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Acórdão 344/2007, de 16 de Abril

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio, na parte em que estabelece, para a contravenção aí prevista, uma multa correspondente a 50 % do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a 100 vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado

Texto do documento

Acórdão 344/2007

Processo 215/06

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença do Tribunal Judicial de Oeiras (2.º Juízo de Competência Criminal), de 14 de Dezembro de 2005, que absolveu a arguida Carla Elisabete Ramos Tavares da contravenção de que vinha acusada e que consistia em fazer-se transportar num autocarro de uma carreira de transporte colectivo de passageiros, sem que estivesse munida do correspondente título de transporte válido. Para tanto, a sentença recorrida recusou aplicação à norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei 108/78, de 24 de Maio, com fundamento em violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, que considerou consagrados nos artigos 1.º, 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 25.º, n.º 1 e 30.º, n.º 1, da Constituição, por estabelecer, para a contravenção em causa, uma multa de montante fixo.

Pelo acórdão 117/2007 (3.ª Secção), o Tribunal concedeu provimento ao recurso, decidindo não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei 108/78, de 24 de Maio, na parte em que estabelece, para a contravenção aí prevista, uma multa correspondente a 50 % do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado.

2 - Deste acórdão interpôs o Ministério Público recurso para o Plenário, ao abrigo do artigo 79.º-D da LTC, com fundamento em que tal julgamento é contraditório com o juízo de inconstitucionalidade formulado, quanto à mesma norma, no acórdão 579/2006.

O recurso para o Plenário foi admitido, tendo apresentado alegações, somente, o Ministério Público. Reproduz, no essencial, o que alegara perante a Secção e conclui nos termos seguintes:

«1 - É inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma constante do artigo 3º, nº. 2, alínea b) do Decreto-Lei nº. 108/78, de 24 de Maio, na medida em que estabelece uma pena de multa de valor fixo, que o Tribunal terá sempre de aplicar em caso de condenação.

2 - Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida quanto à questão de inconstitucionalidade que é objecto de recurso».

II - Fundamentação. - 4 - Nada obsta ao conhecimento do recurso pelo Plenário.

Designadamente, verifica-se que o acórdão recorrido julgou a questão de constitucionalidade da referida norma em sentido oposto ao decidido pelo acórdão 579/2006, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Janeiro de 2006, satisfazendo-se, assim, o pressuposto estabelecido pelo n.º 1 do artigo 79.º-D da LTC.

Efectivamente, pelo acórdão 579/2006, com fundamentação retomada no acórdão 679/2006, o Tribunal julgou inconstitucional a norma que é objecto do presente recurso, considerando que a cominação de uma pena de multa de montante fixo para os ilícitos contravencionais em causa viola os princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.

E sobre esse mesmo problema - a questão da constitucionalidade da cominação de penas fixas para o ilícito contravencional punido com pena de multa - embora versando sobre a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º do mesmo diploma, que estabelece a sanção para a ultrapassagem da paragem para que o título era válido, recaiu o acórdão 5/2007, também no sentido da inconstitucionalidade.

5 - Lembremos o caso: o Tribunal Judicial de Oeiras (2.º Juízo de Competência Criminal) recusou a aplicação da norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei 108/78, de 24 de Maio, com fundamento na violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 1.º, 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da Constituição.

É a seguinte a redacção daquela disposição legal:

«Artigo 3.º

1 - ...

2 - Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido de uma multa de montante de:

a) 50 % do preço do respectivo bilhete mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer título válido de transporte;

b)...»

Entretanto, a Lei 28/2006, de 4 de Julho, veio substituir este regime sancionatório, definindo a falta de título de transporte válido como contra-ordenação punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o montante em vigor para o bilhete de menos valor e de valor máximo correspondente a 150 vezes o referido montante, com respeito pelos limites máximos previstos no artigo 17.º do regime geral do ilícito de mera ordenação social (artigo 7.º) e mandando punir como contra-ordenações as anteriores contravenções, sem prejuízo do regime mais favorável (artigo 14.º). Intervenção legislativa esta que se insere num "pacote legislativo" em que, além desse diploma, se incluiu a Lei 30/2006, de 11 de Julho, visando a erradicação das contravenções que ainda subsistiam no nosso ordenamento jurídico, substituindo-as por contra-ordenações.

Recorde-se que se pune o comportamento de utilização de meio de transporte colectivo de passageiros sem título válido de transporte, nos casos em que a cobrança não é feita por agente cobrador mas por outro processo, sujeitando o infractor - além do pagamento do preço do bilhete correspondente ao seu percurso aspecto que não está em causa, porque não respeita ao segmento sancionatório - a uma multa de "50 % do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado". Trata-se de forçar o utente a adequar o seu comportamento à evolução do sistema de cobrança nos transportes colectivos de passageiros, criando uma sanção suficientemente dissuasora do incumprimento da obrigação legal de pagar o preço do transporte, desmotivando para uma conduta cuja generalização importa prevenir porque, além da consequência imediata na relação entre o prestador do serviço e o utente, tornaria menos eficiente a prestação do serviço público em causa, porque obrigaria a mobilizar recursos para a cobrança ou o controlo sistemático.

É inegável que a norma em causa estabelecia, para um ilícito de natureza contravencional, uma multa de montante fixo, caso se verificasse a situação descrita no tipo (utilização de transporte colectivo de passageiros sem título válido). Não era um montante absolutamente fixo, na medida em que o montante da multa era calculado em função do preço do respectivo bilhete ou do mínimo cobrável no transporte utilizado, consoante o maior produto; mas era uma pena fixa, no sentido de não graduável pelo juiz dentro de uma moldura penal abstracta que estabelecesse um mínimo e um máximo (Cf., sobre diversas acepções da expressão pena fixa, acórdão 83/91, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 30 de Agosto).

6 - Deve começar-se por salientar que não há divergência entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento quanto à inconstitucionalidade da cominação, para ilícitos criminais, de penas insusceptíveis de individualização pelo juiz. Também no acórdão recorrido se acompanha o que no acórdão 124/2004 (Diário da República, 1.ª série-A, de 31 de Março), filiando-se no Acórdão 95/2001, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Abril de 2002, se pondera:

«[...] O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de Direito, proíbe - já se disse - que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.

Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de José de Sousa e Brito (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de Jorge de Figueiredo Dias, vai buscar o seu fundamento axiológico "ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de Direito democrático" (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, página 73).

Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de culpa do agente - é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.

A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente, nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.

Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam. Mas, o princípio da igualdade - que impõe se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes - também vincula o juiz.

A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções criminais seja proporcional à gravidade das infracções.

Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa, que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há-de observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena de prisão, quer seja uma pena de multa.

Jorge de Figueiredo Dias (Direito Penal Português cit., página 193), depois de dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação - "mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão nítida quanto possível entre o legislador e o juiz" - , sublinha que "uma responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade".

Este Tribunal, no seu Acórdão 202/2000 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 11 de Outubro de 2000), debruçou-se sobre a norma constante do artigo 31º, n.º 10, da Lei 30/86, de 27 de Agosto - que mandava aplicar a pena fixa de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele que caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos - e concluiu que a mesma era inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade. Escreveu-se aí:

"Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das suas "circunstâncias") corresponda também uma diferenciação da sanção penal que lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal situação concreta.

Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de caçar invariável de cinco anos para o "crime de caça" do artigo 31º, n.º 10, da Lei 30/86 é materialmente inconstitucional".

Importa, então, saber se a norma sub iudicio prevê uma pena fixa, pois, tal sucedendo, ela é constitucionalmente ilegítima nos termos que se deixaram apontados.

[...] Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias), por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são, em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.

Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que faz apelo o acórdão 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73º do Código Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor fortemente atenuativo ("quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena", diz o n.º 1 do artigo 72º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade (recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com multa não superior a cento e 20 dias), o juiz verificar que são "diminutas" "a ilicitude do facto e a culpa do agente"; que o "dano" já foi "reparado"; e que "à dispensa de pena" se não opõem "razões de prevenção" (cf. o artigo 74º do mesmo Código).

Estes mecanismos são, de facto inaptos para - como se escreveu no citado Acórdão 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena - "dar conta da necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar - à culpa do agente e às necessidades de prevenção".

Recorrendo, de novo, aos dizeres do Acórdão 202/2000:

"Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como prevendo uma pena apenas "tendencialmente fixa" ela não viola o princípio da igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções, encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a perigosidade do agente)".

E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo Acórdão 202/2000:

"A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral - de atenuação especial da pena e de dispensa de pena - , bastaria para permitir a graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa, assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida, conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais".»

Todavia, estas razões, que se reafirmam perante a cominação de penas fixas para ilícitos de natureza criminal, que foi o domínio normativo relativamente ao qual o Tribunal as adoptou, não são transponíveis, sem mais, para a apreciação da conformidade constitucional das penas pecuniárias fixas estabelecidas nos restantes espaços sancionatórios. Designadamente, limitando-nos ao que interessa para o caso, não são procedentes perante ilícitos contravencionais punidos com multa, sanção que, comungando com a pena de multa criminal a natureza de sanção pecuniária, se distingue desta em aspectos que são essenciais para o confronto com os referidos princípios constitucionais.

7 - Por força do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 7.º do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, que aprovou o novo Código Penal, permaneceram em vigor as normas relativas a contravenções constantes do Código Penal de 1886 e de legislação avulsa. Assim, persistiu no ordenamento jurídico-positivo, como categoria autónoma de ilícito, a contravenção que, no conceito dado pelo artigo 3.º do Código Penal de 1886, é "o facto voluntário punível que unicamente consiste na violação ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica".

Anteriormente, o Decreto-Lei 232/79, de 24 de Junho, que pela primeira vez consagrara entre nós, como categoria de ilícito formalmente positivado, o ilícito de mera ordenação social, protagonizara uma tentativa de eliminação das contravenções puníveis com pena de multa, ao estabelecer, no n.º 3 do artigo 1.º, que "são equiparáveis às contra-ordenações as contravenções ou transgressões previstas pelas lei vigentes a que sejam aplicadas sanções pecuniárias". Porém, o Decreto-Lei 411-A/79, de 1 de Outubro, de pronto revogou este preceito, evitando que se consumasse esta transformação automática e em bloco das contravenções punidas com multa em contra-ordenações.

Surgiu, depois, o Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, que veio instituir o novo regime do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo. Mas, nessa ocasião, o legislador absteve-se de eliminar ou converter em contra-ordenações as contravenções vigentes, assim se mantendo a situação, criada em 1979, de existência destas três categorias de ilícito: criminal, contravencional e contra-ordenacional (ou de mera ordenação social).

Todavia, o elenco das contravenções foi sendo progressivamente reduzido e o respectivo espaço ocupado, pontualmente ou em blocos sectoriais (v. g., nos domínios rodoviário, fiscal, laboral, de urbanismo e construção, de infracções anti-económicas), pela criação de contra-ordenações e, em casos muito contados, pela tipificação da conduta correspondente como ilícito criminal. Movimento este que culminou com a Lei 30/2006, de 11 de Julho, que, além de transformar determinadas contravenções em contra-ordenações, converteu, em bloco, as contravenções e transgressões residuais em contra-ordenações (artigo 35.º).

Esta persistência temporária de uma categoria penal como as contravenções, a par da institucionalização legal de um ilícito de mera ordenação social, é explicável, como diz Figueiredo Dias, O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinário, vol. I, pág. 25, porque "o legislador terá receado os efeitos práticos nocivos que poderiam ligar-se a uma global e automática transformação das contravenções vigentes em contra-ordenações; tanto mais, pode acrescentar-se, quanto essa transformação não poderia ser total, pois que na nossa ordem jurídica existem ainda inúmeras contravenções puníveis só, ou também, com penas de prisão e que, por conseguinte, em caso algum poderiam ser convertidas em contra-ordenações".

Porém, a permanência desta categoria no instrumentário punitivo do Estado ao nível infraconstitucional não implica o reconhecimento da sua identidade perante a ordem axiológico-constitucional com o ilícito criminal e suas consequências jurídicas. Mesmo admitindo que as contravenções se mantiveram legalmente, desde a reforma penal de 1982 até à sua recente extinção, como constituindo uma espécie dentro do género das infracções formalmente incluídas no direito penal, na tradicional classificação bipartida do Código Penal de 1886, essa etiqueta não lhes comunica automaticamente todas as consequências ou todas as normas e princípios da chamada "Constituição criminal". O que releva para responder à questão de constitucionalidade colocada não é o reconhecimento de que se trata, no plano do direito infraconstitucional ou dogmático de uma categoria penal, mas o relacionamento de um e outro ilícito e respectiva sanção com a ordem jurídico-constitucional.

8 - Na verdade, até à revisão de 1982, o texto constitucional somente fazia referência à "lei criminal" e aos "crimes" [cf., a título de exemplo, os artigos 29.º, 30.º, 32.º e 167.º, alínea e), na versão originária], omitindo qualquer referência às contravenções. A partir daquela revisão, a Constituição passou referir o ilícito criminal e o ilícito de mera ordenação social, mas continuou a silenciar a existência do ilícito contravencional [cf. artigo 168.º, n.º 1, alíneas c) e d) da versão de 1982; artigo 32.º, n.º 8 da versão de 1989; e artigos 32.º, n.º 10 e 165.º, n.º 1, alínea c) e d), na actual redacção]. E, quanto ao ilícito de mera ordenação social, a Constituição apenas diz expressamente que "nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa" e que é da competência reservada da Assembleia da República "legislar sobre o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social".

Perante esta evolução do texto constitucional, o Tribunal passou a considerar que, ao contrapor o ilícito criminal ao ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à figura das contravenções - que, embora com reservas doutrinárias (cf. p. ex., Eduardo Correia, Direito Criminal, I, pág. 22; Figueiredo Dias, O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 3ª ed.., pág. 405) até ao Código Penal de 1982 era tradicionalmente considerada como uma espécie dentro do género das infracções penais - , a Constituição deixa entender, claramente, que ela desapareceu como tipo sancionatório autónomo - para efeitos de relevância constitucional específica, entenda-se - , pelo que as contravenções que subsistissem (ou que fossem ex novo criadas) tinham de ser tratadas de acordo com a natureza que no caso tivessem: criminal ou de mera ordenação social.

Nesta linha, ainda recentemente, disse o Tribunal no acórdão 230/2006, www.tribunalconstitucional.pt, retomando o que dissera no acórdão 61/99 (Diário da República, 2.ª série, de 31 de Março de 1999):

"3.1 - Efectivamente, haverá, em primeira linha, que acentuar que, independentemente da questão de saber se, após a Revisão Constitucional operada pela lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, é possível a criação, ex novo, de contravenções, o que é certo é que a norma em apreço veio instituir (e para se utilizarem algumas das palavras do artigo 3º do Código Penal de 1886) a previsão de um comportamento consubstanciado na prática de um "facto voluntário" "punível" (in casu tão só com uma pena pecuniária) e que "consiste unicamente na violação ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica" (cf., sobre o conceito de contravenção, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 218 a 221, e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, ed. da A.A.F.D.L., I, 168).

De outro lado, atento o momento temporal em que a norma em apreço foi editada (1992), a sanção pecuniária nela prevista não podia ser convertível em prisão, por se ter de haver por revogado, pela entrada em vigor do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, o artigo 123º do Código Penal aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 (cf., quanto a este último aspecto, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal números 188/87 e 308/94, publicados na 2.ª série do Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto de 1987 e 29 de Agosto de 1994).

Ora, torna-se inquestionável que o comportamento em causa (o não pagamento da «taxa» de portagem devida pela utilização das auto-estradas) não pode ter uma ressonância ética tal que o haja de o qualificar como um crime; e, se se ponderar que esse comportamento foi, já em 1992, tido como integrando um ilícito passível de ser publicamente sancionado com uma pena meramente pecuniária, então (tal como se disse no referido Acórdão 308/94, embora a propósito de outra norma) há-de concluir-se que "o tratamento que lhe deve ser conferido há-de ser o correspondente às contra-ordenações, para as quais a Constituição não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar".

[...]

3.1 - 2 - E, a este propósito, convém respigar alguns passos que se podem ler no citado Acórdão 308/94.

Assim, disse-se nesse aresto, a propósito da questão de saber se era possível, no caso ali apreciado, a criação de um novo tipo contravencional:

«[...]

Ou seja: o Governo poderia criar aqui esta nova infracção contravencional, uma vez que não lhe corresponde sanção restritiva de liberdade, isto a admitir que a figura das contravenções ainda tem cobertura constitucional (...)

Tradicionalmente, quer a definição de cada concreto ilícito contravencional, quer a fixação da respectiva pena, sempre puderam ser efectuadas por regulamento, inclusivamente por regulamentos locais, como expressamente resultava do preceituado no artigo 486º do velho Código Penal de 1886. E o mesmo entendimento se manteve na generalidade da doutrina e na jurisprudência, após a entrada em vigor da Constituição de 1976.

Com a revisão constitucional de 1982, suscitou-se o problema de saber qual o destino, em geral, da figura das contravenções. A este propósito, escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., anotação X ao artigo 168º, pág. 673):

Ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à figura das contravenções (que era tradicional no direito português até ao Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções que subsistirem (ou que forem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo com a natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social).

Ora, dúvidas não restam que, no caso vertente, não deparamos com uma infracção com a ressonância ética suficiente para poder ser qualificada como de natureza criminal. E, assim sendo, e também porque lhe não corresponde qualquer sanção privativa ou restritiva da liberdade, o tratamento que lhe deve ser conferido há-de ser o correspondente às contra-ordenações [...]».

Não se ignora que o Tribunal tem desenvolvido este tipo de considerações a propósito de verificação de constitucionalidade de aspectos formais ou de competência legislativa relativa a contravenções e que não é uma questão desta natureza que agora temos para apreciação. Todavia, ainda recentemente, no acórdão 221/2007 (Plenário), em que estava em causa um problema de sucessão de ilícitos contravencionais e contra-ordenacionais, reafirmou esta mesma ideia e lembrou que, "para alcançar tal conclusão, o Tribunal assumiu ser decisivo tratar-se de infracções que correspondem a um comportamento - "o não pagamento da taxa de portagem devida pela utilização das auto-estradas" - que "não pode ter uma ressonância ética tal que o haja de qualificar como crime" e para as quais foi definida uma "pena meramente pecuniária", insusceptível de ser convertida em prisão".

Daqui se retira que a apreciação das questões de constitucionalidade colocadas pelo ilícito contravencional não pode fazer-se por mera transposição das ponderações efectuadas a propósito de questões semelhantes no domínio do ilícito e das penas criminais, argumentando a partir de uma pressuposta identidade de género entre os dois tipos de ilícito que - independentemente do critério que se perfilhe, face ao direito positivo infraconstitucional ou no plano doutrinário, de distinção entre crimes e contravenções ou de separação entre o "ilícito penal administrativo" e o "ilícito penal de justiça" - , a Constituição não acolhe.

9 - Por outro lado, o facto de o legislador ter mantido o processamento e julgamento desse tipo de ilícito - face ao texto constitucional, desse tertium genus de ilícito - subordinado a um regime de processo penal simplificado, de natureza judicial e não administrativa (cf. Decreto-Lei 17/91, de 10 de Janeiro), nada permite inferir sobre a natureza do ilícito e da sanção que necessariamente se projecte no modo como o seu regime substantivo se relaciona com os referidos princípios constitucionais. A qualidade do órgão que pronuncia a sanção nada lhe comunica no plano dos seus efeitos na esfera jurídica do sujeito a que é aplicada. A judicialização da apreciação da infracção com observância dos quadros formais do processo penal decorre da preocupação de assegurar as garantias do arguido, não da preocupação de conferir ao ilícito apreciado ressonância ética, nem de projectar na comunidade ou de fazer cumprir à sanção aplicada outro fim que não seja o de contra-motivo ou advertência meramente social, que não exprime a censura ético-jurídica que vai ligada à pronúncia das penas criminais. Que não é a solene advertência e o "pathos" social purgativo próprios do julgamento e da sentença que se procura obter torna-se, desde logo, evidente pelo facto de se permitir a oblação voluntária.

Com efeito, a multa contravencional - quer o seu pagamento seja voluntário, quer decorra de acatamento da sentença, quer resulte da execução coerciva desta - traduz-se e esgota-se sempre numa sanção de natureza exclusivamente pecuniária, insusceptível de ser convertida ou substituída por pena privativa da liberdade (cf., quanto que este último aspecto, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.os 188/87 e 308/94, publicados na 2.ª série do Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto de 1987 e 29 de Agosto de 1994). Não tem qualquer outra consequência que não seja a perda patrimonial que é inerente ao seu cumprimento, esgotando-se os seus efeitos no mero desembolso do montante pecuniário em que consiste, quer o agente se livre do procedimento pela oblação voluntária (artigo 125.º, n.º 5, do Código Penal de 1886), quer o deixe seguir até ao fim e a sanção lhe seja imposta pela decisão judicial condenatória.

Assim, a designação multa não identifica esta sanção com a pena criminal com o mesmo nome (o que é de gritante evidência aí onde vigore o "sistema dos dias-de-multa"), com que tem em comum, apenas, o facto de se tratar de uma sanção pecuniária. Substancialmente - (i) por poder ser paga voluntariamente, extinguindo-se com isso o procedimento; (ii) por não ser passível de substituição por pena privativa de liberdade; (iii) por corresponder a uma infracção em que a sanção não se liga à personalidade ética do agente e à sua atitude interna e (iv) por não lhe estarem legal e socialmente ligados ou atribuídos quaisquer efeitos estigmatizantes - identifica-se substancialmente com a coima, denominação recuperada para servir ou funcionar como elemento do critério formal de determinação do ilícito de mera ordenação social.

Deste modo, não pondo em dúvida que os princípios da proporcionalidade e da igualdade e mesmo o princípio da culpa também vinculem o legislador na configuração dos ilícitos contravencionais (como nos de contra-ordenação) e respectivas sanções (cf. acórdão 547/2001, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Julho) é diferente o limite que deles decorre para a discricionariedade legislativa na definição do que o legislador pode assumir e o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta da sanção.

Designadamente, não ocorre aqui colisão com nenhum dos preceitos constitucionais em que se funda a afirmação de violação do princípio da culpa, que é o nuclear na fundamentação da referida jurisprudência do Tribunal a propósito da ilegitimidade constitucional de penas criminais fixas. Na verdade, não está em causa minimamente o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º1) porque a multa contravencional, diversamente da multa criminal, não tem prisão sucedânea. E só de modo muito remoto - e nunca por causa da sua invariabilidade - uma sanção estritamente pecuniária, num ilícito sem qualquer efeito jurídico estigmatizante, pode contender com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), que é de onde o Tribunal tem deduzido o princípio da culpa na "Constituição criminal".

Como diz Figueiredo Dias, O Movimento da Discriminalização..., pág. 29, a propósito da culpa na imputação das contra-ordenações, também perante uma categoria de infracções, punidas "independentemente de toda a intenção maléfica", não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal baseada numa censura ética dirigida à pessoa do agente, à sua abstracta intenção, mas apenas de uma imputação do acto à responsabilidade social do seu autor.

Assim entendido, o princípio da culpa pode ser pressuposto da imposição da sanção (fundamento), mas não é um factor constitucionalmente necessário da sua medida concreta (limite individual), não significando a cominação de uma multa contravencional fixa, por si só, violação dos artigos 1.º e 27.º, n.º 1, da Constituição.

10 - Verifica-se que no domínio do direito de mera ordenação social o Tribunal tem admitido a constitucionalidade de sanções pecuniárias (coimas) fixas. É do que dá conta o acórdão 74/95 (Diário da República, 2.ª série, 12 de Junho de 1995) quando, confrontado com a possibilidade de, na situação aí apreciada, o jogo interpretativo conduzir a uma identificação entre o máximo e o mínimo da moldura penal, afirma que "a jurisprudência deste Tribunal, plasmada nos Acórdãos n.º 83/91 (Diário da República, 2.ª série, de 30 de Agosto de 1991) e n.º 441/93, tem sido a seguinte: [...] dos princípios constitucionais da justiça, igualdade e proporcionalidade «não decorre necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegitimidade constitucional de todas as chamadas penas fixas», não existindo assim um obstáculo constitucional a uma sanção contra-ordenacional dessa natureza".

Ora, para o confronto com os princípios constitucionais em causa, uma contravenção punida, apenas, com multa não se diferencia de uma contra-ordenação punida com coima, porque estas sanções significam exactamente o mesmo na esfera jurídica do respectivo destinatário: apenas e só o sacrifício patrimonial. Neste domínio, em que a punição não é baseada numa censura ética e em que prevalece a função admonitória, é constitucionalmente suportável que a sanção seja legalmente tarificada, reduzindo a intervenção mediadora do juiz na individualização da sanção, em homenagem a exigências de prevenção geral e de eficácia da dissuasão.

11 - Reconhece-se que a estruturação dos sistemas punitivos de modo a permitir à entidade decisora - em último termo, ao juiz - a individualização da sanção, mesmo daquela que só tenha expressão pecuniária, de modo a levar em conta as especificidades de cada caso, o grau de ilicitude e de culpa e a situação pessoal do agente, se apresenta como a que realiza de modo mais intenso os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Mas as exigências destes princípios são ainda respeitadas quando, pela natureza do ilícito sancionado e pela medida da sanção pecuniária fixa prevista, esta última apareça como razoavelmente proporcionada relativamente à gama de comportamentos susceptíveis de recondução ao concreto tipo de ilícito.

Na verdade, não se vê que constitua entorse intolerável dos princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade que o legislador ordinário, colocado perante a possibilidade de verificação de infracções contravencionais (ou contra-ordenacionais) em massa, decorrente da opção legislativa de punir a esse título, com penas meramente pecuniárias sem quaisquer efeitos pessoais, comportamentos violadores de simples regras de conduta ou de observância da ordenação social ou de colaboração com o Estado não possa conferir maior relevo às exigências postuladas pelo princípio da legalidade em detrimento do sentido apontado pelo princípio da culpa e, nesse seu juízo, proceder a uma maior concretização das sanções aplicáveis, afrouxando a necessidade da intervenção do juiz no apuramento efectivo do montante da sanção a aplicar.

É certo que, embora não seja rigorosamente fixa, a sanção prevista coloca na mesma posição os infractores que utilizem, sem título válido, o transporte durante um mesmo percurso, com insensibilidade à situação económica do infractor, ou ainda todos aqueles em que o valor de 50 % do preço do respectivo bilhete seja inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado. Todavia, existem razões que podem sustentar, no plano constitucional, essa opção legislativa de igualação sancionatória.

O fim que ela prossegue é o de desencorajar, pelo modo tido como eficaz, a utilização dos transportes sem o pagamento da contraprestação devida pela prestação do transporte e de, por essa via, procurar garantir, na maior medida possível, a amortização dos custos do investimento e da prestação do serviço. Ora, estes serviços de transporte são serviços de interesse geral, porquanto satisfazem necessidades básicas dos cidadãos, que são prestados em regime de concessão de serviço público e que estão sujeitos a princípios específicos, como o da universalidade, ou do acesso do maior número possível de pessoas, neste se incluindo a inadmissibilidade legal da possibilidade de escolha do contraente e de recusa de contratar, possível relativamente a outros bens.

Deve notar-se, por outro lado, que a prestação de serviços deste tipo corresponde a um modo de o Estado se desincumbir da tarefa fundamental cometida no artigo 9.º, alínea d) da Constituição ("promover o bem estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais..."). Por estas razões, os preços relativos à prestação dos serviços de transporte são, por via de regra, "preços normativos" e não preços estabelecidos por acordo das partes ou segundo mecanismos de livre funcionamento do mercado, em cuja determinação intervêm, de modo relevante, factores normativos e ponderações "políticas", normalmente, em patamares que se situam abaixo do que resultaria daquele mercado. Neste enquadramento publicístico, demandando a actividade de prestação de tais bens avultados investimentos, não poderá, correspondentemente, o legislador deixar de adoptar instrumentos que garantam, eficazmente, o pagamento dos preços devidos.

Ora, se os preços são fixados em função de um paradigma económico que procura colocar todos os consumidores no mesmo plano, quanto à possibilidade de poder aceder a tais bens, dentro de uma óptica de igualdade de oportunidades, não se vê que o legislador, optando pela conformação de um ilícito contravencional (ou contra-ordenacional) perspectivado para conferir eficácia ao dever do seu pagamento/cobrança, não possa, por decorrência desses mesmos princípios, estabelecer um padrão de pena igual para todos aqueles que o violem, desde que ele se situe dentro de valores que não sejam desadequados, e exista uma infracção a punir.

A sanção fixa corresponderá, deste modo, a uma transposição para o campo sancionatório dos mesmos critérios a que obedece, precisamente, o estabelecimento dos preços normativos e a conformação do dever do seu pagamento/cobrança, maxime, dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.

Reprime-se, afinal, um comportamento que tira vantagem da massificação da prestação do serviço e em que a eventual diversidade das motivações individuais é pouco significativa no que revela de atitude perante a ordenação do comportamento social que se quer assegurar e é indiferente no plano das consequências desse comportamento para o regular funcionamento do sistema de transportes colectivo de passageiros. Por outro lado, a multa não graduável é determinada por um método de cálculo que ainda reflecte a gravidade concreta da infracção e que, em qualquer caso, privilegiando claramente a finalidade dissuasora, não parece afastar-se de montantes razoavelmente suportáveis pelo comum das pessoas. A evolução legislativa mostra, aliás, que, tendo agora optado pelo sistema de sanções pecuniárias susceptíveis de graduação, o legislador fixou o limite mínimo da coima a um nível que grosso modo corresponde à multa de montante fixo anteriormente cominada.

12 - Acresce que o juízo sobre essa necessidade de intervenção judicial individualizadora não pode abstrair do montante da sanção legalmente prevista, não sendo indiferente que esteja em causa uma sanção pecuniária de montante elevadíssimo ou, pelo contrário, uma quantia acessível ao comum das pessoas, em que haverá um claro desfasamento entre o investimento na recolha séria de elementos para essa tarefa diferenciadora e a sua expressão prática, o que também é lícito ao legislador levar em conta, numa afectação racional de meios.

Ora, neste aspecto, o montante da multa fixa agora em exame pode objectivamente considerar-se moderado, em termos de valores absolutos, porque o tipo de cobrança a que o infractor se furta é característico de carreiras com percursos urbanos ou de periferia, em que o mínimo cobrável, correspondendo a trajectos curtos, é necessariamente baixo. O que, aliás, é patente no caso, em que estava em causa uma multa de (euro)144,40 (1,44 x 100) e bem justifica que se questione a razoabilidade da averiguação judicial sistemática das circunstâncias que poderiam relevar na individualização e graduação da sanção, averiguação que poderia implicar um esforço da máquina judiciária em detrimento de questões mais relevantes, ou, pelo seu carácter rotineiro, conduzir a situações de injustiça relativa.

III - Decisão. - Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.

Sem custas.

Lisboa, 6 de Junho de 2007. - Vítor Gomes - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano - José Borges Soeiro - Gil Galvão - Carlos Pamplona de Oliveira - Ana Maria Guerra Martins - Carlos Fernandes Cadilha (vencido de acordo com a declaração de voto da Exma. Conselheira Maria João Antunes) - Maria João Antunes (vencida nos termos da declaração de voto junto) - Mário José de Araújo Torres (vencido pelas razões constantes da declaração de voto da Exma. Conselheira Maria João Antunes) - Maria Lúcia Amaral (vencido pelas razões constantes da declaração de voto da Exma. Sra. Conselheira Maria João Antunes) - Rui Manuel Moura Ramos (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto da Exma. Senhora Conselheira Maria João Antunes).

Declaração de voto

Votei vencida, acompanhando a fundamentação dos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 579/2006, 679/2006 e 5/2007 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), por entender que a alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei 108/78, de 24 de Maio, viola os princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, quando sanciona o comportamento aí descrito com uma multa de montante fixo.

Dada a natureza contravencional da infracção - infracção que se inscreve no âmbito do direito penal (criminal) substantivo e adjectivo e não no âmbito do direito administrativo - , a sanção que lhe corresponde é de natureza penal (criminal). Não está, por isso, subtraída à proibição constitucional de penas fixas - resultante dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade - que, de forma reiterada, tem fundamentado julgamentos de inconstitucionalidade de normas que prevêem este tipo de penas (cf. Acórdãos n.os 202/2000, 203/2000, 95/2001, 70/2002, 485/2002 e 124/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

A circunstância de se tratar de uma pena de multa, de uma sanção patrimonial, em nada justifica que esta sanção penal (criminal) seja subtraída à proibição constitucional de penas fixas: a pena de multa é uma pena criminal autêntica, sem qualquer subordinação político-criminal à pena de prisão (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas/Editorial de Notícias, 1993, p. 118 e ss.) Pelo contrário, a natureza patrimonial da sanção faz com que a previsão de uma pena fixa ofenda o princípio da igualdade também por "prejudicar o agente de mais fraca situação económico-financeira por absoluta incapacidade para a tomar em conta no momento da determinação concreta" da sanção (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., p. 125.)

Apesar de a pena de multa que sanciona um comportamento contravencional ter natureza exclusivamente pecuniária, por ser insusceptível de ser convertida em pena privativa da liberdade, à semelhança do que sucede com a coima, tal não legitima que se identifique a primeira com a segunda. Se, por um lado, também a pena de multa que sanciona, a título principal, a prática de um crime é insusceptível de ser convertida em pena privativa da liberdade, à luz do que dispõe o artigo 49º do Código Penal; por outro lado, a coima, sanção do direito de mera ordenação social, diferencia-se claramente, "na sua essência e nas suas finalidades, da pena criminal" (Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 154). Sem que isso implique, necessariamente, a legitimidade constitucional de coimas fixas - questão que não cabe apreciar e decidir nos presentes autos, dada a já assinalada natureza penal (criminal) da multa fixa em causa.

A natureza penal das contravenções, por seu turno, é compatível com a consagração de regras privativas desta categoria penal, por comparação com as previstas para os crimes (cf., por exemplo, artigos 4.º, 25.º, 33.º, 125.º, n.º 5, e 486.º, § único, do Código Penal de 1886 e, sobre isto, Eduardo Correia, Direito Criminal I, Almedina, p. 221 e ss.) Regras privativas que podem mesmo abranger o âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 165.º, n.º 1, da Constituição (no sentido de esta reserva abranger apenas o regime geral de punição das contravenções e o respectivo processo cf., entre outros, Acórdãos n.os 230/2006 e 419/2006, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Argumentos como os utilizados no ponto 11. e, em geral, os que se referem à falta de "ressonância ética" da infracção em causa são relevantes apenas para o efeito de saber se a intervenção penal é legítima, do ponto de vista jurídico-constitucional, quando o comportamento do agente se traduza em utilizar transportes colectivos de passageiros sem título de transporte válido (artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 108/78). Questão que extravasa o objecto do presente recurso de constitucionalidade. - Maria João Antunes.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1669605.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1978-05-24 - Decreto-Lei 108/78 - Ministério dos Transportes e Comunicações - Gabinete do Ministro

    Estabelece normas relativas à fiscalização da cobrança nos transportes colectivos e penalizações das infracções.

  • Tem documento Em vigor 1979-07-24 - Decreto-Lei 232/79 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social.

  • Tem documento Em vigor 1979-10-01 - Decreto-Lei 411-A/79 - Ministério da Justiça

    Revoga os nºs. 3 e 4 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 232/79, de 24 de Julho, que institui o ilícito de mera ordenação social.

  • Tem documento Em vigor 1982-09-23 - Decreto-Lei 400/82 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código Penal.

  • Tem documento Em vigor 1982-09-30 - Lei Constitucional 1/82 - Assembleia da República

    Aprova a primeira revisão Constitucional, determinando a sua entrada em vigor no trigésimo dia posterior ao da publicação no diário da república, bem como publicação conjunta da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, no seu novo texto.

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1986-08-27 - Lei 30/86 - Assembleia da República

    Aprova e publica a lei da caça.

  • Tem documento Em vigor 1991-01-10 - Decreto-Lei 17/91 - Ministério da Justiça

    Regula o processamento e julgamento das contravenções e transgressões.

  • Tem documento Em vigor 2004-03-31 - Acórdão 124/2004 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante da parte final do § único do artigo 67.º do Decreto n.º 44623, de 10 de Outubro de 1962, (aprova o regulamento da Lei 2097, que promulga as bases do fomento piscícola nas águas interiores do País), enquanto manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64.º do mesmo diploma para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada - por violação dos princípios cons (...)

  • Tem documento Em vigor 2006-07-04 - Lei 28/2006 - Assembleia da República

    Aprova o regime sancionatório aplicável às transgressões ocorridas em matéria de transportes colectivos de passageiros.

  • Tem documento Em vigor 2006-07-11 - Lei 30/2006 - Assembleia da República

    Procede à conversão em contra-ordenações de contravenções e transgressões em vigor no ordenamento jurídico nacional.

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