configuradas pelo legislador e podem, ainda, referir-se (iii) a meras categorias normativas fixadas por lei (...).
Esta diferença é processualmente relevante.
Se no primeiro caso é líquido que a determinação do referente da norma (factos concretos) está fora do domínio de actividade do Tribunal Constitucional, já o mesmo não se poderá dizer, com igual certeza, no segundo caso, em que o referente são factos típicos com um elevado grau de abstracção e, menos ainda, no terceira hipótese, em que o referente sejam categorias legais.
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade inclui a possibilidade de apreciar a validade daquilo que geralmente se designam como interpretações normativas, admitindo o artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional a possibilidade de 'o juízo de constitucionalidade sobre a norma que a decisão tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em determinada interpretação dessa mesma norma'.
O controlo de constitucionalidade das 'interpretações normativas', assim admitido, não atribui, porém, ao Tribunal a competência que ele não pode ter, desde logo face ao disposto no artigo 221.º da Constituição. Um 'tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional' não pode, evidentemente, transformar-se em instância revisora do modo como os demais tribunais interpretam e aplicam o direito infra-constitucional, substituindo-se-lhes na tarefa (que exclusivamente lhes pertence) de subsunção de certos factos a certo tipo de determinação legal. Tal em caso algum poderá ocorrer; tal não ocorre seguramente no caso agora sub judice.
Com efeito, e ao invés do que sucede quando se pergunta se determinado conjunto de factos concretos é ou não susceptível de subsunção num determinado tipo legal, quando se pergunta se a declaração de contumácia é ou não susceptível de integrar o universo das causas legais de suspensão da prescrição, não se está a determinar se uma expressão legal é ou não susceptível de ter como referente um determinado conjunto de factos concretos, mas sim um acto processual legalmente definido de forma geral e abstracta. O referente é pois, em primeira linha, o conteúdo geral e abstracto de uma norma legal e não um conjunto de factos concretos ou típicos.
Não se pergunta se um determina facto concreto com todo o seu circunstancialismo se pode incluir no âmbito da norma. A esta pergunta não pode o Tribunal Constitucional responder.
Não se coloca aqui, sequer, a questão de saber se um determinado facto típico dotado já de um grau médio de abstracção está abrangido pelo âmbito de uma norma - que era o que sucederia, por exemplo, se se perguntasse se a 'energia eléctrica' se pode considerar uma 'coisa móvel' ou se o 'ácido' se poderá considerar uma 'arma' para efeitos de um determinado tipo de crime (veja-se Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte geral, Tomo I: Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2.ª ed., Coimbra 2007, p. 188 s.)
Pergunta-se, sim, se um acto processual normativamente inventariado em termos gerais e abstractos pela lei - a 'declaração de contumácia' - é, ou não, passível de ser assimilado pelos conceitos utilizados pelo texto do artigo 119.º na versão originária de 1982 e, em especial, se ela se poderá configurar como um 'caso de suspensão da prescrição especialmente previsto na lei' ou como uma hipótese de 'falta de autorização legal para continuar o procedimento'.
Trata-se apenas de saber se - em abstracto - será possível incluir o conteúdo normativo constante de uma norma - o artigo 336.º do Código de Processo Penal - no conteúdo normativo constante de outra norma - o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal, na versão originária de 1982.
Assim, os argumentos fundamentais invocados para não conhecer das eventuais violações do princípio da legalidade não valem para este caso em que o possível referente da norma é uma outra norma geral e abstractamente fixada por lei.
(...)
Nos Acórdãos n.º s 412/2003 e 110/2007, o Tribunal Constitucional entendeu que, para que houvesse um objecto apto à apreciação da constitucionalidade, bastaria que se estivesse perante um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas.
Seria, pois, necessário que a questão se colocasse com um grau suficiente de generalidade e abstracção, de tal modo que se pudesse dizer que se trataria de uma interpretação normativa que não dependeria do circunstancialismo concreto dos factos.
Se admitimos que este critério possa gerar dúvidas no que respeita a realidades típicas sem previsão legal, já o mesmo não se poderá dizer quando está em causa uma figura processual abstracta normativamente prevista como é o caso da declaração de contumácia.»
A situação em causa no presente recurso é substancialmente diferente daquela que foi apreciada no Acórdão 183/2008, pois do que agora se trata é de saber uma concreta pessoa, a quem alegadamente o recorrente teria dado ou prometido determinada vantagem, que não lhe era devida, para ele praticar qualquer acto ou omissão contrários ao dever do cargo, e que detinha a específica qualidade de presidente da Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol desempenha funções em 'organismo de utilidade pública' e, por isso, por força da parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal, é considerado 'funcionário' para efeitos da lei penal.
A decisão recorrida respondeu afirmativamente à questão, pelas razões desenvolvidas a fls. 859 a 884 destes autos (fls. 22 841 a 22 866 do processo principal), basicamente por entender que a Federação Portuguesa de Futebol, como resulta claramente das disposições legais pertinentes, é uma pessoa colectiva de direito privado à qual foi concedido estatuto de utilidade pública, tendo, por efeito desta concessão, passado a prosseguir também fins de natureza pública e praticar actos que implicam prerrogativas de autoridade perante os clubes, jogadores, dirigentes, árbitros, etc., cabendo das decisões dos seus órgãos, no uso de poderes públicos, recurso para os tribunais administrativos.
O que o recorrente questiona é, pois, a correcção do entendimento judicial de que a concreta pessoa que exercia as funções de presidente da Comissão de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol e à qual ele terá dado ou prometido dar vantagens pela prática de actos ou omissões contrários ao dever do cargo desempenhava funções em organismo de utilidade pública. Tratou-se de entendimento que assumidamente se circunscreveu ao teor literal do preceito em causa, sem qualquer alusão a argumentos de igualdade ou maioria de razão, que denunciassem o recurso à analogia. Entendimento esse que, aliás, era o perfilhado pela doutrina, designadamente no Comentário Conimbricense do Código Penal (Parte Especial, Tomo III, Coimbra, 2001, p. 812, § 23 da anotação ao artigo 386.º), que refere:
«Organismos de utilidade pública corresponde ao conceito, corrente no direito administrativo, de pessoas colectivas de utilidade pública, isto é, pessoas colectivas de direito privado que mereçam a qualificação de interesse público, ou seja, a declaração de utilidade pública, independentemente do substrato que lhes presidia. Podem ser pessoas colectivas de mera utilidade pública, instituições particulares de solidariedade social ou pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (...).»
Neste contexto, a questão ora em causa não é recondutível às hipóteses em que se arguí a inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade penal, designadamente pelo proibido recurso à integração analógica, de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas, como ocorria nas situações em que o Tribunal Constitucional considerou admissível conhecer do objecto do recurso.
O que, em rigor, o recorrente pretende é que o Tribunal Constitucional sindique a correcção da operação judicial de subsunção do caso dos autos à previsão legal, o que, pelas razões expostas, é inadmissível.
Por estas razões, não se conhecerá da décima primeira questão suscitada na alegação do recorrente.
2.2.2. Finalmente, a décima segunda questão vem reportada à Lei 49/91, de 3 de Agosto, que, ao não definir com rigor a extensão e sentido da autorização legislativa concedida, ofenderia o disposto no n.º 2, por referência à alínea c) do n.º 1, do artigo 165.º da CRP, sendo consequentemente inconstitucional o Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro, emitido ao abrigo dessa inválida autorização (embora, quanto ao Decreto-Lei, como se assinala na contra-alegação do Ministério Público, tendo o recorrente sido pronunciado pela prática de 21 crimes dolosos de corrupção desportiva activa previsto e punido nos artigo 4.º, n.º s 1 e 2, por referência aos artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, desse diploma, são apenas estas as normas efectivamente aplicadas, pelo que exclusivamente elas poderão, nesta parte, integrar o objecto do recurso).
A Lei 49/91 tem a seguinte redacção:
«Artigo 1.º Fica o Governo autorizado a legislar no sentido de qualificar como crime comportamentos que afectem a verdade e a lealdade da competição desportiva e seu resultado.
Artigo 2.º O diploma a publicar ao abrigo da presente autorização legislativa estabelecerá a definição dos comportamentos, acções ou omissões, contrários ao princípio da ética desportiva, com o fim de alterar a verdade, lealdade e correcção da competição desportiva ou o seu resultado, fixará as respectivas sanções, até ao limite de quatro anos de prisão, com ou sem multa, podendo o julgamento prever penas acessórias de suspensão da actividade desportiva e de privação de receber subsídios oficiais.
Artigo 3.º A presente autorização legislativa tem a duração de 90 dias.»
Como no recente e já citado Acórdão 340/2008 desta Secção se consignou:
«Relativamente à exigência constitucional de a lei de autorização legislativa definir, não apenas o objecto e a extensão, mas também o sentido da autorização (requisito apenas aditado na revisão constitucional de 1982), a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem reiteradamente aderido às formulações avançadas no Acórdão 358/92, segundo as quais:
"(...) o sentido de uma autorização legislativa, sendo um dos elementos do 'conteúdo mínimo exigível' da lei de autorização, só é efectivamente observado quando as indicações a esse título constantes da lei de autorização permitam um juízo seguro de conformidade material do conteúdo do acto delegado em relação ao da lei delegante, pelo que, se o 'sentido' não tem que exprimir-se em abundantes princípios ou critérios directivos, deverá, pelo menos, ser suficientemente inteligível para que o seu conteúdo possa preencher a função paramétrica que a Constituição lhe confere.
Nesta ordem de ideias escreveu António Vitorino (op. cit., págs. 238 e 239): 'O sentido da autorização legislativa, sendo algo mais do que a mera conjugação dos elementos objecto (matéria ou matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sobre que incidirão os poderes delegados) e extensão (aspectos da disciplina jurídica daquelas matérias que integram o objecto da autorização que vão ser modificados), não constitui, contudo, exigência especificada de princípios e critérios orientadores [...], mas algo mais modesto ou de âmbito mais restrito, que deve constituir essencialmente um pano de fundo orientador da acção do Governo numa tripla vertente:
Por um lado, o sentido de uma autorização deve permitir a expressão pelo Parlamento da finalidade da concessão dos poderes delegados na perspectiva dinâmica da intenção das transformações a introduzir na ordem jurídica vigente (é o sentido na óptica do delegante);
Por outro lado, o sentido deve constituir indicação genérica dos fins que o Governo deve prosseguir no uso dos poderes delegados, conformando, assim, a lei delegada aos ditames do órgão delegante (é o sentido na óptica do delegado);
E, finalmente, o sentido da autorização deverá permitir dar a conhecer aos cidadãos, em termos públicos, qual a perspectiva genérica das transformações que vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da outorga da autorização (é o sentido na óptica dos direitos dos particulares, numa zona revestida de especiais cuidados no texto constitucional - as matérias que incluem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República).'"
Nesta mesma linha se insere o Acórdão 213/95, no qual se lê:
'(...) dir-se-á que o objecto constitui o elemento enunciador da matéria sobre que versa a autorização, a extensão especifica qual a amplitude das leis autorizadas e através do sentido são fixados os princípios base, as directivas gerais, os critérios rectores que hão-de orientar o Governo na elaboração da lei delegada.
Este último elemento de condicionamento substancial constitui já, não um limite externo, definidor dos contornos da autorização, mas um verdadeiro limite interno à própria autorização, pois que é essencial para a determinação das linhas gerais das alterações a introduzir numa dada matéria legislativa.
Assim sendo, a autorização há-de conter os princípios, as normas fundamentais que concedem unidade lógico-política à disciplina a editar pelo Governo, e há-de estabelecer também as directivas, reconduzíveis à determinação das finalidades a que aquela disciplina tem de adequar-se.
E deve sublinhar-se com especial destaque, que se o sentido da autorização não tem de exprimir-se em abundantes princípios ou critérios directivos (que levados às últimas consequências poderiam até condicionar por inteiro em termos de conteúdo o exercício dos poderes delegados), deverá, no mínimo, como condição da sua própria verificação, ser suficientemente inteligível a fim de poder operar como parâmetro de aferição dos actos delegados e, consequentemente, como padrão de medida por parte do legislador delegado do essencial dos ditames do legislador delegante (cf., por todos, os Acórdãos n.º s 107/88 e 70/92, Diário da República, respectivamente, 1.ª série, de 21 de Junho de 1988 e 2.ª série, de 18 de Agosto de 1992).'»
Estes requisitos mínimos são satisfeitos pela lei ora em apreço, que claramente indica o sentido da intervenção legislativa programada - a qualificação como crime de comportamentos que afectem a verdade e a lealdade da competição desportiva e seu resultado - não sendo exigível que a própria lei contenha a definição dos diversos conceitos jurídicos que utiliza, como o de competição desportiva, ética desportiva, actividade desportiva, etc., conceitos cujo sentido, além de ser de apreensão comum, já resultavam de outros instrumentos jurídicos vigentes (designadamente a Lei de Bases do Sistema Desportivo - Lei 1/90, de 13 de Janeiro). Aliás, a lei em causa, para além desse sentido incriminador fundamental, enunciou claramente os valores a proteger (a ética desportiva e a verdade, a lealdade e a correcção da competição desportiva) e chegou ao detalhe de elencar as sanções aplicáveis e seus limites (prisão até quatro anos, com ou sem multa, e penas acessórias de suspensão da actividade desportiva e de privação de receber subsídios oficiais).
O cumprimento do objectivo da imposição constitucional em causa ainda foi reforçado, no caso em apreço, pela circunstância de a Proposta de Lei 174/V, que esteve na génese da Lei 49/91, ter sido logo acompanhada do projecto de decreto-lei que o Governo se propunha editar no uso da autorização legislativa solicitada (cf. Diário da Assembleia da República, V Legislatura, 4.ª Sessão Legislativa, 2.ª série-A, n.º 14, de 14 de Dezembro de 1990, pp. 288-290), como veio a fazer.
Conclui-se, assim, que a Lei 49/91 não padece de inconstitucionalidade, por alegada violação do disposto no n.º 2, por referência à alínea c) do n.º 1, do artigo 165.º da CRP, e, assim sendo, também improcede a imputação de inconstitucionalidade das normas aplicadas do Decreto-Lei 390/91, inconstitucionalidade esta que, na tese do recorrente, surgia como meramente consequente da pretensa inconstitucionalidade da lei de autorização legislativa.
3. Decisão:
Em face do exposto, decide-se:
a) Não conhecer das 1.ª a 6.ª e 9.ª a 11.ª questões suscitadas na alegação do recorrente;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a sua defesa;
c) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro, interpretado no sentido de permitir que o Tribunal Constitucional profira, no julgamento de um recurso, juízo de não inconstitucionalidade de uma norma que já fora objecto de juízos de inconstitucionalidade em três decisões anteriores;
d) Não julgar inconstitucional a Lei 49/91, de 3 de Agosto, nem o Decreto-Lei 390/91, de 10 de Outubro, emitido ao abrigo da autorização concedida por essa Lei; e, consequentemente,
e) Negar provimento aos recursos, confirmando as decisões recorridas, nas partes impugnadas.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Julho de 2008. - Mário José de Araújo Torres (relator) - Benjamim Silva Rodrigues - João Cura Mariano - Rui Manuel Moura Ramos