Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 872/2023, de 5 de Fevereiro

Partilhar:

Sumário

Decide, com respeito às contas da campanha eleitoral apresentadas pelo grupo de cidadãos eleitores «Movimento Vidigueira Independente» (MVI), relativas às eleições autárquicas realizadas a 1 de outubro de 2017, julgar parcialmente procedente o recurso interposto da decisão da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos de 16 de dezembro de 2021 e, em consequência: absolver os arguidos, primeira proponente e mandatário financeiro daquele grupo de cidadãos eleitores, da imputação da prática de duas das contraordenações e admoestar, cada um dos arguidos, pela prática, em concurso efetivo, de outras contraordenações, revogando, quanto ao segmento sancionatório, aquela decisão

Texto do documento

Acórdão 872/2023

Sumário: Decide, com respeito às contas da campanha eleitoral apresentadas pelo grupo de cidadãos eleitores «Movimento Vidigueira Independente» (MVI), relativas às eleições autárquicas realizadas a 1 de outubro de 2017, julgar parcialmente procedente o recurso interposto da decisão da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos de 16 de dezembro de 2021 e, em consequência: absolver os arguidos, primeira proponente e mandatário financeiro daquele grupo de cidadãos eleitores, da imputação da prática de duas das contraordenações e admoestar, cada um dos arguidos, pela prática, em concurso efetivo, de outras contraordenações, revogando, quanto ao segmento sancionatório, aquela decisão.

Processo 467/23

Aos doze dias do mês de dezembro de dois mil e vinte e três, achando-se presentes o Juiz Conselheiro Presidente José João Abrantes e os Juízes Conselheiros José Teles Pereira, António da Ascensão Ramos, João Carlos Loureiro, Maria Benedita Urbano, Gonçalo de Almeida Ribeiro, Mariana Canotilho, Joana Fernandes Costa, Afonso Patrão, Rui Guerra da Fonseca e Carlos Medeiros Carvalho, foram trazidos à conferência, em sessão plenária do Tribunal Constitucional, os presentes autos.

Após debate e votação, foi, pelo Exmo. Conselheiro Vice-Presidente, por delegação do Exmo. Conselheiro Presidente, nos termos do artigo 39.º, n.º 2, da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional - referida adiante pela sigla «LTC»), ditado o seguinte:

I. Relatório

1 - Nos presentes autos de recurso jurisdicional em matéria de contas dos partidos políticos, vindos da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (doravante designada apenas por «ECFP»), em que são recorrentes Maria Helena Figueira d' Aguilar e Cristóvão da Silva Amaral, foi interposto o presente recurso da decisão daquela Entidade, de 7 de março de 2023, relativa às contas apresentadas pelo grupo de cidadãos eleitores «Movimento Vidigueira Independente (MVI)» pela participação na campanha das eleições gerais para os órgãos das autarquias locais, realizadas a 1 de outubro de 2017, e que sancionou contraordenacionalmente os ora recorrentes, a primeira na qualidade de primeira proponente, o segundo na qualidade de mandatário financeiro do referido grupo de cidadãos eleitores.

2 - Por decisão datada de 2 de setembro de 2020, tomada no âmbito do processo PA 66/AL/17/2018 e já definitiva, a ECFP julgou prestadas, com irregularidades, as contas apresentadas pelo MVI, relativas à campanha das eleições gerais para os órgãos das autarquias locais, realizadas a 1 de outubro de 2017, da qual Armando de Abreu foi mandatário financeiro (artigo 27.º, n.º 4, da Lei 19/2003, de 20 de junho [Lei de Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, referida adiante pela sigla «LFP»] e artigo 43.º, n.º 1, da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro [Lei da Organização e Funcionamento da ECFP, referida adiante pela sigla «LEC»]).

Mais determinou, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, da LEC, a extração de certidão para apuramento de eventual responsabilidade contraordenacional.

3 - Em 31 de agosto de 2022, a ECFP instaurou procedimento contraordenacional, a que corresponde o processo 40/2022 e ao qual foi apensado o procedimento PA 66/AL/17/2018.

4 - No âmbito do referido procedimento contraordenacional, a ECFP proferiu decisão, datada de 7 de março de 2023, nos termos da qual foi deliberado:

«Face ao exposto, delibera a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos aplicar:

A) À Arguida Maria Helena Figueira D'Aguilar:

1 - A sanção de coima no valor de duas (2) vezes o salário mínimo mensal garantido de 2018 (no valor de 580,00 EUR), o que perfaz a quantia de 1.160,00 EUR, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 47.º, n.º 1, da Lei Orgânica 2/2005;

2 - A sanção de coima no valor de seis (6) vezes o indexante dos apoios sociais de 2018 (no valor de 428,90 EUR), o que perfaz a quantia de 2.573,40 EUR, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.º 1, da Lei 19/2003, de 20 de junho; e

3 - Efetuando o cúmulo jurídico das duas coimas aplicadas, aplicar-lhe a coima única no valor de 2.600,00 EUR.

B) Ao Arguido Cristóvão da Silva Amaral

1 - A sanção de coima no valor de duas (2) vezes o salário mínimo mensal garantido de 2018 (no valor de 580,00 EUR), o que perfaz a quantia de 1.160,00 EUR, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 47.º, n.º 1, da Lei Orgânica 2/2005;

2 - A sanção de coima no valor de seis (6) vezes o indexante dos apoios sociais de 2018 (no valor de 428,90 EUR), o que perfaz a quantia de 2.573,40 EUR, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.º 1, da Lei 19/2003, de 20 de junho; e

3 - Efetuando o cúmulo jurídico das duas coimas aplicadas, aplicar-lhe a coima única no valor de 2.600,00 EUR.

5 - Notificados de tal decisão sancionatória, os arguidos dela interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional. Da motivação desenvolvida, extraíram as seguintes conclusões:

«A) a arguida Maria Helena D, Aguilar foi a 1.ª proponente do Grupo de Cidadãos eleitores, "Vidigueira Independente", nas eleições autárquicas, para os órgãos representativos das autarquias locais, realizadas em 1 de outubro de 2017;

B) O arguido Cristóvão Silva Amaral foi constituído pelo referido movimento, como mandatário financeiro das contas da campanha eleitoral àquelas eleições.

C) Tal movimento independente teve receitas no montante de 13.768,26(euro) e despesas no montante de 15.518,26(euro).

D) Movimentou montantes irrisórios, constituído por cidadãos de poucos recursos, sem conhecimentos de campanhas eleitorais e sem poder de organização, quando comparado com outras organizações, quer de movimentos independentes quer de partidos políticos.

E) diretor financeiro apresentou as contas da campanha eleitoral, que lhe pareciam ser corretas, uma vez que não possuía conhecimentos nessas matérias, designadamente de contabilidade de gestão ou de economia.

F) O mesmo era à data e continua a ser, professor na área de desporto, área da sua formação, lecionando do Agrupamento de Escolas de Vidigueira.

G) Quando lhe foram solicitados esclarecimentos sobre a incorreção das contas, respondeu, dentro daquilo que a sua falta de conhecimentos, não lhe permitia esclarecer de outra forma.

H) A arguida l.ª proponente do grupo de cidadãos, não tem, nem nunca teve, também, qualquer experiência ou conhecimentos em matéria de contas de campanha eleitoral, de contabilidade, gestão ou economia, muito embora já tenha feito parte de uma lista candidata a eleições autárquicas, embora não sendo a 1.ª proponente da mesma.

I) Os arguidos não obtiveram, quer para si, ou para terceiros, qualquer benefício ou vantagem da forma com que as contas foram apresentadas, ou da prática das contraordenações que lhe são imputadas.

J) Os mesmos não agiram dolosamente, mas sim por negligência, resultante da sua total falta de conhecimentos, quer na elaboração das contas, quer em relação aos elementos que lhes foram solicitados, nas áreas da contabilidade, gestão ou economia.

K) Pelo que as sus punições deveriam ter sido a título de negligência.

L) Muito embora os artigos 47.º n.º 1 da Lei 2/2005 e 31.º da Lei 19/2003 não prevejam expressamente a prática das contraordenações a título de negligência, essa punição a esse título é legalmente possível e aplicável, nos termos do disposto no art.º 8.º n.º 3 do regime geral das contraordenações, que aponta para a prática das contraordenações em causa por negligência, nos termos gerais.

M) Nessa medida as coimas aplicadas deveriam ter sido consideradas praticadas a título de negligência, devendo por consequência os seus montantes ter sido reduzidos a metade do seu valor.

6 - Por deliberação de 26 de abril de 2023, a ECFP sustentou a decisão sancionatória.

Recebidos os autos no Tribunal Constitucional, foi proferido despacho, datado de 1 de agosto de 2023, pelo qual se admitiu liminarmente o recurso interposto. Perspetivando-se a possibilidade de ter sobrevindo a prescrição do procedimento criminal, foram Ministério Público e recorrentes convidados a emitir pronúncia sobre tal questão.

O Ministério Público pronunciou-se, nos termos do artigo 103.º-A, n.º 1, da LTC, no sentido de não ter ocorrido a prescrição do procedimento criminal e de ser negado provimento ao recurso.

Os recorrentes pronunciaram-se no sentido da extinção do procedimento contraordenacional por via da prescrição.

II. Fundamentação

A. Considerações gerais

7 - A Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, veio alterar, entre outras, a LFP e a LEC, introduzindo profundas modificações no regime de apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e no regime de aplicação das respetivas coimas.

Considerando que, à data de entrada em vigor desta lei - 20 de abril de 2018 (artigo 10.º) -, não havia ainda procedimento contraordenacional instaurado, uma vez que o prazo para prestação das contas estava ainda em curso, tal regime é-lhes aplicável, nos termos da norma transitória do artigo 7.º da referida Lei Orgânica, por se tratar de processo novo.

A respeito do novo regime legal, quer quanto à competência de fiscalização, quer quanto ao regime processual, foram tecidas algumas considerações no Acórdão 421/2020 (acessível, assim como os demais acórdãos adiante citados, a partir da hiperligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), para o qual se remete, salientando-se aqui que a alteração mais significativa diz respeito à competência para apreciar a regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, bem como aplicar as respetivas coimas que, até abril de 2018, pertencia ao Tribunal Constitucional e passou agora a ser atribuída à ECFP (artigos 9.º, n.º 1, alínea d), da LEC, e 24.º, n.º 1, da LFP).

Assim, nos termos do novo regime legal, cabe ao Plenário do Tribunal Constitucional apreciar, em recurso de plena jurisdição, as decisões daquela Entidade em matéria de regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, incluindo as decisões de aplicação de coimas (artigo 9.º, alínea e), da LTC).

No referido Acórdão 421/2020 esclareceu-se ainda, relativamente à competência do Tribunal em matéria de regularidade e legalidade das contas, que a apreciação a efetuar deverá obedecer a critérios de legalidade, centrados na ordem de valores que o regime de financiamento dos partidos pretende tutelar, não se resumindo a uma aplicação mecânica de critérios de natureza estritamente financeira e contabilística (v., entre outros, os Acórdãos n.os 979/1996 e 563/2006).

B. Questões a decidir

8 - Em face das conclusões do recurso e do suscitado oficiosamente, as questões a decidir são as seguintes:

a) Prescrição do procedimento contraordenacional;

b) Subsunção dos factos dados como provados aos ilícitos imputados;

c) Imputação subjetiva dos factos a título doloso ou negligente;

d) Medida concreta das coimas.

C. Apreciação do recurso

9 - Questão prévia: prescrição

No despacho de 1 de agosto de 2023, que admitiu liminarmente o recurso, equacionou-se a possibilidade de ter ocorrido a prescrição do procedimento contraordenacional. Ouvidos os sujeitos processuais sobre a questão, pronunciou-se o Ministério Público, em sentido negativo, tendo os arguidos ora recorrentes sustentado a posição oposta.

Apreciemos a questão.

As contraordenações previstas na LFP, processadas segundo os trâmites estabelecidos na LEC, estão sujeitas ao regime de prescrição do procedimento contraordenacional previsto nos artigos 27.º, 27.º-A e 28.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social e Respetivo Processo, referido adiante pela signa «RGCO»). É nesse regime geral que se encontram as normas sobre prazos de prescrição, bem como sobre as causas suspensivas e interruptivas do mesmo. O regime de contraordenações em matéria de financiamento e contas dos partidos políticos também integra causas específicas de suspensão da prescrição do procedimento que importa considerar na contagem do respetivo prazo. Com efeito, a LEC prevê, no seu artigo 22.º, situações especiais a que é atribuído efeito suspensivo, relativas ao incumprimento da obrigação de entrega de contas.

A Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, operou uma profunda modificação do quadro legal da fiscalização das contas dos partidos e das campanhas eleitorais, reestruturando o regime e processamento das contraordenações com ele relacionadas. Essa modificação teve implicações em diversos aspetos relevantes para a contagem dos prazos de prescrição, dos quais importa destacar a eleição dos marcos temporais relevantes para essa contagem, bem como para o catálogo de atos e eventos aos quais a lei associa efeitos interruptivos e suspensivos do prazo de prescrição.

Estando aqui em causa a condenação dos recorrentes pela prática de contraordenações decorrentes das contas da campanha eleitoral para as eleições autárquicas de 2017, poder-se-ia equacionar se a entrada em vigor da Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril - que ocorreu, como se disse, em 20 de abril de 2018 - convocaria um problema de sucessão de leis no tempo. Contudo, não é esse o caso, dado que - sem prejuízo do que adiante se dirá sobre a data precisa em que se deve considerar praticada a infração imputada - as modificações introduzidas pela Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, entraram em vigor em data anterior à prática das infrações, sendo esse o critério relevante, segundo o disposto nos artigos 3.º, n.os 1 e 2 e 5.º, ambos do RGCO, para a relevância da sucessão de leis no tempo. Como tal, a apreciação da eventual prescrição do procedimento contraordenacional deverá ser regida exclusivamente pelo quadro legal criado pela reforma legislativa de 2018.

No caso em análise, devem considerar-se, em relação a ambos os recorrentes, as contraordenações previstas nos artigos 47.º, n.º 1, e 31.º, n.º 1, da LFP, punidas com coimas máximas de (euro) 18.560,00 e (euro) 34.080,00, respetivamente, atento o valor do Indexante de Apoios Sociais (IAS) vigente à data (ano de 2018, no valor de (euro) 428,90, nos termos do artigo 2.º da Portaria 21/2018, de 18 de janeiro) e do salário mínimo nacional vigente à data (ano 2018, no valor de (euro) 580,00, nos termos do artigo 2.º do Decreto-Lei 156/2017, de 28 de dezembro).

Assim, o prazo normal de prescrição aplicável a cada uma das infrações em causa é o de três anos, nos termos do artigo 27.º, alínea b), do RGCO.

Vejamos agora a contagem do respetivo prazo.

Importa começar por fixar o termo inicial do prazo de prescrição. De acordo com o proémio do artigo 27.º do RGCO, o termo inicial coincide com a data da prática da infração, definida nos termos do artigo 5.º do mesmo diploma. Conforme se vem reiterando na jurisprudência deste Tribunal (v. os Acórdãos n.os 361/2003 e 423/2004), para o caso geral, a data da consumação das contraordenações por inobservância dos deveres formais de organização contabilística impostos pela LFP - como são as imputadas aos arguidos no âmbito dos presentes autos - corresponde ao termo final do prazo de entrega das contas partidárias.

Sobre a questão rege o artigo 27.º, n.º 1, da LFP, onde se dispõe que as contas relativas à campanha eleitoral, quando se trate de eleições autárquicas, devem ser prestadas no prazo máximo de 90 dias após o pagamento integral da subvenção pública, regulado no artigo 5.º do mesmo diploma.

Tal preceito não regula a forma de contagem do prazo. Atendendo a que, de acordo com atual quadro legal, o prazo em causa foi fixado para a prestação de contas perante uma entidade administrativa e que o próprio procedimento de controlo subsequente tem essa natureza, é de entender que a sua contagem deve obedecer ao artigo 87.º do Código do Procedimento Administrativo, o que significa que corre em dias úteis.

Segundo a informação prestada pela Assembleia da República, o terminus do pagamento da subvenção pública teve lugar no dia 20 de abril de 2018, pelo que as contas deveriam ser prestadas até ao dia 31 de agosto de 2018. A data da consumação das infrações é, pois, 1 de setembro de 2018, que coincide com o dies a quo do prazo prescricional.

Nos artigos 27.º-A e 28.º do RGCO identificam-se os factos e eventos a que a lei atribui efeito suspensivo e interruptivo da prescrição.

No caso vertente, é suficiente enumerar:

(i) A notificação da decisão da ECFP, datada de 2 de setembro de 2020, relativa às irregularidades das contas da campanha eleitoral, ocorrida em 10 de setembro de 2020 (fls. 259 a 263 do processo administrativo);

(ii) A notificação da instauração do procedimento de contraordenação, ocorrida em setembro de 2022 (fls. 6 a 12 dos presentes autos);

(iii) A notificação da decisão condenatória e de aplicação de coima, datada de 7 de março de 2023, em 16 de março de 2023 (fls. 27 a 33); e

(iv) A notificação do despacho que admitiu o recurso judicial interposto pelos arguidos, em 4 de agosto de 2023 (fls. 58 a 60).

Nos termos das alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 28.º do RGCO, estas notificações correspondem a atos processuais cujo efeito é inutilizar, relativamente à prescrição, o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo prescricional. Considerando que, entre a data de início da contagem do prazo de prescrição e cada um desses atos, até ao momento presente, nunca decorreram mais de três anos, é de concluir que a prescrição não sobreveio por esgotamento do prazo normal de prescrição.

O n.º 3 do artigo 28.º do RGCO dispõe, todavia, que a prescrição do procedimento terá lugar sempre que, desde o seu início, e ressalvando o tempo de suspensão, tenha decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade. No caso sub judice, tal prazo é de quatro anos e seis meses, o qual teria sido atingido em 1 de março de 2023, sem contabilizar as suspensões a que possa ter havido lugar. Quanto a estas, no caso vertente, importa destacar duas: em primeiro lugar, a suspensão de prazos decorrentes da legislação aprovada no âmbito da crise sanitária - SARS-COVID 19, que se prolongou por, pelo menos, 157 dias (v., neste sentido, os Acórdãos n.os 500/2021, 660/2021 e 798/2021); sobre a sua aplicabilidade aos recursos de impugnação judicial das decisões aplicativas de coima por parte da ECFP, v. o Acórdão 261/2022). Com efeito, da conjugação do disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de março, mesmo não considerando o disposto no artigo 5.º da Lei 4-A/2020, de 6 de abril, resulta que todos os prazos de prescrição então em curso se suspenderam desde o dia 12 de março de 2020 até ao dia 2 de junho de 2020 (v. os artigos 8.º e 10.º da Lei 16/2020, de 29 de maio) - isto é, pelo período de 83 dias. Posteriormente, por força do artigo 6.º-B, n.º 3, aditado à Lei 1-A/2020, de 19 de março, pela Lei 4-B/2021, de 1 de fevereiro, ocorreu nova suspensão dos prazos de prescrição, com efeitos desde o dia 22 de janeiro de 2021 até ao dia 5 de abril de 2021, inclusive (v. os artigos 6.º e 7.º da Lei 13-B/2021, de 5 de abril) - isto é, pelo período 74 dias. Com tal suspensão, o prazo a que se refere o artigo 28.º, n.º 3, do RGCO, teria terminado em 5 de agosto de 2023. Mas importa ainda considerar uma segunda causa de suspensão da prescrição, prevista no artigo 27.º-A, n.º 1, alínea c), do RGCO, decorrente da notificação do despacho que admitiu o recurso interposto pelos arguidos. Essa notificação tem-se por efetuada no dia 4 de agosto de 2023, perdurando por um máximo de seis meses, nos termos do n.º 2 do artigo 27.º-A do RGCO. Em suma, sem prejuízo de causas supervenientes, a prescrição do procedimento contraordenacional não sobrevirá antes de 5 de fevereiro de 2024.

A argumentação dos recorrentes sobre esta matéria improcede na medida em que, por um lado, considera que a data da prática de infração ocorreu em 30 de agosto de 2018 - desconsiderando, porventura, que o prazo de 90 dias não foi atingido no dia 13 de junho de 2018, feriado municipal em Lisboa, onde tem sede a ECFP, nos termos do artigo 4.º da LEC - e, por outro lado, não toma em consideração a causa suspensiva da prescrição prevista no artigo 27.º-A, n.º 1, alínea c), do RGCO.

10 - Mérito da decisão sancionatória

10.1 - Matéria de facto

10.1.1 - Factos provados

Com relevo para a decisão, provou-se que:

1 - O Grupo de Cidadãos Eleitores "Movimento Vidigueira Independente" (MVI) apresentou listas de candidatos às eleições gerais para os órgãos representativos das autarquias locais realizadas em 1 de outubro de 2017.

2 - Maria Helena Figueira D'Aguilar foi a Primeira Proponente da lista da candidatura apresentada pelo MVI.

3 - O MVI constituiu Cristóvão da Silva Amaral como Mandatário Financeiro das contas da campanha eleitoral relativa à eleição descrita em 1.

4 - O MVI apresentou, em 4 de julho de 2018, junto da ECFP, as contas da campanha eleitoral relativa à eleição mencionada no ponto 1, que complementou e corrigiu em 18 de outubro de 2018, em 19 de outubro de 2018, em 22 de outubro de 2018, em 14 de dezembro de 2018, em 8 e 14 de maio de 2020.

5 - O MVI registou nas contas apresentadas as seguintes despesas, não tendo procedido à respetiva comunicação na lista de ações e meios apresentada:

a) Despesas com estruturas, cartazes e telas:

i) Lonas e Outdoors, no valor de (euro) 1.350,00.

b) Eventos:

i) Almoço de apresentação, no Restaurante Celeiro, no dia 8 de agosto de 2017, no valor de (euro) 4.500,00.

6 - Nas contas apresentadas o MVI registou receita, no valor de (euro) 1.750,00, proveniente de atividade de angariação de fundos, sendo que tal valor, correspondente à soma dos valores individuais entregues pelos participantes, foi depositado na sua totalidade na conta bancária da campanha identificada com o n.º PT 500003508550000765613054, do banco Caixa Geral de Depósitos, pelo mandatário financeiro.

7 - O MVI não entregou lista discriminativa do produto da atividade de angariação de fundos, com identificação do tipo de atividade e data de realização.

8 - Nas contas apresentadas pelo MVI foi registada a seguinte despesa de campanha, no valor total de (euro) 724,47, titulada pela fatura n.º 1/768, emitida em 27 de julho de 2017 por "Publiplanície - Produções Publicitárias, Lda.", de cujo descritivo constam os seguintes elementos:

a) "500 folhas A4", no valor de (euro) 264,00, a que acresce IVA, à taxa de 23 %;

b) "Montagem", no valor de (euro) 175,00, a que acresce IVA, à taxa de 23 %;

c) "Convites 2 vezes (1000 unid)", no valor de (euro) 150,00, a que acresce IVA, à taxa de 23 %;

d) "Monofolhas 2 vezes", no valor de (euro) 190,00, a que acresce IVA, à taxa de 23 %.

9 - O MVI registou nas contas apresentadas despesa respeitante a combustível, no valor de (euro) 25,00, titulada pela Fatura n.º 613401000012017/00012970, emitida pelo fornecedor "Luc - Lubrificantes e Combustíveis, Lda.", em 27 de setembro de 2017, a qual não identifica nenhuma matrícula do veículo que tenha sido abastecido.

10 - Nas contas apresentadas pelo MVI foram registadas as seguintes despesas, no valor total de (euro) 363,10, cujos pagamentos não foram realizados através da conta bancária da campanha, identificada com o n.º PT 500003508550000765613054, do banco Caixa Geral de Depósitos:

a) Despesas relativas a "estruturas, cartazes e telas":

i) Aquisição de tubo, no valor de (euro) 3,60, documentada na fatura n.º 9286, emitida pelo fornecedor "A. S. Matos Rosa & Filho, Lda.", em 29 de setembro de 2017;

ii) Aquisição de tubo, no valor de (euro) 4,50, documentada na fatura n.º 9248, emitida pelo fornecedor "A. S. Matos Rosa & Filho, Lda.", em 28 de setembro de 2017;

b) Despesas relativas a "custos administrativos e operacionais":

i) Imposto de selo, no valor de (euro) 30,00, documentada pela declaração da "Autoridade Tributária e Aduaneira", de 12 de julho de 2017;

ii) Aquisição de combustível, no valor de (euro) 25,00, documentada na fatura n.º 613401000012017/00012970, emitida pelo fornecedor "Luc - Lubrificantes e Combustíveis, Lda.", em 27 de setembro de 2017;

c) Despesas relativas a "Outras despesas de campanha":

i) Renda da sede, no valor de (euro) 300,00, documentada pelo recibo n.º 1531927/1, emitido pela "Autoridade Tributária e Aduaneira", em 17 de julho de 2017.

11 - Na conta bancária da campanha (PT 500003508550000765613054, do banco Caixa Geral de Depósitos, S. A.) encontram-se registados os seguintes movimentos a crédito e a débito, sem que nas contas apresentadas pelo MVI conste o correspondente registo das operações:

a) Movimento a crédito, em 25 de agosto de 2017 - "Transferência de Maria Helena Figu", no valor de (euro) 12.000,00;

b) Movimento a débito, em 19 de setembro de 2017 - "Pagamento Musica", no valor de (euro) 50,00;

c) Movimento a crédito, em 17 de outubro de 2017 - "Transferência de Maria Helena Figu", no valor de (euro) 500,00;

d) Movimento a débito, em 14 de novembro de 2017 - "Diptícos A4", no valor de (euro) 98,40;

e) Movimento a crédito, em 24 de novembro de 2017 - "TrfMunicípio de Vidi", no valor de (euro) 61,04;

f) Movimento a crédito, em 25 de janeiro de 2018 - "TrfMunicípio de Vidi", no valor de (euro) 61,04;

g) Movimento a débito, em 21 de fevereiro de 2018 - "PGE855000000150", no valor de (euro) 12.743,87.

12 - Ao agirem conforme descrito nos pontos 5.b., 6. a 9. e 11., os Arguidos representaram como possível que as contas apresentadas não observassem integralmente as exigências legais, tendo ainda assim praticado os atos descritos e apresentado as contas nos termos enunciados, conformando-se com aquela possibilidade.

13 - Os arguidos sabiam que estavam obrigados a:

a) Integrar na lista de ações de campanha todas as despesas de campanha, bem como os meios nelas utilizados, que envolvam um custo superior a um salário mínimo nacional, designadamente as descritas no ponto 5.b;

b) Entregar lista discriminativa do produto da atividade de angariação de fundos, com identificação do tipo de atividade e data de realização, designadamente as descritas no ponto 6;

c) Registar nas contas da campanha todas as despesas e receitas a que correspondem os movimentos de fundos na conta bancária da campanha (e que digam respeito a atos de campanha), designadamente os descritos no ponto 11.

14 - Os Arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e contraordenacionalmente sancionáveis, tendo agido livre, voluntária e conscientemente.

15 - O Arguido Cristóvão da Silva Amaral é professor na área de desporto, lecionando no Agrupamento de Escolas da Vidigueira e tem a seu cargo dois dependentes em idade escolar (de 15 e 12 anos), encargos mensais relacionados com créditos no montante (euro) 490,00, encargos mensais com habitação arrendada no valor de (euro) 330,00, e ainda despesas de combustível, por motivos profissionais, no valor de (euro) 400,00.

16 - A Candidatura recebeu subvenção pública no valor de (euro) 13.768,26 para a campanha eleitoral relativa à eleição mencionada no ponto 1.

17 - O MVI registou nas contas apresentadas receitas no valor de (euro) 15.518,26 e despesas no valor de (euro) 15.593,58.

18 - A Arguida Maria Helena Figueira D'Aguilar foi eleita pelo PCP para a Câmara Municipal da Vidigueira, nas eleições gerais para os órgãos representativos das autarquias locais realizadas em 29 de setembro de 2013 e em 11 de outubro de 2009.

19 - Os arguidos não retiraram, para si ou para terceiros, nenhuma vantagem patrimonial decorrente dos factos descritos em 5. a 11..

10.1.2 - Factos não provados

Com relevância para a decisão, não se provaram os seguintes factos:

1 - Os arguidos sabiam que as suas condutas descritas em 5.a. e 10. dos factos provados eram proibidas e contraordenacionalmente sancionáveis, facto que representaram como possível, conformando-se com essa possibilidade.

10.1.3 - Motivação da decisão sobre a matéria de facto

A decisão sobre a matéria de facto resulta da análise conjugada da prova documental junta aos presentes autos, das regras da experiência e de inferências lógicas.

Para a prova da factualidade elencada no ponto 1. dos factos provados foi considerado o teor do Mapa Oficial 1-A/2017 da Comissão Nacional de Eleições, publicado no Diário da República n.º 231/2017, 1.º Suplemento, Série I de 30 de novembro de 2017, páginas 2 a 407, da qual a mesma se extrai.

A prova dos factos constantes dos pontos 2. e 3. dos factos provados resulta do teor da ata de constituição do MVI e seus anexos, a fls. 7 a 15 do PA 66/AL/17/2018 (doravante designado somente por "PA").

A prova dos factos constantes do ponto 4. dos factos provados resulta do teor de fls. 48 e seguintes, 100 e seguintes, 124 e seguintes, 142 e seguintes, 238 e seguintes e 244 a 249, todas do PA, onde constam as contas apresentadas, se certifica a sua data de apresentação e subsequentes correções.

Para prova da matéria factual constante dos pontos 5. a 11. dos factos provados, teve-se por base as contas apresentadas, nomeadamente o teor dos documentos contabilísticos e bem assim dos documentos de suporte apresentados, os quais não foram impugnados pelos arguidos.

No que respeita, em especial, aos factos descritos em 5., comparou-se a lista de ações e meios apresentada pelo MVI (fls. 122 do PA) com o Mapa M10 de fls. 148 (Despesas com estruturas, cartazes e telas), o Mapa M14 de fls. 150 ("outras" despesas), bem como com as faturas de suporte a fls. 194 e 227.

Quanto aos factos descritos em 6. e 7., tomou-se em consideração a identificação da conta bancária de campanha que consta de fls. 22, o comprovativo de depósito bancário de fls. 171 assinado pelo mandatário financeiro, o extrato bancário de fls. 241 e o mapa de receitas de fls. 131, todos do PA, conjugados com os documentos de prestação de contas, no qual se não identifica uma qualquer lista discriminativa do produto da atividade de angariação de fundos, nos termos descritos em 7. Essa não entrega é expressamente admitida pelo arguido a fls. 142, ainda que com ressalvas.

Quanto ao facto descrito em 8., tomou-se em consideração a fatura de fls. 194, bem como o Mapa M13, de fls. 149, ambos do PA.

Relativamente ao facto descrito em 9., tomou-se em consideração a fatura de fls. 174, bem como o Mapa M13 (custos administrativos e operacionais), de fls. 149, ambos do PA.

A prova dos factos descritos no ponto 10. resulta da ficha de identificação da conta bancária de campanha de fls. 22, do extrato bancário de fls. 172, 241 e 242, dos registos dos Mapas M10, M13 e M14 de fls. 148, 149 e 150, respetivamente, e das faturas de fls. 170, 174, 175, 176, e declaração de fls. 189, todos do PA.

No que aos factos descritos em 11. diz respeito, procedeu-se ao confronto entre os extratos bancários de fls. 172, 241 e 242, todos do PA, com as contas apresentadas, verificando-se a omissão de descrição das operações relativas a esses movimentos bancários.

A prova da factualidade enunciada em 12. a 14. extrai-se da matéria objetiva dada como provada, de acordo com as regras de experiência comum e inferência lógicas. Tratando-se de estados mentais dos agentes, a prova dos factos que os consubstanciem pode ser alcançada, no essencial, por duas vias: pela confissão feita pelo próprio ou por uma interpretação da manifestação exterior dos factos internos correspondentes. A segunda via implica o uso de inferências, assentes, quer em presunções judiciais apoiadas nas regras da experiência comum, quer em abduções baseadas em factos apurados através de prova direta.

Não só os recorrentes não impugnaram, em momento algum, a factualidade descrita em 5. a 11., como no próprio recurso admitiram expressamente que não dispunham de quaisquer conhecimentos de contabilidade, gestão, economia, ou outros que os habilitassem a cumprir integralmente os deveres contabilísticos e atinentes ao financiamento e despesas das campanhas eleitorais, ainda que tivessem assumido as posições de primeira proponente e mandatário financeiro. Ora, existindo uma legislação relativa à prestação de contas das campanhas eleitorais e sendo razoável presumir judicialmente que os arguidos tinham noção desse dever - até porque, em momento prévio à realização da campanha, se impõe a constituição de um mandatário financeiro, a abertura de conta bancária especificamente para o efeito, a apresentação à ECFP de um orçamento de campanha (artigo 17.º, n.º 1, da LEC), entre outros atos que os arguidos efetivamente praticaram e cujo sentido pressupõe a vigência de regras e procedimentos de prestação subsequente de contas, com possibilidade de sancionamento contraordenacional -, infere-se a impossibilidade de os arguidos não terem antecipado que os seus procedimentos e as contas apresentadas pudessem, ao menos em parte, ser desconformes com as exigências legais.

Apesar desta consciência, correspondente ao elemento intelectual do dolo, os arguidos decidiram apresentar as contas por si próprios, sem que tivessem recorrido a serviços especializados ou a auxílio técnico que lhes desse garantias de observância dos deveres que sobre si impendiam. É deste facto que se pode inferir, com suficiente grau de verosimilhança, que se conformaram com a atualização daquela possibilidade, pois não é plausível que pessoas reconhecidamente destituídas de competências adequadas e suficientes para a observância de deveres legais com inequívoca complexidade técnica, tendo optado por agir nos termos descritos, possam ter confiado que não incorreriam em infrações. A base necessária para firmar essa hipotética confiança pura e simplesmente carece de base prudencial, não sendo por isso crível que tenha estado presente no processo volitivo dos arguidos. Não está em causa, pois, que os arguidos tenham agido com o propósito de obter vantagens pecuniárias para si ou para terceiros, ou que tenham pretendido falsear as contas, ou prosseguir intencionalmente qualquer outro desiderato proscrito pela lei. Os autos não revelam indícios de tal ser o caso, sendo essa a razão de se dar como provado o facto descrito no ponto 19.

A decisão recorrida deu ainda como provados os factos descritos em 15. Com base nas declarações do arguido, não contrariadas por qualquer outro meio de prova que tenha sido recolhido e não intrinsecamente implausíveis, não há razões para divergir de tal apreciação.

A prova dos factos enunciados no ponto 16. dos factos provados extrai-se da análise do documento de fls. 30 a 47 do PA.

A prova do facto descrita no ponto 17. dos factos provados resulta da análise dos mapas de fls. 128 e 143 do PA.

A prova do facto descrito em 18. resulta do teor do Mapa oficial dos resultados das eleições gerais para os órgãos das autarquias locais publicado no Diário da República, 1.ª série - N.º 242 - 13 de dezembro de 2013 e no Diário da República, 1.ª série - N.º 49 - 11 de março de 2010, de cuja análise a mesma se extrai.

O facto não provado resulta, como se mostrará infra, de as condutas descritas não consubstanciarem as infrações imputadas.

10.2 - Matéria de direito

10.2.1 - Considerações gerais

Nos termos do artigo 28.º, n.º 1, da LFP, «os infratores das regras respeitantes ao financiamento dos Partidos e das campanhas eleitorais previstas nos capítulos II e III ficam sujeitos às sanções previstas nos números e artigos seguintes», sendo que os n.os 2 a 4 do artigo 28.º impõem penas e os artigos 29.º a 32.º impõem coimas, restringindo-se a competência do Tribunal Constitucional à aplicação destas, nos termos do artigo 33.º, n.º 1.

Como se salientou no recente Acórdão 509/2023, que aqui se seguirá de perto, do cotejo entre as normas dos artigos 30.º a 32.º da LFP - os especialmente relevantes em matéria de contas de campanha eleitoral - e o regime jurídico contido no capítulo III do mesmo diploma, decorre que há uma dicotomia fundamental no universo das infrações passíveis de sanção contraordenacional no âmbito das campanhas eleitorais. Temos, por um lado, infrações materiais, relativas ao financiamento das campanhas propriamente dito, as quais se traduzem na obtenção de receitas para a campanha eleitoral por formas não consentidas pela lei, designadamente receitas não enquadráveis no artigo 16.º do mesmo diploma, ou na realização de despesas sem justificação legal, designadamente por não dizerem respeito à campanha eleitoral ou que excedam os limites previstos no artigo 20.º Temos, por outro lado, infrações formais, que dizem respeito à inobservância do dever de prestação de contas e, no âmbito destas, do dever de tratar contabilisticamente as despesas e receitas da campanha de acordo com as diretrizes do artigo 12.º da LFP, aplicável ex vi do artigo 15.º do mesmo diploma, cujo propósito é viabilizar a sindicância material das receitas percebidas e das despesas realizadas.

Atendendo ao conteúdo dos tipos contraordenacionais dos artigos 30.º a 32.º da LFP, podemos discernir, como passíveis de sancionamento com coima em matéria de financiamento e organização das contas das campanhas eleitorais, as seguintes condutas (v. o Acórdão 98/2016, § 6.2.):

a) O recebimento, por parte dos partidos políticos, de receitas para a campanha eleitoral através de formas não consentidas pela LFP - artigo 30.º, n.º 1, ab initio;

b) A violação, por parte dos partidos políticos, dos limites máximos de despesas de campanha eleitoral fixados no artigo 20.º da LFP - artigo 30.º, n.º 1, in fine;

c) A inobservância, por parte de pessoas singulares, pessoas coletivas e respetivos administradores, das regras de financiamento de campanha eleitoral previstas no artigo 16.º da LFP - artigo 30.º, n.os 2 a 4;

d) A ausência ou insuficiência de discriminação ou comprovação das receitas e despesas da campanha eleitoral, por parte dos partidos políticos, mandatários financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores - artigo 31.º da LFP;

e) A inobservância do dever de entrega das contas discriminadas da campanha eleitoral ao Tribunal Constitucional, nos termos previstos no artigo 27.º da Lei 19/2003, por parte dos partidos políticos, mandatários financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores - artigo 32.º, n.os 1 e 2, da LFP.

Como se afirmou no Acórdão 405/2009, a contraposição entre infrações materiais - as descritas nas alíneas a) a c) - e infrações formais - as descritas nas alíneas d) e e) - «tem por base um critério segundo o qual, enquanto as primeiras dizem respeito à inobservância do regime das despesas e das receitas em sentido estrito - ou seja, do conjunto das regras a que se subordina a respectiva realização e de cujo cumprimento depende a regularidade de cada acto (cf. arts. 16.º, n.º 3, 19.º, n.º 3, e 20.º da Lei 19/2003) -, as segundas reportam-se à desconsideração do regime de tratamento das despesas e receitas realizadas - isto é, do conjunto das regras que dispõem sobre a incidência contabilística dos actos já realizados (cf. art. 12.º, ex vi do art. 15.º, n.º 1, 16.º, n.º 2, e 19.º, n.º 2, da Lei 19/2003)».

Tem interesse enunciar alguns corolários desta distinção fundamental.

Em primeiro lugar - e como se salientou no citado Acórdão 405/2009 -, a distinção releva para a determinação do momento em que deverá considerar-se praticado o facto típico e, nessa medida, para todos os efeitos jurídicos que dependam desse elemento, como sejam a determinação da lei temporalmente aplicável e a contagem do prazo de prescrição.

Em segundo lugar, dela decorre que ambas as categorias de infrações, pela sua distinta natureza, são mutuamente irredutíveis e cumuláveis. Irredutíveis, no sentido em que, embora as infrações formais tenham natureza instrumental face às materiais, dado que as exigências contabilísticas impostas às campanhas eleitorais visam possibilitar um adequado escrutínio do cumprimento das regras substantivas sobre o regime das despesas e das receitas em sentido estrito, as duas categorias de infrações não se implicam, nem se excluem mutuamente. Com efeito, o cometimento de uma infração material não implica logicamente o cometimento de uma infração formal (nada obsta a que, por exemplo, a perceção de uma receita não permitida por lei esteja devidamente comprovada e discriminada nas contas da campanha), nem o seu contrário (por exemplo, a falta ou insuficiência da discriminação ou de comprovação contabilística de uma determinada receita nas contas da campanha não implica, por si só, que essa receita seja materialmente ilícita - ainda que dificulte tal avaliação). Cumuláveis, no sentido em que, relativamente ao mesmo facto, ambas as infrações podem coexistir e ser imputadas ao mesmo sujeito a título de concurso efetivo (por exemplo, nada obsta a que a perceção de uma receita proibida por lei seja objeto de uma representação contabilística deficiente, visando precisamente ocultar a sua ilicitude material).

Paralelamente a esta distinção, encontramos ainda alguns tipos contraordenacionais que se centram, não no financiamento das campanhas eleitorais ou na violação dos deveres de prestação de contas e da respetiva forma, mas na violação de deveres acessórios, atinentes ao relacionamento entre os partidos políticos e demais sujeitos participantes em campanhas eleitorais - designadamente grupos de cidadãos eleitores - e a ECFP. É o caso do artigo 47.º da LEC, que tipifica contraordenacionalmente a violação de deves de comunicação e de colaboração e que, nessa medida, visam facilitar o bom desempenho das funções de escrutínio das contas partidárias e das campanhas eleitorais por parte da entidade competente.

Traçado este quadro geral, apreciemos as infrações concretamente imputadas aos recorrentes na decisão sancionatória.

10.2.2 - Imputações aos recorrentes

10.2.2.1 - Na decisão recorrida imputou-se, a cada um dos recorrentes, a prática de duas infrações distintas, em regime de concurso efetivo. Em primeiro lugar, a prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 47.º, n.º 1, com referência ao artigo 16.º, n.º 1, ambos da LEC; em segundo lugar, a contraordenação prevista no artigo 31.º, n.º 1, da LFP.

Os arguidos não contestam que os factos dados como provados pela ECFP sejam subsumíveis nos referidos tipos de infração. Contudo, dada a natureza do presente recurso de impugnação jurisdicional e o disposto no artigo 62.º, n.º 1, parte final, do RGCO, subsidiariamente aplicável, importa apreciar tais juízos, ainda que de forma sucinta.

10.2.2.2 - Da contraordenação prevista e punida pelo artigo 47.º, n.º 1, com referência ao artigo 16.º, n.º 1, ambos da LEC.

Dispõe o artigo 16.º, n.º 1, da LEC, que «[o]s [...] grupos de cidadãos eleitores que apresentem candidatura às eleições dos órgãos das autarquias locais estão obrigados a comunicar à Entidade as ações de campanha eleitoral que realizem, bem como os meios nelas utilizados, que envolvam um custo superior a um salário mínimo». No caso vertente, o valor a considerar é o do salário mínimo de 2017, no valor de (euro) 557,00, segundo os artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 86-B/2016, de 29 de dezembro.

A inobservância deste dever é sancionada nos termos do artigo 47.º, n.º 1, do mesmo diploma, nos termos do qual «[o]s mandatários financeiros, [...] e os primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores que violem os deveres previstos nos artigos 15.º, 16.º e 46.º-A são punidos com coima mínima no valor de 2 salários mínimos mensais nacionais e máxima no valor de 32 salários mínimos mensais nacionais».

Está em causa, nesta infração, a omissão de comunicação à ECFP, por parte da entidade concorrente a eleições, das ações de campanha eleitoral que realizem, bem dos correspondentes meios nelas utilizados, desde que envolvam um custo superior a um salário mínimo nacional. Ora, segundo a decisão recorrida, verificaram-se duas omissões: a das despesas com lonas e outdoors, no valor de (euro) 1.350,00; e a de um evento, um almoço ocorrido em 8 de agosto de 2017, com um custo de (euro) 4.500,00.

Como decorre do enunciado legal, não há um dever de comunicação de toda a qualquer despesa realizada durante a campanha eleitoral, desde que superior a um salário mínimo nacional. O que o artigo 16.º, n.º 1, da LEC, impõe é a comunicação das ações de campanha, bem como os meios nelas utilizados, desde que envolvam um custo superior a um salário mínimo nacional.

Tal é o caso, de forma inequívoca, no que respeita ao almoço de campanha de 8 de agosto de 2017, que não se encontra refletido na comunicação feita à ECFP. Já não se afigura ser o caso no que às lonas e outdoors diz respeito, na medida em que, não obstante serem despesas da campanha eleitoral - e, nessa medida, contabilizáveis nos termos gerais das contas da campanha -, não são, em si mesmas, ações de campanha, pois não constituem eventos situados no tempo. Não se pode excluir, como é evidente, que as despesas com lonas tenham constituído meios utilizados em determinada ação de campanha eleitoral; mas não estando tal facto enunciado e provado, não pode ser considerado para efeitos sancionatórios.

Em suma, verifica-se a infração, embora a mesma se esgote na não comunicação do facto descrito em 5.b.i. dos factos provados.

10.2.2.3 - Da contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.º 1, da LFP

O artigo 31.º, sob a epígrafe «[n]ão discriminação de receitas e de despesas», dispõe no seu n.º 1 que «[o]s mandatários financeiros, os candidatos às eleições presidenciais, os primeiros candidatos de cada lista e os primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores que não discriminem ou não comprovem devidamente as receitas e despesas da campanha eleitoral são punidos com coima mínima no valor do IAS e máxima no valor de 80 vezes o valor do IAS».

O regime contabilístico a que estão sujeitos os partidos políticos e as entidades concorrentes a eleições obedece, assim, a um conjunto de requisitos específicos, justificados pela especial natureza destas organizações e pela adstrição das contas da campanha eleitoral ao controlo público da respetiva conformidade legal, seja no que concerne às despesas de campanha, seja às respetivas receitas, nomeadamente as fontes de financiamento. Nesse sentido, o artigo 15.º da LFP determina que as receitas e despesas da campanha eleitoral constam de contas próprias, as quais devem obedecer ao regime do artigo 12.º do mesmo diploma, onde se firma um conjunto de regras e deveres contabilísticos.

Porém, nem toda e qualquer violação desses deveres releva para o tipo contraordenacional previsto no artigo 31.º, n.º 1, da LFP. O Tribunal tem reiteradamente sublinhado que «não há uma correspondência perfeita entre os deveres que o Capítulo III da Lei 19/2003 impõe às candidaturas e as coimas previstas nos artigos 30.º a 32.º, existindo, inclusivamente, deveres cujo incumprimento não é sancionado com coima» (Acórdão 98/2016). Só releva a inobservância de deveres que se traduza em não discriminação ou não comprovação devida das despesas e receitas da campanha eleitoral. A primeira constitui a omissão, incompletude ou imprecisão na descrição do facto sujeito a contabilização. A segunda constitui a ausência ou insuficiência da titulação ou suporte dos factos sujeitos a contabilização e que sustentam a sua inclusão numa dada conta (v. Acórdão 509/2023).

No caso vertente, a decisão recorrida identifica cinco núcleos factuais suscetíveis de recondução ao tipo de infração previsto no artigo 31.º da LFP:

i. Não discriminação integral da atividade de angariação de fundos;

ii. Registo de despesas tituladas por documentos contabilísticos de suporte incompletos, obstando à aferição da conformidade do preço praticado com o valor de mercado;

iii. Registo de despesa titulada por documento contabilístico de suporte incompleto;

iv. Pagamentos de despesas de campanha não efetuados por via da conta bancária da campanha eleitoral; e

v. Existência de movimentos a crédito e a débito na conta bancária da campanha eleitoral não registados nas contas da campanha.

10.2.2.3.1 - Está em causa, na imputação i., a não discriminação integral da atividade de angariação de fundos. Em concreto, nas contas apresentadas foi registada como receita da campanha o produto de uma atividade de angariação de fundos, no valor global de (euro) 1.750,00, sem identificação do tipo de atividade e data em que se realizou, e sem discriminação dos contributos individuais que compuseram o produto global.

A matéria de facto relevante para a imputação objetiva consiste nos factos descritos nos pontos 6. e 7.

Nos termos do artigo 16.º, n.º 1, alínea d), da LFP, constitui forma lícita de financiamento da campanha eleitoral o «[p]roduto de atividades de angariação de fundos para a campanha eleitoral». Segundo o n.º 4 do mesmo artigo, tal tipo de receita está sujeita ao limite de 60 IAS por doador, e é obrigatoriamente titulada por cheque ou por outro meio bancário que permita a identificação do montante e da sua origem.

Em termos de registo contabilístico deste tipo de receitas, prevê o artigo 12.º, n.º 7, alínea b), da LFP, a obrigatoriedade de elaboração de lista, a anexar à contabilidade, na qual se demonstrem as receitas decorrentes do produto da atividade de angariação de fundos, com identificação do tipo de atividade e data de realização.

No caso vertente, os recorrentes não observaram estas exigências, uma vez que apenas registaram um valor global de receita a título de «angariação de fundos», sem discriminarem os elementos mencionados. Tal situação é recondutível à não discriminação de receitas da campanha eleitoral, razão pela qual se mostra preenchido o tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 31.º, n.º 1, da LFP.

10.2.2.3.2 - Vejamos agora a imputação ii., atinente ao registo de despesas tituladas por documentos contabilísticos de suporte incompletos, obstando à aferição da conformidade do preço praticado com o valor de mercado. Subjacente a esta modalidade típica está a violação dos artigos 12.º, n.º 2, aplicável ex vi do disposto no artigo 15.º, n.º 1, ambos da LFP, decorrente de haver despesas tituladas por faturas que, pela incompletude do seu descritivo e pela ausência de outros elementos complementares de suporte, impossibilitam a realização de comparação de preços e, com isso, a possibilidade de se aferir o custo real e a conformidade legal dos bens e serviços em causa.

A factualidade relevante é a descrita no ponto 8. dos factos provados, relativo à despesa de campanha, no valor total de (euro) 724,47, titulada pela fatura n.º 1/768, emitida em 27 de julho de 2017 por "Publiplanície - Produções Publicitárias, Lda.", a qual diz respeito a material de propaganda.

A título de enquadramento geral relativo ao tipo contraordenacional previsto no artigo 31.º, n.º 1, da LFP, justifica-se reiterar o que se escreveu no recente Acórdão 509/2023:

Nos Acórdãos n.os 756/2020 e 758/2020, a propósito do tipo contraordenacional previsto no artigo 31.º, n.º 1, da LFP, ensaiou-se uma tipologia das situações relevantes, com o seguinte teor:

«Num primeiro grupo (a), incluiremos as despesas tituladas por faturas que não permitem identificar a natureza, qualidade ou quantidade daquilo que se pagou. São estas, verdadeiramente, as faturas incompletas.

Num segundo grupo (b), estão as despesas que representam gastos relativos a bens e serviços incluídos na Listagem 38/2013, cujos valores se situam dentro dos limites máximo e mínimo aqui estabelecidos.

Num terceiro grupo (c), incluímos as despesas que representam gastos relativos a bens e serviços incluídos na Listagem, cujos valores se situam fora dos limites estabelecidos nesta.

No último grupo (d), estão as despesas relativas a bens e serviços não incluídos na Listagem referida.

Tentaremos agora classificar as [...] faturas [...] num dos quatro grupos. A ideia subjacente é a de encontrar um critério justo e equitativo de repartição do ónus da prova da fatura irregular.

Assim:

- as faturas do grupo (a) são consideradas irregulares enquanto instrumento de titulação de despesas de campanha;

- as faturas do grupo (b) são consideradas regulares;

- as faturas do grupo (c) são consideradas irregulares, salvo se o partido ou coligação concorrente tiver demonstrado cabalmente a razão de ser do desvio, ou este não seja significativo;

- relativamente às faturas do grupo (d) que discriminem clara e precisamente o que é que foi pago, cabia à ECFP demonstrar que os respetivos montantes carecem de credibilidade, por excessivamente elevados ou demasiado reduzidos, quando confrontados com os valores de mercado; não tendo sido feita tal demonstração, as faturas serão consideradas regulares.

Sublinhe-se, relativamente a estas últimas faturas, que a ECFP poderá tentar obviar a esta consequência simplesmente atualizando e mantendo atualizada a Listagem - que já tinha dois anos à data das eleições -, e que não inclui prestações de serviços hoje comuns nas campanhas eleitorais. Não tendo procedido à atualização - que porventura conviria fazer anualmente - por que razão há de o ónus da demonstração da razoabilidade da despesa recair sobre as candidaturas?»

Esta tetrapartição, que visa distribuir os casos concretos por quatro grupos definidos em função das combinações possíveis das diversas variantes relevantes - a natureza do bem ou serviço adquirido, o preço de aquisição praticado, o preço de mercado tal como definido na Listagem, a completude da titulação contabilística dessa operação, etc. -, deve ser cruzada com a já referida dicotomia, há muito consolidada na jurisprudência do Tribunal Constitucional, das infrações materiais e infrações formais, para que possamos ter um quadro classificatório mais perfeito, que habilite o correto enquadramento jurídico das situações submetidas a juízo.

Em boa verdade - e deixando de parte o grupo b), que não suscita problemas de conformidade legal -, verifica-se uma diferença estrutural entre os casos do grupo a) e os dos grupos c) e d). No primeiro, o que está em causa é uma verdadeira irregularidade da fatura, uma irregularidade formal, na medida em que o documento que titula a operação efetuada, pela sua incompletude ou imperfeição, não permite «identificar a natureza, qualidade ou quantidade daquilo que se pagou» - designadamente, não permite apurar se o que foi adquirido podia ou não ser licitamente adquirido pelo preço praticado. É essa, aliás, como se vincou anteriormente, a função instrumental das exigências contabilísticas impostas às campanhas eleitorais: existe como forma de representar com fidedignidade a atividade realizada pelas campanhas eleitorais, com o intuito de viabilizar o escrutínio da conformidade legal das receitas e despesas das campanhas eleitorais.

Já nos casos do grupo c), em rigor, não existe irregularidade da fatura, uma vez que esta titula adequadamente o bem ou serviço que foi adquirido e o preço por que foi adquirido, permitindo «identificar a natureza, qualidade ou quantidade daquilo que se pagou». A aquisição de um bem ou serviço por um preço que divirja do preço de mercado não é primariamente um problema de representação contabilística de uma operação, mas um problema da admissibilidade material da própria operação. Nesse sentido, a apresentação de razões que visem ilidir a presunção estabelecida pelos intervalos de valores constantes da lista de referência - essa natureza ilidível ou meramente «indicativa», como resulta dos artigos 20.º, n.º 2, alínea a) e 21.º, n.º 1, alínea a), da LEC, tem sido reiteradamente afirmada pelo Tribunal (cf. Acórdão 625/2022, § 11.1.) - ou mostrar que, embora divergente dos valores de mercado gerais, as concretas circunstâncias de uma dada aquisição justificavam o preço praticado, não visa regularizar a fatura, antes visa demonstrar a licitude do próprio ato aquisitivo ou dispositivo - designadamente mostrando, nos casos de aquisição por preço inferior ao de mercado, que não representa uma forma oculta de financiamento por parte da entidade vendedora, e nos casos de aquisição por preço superior ao de mercado, que ela não representa uma forma oculta de financiamento por parte da entidade adquirente. Note-se, aliás, que, tal como se salientou acima, a LFP consagra, no seu artigo 8.º, uma norma proibitiva de cariz material relativa a determinadas formas de financiamento, onde avultam, tanto a proibição expressa de «[a]dquirir bens ou serviços a preços inferiores aos praticados no mercado», como a de «[r]eceber pagamentos de bens ou serviços por si prestados por preços manifestamente superiores ao respetivo valor de mercado» - alíneas b) e c) do n.º 2.

Finalmente, no grupo d) a situação é estruturalmente equivalente aos casos do grupo c): não está em causa um problema de irregularidade da fatura ou do documento que titule uma dada operação, tal que impossibilite ou dificulte a ação de «identificar a natureza, qualidade ou quantidade daquilo que se pagou» (ainda que essa hipótese também seja equacionável), mas de admissibilidade da própria operação. Em primeiro lugar, porque se reporta a bem ou serviço não incluído na Listagem e, por isso, suscetível de dúvida sobre a respetiva qualificação como despesa de campanha eleitoral, atenta a noção que dela se dá no artigo 19.º, n.º 1, da LFP - por definição, os bens e serviços enumerados na Listagem são meios de campanha eleitoral (artigo 9.º, n.º 2, da LEC). Em segundo lugar, devendo ser considerada despesa de campanha eleitoral, está sujeita à proibição de divergência injustificada do preço de mercado. Sob este aspeto, a diferença relativamente ao grupo c) é que, tratando-se de meio não contemplado na lista de referência, inexiste um parâmetro de aferição previamente conhecido e mobilizável para o efeito, o que justifica que o juízo positivo sobre a divergência deva ser substancialmente mais exigente ao nível probatório, onerando de modo integral a ECFP.

Cabe sublinhar que a qualificação dos casos dos grupos c) e d) da mencionada tipologia das faturas como casos de infração material, recondutível ao artigo 30.º da LFP, corresponde a uma alteração de orientação jurisprudencial. Em especial, o Tribunal Constitucional tem vindo a considerar, no que aos casos do grupo c) diz respeito, que a divergência não devidamente justificada entre o preço de aquisição e o intervalo de referência que consta da Listagem para o bem ou serviço em causa consubstancia uma violação do dever de comprovação da despesa, nos termos dos artigos 12.º e 15.º da LFP, sancionado no plano contraordenacional através do artigo 31.º do mesmo diploma. O raciocínio subjacente é o de que o arguido, ao não apresentar documentação de suporte que justifique cabalmente o desvio do preço de aquisição em relação ao valor de referência, não logra demonstrar a «razoabilidade» da despesa. Tal ausência de justificação é tomada como razão suficiente para se concluir que a própria fatura é irregular. Considere-se, neste exato sentido, a seguinte passagem do Acórdão 469/2022:

«22.3 - Nas contas ora em análise, foram registadas despesas tituladas por faturas, respeitantes a bens e serviços incluídos na Listagem 38/2013, cujos valores se situam fora dos limites nela previstos, sem que tenham sido juntos quaisquer elementos complementares de comparação de preços que permitissem concluir sobre a razoabilidade das despesas em questão face ao valor de mercado (cf. o ponto 7. dos factos provados), sendo por isso exigível a apresentação de elementos complementares de comparação de preços de tais despesas, nos termos e para os efeitos já referidos.

As faturas em causa são consideradas irregulares (cf. a alínea c) do n.º 22.2, supra), uma vez que os responsáveis pela apresentação das contas não demonstraram cabalmente, mediante a junção de elementos complementares a razão de ser dos desvios.

Com efeito, no caso em apreço, verifica-se que nas faturas indicadas no ponto 7. dos factos provados se encontram registadas despesas, relativas a bens e serviços incluídos na Listagem 38/2013, cujos valores se situam fora dos limites nela estabelecidos (cf. as duas últimas colunas da tabela constante do mencionado ponto 7., onde constam, respetivamente, o valor unitário do bem ou serviço em questão e o seu valor indicativo constante da referida Listagem). Não tendo os responsáveis pelas contas demonstrado a razão de ser dos desvios, tal implica, por via de uma indevida comprovação das despesas da campanha, que se conclua pelo preenchimento do tipo contraordenacional constante do artigo 31.º, n.os 1 e 2, da LFP».

Justifica-se reponderar este entendimento. Se o dever de comprovação de uma despesa compreender a demonstração da «razoabilidade» da mesma, incluindo-se neste conceito a prova de que o desvio entre o preço efetivamente pago e o intervalo de referência é justificado, desaparece irremediavelmente a fronteira sobre a qual repousa a dicotomia das infrações formais e materiais. Na verdade, em matéria de despesas de campanha, tal entendimento conduz a uma absorção integral da categoria das irregularidades materiais pela das irregularidades formais, pois todos os casos em que se verifique um desvio injustificado da despesa realizada em relação ao valor de referência são então qualificados como irregularidades formais, ainda que a fatura ou outros elementos discriminem perfeitamente e comprovem cabalmente o valor efetivo de aquisição. Ora, impõe-se distinguir entre o dever de comprovação de uma despesa, que respeita à demonstração de que certo bem ou serviço foi adquirido por determinado valor, e o dever de não realizar despesas não consentidas pela lei, que respeita, inter alia, à conformidade de cada despesa com as exigências constantes dos artigos 8.º e 16.º da LFP. O desvio entre o valor pago e o valor de referência situa-se neste segundo plano: não se trata de um problema de regularidade da fatura, visto que esta discrimina e comprova o que se adquiriu e o valor da aquisição, mas de licitude do ato aquisitivo nela documentado, designadamente se corresponde a uma operação normal de mercado ou a um donativo dissimulado. Reitere-se que o dever de comprovação da despesa é meramente instrumental do controlo da licitude dos financiamentos políticos - do respeito, pois, pelo regime material de financiamento dos partidos e das campanhas, em última análise recondutível aos imperativos constitucionais da igualdade democrática dos cidadãos e da subordinação do poder económico ao político.

A dissolução da dicotomia das infrações formais e materiais, propiciada pela ambiguidade do termo «razoabilidade», para além de um problema de rigor dos conceitos, tem ainda consequências indesejáveis que convém destacar. Em primeiro lugar, ao transmudar em formais desvalores de ordem material, subverte o substrato axiológico do regime, confundindo numa categoria única o acessório, por um lado, e o principal, por outro, em dissonância com a inevitável diferença de gravidade entre ambos, refletida nas diversas molduras sancionatórias dos artigos 30.º e 31.º da LFP. Em segundo lugar, ao importar para o plano formal da comprovação das operações realizadas matéria que se prende com a licitude das receitas e despesas, contribui para desonerar a autoridade administrativa competente de uma atividade instrutória orientada para a descoberta da verdade material e visando o sancionamento das infrações mais graves do ponto de vista da ordem de valores que a lei procura salvaguardar. Em terceiro lugar, tem por efeito a inversão do ónus da prova, uma vez que, interpretando-se a exigência legal de comprovação devida de uma despesa como implicando um dever de justificar a sua razoabilidade, mormente através da demonstração de um fundamento material para a discrepância entre o valor de aquisição e o valor de referência, punem-se ao abrigo do artigo 31.º os arguidos que não lograram demonstrar não terem cometido a infração prevista e punida pelo artigo 30.º do mesmo diploma. Estas consequências não são meras conjeturas, formuladas de acordo com o método hipotético-dedutivo, mas factos documentados nos processos relativos a contas dos partidos políticos ou das campanhas eleitorais, em que os arguidos são invariavelmente sancionados somente pela infração prevista no artigo 31.º da LFP. A interpretação preconizada neste aresto, pelo contrário, harmoniza-se melhor com a ordem legal de valores, promove a aplicação de sanções ao financiamento ilícito e mostra-se idónea a garantir a presunção de inocência dos arguidos. São razões suficientes para a mudança de orientação jurisprudencial.»

Vejamos o caso dos autos.

Na fatura em apreço está em causa material de propaganda, designadamente "500 folhas A4", "montagem", "1.000 convites" e "monofolhas 2 vezes".

O índice dos preços de mercado que operam como parâmetro de regularidade das despesas efetuadas é constituído pela listagem mencionada nos artigos 24.º, n.º 5, da LFP, e 9.º, n.º 2, da LEC. No caso vertente, trata-se da Listagem 5/2017 (DR, 2.ª série, n.º 79, de 21 de abril de 2017, parte D, pp. 7647 a 7652).

Aí estão previstos diversos intervalos de custos com material em papel, nomeadamente em virtude da sua dimensão, forma, gramagem e qualidade. Ora, a ausência de descrição completa desses elementos, para os items indicados, impede que se proceda à comparação pertinente, dado que o mercado disponibiliza variedade significativa de "folhas A4", de convites ou de monofolhas, razão pela qual a Listagem 5/2017 contempla múltiplos intervalos de preços neste domínio. O mesmo vale para a "montagem", uma vez que não é explicitamente discriminado o objeto dessa atividade, isto é, o que foi efetivamente montado.

É bom de ver que a exigência de discriminação das faturas é condição necessária de aferição da razoabilidade das despesas que lhes subjazem, pois só mediante uma adequada e completa discriminação dos bens e serviços a que respeitam as despesas em questão (identificando-se devidamente a sua natureza, qualidade e quantidade) será possível à ECFP verificar, designadamente, se se trata de bens e serviços incluídos na Listagem 5/2017 e, de seguida, verificar se os respetivos valores se situam dentro dos limites aí previstos.

Assim, em virtude desta incompletude, não se mostra possível formular um juízo de conformidade ou desconformidade com os preços de mercado aplicáveis. Trata-se, pois, de um caso enquadrável no grupo a) da tipologia jurisprudencial, consubstanciando uma violação do artigo 12.º, n.os 1 e 2, da LFP, aplicável ex vi do disposto no artigo 15.º, n.º 1, do mesmo diploma. Tal irregularidade formal, por seu turno, preenche o elemento objetivo do tipo de ilícito constante do artigo 31.º, n.º 1, da LFP, na modalidade específica de não discriminação de despesa da campanha eleitoral.

10.2.2.3.3 - A imputação descrita em iii. diz respeito ao registo de uma despesa com combustível sem que o documento que a titula permita comprovar que esse combustível foi usado num qualquer veículo automóvel adstrito à campanha eleitoral.

A factualidade relevante é a descrita no ponto 9. dos factos provados.

Ao contrário do que sucede com o caso ii., em rigor não se trata aqui de uma incompletude da fatura da qual resulte a impossibilidade de identificar a natureza, qualidade ou quantidade daquilo que se pagou e, por essa via, de apurar o custo real e a conformidade legal da operação em causa. A incompletude reside no facto de a fatura não comprovar que a despesa realizada é uma despesa de campanha eleitoral, atenta a noção que dela se dá no artigo 19.º, n.º 1, da LFP, isto é, que a aquisição daquele combustível, ainda que efetuada pela campanha e durante o período de campanha eleitoral, foi efetuada com intuito ou benefício eleitoral (v. Acórdão 19/2008), designadamente num qualquer automóvel adstrito à campanha. É certo que as despesas com combustíveis são despesas normais de campanha eleitoral, estando mesmo previstas na Parte II da Listagem 5/2017, não havendo no caso vertente elementos probatórios que apontem para que o combustível não tenha sido adquirido e usado para esse efeito. Porém, subsiste a incompletude da fatura para comprovar esse destino da despesa, pelo que se mostra preenchido o elemento objetivo do tipo de ilícito constante do artigo 31.º, n.º 1, da LFP, precisamente na modalidade específica de não comprovação de despesa da campanha eleitoral.

10.2.2.3.4 - Vejamos agora a imputação iv., atinente a pagamentos de despesas de campanha não efetuados por via da conta bancária da campanha eleitoral.

À luz da factualidade descrita no ponto 10. dos factos provados, as contas apresentadas documentam um conjunto de despesas de campanha eleitoral cujo pagamento não foi efetuado através da conta bancária da campanha, com o IBAN PT 500003508550000765613054.

É certo que, como se salienta na decisão recorrida, o artigo 15.º, n.º 3, da LFP, dispõe que «[à]s contas previstas nos números anteriores correspondem contas bancárias especificamente constituídas para o efeito, onde são depositadas as respetivas receitas e movimentadas todas as despesas relativas à campanha», o que induz a noção de que toda e qualquer despesa de campanha tem de ser movimentada através da conta bancária aberta especificamente para o efeito. Contudo, o artigo 19.º, n.º 3, da LFP, estabelece uma exceção: «[o] pagamento das despesas de campanha faz-se obrigatoriamente, por instrumento bancário, nos termos do artigo 9.º, com exceção das despesas de montante inferior ao valor do IAS desde que, durante este período, estas não ultrapassem o valor global de 2 % dos limites fixados para as despesas de campanha».

No caso vertente, nenhuma das despesas elencadas no ponto 10. dos factos provados excede o valor do IAS aplicável à data, pela simples razão de que o seu somatório também não excede tal limite - daí decorrendo, a fortiori, que o conjunto das mesmas não excede «2 % dos limites fixados para as despesas de campanha».

Assim, a circunstância de estas despesas não terem sido pagas através da conta bancária da campanha não constitui irregularidade enquadrável no artigo 31.º, n.º 1, da LFP.

10.2.2.3.5 - Vejamos, finalmente, a imputação v., atinente à existência de movimentos a crédito e a débito na conta bancária da campanha eleitoral não registados nas contas da campanha. Os movimentos em causa são os descritos no ponto 11. dos factos provados.

Do dever de organização contabilística consagrado no artigo 12.º, n.os 1 e 2, da LFP, aplicável ex vi do artigo 15.º, n.º 1, do mesmo diploma, extrai-se a obrigatoriedade de a contabilidade refletir as receitas e despesas da campanha eleitoral. Por outro lado, segundo o disposto no já citado artigo 15.º, n.º 3, da LFP, todas as receitas e despesas de campanha têm obrigatoriamente de ser movimentadas através da conta bancária constituída para o efeito, pelo que todo e qualquer movimento a débito e a crédito nesta tem de estar refletido nas contas da campanha. Tal não sucede quanto aos movimentos bancários suprarreferidos.

Tal consubstancia uma violação do artigo 12.º, n.os 1 e 2, da LFP, aplicável ex vi do disposto no artigo 15.º, n.º 1, do mesmo diploma. Essa irregularidade formal, por seu turno, integra o elemento objetivo do tipo de ilícito constante do artigo 31.º, n.º 1, da LFP, na modalidade específica de não discriminação de despesa da campanha eleitoral.

10.2.2.4 - Como se salientou na motivação da matéria de facto, provou-se que os arguidos, tendo conhecimento dos deveres que sobre si impendiam no que ao cumprimento de regras e procedimentos atinentes ao financiamento das campanhas eleitorais e à respetiva representação contabilística diz respeito, anteciparam a possibilidade de que os seus procedimentos e as contas apresentadas pudessem, ao menos em parte, ser desconformes com as exigências legais, tendo-se conformado com isso.

Sendo certo que não se provou que os arguidos tenham agido com o propósito de obter vantagens pecuniárias para si ou para terceiros, ou que tenham pretendido falsear as contas, ou prosseguir qualquer outro objetivo ilegal, cabe notar que a imputação das condutas típicas a título doloso não se esgota na modalidade de dolo direto, na qual o agente representa um facto que preenche um tipo de infração e atua com a intenção de o realizar. No caso vertente, os factos típicos são imputáveis aos arguidos a título de dolo eventual, nos termos do artigo 14.º, n.º 3, do Código Penal, aplicável ex vi do disposto no artigo 8.º, n.º 1, do RGCO.

10.2.4 - Consequências jurídicas

Embora na sua alegação de recurso os recorrentes não impugnem a medida concreta das coimas que lhes foram aplicadas - antes pugnando pela sua redução a metade por via da imputação a título negligente, pretensão que ficou prejudicada por repousar num pressuposto errado -, em face do provimento parcial do recurso, nas partes respeitantes às modalidades de cometimento das infrações previstas no artigo 47.º, n.º 1, com referência ao artigo 16.º, n.º 1, ambos da LEC, e no artigo 31.º, n.º 1, da LFP, justifica-se extrair consequências ao nível sancionatório. Trata-se de consequências tanto ao nível da medida concreta das coimas parcelares aplicadas, como das coimas únicas aplicadas em virtude da existência de concurso de infrações.

Estão em causa, em relação a ambos os recorrentes, as contraordenações previstas nos artigos 47.º, n.º 1 e 31.º, n.º 1, da LFP, punidas, a primeira, com coima a fixar entre 2 e 32 salários mínimos mensais nacionais de 2018 (no valor de (euro) 580,00) - isto é, entre (euro) 1.160,00 e (euro) 18.560,00 -, e a segunda com coima entre 1 e 80 vezes o valor do IAS fixado para o ano de 2018 (no valor de (euro) 428,90) - isto é, entre (euro) 428,90 e (euro) 34.312,00.

No caso concreto, a decisão recorrida, ponderando em especial o número de modos pelos quais cada um dos tipos contraordenacionais foi violado, a relação entre o valor pecuniário envolvido nas infrações e o total das despesas e receitas registadas na campanha, bem como a ausência de benefícios económicos que os arguidos tenham tirado dos seus comportamentos, fixou as coimas nos seguintes termos:

i. Para a arguida Maria Helena Figueira d'Aguilar, uma coima de dois SMN ((euro) 1.160,00) pela violação do artigo 47.º, n.º 1, da LEC, e uma coima de seis IAS ((euro) 2.573,40) pela violação do artigo 31.º, n.º 1, da LFP. Fixou a coima única em (euro) 2.600,00.

ii. Para o arguido Cristóvão da Silva Amaral uma coima de dois SMN ((euro) 1.160,00) pela violação do artigo 47.º, n.º 1, da LEC, e uma coima de seis IAS ((euro) 2.573,40) pela violação do artigo 31.º, n.º 1, da LFP. Fixou a coima única em (euro) 2.600,00.

Assim, no que diz respeito à infração prevista no artigo 47.º, n.º 1, da LEC, a coima foi fixada pelo mínimo legal, ao passo que quanto à infração prevista no artigo 31.º, n.º 1, da LFP, foi fixada uma coima correspondente a seis IAS, ou seja, um IAS por cada modo de preenchimento do tipo contraordenacional.

Importa fazer refletir na sanção a aplicar as conclusões alcançadas quanto a duas das imputações, as apreciadas nos pontos 10.2.2.2. e 10.2.2.3.4. Tal repercussão tanto se pode traduzir no ajustamento das coimas parcelares ou coima única, como na ponderação da aplicação de uma sanção de outra natureza, designadamente de admoestação.

Segundo o disposto no artigo 51.º, n.º 1, do RGCO, quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifiquem, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação. Assim, são requisitos cumulativos da aplicação da sanção de admoestação: (i) a reduzida gravidade da contraordenação; e (ii) a reduzida gravidade da culpa do agente. Ora, não obstante a elevada importância de que o regime legal do funcionamento e organização das contas dos partidos e das campanhas se reveste no quadro da democracia constitucional - o que se traduz na decisão legislativa de sancionar determinadas condutas praticadas nesse âmbito e na fixação das molduras sancionatórias -, a proporcionalidade das sanções a aplicar em concreto implica a ponderação de todas as circunstâncias relevantes.

No caso vertente, estão em causa somente infrações de natureza formal, de cuja prática não resultou, para os arguidos, benefício económico algum. Acresce que, conforme resulta dos factos provados e se encontra documentado nos autos, na ponderação da culpa importa relevar a circunstância de os arguidos terem enviado documentos retificativos e versões corrigidas das contas - o que, manifestando a intenção de contribuir para a remoção da ilicitude, reduz as exigências de punição -, e de terem sempre manifestado disponibilidade para prestar todos os esclarecimentos que lhes foram solicitados pela ECFP. Por outro lado, não pode ser ignorado que estamos perante cidadãos que não beneficiam do enquadramento em estruturas partidárias - naturalmente mais preparadas para abordar este tipo de tarefas e depositárias, em virtude da sua tendencial perenidade, de uma experiência acumulada de controlo das contas e financiamentos de campanhas eleitorais -, antes concorrendo a eleições no âmbito de grupos de cidadãos eleitores, cuja constituição é específica de cada ato eleitoral e que, por natureza, não têm organização formal permanente. A esta luz, é legítimo considerar, pelo menos prima facie, que a gravidade dos ilícitos cometidos é menor e a censura que merecem menos intensa.

Por tudo isto, encontram-se reunidos os pressupostos de aplicação, a cada arguido, de admoestação única pela prática das contraordenações imputadas, constituindo tal sanção a justa medida reclamada pelo caso concreto. Com efeito, atenta a sua natureza, não parece que a admoestação seja uma sanção que admita cumulação na sua espécie, razão pela qual, neste caso, apesar de se verificar um concurso de infrações, se justifica a aplicação de sanção única.

III. Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto por Maria Helena Figueira d' Aguilar e Cristóvão da Silva Amaral da decisão da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos datada de 16 de dezembro de 2021 e, em consequência:

i. Absolver os arguidos, da imputação da prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 47.º, n.º 1, com referência ao artigo 16.º, n.º 1, ambos da LEC, quanto à despesa descrita no ponto 5.a.i. dos factos provados;

ii. Absolver os arguidos, da imputação da prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.º 1, da Lei 19/2003, de 20 de junho, quanto aos pagamentos de despesas de campanha descritos no ponto 10. dos factos provados;

iii. Admoestar, cada um dos arguidos, aqui ora recorrentes, ante as demais condutas descritas sob os pontos 5.b., 6. a 9. e 11. dos factos provados, por incorrerem na prática, em concurso efetivo, das contraordenações previstas e punidas pelo artigo 47.º, n.º 1, com referência ao artigo 16.º, n.º 1, ambos da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro, e pelo artigo 31.º, n.º 1, da Lei 19/2003, de 20 de junho, revogando, assim, quanto ao segmento sancionatório, aquela decisão.

Sem custas, por não serem legalmente devidas.

Lisboa, 13 de dezembro de 2023. - Gonçalo Almeida Ribeiro - José Teles Pereira - António José da Ascensão Ramos - João Carlos Loureiro - Maria Benedita Urbano - Mariana Canotilho [Com reservas quanto à aplicação da suspensão dos prazos de prescrição decorrente da legislação aprovada no âmbito da crise sanitária SARS-Covid 19 (n.os 3 e 4 do artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de março)] - Joana Fernandes Costa - Afonso Patrão (vencido, nos termos da declaração junta) - Rui Guerra da Fonseca - Carlos Medeiros de Carvalho - José João Abrantes.

Acórdão retificado pelo Acórdão 8/2024, de 9 de janeiro de 2024

Declaração de voto

1 - Vencido.

Em meu juízo, o procedimento contraordenacional prescreveu antes de os autos terem sido remetidos ao Tribunal Constitucional, porquanto considero inconstitucional a suspensão retroativa dos prazos de prescrição decorrente da legislação aprovada no âmbito da crise sanitária SARS-COVID 19 (n.os 3 e 4 do artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de março, e artigo 6.º-B, n.º 3, aditado à Lei 1-A/2020, de 19 de março, pela Lei 4-B/2021, de 1 de fevereiro - ponto 9. da fundamentação).

2 - A prescrição - tanto do procedimento penal como do contraordenacional - está subordinada ao princípio da legalidade criminal, em todas as suas valências. Trata-se de um princípio-garantia de carácter absoluto, imune a soluções de concordância prática (Acórdão 183/2008): a defesa do cidadão perante o poder punitivo do Estado exige que este não o possa sancionar sem lei prévia, escrita, estrita e certa. O que alastra, necessariamente, à matéria da prescrição, porque dela também dependem os pressupostos positivos e negativos da punição.

Ora, a jurisprudência citada no ponto 9. da fundamentação entendeu que a medida de suspensão do prazo de prescrição quanto a ilícitos anteriormente praticados, em face da crise pandémica, «pela sua singularidade, escapa totalmente a ambas as rationes com base nas quais é possível justificar o alargamento às normas sobre prescrição das garantias inerentes à proibição da retroatividade» - isto é, a «defesa do cidadão contra a discricionariedade e o arbítrio ex post facto»; e a «ideia de previsibilidade (por sua vez enraizada no princípio da confiança) das normas, no sentido em que qualquer cidadão, para além de não poder ser surpreendido pela incriminação de um comportamento anteriormente adotado (n.º 1 do artigo 29.º da Constituição), também não pode ser surpreendido pela aplicação de uma sanção mais grave ou por normas processuais materiais de efeitos mais gravosos do que aqueles com que podia contar à data em que praticou os factos».

Para assim concluir, argumentou-se que, por um lado, existiria um «imperativo de proteção da vida e da saúde dos operadores e utentes do sistema judiciário»; por outro, que a «suspensão não é imputável ao Estado»; e, por fim, que «o evento em causa se situ[a] no mais elevado grau daquilo que não é por natureza antecipável, como sucede com a paralisação do sistema de administração da justiça penal ditada pelo súbito e inesperado surgimento de uma pandemia à escala global» (todas as citações são do Acórdão 500/2021, cuja jurisprudência é reiterada no presente Acórdão).

3 - Não posso acompanhar este entendimento.

Em primeiro lugar porque, como sublinha o Juiz Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro na sua declaração de voto aposta ao Acórdão 500/2021, «toda e qualquer alteração retrospetiva do regime da prescrição em sentido desfavorável ao agente constitui uma lesão da confiança legítima. [...] Ao aplicar-se a procedimentos pendentes no momento da sua entrada em vigor, o regime substituiu, desta forma, o estado de relativa certeza do arguido quanto ao horizonte da definição da sua responsabilidade por um estado de absoluta incerteza, em virtude da duração indefinida da causa de suspensão. Não creio ser exagerado afirmar que isto constitui, não apenas uma lesão da confiança legítima, como uma lesão de considerável gravidade, razão pela qual - ao contrário do que se argumenta na decisão - me parece que o regime constitui um caso de manifesta retroatividade penal in pejus». Ora, sendo a proibição da retroatividade in pejus uma garantia absoluta, sem admissão de ponderação, a norma aqui aplicada atenta contra o disposto no n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.

Em segundo lugar, porque a circunstância de a medida de suspensão retroativa da prescrição não ser em si mesma arbitrária (mas, antes, objetivamente justificável) ou motivada por acontecimentos imprevisíveis é irrelevante para o afastamento do princípio da legalidade criminal. O que este garante é que o agente não veja modificadas as regras da punição depois de praticado o facto; nada diz sobre o conteúdo das normas que pudessem, posteriormente, vir a alterar as condições da punição. Trata-se de um princípio-barreira, a que são alheias todas as considerações quanto à necessidade social de intervenção sancionatória feita pelo Estado quanto a factos anteriormente praticados.

4 - Nessa medida, a suspensão dos prazos de prescrição em casos de paralisação do sistema judiciário deveria estar estatuída em lei anterior - como sucede, há muito, em Itália e na Alemanha (atestando que não seria impossível ao legislador tê-la previsto). Trata-se de uma omissão que não pode ser suprida nem mediante recurso à analogia, nem pela criação de normas ad hoc posteriores aos factos (cf. Nuno Brandão, "Suspensão da prescrição do procedimento contra-ordenacional e Covid-19: restrospectiva sobre o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 500/2021, Revista Portuguesa de Direito Constitucional, n.º 2, 2022, p. 37).

Não tendo sido consagrada em lei prévia, a medida legislativa de suspensão da prescrição constitui uma intervenção in malam partem de caráter retroativo, proibida pelo n.º 1 do artigo 29.º da Constituição e que, por isso, não pode ser aplicada. Em consequência, considero que o procedimento contraordenacional prescreveu a 1 de março de 2023, antes de os autos serem remetidos a este Tribunal. - Afonso Patrão.

317300769

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5636223.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 2003-06-20 - Lei 19/2003 - Assembleia da República

    Regula o regime aplicável ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

  • Tem documento Em vigor 2005-01-10 - Lei Orgânica 2/2005 - Assembleia da República

    Regula a organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

  • Tem documento Em vigor 2005-01-24 - Lei 2/2005 - Assembleia da República

    Procede à primeira alteração à Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro (publicação, identificação e formulário dos diplomas) e republica-a.

  • Tem documento Em vigor 2016-12-29 - Decreto-Lei 86-B/2016 - Trabalho, Solidariedade e Segurança Social

    Atualiza o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2017

  • Tem documento Em vigor 2017-11-30 - Mapa Oficial 1-A/2017 - Comissão Nacional de Eleições

    Mapa oficial dos resultados das eleições gerais para os órgãos das autarquias locais de 1 de outubro de 2017

  • Tem documento Em vigor 2017-12-28 - Decreto-Lei 156/2017 - Trabalho, Solidariedade e Segurança Social

    Fixa o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2018

  • Tem documento Em vigor 2018-04-19 - Lei Orgânica 1/2018 - Assembleia da República

    Oitava alteração à Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), segunda alteração à Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), sétima alteração à Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais), e primeira alteração à Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei de Organização e Funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos)

  • Tem documento Em vigor 2020-03-19 - Lei 1-A/2020 - Assembleia da República

    Medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19

  • Tem documento Em vigor 2020-04-06 - Lei 4-A/2020 - Assembleia da República

    Procede à primeira alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que aprova medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, e à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que estabelece medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19

  • Tem documento Em vigor 2020-05-29 - Lei 16/2020 - Assembleia da República

    Altera as medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19, procedendo à quarta alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, à primeira alteração à Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, e à décima segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março

  • Tem documento Em vigor 2021-02-01 - Lei 4-B/2021 - Assembleia da República

    Estabelece um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março

  • Tem documento Em vigor 2021-04-05 - Lei 13-B/2021 - Assembleia da República

    Cessa o regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adotado no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda