de 20 de Julho
O Decreto-Lei 198-A/75, de 14 de Abril, colocado perante a realidade social de numerosas famílias que, pressionadas pela carência de habitação e a coberto do clima de permissibilidade então vigente, quando não estimuladas por ele, ocuparam fogos ou prédios sem o consentimento ou sequer a tolerância dos respectivos donos, instituiu um esquema de legalização de algumas dessas ocupações.Esquema que não resultou, só tendo conseguido regularizar uma ou outra situação.
E não resultou porque a iniciativa da regularização foi deixada em primeira linha aos proprietários - ora ausentes, ora desinteressados nela - e em segunda linha às câmaras municipais ou, por delegação destas, às juntas de freguesia, que manifestamente se não encontravam em condições de poder incumbir-se com êxito dessa missão.
Com a agravante de que aquele diploma concedeu aos proprietários escassos trinta dias, de passo que vinculou as referidas autarquias locais a suprir a inércia daqueles «imediatamente».
Tamanha pressa deu em vagar. As situações ilícitas mantiveram-se e hoje apresentam-se agravadas pelo tempo de uso gratuito entretanto decorrido.
O facto de se não ter reconhecido o direito de iniciativa para a legalização aos próprios ocupantes absolve estes do insucesso das medidas entretanto facultadas. De igual modo a insuficiência das normas postas à disposição dos proprietários e das câmaras absolve estes do facto de não terem tentado ou podido, em tão curto espaço de tempo, regularizar situações de reconhecida complexidade.
E não faltaram ocupantes que, quer através do depósito do que consideraram o equivalente da justa renda, quer pior outras inequívocas atitudes, se mostraram dispostos, e até desejosos, de formalizar o arrendamento.
Hoje são muitos os proprietários que, ou porque lhes seja indiferente quem seja o inquilino, desde que pague a justa renda, ou porque, decorrido tanto tempo, qualquer solução é melhor do que nenhuma, se mostram ansiosos da facultação de um novo período ou um novo esquema para a regularização das situações criadas.
Disso se cura através do presente diploma. E não se há-de estranhar que surja circunscrito aos prédios pertencentes a entidades privadas. É que os pertencentes ao Estado e às autarquias locais se encontram, de um modo geral, vinculados a esquemas de habitação social, com destinatários certos, e não pode a Administração consentir que à concretização desses esquemas, segundo sólidos princípios de justiça social, se substitua a anarquia e o arbítrio privado.
Em relação aos fogos ou prédios pertencentes a entidades privadas, afora as excepções julgadas convenientes, reabrem-se uma porta e um prazo para a regularização da respectiva ocupação, verificados que sejam certos requisitos e preenchidas que fiquem determinadas formalidades.
Aproveita-se para corrigir os defeitos do anterior esquema. A iniciativa é conferida a qualquer das partes interessadas - proprietário ou ocupante - e faz-se intervir o tribunal, a quem se conferem poderes para, na falta de acordo ou na medida dessa falta, o suprir por sentença, fixando o contrato.
A fim de garantir uma renda justa, determina-se que esta seja fixada, em todos os casos, por avaliação com base na lei aplicável ao tempo da regularização. Renda que, uma vez fixada, é devida desde o início da ocupação e paga, na parte relativa ao tempo passado, em prestações, cujo número o juiz fixará dentro de certos limites. E porque se não desconhece que não raro a carência de habitação coincide com a carência de meios, permite-se, em todos os casos, a sublocação parcial.
Não se há-de achar senão lógico que o presente diploma se aplique apenas às ocupações ocorridas até 14 de Abril de 1975, data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 198-A/75. É que, quanto às posteriores a essa data - e poucas terão sido, felizmente -, o mesmo decreto as declara criminalmente puníveis, pelo que a permissão da sua legalização equivaleria a uma sorte de amnistia para a qual o Governo carece de competência.
Excluídas ficam também expressamente, embora a menção da exclusão fosse dispensável, à força de ser óbvia, as ocupações de prédios acerca dos quais tenha já sido proferida sentença determinativa de restituição de posse, entrega judicial ou medida equivalente.
Reafirmou-se, para futuro, a natureza criminosa da ocupação de prédios sem consentimento ou sequer a tolerância do respectivo proprietário.
Outorgado o contrato, por acordo ou por suprimento judicial, o problema transita do âmbito do uso ilícito de prédio para o do seu arrendamento, nos termos gerais.
Reduzido por substituição o Decreto-Lei 198-A/75, de 14 de Abril, a umas poucas disposições que, por terem nascido defeituosas, não chegaram a ter aplicação prática que justifique a sua manutenção, revoga-se in totum aquele diploma, sem prejuízo de em melhor sede dever retomar-se um ou outro aspecto da sua problemática não coberto pelo presente decreto-lei:
Neste termos:
Usando da autorização conferida pela Lei 16/77, de 25 de Fevereiro, o Governo decreta, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º - 1. As ocupações de fogos devolutos levadas a efeito para fins habitacionais até 14 de Abril de 1975, data da entrada em vigor do Decreto-Lei 198-A/75, em prédios pertencentes a entidades privadas, e que não tenham sido legalizadas nos termos daquele diploma, poderão ser regularizadas através da celebração do correspondente contrato de arrendamento por acordo entre o proprietário e o ocupante ou, na falta desse acordo, por decisão judicial, a iniciativa de qualquer deles, nos termos do presente decreto-lei.
2. São equiparáveis às situações previstas no número anterior, com as especialidades previstas neste diploma, as ocupações ocorridas até à mesma data de prédios devolutos pertencentes a entidades privadas para fins não habitacionais a que seja judicialmente reconhecido interesse social digno de tutela.
Art. 2.º - 1. Para os efeitos do disposto no artigo anterior, consideram-se devolutos os fogos ou prédios:
a) Que à data da ocupação se encontrassem desocupados há mais de sessenta dias, contados, conforme o caso, da data da desocupação pelo último inquilino ou habitante, da data de concessão da licença de utilização, relativamente a fogos ou prédios acabados de edificar ou reconstruir, ou da data da celebração de contrato de compra relativamente a fogos destinados a arrendamento;
b) Cujo proprietário, à data da ocupação, se encontrasse em falta no cumprimento do disposto no artigo 19.º do Decreto-Lei 445/74, de 12 de Setembro.
2. Exceptuam-se do disposto no número anterior os fogos:
a) Edificados para venda;
b) Destinados a habitação própria ou do respectivo agregado familiar, ainda que como habitação secundária, desde que, neste caso, se situe em localidade diversa da sua principal;
c) Integrados em prédios relativamente aos quais já tivesse dado entrada na competente câmara municipal, na data referida no n.º 1 do artigo 1.º, projecto para nova construção;
d) Destinados a habitação por curtos períodos em praias ou termas, no campo ou em quaisquer lugares de vilegiatura, para uso próprio ou arrendamentos temporários, bem assim os destinados a outros fins especiais de natureza semelhante;
e) Destinados a habitação unifamiliar e quando, pelas suas dimensões ou características arquitectónicas, não interessem ao mercado corrente da habitação;
f) Integrados em edifícios destinados por empresas, individuais ou colectivas, suas proprietárias, ao alojamento do seu pessoal;
g) Integrados em prédios rústicos e normalmente destinados à habitação dos respectivos rendeiros e trabalhadores;
h) Destinados à habitação de categorias populacionais determinadas ao abrigo de regimes especiais;
i) Pertencentes a emigrantes, desalojados ou estrangeiros;
j) Inacabados ou integrados em prédios em curso de construção ou reconstrução.
Art. 3.º - 1. No caso de o fogo ou prédio, ao ter sido ocupado, se encontrar mobilado e de o respectivo recheio não ter sido ainda entregue ao respectivo dono, o contrato de regularização previsto no artigo anterior poderá incluir, no todo ou em parte, o mesmo recheio.
2. O acordo sobre o arrendamento é independente do acordo sobre o recheio.
3. Não havendo acordo sobre o recheio, ou havendo acordo apenas parcial, o proprietário do mesmo recheio poderá reivindicar em juízo a sua propriedade ou exigir indemnização.
4. Este artigo aplica-se, com as necessárias adaptações, a quaisquer obejectos que se encontrassem no fogo ou prédio no momento da ocupação, ainda que não pertencentes ao recheio normal da casa.
5. Os terceiros podem fazer valer os seus direitos pelos meios normais.
Art. 4.º - 1. Não será admitida em juízo notificação judicial ou acção do ocupante que não declare não ter em seu poder quaisquer bens do proprietário ou terceiro, contra vontade destes, detidos em virtude da ocupação ou ter oferecido sem resultado a sua restituição.
2. A falta consciente de verdade nas declarações referidas no número anterior conduz à condenação como litigante de má fé.
Art. 5.º - 1. Dentro do prazo de noventa dias a contar da entrada em vigor do presente diploma qualquer das partes interessadas pode, quando tiverem resultado infrutíferas outras diligências pessoais, requerer a notificação extrajudicial da outra para comparecer perante notário, a fim de assinarem o contrato.
2. Do instrumento de notificação previsto no número anterior devem constar as condições essenciais do contrato que o notificante propõe ao notificando, nomeadamente a identificação do fogo e do respectivo proprietário, bem como a residência deste, a renda, o prazo de duração do contrato e a forma de amortização das rendas em atraso correspondentes ao período decorrido desde o início da ocupação; nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1.º, o notificante justificará ainda o interesse social da ocupação.
3. Nas localidades em que não exista notário, poderá este ser substituído pelo secretário da câmara municipal ou pelo presidente da junta de freguesia ou quem as suas vezes fizer.
4. O notário ou as entidades referidas no número anterior deverão, a solicitação de qualquer das partes, certificar o que se tiver passado no dia e hora designados na notificação.
Art. 6.º - 1. Nos cento e oitenta dias posteriores ao termo do prazo previsto no n.º 1 do artigo anterior pode qualquer dos interessados requerer ao tribunal da situação do prédio a regularização judicial da ocupação, a começar pela convocação das partes para uma conferência, a fim de nela acordarem e formalizarem, por auto ou instrumento separado, o contrato previsto no artigo 3.º 2. O requerimento deve conter as menções previstas no n.º 2 do artigo 5.º e, se possível, uma minuta completa do contrato que o requerente propõe à contraparte, de tudo devendo ser dado conhecimento a esta ao ser notificada para responder, querendo, no prazo de oito dias.
3. Se o requerimento previsto no n.º 1 for da iniciativa do proprietário, será o ocupante notificado com a cominação de que a falta da sua comparência ou de mandatário seu munido de procuração com poderes especiais para transigir equivalerá a manifestação de desinteresse pela regularização da ocupação e terá como consequência a decretação imediata da restituição de posse ou da entrega judicial do prédio ocupado ao seu legítimo proprietário, a requerimento deste e sem dependência de quaisquer outras formalidades; se, inversamente, a iniciativa pertencer ao ocupante, será o proprietário notificado com a comunicação de que na falta da sua comparência ou de mandatário seu munido de procuração com poderes especiais para transigir será e passará a ser representado pelo Ministério Público na conferência e em todos os actos subsequentes.
Art. 7.º - 1. Se o juiz, no decurso da conferência, não conseguir conciliar as partes, fixará na acta os pontos de convergência e os de divergência e, recolhidos sobre estes os elementos que tiver por convenientes, suprirá ele próprio o desacordo das partes, fixando o contrato, se der por verificadas as demais condições de que o presente diploma torna dependente a regularização da situação concreta e não ocorrer a hipótese prevista no número seguinte.
2. Se o proprietário oferecer razões excepcionalmente ponderosas para não aceitar celebrar com o ocupante contrato de arrendamento, poderá o juiz, apreciadas essas razões e os valores sociais em jogo, abster-se de fixar o contrato, caso em que decretará a imediata restituição de posse ou entrega judicial do prédio ou fogo ocupado, se dispuser de seguros elementos de convicção sobre a ocorrência das determinantes legais desse resultado.
3. Para o efeito do disposto nos números antecedentes, o juiz ordenará as diligências que tiver por convenientes, nomeadamente a notificação das partes para prestarem informações e produzirem prova, produzida a qual decidirá com salvaguarda do disposto no artigo seguinte.
Art. 8.º - 1. Na falta de acordo das partes sobre o quantitativo da renda, será esta obrigatoriamente determinada, qualquer que seja a localização do prédio, por avaliação, a solicitação do juiz, nos termos da lei aplicável à data da solicitação, a qual deverá ser efectuada dentro do prazo máximo de sessenta dias, se prazo diverso não resultar daquela lei, a expensas por igual de ambas as partes.
2. As rendas em atraso serão obrigatoriamente pagas conjuntamente com as rendas futuras em prestações cujo número o juiz fixará, de acordo com as possibilidades do agregado familiar do arrendatário, entre tantas quantos os meses em atraso e o triplo desse número.
3. Só o não pagamento pontual de duas das prestações previstas no número anterior acarretará, por antecipação, o vencimento das demais.
4. Será autorizada a sublocação de parte do prédio arrendado desde que na parte restante continue a habitar o agregado familiar do arrendatário.
Art. 9.º A falta de comparência de qualquer das partes à conferência prevista no artigo 6.º terá as consequências mencionadas no n.º 3 do mesmo artigo; mas, quando a falta for do proprietário, o juiz designará novo dia para a conferência, com o Ministério Público a representá-lo.
Art. 10.º - 1. As notificações ao ocupante poderão ser validamente feitas através de qualquer pessoa capaz que com ele resida.
2. Quando, após adequadas diligências de investigação, seja desconhecida a identidade de quem ocupa, ou do proprietário do prédio, ou se encontrem ausentes em parte incerta, será notificado para representá-los, com plenos poderes para transigir, o Ministério Público.
Art. 11.º - 1. Relativamente às ocupações referidas no n.º. 2 do artigo 1.º, deverá o juiz decidir a questão prejudicial do interesse social da ocupação que tiver sido invocado, com aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 7.º 2. Entender-se-á que existe fim social digno de tutela sempre que os valores prosseguidos, e posteriormente concretizados, através do acto de ocupação, sobrelevem, em interesse social ou humanitário, segundo juízos de equidade, aos valores jurídicos sacrificados.
Art. 12.º - 1. O requerimento referido no artigo 6.º e os actos ulteriores previstos neste diploma devem ser processados por apenso a qualquer acção de restituição de posse ou qualquer outra em que se peça a entrega judicial do prédio a que o mesmo requerimento se refere e que se encontre pendente à data da entrada em vigor deste diploma.
2. Para o feito do atempado exercício dos direitos referidos nos artigos 5.º e 6.º é declarada automaticamente suspensa pelo prazo de duzentos e setenta dias, contados a partir da entrada em vigor do presente diploma, a instância das acções nele mencionadas.
3. Se, findo o prazo referido no número anterior, não tiver sido requerida a regularização da ocupação a acção retomará o seu curso normal; no caso contrário, só o retomará se vier a ser indeferido o pedido de regularização da ocupação, extinguindo-se a instância, com custas pelo réu, em caso de deferimento do mesmo pedido, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 7.º 4. Os recursos das decisões do juiz, proferidas ao abrigo do disposto no presente diploma, subirão conjuntamente com o que for interposto da decisão final, todos sem efeito suspensivo.
Art. 13.º O contrato de arrendamento resultante da regularização de ocupações previstas neste diploma rege-se pelas disposições da lei geral relativas ao arrendamento para habitação na parte em que diversamente aqui se não dispõe, sendo, quando fixado pelo juiz, dispensável a assinatura das partes.
Art. 14.º Se os ocupantes tiverem efectuado o depósito de quaisquer quantias a título de pagamento do uso do prédio, o proprietário poderá levantar essas quantias, não obstante a irregularidade do mesmo depósito, as quais, em qualquer caso, se considerarão imputadas ao pagamento das prestações que primeiro se vencerem, de entre as fixadas ao abrigo do n.º 2 do artigo 8.º, até à concorrência do respectivo valor, com acerto da diferença, se a houver, aquando do pagamento da última daquelas prestações.
Art. 15.º Os ocupantes que não tenham feito uso da faculdade de requererem a regularização da ocupação até ao termo do prazo previsto no n.º 1 do artigo 6.º perderão o direito de requerer o diferimento da desocupação previsto no Decreto-Lei 293/77, de 20 de Julho.
Art. 16.º - 1. Será punido com pena de prisão até dois anos aquele que, de futuro, ocupar qualquer prédio ou parte dele sem o consentimento do respectivo proprietário ou sem título que lhe assegure o direito ao seu uso ou habitação.
2. A igual pena fica sujeito o ocupante de fogo ou prédio a que o presente diploma confira a faculdade de regularização e que, não tendo feito uso dela, instigue ou faça obstrução à restituição da sua posse, à sua entrega judicial ou ao seu despejo, quando ordenados por decisão judicial com trânsito em julgado.
3. O facto de o prédio se encontrar em fase de construção ou reconstrução funcionará como circunstância agravante especial para o efeito do disposto nos números anteriores.
Art. 17.º O disposto no presente diploma não se aplica às ocupações de prédios relativamente aos quais tenha já sido proferida sentença com trânsito em julgado, determinava da restituição da sua posse, da sua entrega judicial ou medida equivalente.
Art. 18.º É revogado o Decreto-Lei 198-A/75, de 14 de Abril.
Art. 19.º O presente diploma entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros. - Mário Soares - António de Almeida Santos.
Promulgado em 6 de Julho de 1977.
Publique-se.O Presidente da República, ANTÓNIO RAMALHO EANES.