Sumário: Decide, com respeito às contas anuais de 2012, julgar extinto, por prescrição, o procedimento contraordenacional relativamente às contraordenações previstas e punidas pelo artigo 29.º, n.os 1 e 2, da Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais (LFP), por referência ao artigo 3.º, n.º 1, alínea b), da LFP; julgar procedente o recurso de contraordenação interposto pelo partido Bloco de Esquerda e pela sua responsável financeira absolvendo os recorrentes das contraordenações consistentes na violação dolosa do dever previsto no artigo 12.º, n.º 1, da LFP, puníveis nos termos do artigo 29.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma.
Aos vinte e oito dias do mês de abril de dois mil e vinte e um, achando-se presentes o Conselheiro Presidente João Caupers e os Conselheiros José António Teles Pereira (intervindo por videoconferência), Joana Fernandes Costa, Maria José Rangel de Mesquita, Maria da Assunção Raimundo, Gonçalo de Almeida Ribeiro, Fernando Vaz Ventura, Pedro Machete, Mariana Rodrigues Canotilho, Maria de Fátima Mata-Mouros, José João Abrantes e Lino Rodrigues Ribeiro (intervindo por videoconferência), foram trazidos à conferência os presentes autos.
Após debate e votação, e apurada a decisão do Tribunal, foi pelo Exm.º Conselheiro Presidente ditado o seguinte:
I - Relatório
1 - Nos autos de contraordenação em que são arguidos o Bloco de Esquerda (doravante "BE") e a respetiva Responsável Financeira, Sara Rita Neto Rocha, relativos às contas anuais dos partidos políticos respeitantes ao ano de 2012, a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (adiante referida pela sigla «ECFP») proferiu, em 3 de junho de 2020, decisão pela qual deliberou aplicar ao primeiro arguido a sanção de coima no valor de 10 SMN de 2008, perfazendo a quantia de (euro)4.260,00, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.º 1, da Lei 19/2003, de 20 de junho (Lei de Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, doravante «LFP»), e à segunda arguida a sanção de coima no valor de 5 SMN de 2008, o que perfaz a quantia de (euro)2.130,00, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.os 1 e 2, da mesma lei.
2 - Notificados desta decisão, os arguidos vieram, em 27 de agosto de 2020, interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, pedindo, em suma, a revogação da decisão condenatória da ECFP.
Defendem os recorrentes, em conclusão das suas alegações, que, de acordo com os artigos 13.º e 15.º do Código Penal, "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previsto na lei, com negligência", acentuando que no caso de se verificar negligência não existe punição. Mais sustentam que "em 2012 os artigos aplicáveis não eram explícitos, nem existiam decisões a interpretar os mesmos, logo não se pode dizer que exista qualquer tipo de DOLO na ação", e que não foi "feita nem prova do dolo, nem existência de formulação legal que permitisse o conhecimento CABAL e sem qualquer dúvida da aplicação da lei". Afirmam, por fim, que "o que existiu foi negligência e desconhecimento da fórmula de aplicação da lei".
Rematam as suas conclusões de recurso afirmando que "uma inversão do ónus da prova é inadmissível à luz do processo penal, aplicável ex vi artigo 41.º, n.º 1 do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro".
3 - Recebido o requerimento de recurso daquela decisão da ECFP de aplicação de coimas, a ECFP sustentou a decisão recorrida e determinou a sua remessa ao Tribunal Constitucional.
4 - Por despacho proferido em 6 de outubro de 2020, o Tribunal Constitucional admitiu o recurso e ordenou a abertura de vista ao Ministério Público, nos termos do n.º 1 do artigo 103.º-A da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»).
5 - O Ministério Público emitiu parecer a respeito do recurso da decisão sancionatória da ECFP, remetendo para o seu anterior parecer, datado de 7 de novembro de 2016, no qual promoveu a aplicação das respetivas coimas, face às ilegalidades e irregularidades já verificadas no Acórdão 420/2016, nada mais requerendo.
6 - Os arguidos, regulamente notificados, não apresentaram resposta ao parecer do Ministério Público.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Considerações gerais sobre o novo regime de fiscalização das contas dos partidos e das campanhas eleitorais
7 - A Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, veio alterar, entre outras, a Lei 19/2003, de 20 de junho (LFP) e a Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro (Lei da Organização e Funcionamento da ECFP, doravante «LEC»), introduzindo profundas modificações no regime de apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e no regime de aplicação das respetivas coimas.
Sobre este novo regime foram desenvolvidas algumas considerações no Acórdão 421/2020, salientando-se aqui, pela sua pertinência, as seguintes passagens:
«A alteração mais significativa tem que ver com a competência para apreciar a regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais e aplicar as respetivas coimas, que até essa data pertencia ao Tribunal Constitucional e passou a ser atribuída à ECFP (artigos 9.º, n.º 1, alínea d), da LEC, e 24.º, n.º 1, da LFP).
Nos termos do novo regime legal, caberá ao Tribunal Constitucional apreciar, em sede de recurso de plena jurisdição, em plenário, as decisões daquela Entidade em matéria de regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, incluindo as decisões de aplicação de coimas (artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 103.º-A da LTC, 23.º, n.º 1, da LFP e 23.º, n.º 1, da LEC).»
Assinala-se ainda, neste contexto, a posição que este Tribunal firmou, nos Acórdãos n.os 374/2018 e 375/2018 que se reportam aos processos de contas dos partidos políticos relativas aos anos de 2010 e 2011, a respeito do regime transitório definido na referida Lei Orgânica 1/2018. Em tais arestos, o Tribunal Constitucional plasmou o seguinte:
"Como se disse, no novo regime, cuja matriz se reconduz ao enquadramento do regime contraordenacional consagrado no RGCO, incumbe à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos a competência para proferir as decisões antes previstas nos artigos 29.º, 32.º, 33.º e 34.º da LFP, todas integradas na fase administrativa.
A intervenção do Tribunal Constitucional apenas pode ocorrer a jusante, uma vez encerrada a fase administrativa - salvaguardados os casos de impugnação de medidas que afetem direitos e interesses legalmente protegidos, previstos na parte final do artigo 23.º, n.º 2, da LEC -, e em sede de impugnação judicial da decisão final condenatória daquela entidade (artigos 103.º-A da LTC, 23.º, n.º 1, da LFP e 23.º, n.º 1, da LEC, todos na redação conferida pela Lei Orgânica 1/2018).
Significa isto que o sistema normativo que passou a regular o presente processo, na dimensão sancionatória ainda pendente de decisão final, comporta, como ato necessário e prévio à intervenção jurisdicional deste Tribunal, a prolação de decisão administrativa que avalie interlocutoriamente as contas prestadas e, caso apurada a presença de irregularidades, ouvidos os arguidos, se pronuncie sobre a respetiva responsabilidade contraordenacional (artigos 32.º, n.º 1, alínea c) e 33.º, n.os 1 e 3, da LEC, na redação vigente).
A receção desta competência pela Entidade comporta, por seu turno, a consequência de que, quer o juízo do Tribunal que declarou prestadas as contas com irregularidades, quer, a jusante, a promoção do Ministério Público que, a partir dessa discriminação, impulsionou a aplicação de coima, nos termos relatados, ainda que formalmente válidos à face dos comandos normativos vigentes à data em qual foram proferidos, deixaram de assumir, no processo de fiscalização de contas reformado, a eficácia a que estavam preordenadas."
Nesta sequência, o Tribunal expressou o seguinte entendimento:
«Ora, a descontinuidade na ordem jurídica operada pelo regime introduzido pela Lei Orgânica 1/2018, assenta justamente na avaliação da necessidade, por razões fundadas na Constituição, de erradicar a pronúncia inicial do Tribunal Constitucional e a sua projeção de efeitos. Votado o novo regime a assegurar que o Tribunal Constitucional não mais proceda à verificação e discriminação de factos que depois irá julgar, impõe-se concluir que esse seu juízo, no sentido e com o âmbito com que foi proferido no Acórdão 261/2015, deixou de ser admitido no sistema normativo que passou a reger os presentes autos, carecendo dessa sorte de assumir relevo processual no trânsito para a Lei Nova.
Apenas em sede de apreciação de (eventuais) recursos de impugnação da decisão final da Entidade que venha a ter lugar - os quais, note-se, como decorre do RGCO, sobem e são tramitados no processo após a conclusão da fase administrativa -, poderá vir o Tribunal Constitucional a intervir, exercendo a competência que lhe é conferida nos artigos 103.º-A, da LTC, 23.º, n.º 1, da LFP, e 23.º, n.º 1, da LEC.»
8 - Nos presentes autos, que respeitam às contas relativas ao ano de 2012 apresentadas pelo BE, foi prolatado, em 27 de junho de 2016, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 420/2016, pelo qual, no que ora importa, se julgaram prestadas, com irregularidades as contas do BE relativas ao ano de 2012.
O Ministério Público, notificado para o efeito, promoveu a aplicação das sanções correspondentes às irregularidades apuradas pelo Tribunal, tendo o BE, nesse seguimento, exercido o seu direito de audição e defesa.
Tendo entrado em vigor, em 20 de abril de 2018, a referida Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril (artigo 10.º), que, como vimos, introduziu um "novo" regime no processo da fiscalização das contas dos partidos e das campanhas legislativas, aplicável, por força da norma transitória constante do seu artigo 7.º, aos presentes autos, foi, por despacho do Presidente do Tribunal Constitucional, determinada a remessa do processo à EFCP, o que sucedeu em 22 de outubro de 2018.
Por seu turno, a ECFP, considerando "o estado em que o processo se encontrava aquando da respetiva remessa pelo Tribunal Constitucional", assim como a "legalmente consagrada validade dos atos praticados na vigência da lei anterior e ainda a aplicabilidade da Lei Orgânica 1/2018, de 29 de abril, aos processos pendentes", concluiu que, de acordo com a "necessária adaptação processual", "os autos se encontravam em fase de prolação de decisão sobre as contraordenações em matéria de contas anuais". Assim, proferiu, em 3 de junho de 2020, a decisão a que alude o artigo 33.º da Lei 2/2005, de 10 de janeiro (LEC), na redação dada pela Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril. Em tal decisão, a ECFP deliberou, como supra se plasmou, aplicar aos arguidos as coimas correspondentes às irregularidades enunciadas no citado Acórdão 420/2016.
Perante o processado descrito, não se pode concluir de outro modo que não seja o de que a EFCP, ao deliberar no sentido de aplicar as descritas sanções correspondentes às irregularidades verificadas no Acórdão 420/2016 deste Tribunal, implicitamente, fez seu o teor daquele aresto sobre essa matéria, confirmando e importando o seu conteúdo para os presentes autos.
Face ao exposto, é chegado o momento de apreciar o mérito do recurso.
III - Do mérito do recurso de contraordenação
9 - A. Fundamentação de facto - factos provados
Com relevo para a decisão, provou-se, o seguinte:
1 - O Bloco de Esquerda (B.E.) é um Partido Político português, tendo sido constituído em 24 de março de 1999, encontrando-se registado no Tribunal Constitucional.
2 - O Bloco de Esquerda apresentou, a 31 de maio de 2013, as contas relativas ao ano de 2012.
3 - Foi remetido pelo BE ao Tribunal Constitucional ofício, com data de entrada de 19 de março de 2014, assinado por Sara Rocha e no qual a mesma se identificava como responsável pelas contas do Partido do exercício de 2012.
4 - O Partido registou como receita proveniente de contribuição de candidatos e representantes eleitos, a transferência bancária no valor de (euro)244,28 (duzentos e quarenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos) efetuada em 3 de outubro de 2012 pela Câmara Municipal da Moita.
5 - O Partido integrou nas suas contas de 2012 a subvenção recebida da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores no montante de (euro)29.451,74 (vinte e nove mil, quatrocentos e cinquenta e um euros e setenta e quatro cêntimos), destinada ao Grupo Parlamentar do BE na mesma Assembleia Legislativa.
6 - Ao agir conforme descrito em 4. dos factos provados, os Arguidos representaram como possível que não obedeciam às obrigações legalmente previstas suscetíveis de punição, conformando-se com essa possibilidade e apresentando as contas nessas condições.
7 - Os Arguidos sabiam que a sua conduta descrita em 4. era proibida e contraordenacionalmente sancionável, tendo agido livre, voluntária e conscientemente.
8 - Os Arguidos adotaram a conduta descrita em 5. no convencimento de que aquela era a forma adequada de cumprimento do dever de organização contabilística e de que haviam observado todas as formalidades legais sobre as contas anuais do partido.
9 - Desconheciam, pois, que a redação da LFP aplicável às subvenções dos grupos parlamentares seria a repristinada por força da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, exarada no Acórdão 801/2014, ou seja, a anterior à entrada em vigor da Lei 55/2010, de 24 de dezembro.
10 - Nas contas de 2012, o BE registou:
10.1 - No balanço: um total do ativo de (euro)2.342.159,25, um total do capital próprio de (euro)2.271.057,73 e um total do passivo de (euro)71.101,52.
10.2 - Na demonstração de resultados do ano: rendimentos no valor de (euro)1.150.534,62 e gastos no valor de (euro)1.010.340,76.
11 - Por referência ao ano de 2012, o BE recebeu subvenção estatal no valor de (euro)849.993,06.
9 - B. Factos Não Provados
9.1 - A transferência bancária, no valor de (euro)244,28 (duzentos e quarenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos), registada como receita proveniente de contribuição de candidatos e representantes eleitos, foi operada pelos serviços da Câmara Municipal da Moita por indicação do vereador Joaquim Inácio Raminhos Cabaça, eleito para aquela Câmara pelo BE.
10 - Motivação da matéria de facto
A prova dos factos acima indicados resultou da análise conjugada dos documentos juntos aos presentes autos.
Deste modo, relativamente à factualidade elencada no ponto 1., foi considerado o teor da publicação existente no sítio da Internet do Tribunal Constitucional, da qual a mesma se extrai;
A factualidade descrita no ponto 2. dos factos provados resulta do teor de fls. 5 a 20 dos presentes autos.
O descrito no ponto 3. dos factos provados extrai-se do teor de fls. 18 dos presentes autos.
Os factos provados constantes dos pontos 4. e 5. resultam do teor das contas apresentadas nos autos (fls. 5 a 20), bem como do teor dos documentos contabilísticos e de suporte apresentados.
A factualidade elencada nos pontos 6. e 7. dos factos provados extrai-se dos factos antecedentes em conjugação com as regras da experiência comum.
O descrito nos pontos 8. e 9. dos factos provados proveio do teor da defesa e do recurso apresentado pelos arguidos, que se mostra conforme com as regras da experiência comum, inexistindo elementos que ponham em causa a veracidade de tal factualidade, aí negando os arguidos terem agido com a consciência de que o seu comportamento violava o regime legal de prestação de contas anuais dos partidos.
A prova dos factos constantes do ponto 10. a 10.2 retira-se do teor de fls. 19 e 42 (verso) dos presentes autos.
O descrito no ponto 11. dos factos provados extrai-se de fls. 42 (verso) dos presentes autos.
A matéria de facto não provada constante do ponto 9.1 resulta do teor do recibo 12206 (fls. 303) e demais documentos que o acompanham (fls. 304 a 307), não constando aí qualquer NIB identificativo da conta de origem.
IV - Do Direito
11 - Recurso da decisão da ECFP sobre a contraordenação em matéria de contas anuais do BE, referente a 2012
No âmbito do processo de contraordenação n.º 40/2020, a ECFP aplicou ao BE e à sua responsável financeira, Sara Rita Neto Rocha, respetivamente, uma coima no valor de 10 SMN de 2008 ((euro)4.260,00), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.º 1, da Lei 19/2003, de 20 de junho (LFP), e uma coima de 5 SMN de 2008 ((euro)2.130,00), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.os 1 e 2, da mesma lei.
Conforme supra mencionado, na base da decisão da ECFP que aplicou as referidas coimas estão as irregularidades identificadas na decisão relativa à prestação de contas, a saber, a "[e]xistência de receitas provenientes de pessoas coletivas" e a "[i]ntegração nas contas do partido da subvenção da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores".
De acordo com o n.º 1 do artigo 12.º da LFP, existe, no âmbito dos partidos políticos, um dever genérico de organização contabilística, por forma a que a contabilidade reflita a sua situação financeira e patrimonial, designadamente, as suas receitas e despesas, permitindo, desde modo, a verificação do cumprimento das obrigações previstas na LFP. Este dever genérico é concretizado no n.º 3 do mesmo artigo, que enumera os requisitos especiais do regime contabilístico próprio, relevando, no caso em apreço, a sua alínea b) sobre discriminação das receitas, nas quais se incluem as receitas previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º da LFP, isto é, "[a]s contribuições de candidatos e representantes eleitos em listas apresentadas por cada partido ou coligações ou por estes apoiadas".
Como tem sido entendimento deste Tribunal, plasmado no Acórdão 198/2010, este dever genérico de organização contabilística implica não apenas a observância das obrigações prevista na LFP como ainda a obrigação de evitar "deficiências ou insuficiências de organização contabilística que comprometem a fiabilidade das contas apresentadas". Com efeito, este Tribunal afirmou, no aresto citado, que "[e]xistem (...) situações em que, não se verificando a violação desses deveres [específicos], ocorrem, contudo, deficiências ou insuficiências de organização contabilística que comprometem a fiabilidade das contas apresentadas, impedindo o conhecimento da real situação financeira e patrimonial dos partidos e não possibilitando a verificação do cumprimento das obrigações a que eles estão legalmente adstritos. Estes factos consubstanciam irregularidades que podem atentar contra o dever genérico de organização contabilística que a Lei 19/2003 consagra no n.º 1 do seu artigo 12.º (Regime contabilístico) e, como tal, não podem deixar de ser, nesse caso, sancionados como violação de tal dever, sendo, assim, improcedentes os pontos de vista diversos, sustentados nomeadamente pelo PH".
Com pertinência para a presente apreciação, referiu-se ainda no referido acórdão o seguinte:
"8.2. As contas partidárias de 2005 são as primeiras sujeitas ao regime estatuído na Lei 19/2003, de 20 de junho (artigo 34.º, n.º 2). Todavia, em grande medida, as obrigações que dela resultam para os partidos já emergiam da Lei 56/98. Aquela é, fundamentalmente, uma atualização corretiva desta última. Por isso, a quase totalidade das orientações anteriores que este Tribunal adotou nesta matéria mantêm, na íntegra, a sua atualidade. Assim, como já se assinalava no Acórdão 455/2006, relativo às contas de 2003 e estando ainda em vigor a Lei 56/98, quando esta «sucessivamente, no seu artigo 14.º, pune com coima e qualifica como contraordenação o incumprimento das obrigações impostas aos partidos na matéria em causa, claro é que tal contraordenação tanto pode resultar da infração do dito dever genérico, como da de qualquer dos deveres específicos que as suas normas impõem. Só que enquanto neste segundo caso estamos perante uma determinação precisa do tipo contraordenacional, de tal maneira que ele só é preenchido exatamente por um comportamento desconforme à conduta imposta, já no primeiro se depara com um tipo bastante mais aberto, cujo preenchimento é suscetível de se operar através de condutas múltiplas e diversas, ou de também diversificadas conjugações dessas condutas; ponto é que elas tenham a ver com o desrespeito de regras ou exigências decorrentes da própria lógica técnica da organização contabilística, de tal modo que a sua verificação ponha em causa, em maior ou menor medida, a fiabilidade da contabilidade partidária, ou seja, a possibilidade [...] de através dela se conhecer, de forma rigorosa, a situação financeira e patrimonial do partido e o cumprimento de certas suas obrigações legais na matéria [...]». Como então se acrescentou, «esta distinta natureza das normas que suportam a definição do comportamento contraordenacional divide as infrações identificadas pelo Ministério Público em dois grupos: o formado pelas violações de determinações concretas da lei [...] e aquele em que a inobservância se reporta a um dever genérico respeitante à organização contabilística [...]». Mas, como logo também se afirmou, estando embora em causa, «nesta segunda situação, aquilo que o Tribunal define no Acórdão 288/2005 como «um tipo bastante mais aberto», não deixa este de conter «[...] a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos [dos quais depende que] uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos [...]» (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral, tomo I, Coimbra, 2004, pp. 173/174)".
Também no Acórdão 711/2013 o Tribunal sufragou este entendimento, plasmando ainda o seguinte:
«8.2 - Conforme se afirmou no Acórdão 455/2006, cabe também referir a «particular estrutura da norma sancionatória, que atua por remissão geral para o incumprimento das obrigações (positivas) elencadas nos diversos artigos do Capítulo II [...], respeitante ao financiamento dos partidos. Significa isto que o «[...] facto ilícito e censurável que preench[e] um tipo legal no qual se comine uma coima» (artigo 1.º do Decreto-Lei 433/82), se obtém sempre por associação de duas normas: a propriamente sancionatória [...] e a (as) que, definindo (pela positiva) o comportamento devido, contêm implicitamente a definição do comportamento proibido. A sanção, como decorre da própria norma que a estabelece [...], refere-se não a cada irregularidade ou a cada incumprimento, mas sim à globalidade dos comportamentos integradores de incumprimento. Funcionam, assim, esses diversos comportamentos como modalidades distintas (e cumulativas) de preenchimento do tipo contraordenacional", constante, hoje, do artigo 29.º da Lei 19/2003.»
Dito isto, e volvendo ao caso dos autos, cumpre sublinhar que o recurso em apreciação se centra, no essencial, na invocação da inexistência de "meio de prova" suscetível de sustentar a "intencionalidade e ou existência de dolo" por parte do partido e da sua responsável financeira na prática das irregularidades verificadas e que estão na base da aplicação de coimas por parte da ECFP. Afirmam os recorrentes que não "tinham qualquer conhecimento, ou participaram, da decisão da transferência bancária pelo Município da Moita", que afirmam ter sido efetuada "por indicação expressa e exclusiva do seu Vereador eleito, Joaquim António Raminhos Cabaça".
Por outro lado, no que respeita à violação do artigo 12.º da LFP, sustentam os recorrentes que o Acórdão 535/2014 do Tribunal Constitucional, ao qual recorreu a decisão da ECFP para fundamentar a "distinção entre as contas dos Partidos das contas dos grupos parlamentares" foi proferido apenas em 2014, sendo que em causa estão as contas do partido referentes a 2012, não existindo, nesse ano, "qualquer decisão que servisse de base, ou fundamentação, à forma como deveriam ser enquadradas tais contas". Concluem assim que "não se afigura razoável, ou mesmo legal, aplicar uma decisão posterior a ações anteriores que não tinham qualquer fórmula ou esclarecimento legal quanto à sua aplicação", tanto mais que "em 2012 os artigos aplicáveis não eram explícitos, nem existiam decisões a interpretar os mesmos". Asseverando que "não é feita nem prova do dolo, nem da existência de formulação legal que permitisse o conhecimento CABAL e sem qualquer dúvida da aplicação da lei", afirmam que "o que existiu foi negligência e desconhecimento da fórmula de aplicação da lei".
Em suma, a impugnação da decisão da ECFP datada de 3 de junho de 2020 restringe-se à parte em que se considerou preenchido o elemento subjetivo do tipo contraordenacional previsto no artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP, por referência ao plasmado nos artigos 3.º, n.º 1, alínea b), e 12.º, n.º 1, ambos da mesma lei. Com efeito, os recorrentes não negam a existência das irregularidades que sustentaram a decisão da ECFP de aplicação de coimas, antes se insurgem contra a sua aplicação a título de dolo.
É, pois, chegado o momento de apreciar o mérito do recurso.
11.1 - Da existência de receitas provenientes de pessoas coletivas
Inserido no Capítulo II da LFP, o artigo 3.º, subjacente à epígrafe "Receitas próprias" inscreve, no seu n.º 1, alínea b), "As contribuições de candidatos e representantes eleitos em listas apresentadas por cada partido ou coligações ou por estes apoiadas".
Nas contas apresentadas pelo BE, referentes ao ano de 2012, o partido registou como receita, oriunda de contribuição de candidatos e representantes eleitos, o pagamento no valor de (euro)244,28, que foi, porém, efetuado pela Câmara Municipal da Moita. A este respeito, no recurso ora em análise, os recorrentes apenas referem que não "tinham conhecimento" ou sequer "participaram, da decisão da transferência bancária pelo Município da Moita", razão pela qual entendem que não podem ser condenados a título de dolo. Em sede de resposta à notificação que lhes foi dirigida pelo Tribunal Constitucional para se pronunciarem, querendo, relativamente à promoção sancionatória apresentada pelo Ministério Público, os arguidos referiram, com pertinência, que não lhes foi possível identificar o Número de Identificação Bancária da conta de origem da transferência. Afirmaram ainda que tinha chegado ao seu conhecimento que tal transferência havia sido efetuada pelos serviços do Município da Moita por "indicação expressa do vereador eleito nas listas do Bloco de Esquerda", Joaquim Inácio Raminhos, para aquela Câmara. Não deixaram, contudo, os arguidos de reconhecer o "meio pouco próprio para a perceção da receita".
Antes de entrarmos na apreciação do mérito do recurso, atendendo à data da prática da infração aqui em causa, 3 de outubro de 2012, impõe-se aferir da prescrição do procedimento contraordenacional, uma vez que, enquanto pressuposto processual negativo, pode determinar o afastamento da punição.
A este respeito, cabe recordar que as contraordenações previstas na LFP, e tramitadas de acordo com a LEC, estão sujeitas à incidência do regime de prescrição do procedimento contraordenacional previsto nos artigos 27.º, 27.º-A e 28.º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), aí figurando as normas sobre os prazos de prescrição, fixados em função do limite máximo da moldura sancionatória aplicável, e as causas suspensivas e interruptivas do prazo prescricional. Contudo, na contagem do prazo de prescrição das contraordenações em matéria de financiamento e contas dos partidos políticos é preciso ter ainda em conta as específicas causas de suspensão da prescrição do procedimento constantes da LEC (cf. artigo 22.º).
Há ainda que ter presente que, entre a data da prática da infração aqui em análise e a da decisão sancionatória, a já aludida Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, que entrou em vigor a 20 de abril de 2018, introduziu alterações à LFP, incidentes sobre as regras de contagem do prazo de prescrição do procedimento, restringindo, por um lado, o alcance das causas suspensivas previstas no artigo 22.º da LEC, e conferindo, por outro lado, uma nova estrutura ao próprio processo de prestação de contas dos partidos políticos, que determinou, consequentemente, a modificação dos eventos que à luz do regime geral têm virtualidade interruptiva e/ou suspensiva.
Sendo certo que tais alterações não incidiram diretamente sobre o prazo de prescrição previsto no regime geral em vigor à data da prática das infrações, nem sequer no limite máximo da moldura por referência à qual tal prazo é fixado, não se pode deixar de sublinhar que a modificação dos factos interruptivos ou suspensivos que das mesmas decorreu, diminuindo ou aumentando o prazo normal de prescrição, se repercute na determinação do prazo máximo de prescrição do procedimento, cujas regras de fixação constam do artigo 28.º, n.º 3, do RGCO, de acordo com o qual «a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade». Assim sendo, independentemente de todas as causas interruptivas que se tenham verificado, o prazo máximo de prescrição obtém-se através da soma do prazo normal de prescrição acrescido de metade e do tempo de suspensão.
As normas relativas à prescrição do procedimento contraordenacional, na medida em que, decorrido um determinado lapso temporal, se podem traduzir numa renúncia do Estado ao direito de sancionar, têm, além da indiscutível natureza processual, natureza substantiva. Deste modo, havendo sucessão de leis no tempo, tais normas encontram-se sujeitas ao princípio da aplicação retroativa do regime jurídico mais favorável ao agente da infração, constante do n.º 2 do artigo 3.º do RGCO, do qual resulta o afastamento do regime mais gravoso do que o vigente à data da prática da infração e o dever de aplicação retroativa daquele que se revele mais favorável.
Dito isto, cabe aqui comparar a lei antiga e a lei nova, sendo certo que na averiguação da lei mais favorável se deve aplicar o regime, no seu todo, que vigorava à data da prática da infração em causa, por comparação com os regimes que lhe sucederam até à data em que é proferida a decisão sancionatória.
No caso, o termo a quo do prazo de prescrição do procedimento, de acordo com o artigo 5.º do RGCO, corresponde ao «momento da prática do facto» ilícito, ou seja, 3 de outubro de 2012, data na qual a Câmara Municipal da Moita procedeu à transferência do valor de (euro) 244,28.
Por força do disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea a), do RGCO, em conjugação com o artigo 29.º da LFP - que fixa a coima máxima em 400 e 200 vezes o valor do IAS, conforme se trate de partidos políticos ou dos respetivos dirigentes, o que perfaz (euro)167.688,00 ou (euro)83.844,00 - o prazo normal de prescrição do procedimento é, em todas as infrações, de cinco anos.
Às causas interruptivas e suspensivas constantes do RGCO, a artigo 22.º da LEC na sua versão originária, que era a vigente à data da prática da contraordenação em apreciação, previa uma causa especial de suspensão, ditando que «a prescrição do procedimento pelas contraordenações previstas na Lei 19/2003, de 20 de junho, e na presente lei suspende-se, para além dos casos previstos na lei, até à emissão do parecer a que se referem, consoante os casos, os artigos 28.º, 31.º, 39.º e 42.º». Dito de outro modo, o tempo decorrido enquanto a causa suspensiva se mantiver não se conta para efeitos de prescrição, contudo o tempo decorrido antes que a causa suspensiva ocorra é contado, juntando-se ao tempo que correr depois de cessada essa causa.
Respeitando o presente processo à prestação das contas anuais do BE, a responsabilidade contraordenacional em causa refere-se à violação das regras de financiamento dos partidos políticos, razão pela qual o parecer a que alude o artigo 22.º da LEC é o previsto no artigo 31.º da mesma lei, o qual deve ser emitido no prazo de 20 dias após o decurso do prazo de 30 dias para os partidos políticos se pronunciarem sobre o relatório que a ECFP elabora no prazo de seis meses a contar da data da receção das contas (artigo 30.º, n.os 4 e 5, da LEC). O mesmo é dizer que o prazo de prescrição permanece suspenso por seis meses e cinquenta dias, após a entrega das contas. Como a data de referência para apresentação das contas é o dia 31 de maio de 2013, o tempo decorrido até 19 de janeiro de 2014 não se conta para efeitos de prescrição do procedimento contraordenacional.
Há ainda que atentar ao facto de, no decurso do procedimento contraordenacional tramitado à luz da versão originária da LEC, terem sido praticados atos processuais com virtualidade interruptiva da prescrição, tais como a notificação do acórdão de verificação das irregularidades, previsto no artigo 32.º, n.º 5, da LEC, que ocorreu em 29 de junho de 2016, e a notificação da promoção do Ministério Público, prevista no artigo 33.º da mesma lei, e que foi efetuada em 9 de novembro de 2016. Deste modo, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 28.º do RGCO, tais notificações determinaram a inutilização para a contagem do prazo de prescrição, do tempo decorrido anteriormente, correndo, assim, novo prazo prescricional.
Atendendo a que naquelas datas ainda não havia decorrido o prazo de cinco anos a contar de 3 de outubro de 2012 - momento da prática da contraordenação -, em 9 de novembro de 2016 iniciou-se novo prazo de prescrição de cinco anos. Sucede que, por aplicação da norma do n.º 3 do artigo 28.º do RGCO, esse novo prazo tem como limite temporal o prazo normal de prescrição acrescido de metade, contado desde o início e ressalvado o tempo de suspensão. Assim, independentemente de todas as interrupções que possam ter tido lugar, o prazo máximo de prescrição é de sete anos e seis meses, acrescido do referido tempo de suspensão, que é de seis meses e cinquenta dias, o que perfaz oito anos e cinquenta dias. Em suma, tendo-se iniciado a contagem do prazo a 3 de outubro de 2012, o prazo máximo de prescrição findou em 22 de novembro de 2020.
A aplicação do regime de prescrição que resultou das alterações efetuadas pela Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, às causas suspensivas e à estrutura do processo de apreciação das contas dos partidos políticos conduz a idêntica conclusão. Na verdade, por efeito dos atos processuais praticados ao abrigo das alterações introduzidas por aquela Lei Orgânica, a prescrição passou a interromper-se também com a notificação da decisão da ECFP que aplica a sanção (artigo 46.º da LEC, com as alterações introduzidas por aquela lei e alínea a) do artigo 28.º do RGCO) e a suspender-se com a notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso, com o limite de seis meses prescrito na alínea c) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 27.º-A do RGCO. Acresce que a nova redação do artigo 22.º da LEC procedeu a uma importante alteração nas causas suspensivas da prescrição, tendo eliminado o tempo de suspensão que decorria entre a apresentação das contas e a elaboração do parecer sobre as mesmas. Decorre, pois, da aplicação retroativa da eliminação desta causa de suspensão a diminuição do prazo máximo de prescrição para sete anos e seis meses (n.º 3 do artigo 28.º do RGCO).
Ora, contado o prazo de prescrição desde 3 de outubro de 2012, chega-se à conclusão que o mesmo findou em 3 de abril de 2020, data anterior à interrupção causada pela notificação da decisão da ECFP que aplicou as sanções, que ocorreu em 9 de junho de 2020, e à suspensão derivada da pendência do recurso de tal decisão por seis meses, que se iniciou em 6 de outubro de 2020.
Atento o exposto, pese embora a prescrição já decorresse da aplicação do regime antigo, a verdade é que a nova redação da lei prescricional revela-se mais favorável, dado que determina a extinção do direito de sancionar em momento anterior.
Deste modo, resta concluir que o procedimento contraordenacional relativo às contraordenações previstas e punidas pelo artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP, por referência ao artigo 3.º, n.º 1, alínea b), da LFP, se encontra prescrito, razão pela qual se encontra prejudicada a apreciação do mérito do recurso.
11.2 - Da integração nas contas do partido da subvenção da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores
O BE, nas suas contas de 2012, registou como receita do partido a subvenção recebida pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, no montante de (euro)29.451,74, destinada ao Grupo Parlamentar do BE na mesma Assembleia Legislativa. Tal irregularidade determinou, como vimos, a aplicação por parte da ECFP de coimas nos termos do artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP.
O artigo 12.º da LFP, igualmente integrado no seu Capítulo II, dispondo sobre o "Regime contabilístico" dos partidos políticos, prescreve no n.º 1 que "Os partidos políticos devem possuir contabilidade organizada, de modo que seja possível conhecer a sua situação financeira e patrimonial e verificar o cumprimento das obrigações previstas na presente lei".
A ECFP, sustentando a sua decisão, retomou a jurisprudência firmada no Acórdão 535/2014 deste Tribunal, no qual se plasmou que é "a própria lei [que] distingue as contas dos partidos das contas dos grupos parlamentares (ou do deputado único representante de cada partido) da Assembleia da República, postulando que as segundas devem ser anexas às primeiras (e não integradas nas primeiras)". Considerou ainda que, "independentemente da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma ínsita no n.º 8 do artigo 5.º da Lei 19/2003, de 20 de junho, certo é que não deixa de se verificar irregularidade por falta de correta organização contabilística" porquanto o montante em causa "deveria ter sido anexado - e não integrado - nas contas do Partido".
Socorrendo-se ainda do Acórdão 420/2016, a ECFP reiterou o entendimento segundo o qual "(é) evidente que a apresentação conjunta, ainda que em anexo, à ECFP, das contas dos grupos parlamentares e do deputado único representante de partido da Assembleia da República e das contas nacionais dos partidos só faz sentido num quadro atributivo de competência ao Tribunal Constitucional para fiscalização de ambas as contas. Ora, como vimos, essa competência é, no que se refere ao ano de 2012, inexistente, devido à declaração de inconstitucionalidade do n.º 5 do artigo 8.º da Lei 19/2003. De todo o modo, prevendo a anexação (e não a integração) das contas dos grupos parlamentares na Assembleia da República nas contas dos partidos políticos, a norma assegura que as primeiras se mantêm completamente autonomizáveis, podendo ser alvo de fiscalização por entidade distinta do Tribunal Constitucional, não prejudicando esta forma de organização contabilística, por outro lado, o exercício da competência própria deste Tribunal, no que se refere às contas dos partidos". Invocando a citação daquele aresto de acordo com a qual está em causa um "juízo objetivo sobre a regularidade" das contas, afirma a ECFP que a mesma confirma a sua posição.
Por fim, refere-se na decisão aqui recorrida que o n.º 4 do artigo 12.º da Lei 19/2003, de 20 de junho, estatui que "[a]s contas nacionais dos partidos deverão incluir, em anexo, as contas das suas estruturas regionais, distritais ou autónomas, de forma a permitir o apuramento da totalidade das suas receitas e despesas, podendo, em alternativa, apresentar contas consolidadas".
A respeito da questão em análise, os recorrentes afirmam que "em 2012 os artigos aplicáveis não eram explícitos, nem existiam decisões a interpretar os mesmos", circunstâncias que, no seu entender, afastam o dolo. Na defesa que apresentaram em resposta à promoção sancionatória do Ministério Público, os arguidos, invocando a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do Acórdão 801/2014, alertaram para o trecho do Acórdão 420/2016 que consignou o seguinte:
"Uma vez que o que vem de dizer-se tem repercussões restritas ao juízo relativo à regularidade das contas [na medida em que os partidos tenham incluído subvenções e/ou despesas dos grupos parlamentares nas suas contas anuais], outro poderá vir a ser o julgamento a realizar, em momento oportuno, em matéria de responsabilidade contraordenacional. [...]."
Argumentaram ainda, nessa sede, que bem andou o Tribunal Constitucional, atento o citado trecho, porquanto o artigo 12.º, n.º 9, da LFP, na redação dada pela Lei 55/2010, de 24 de dezembro, a vigente "à data do exercício de 2012" e no momento da "apresentação das contas de 2012", prescrevia que "As contas das estruturas regionais referidas no n.º 4 devem incluir, para efeitos da apreciação e fiscalização a que se referem o n.º 8 do artigo 5.º e os artigos 23.º e seguintes, as relativas às subvenções auferidas diretamente, ou por intermédio dos grupos parlamentares e do deputado único representante de um partido, das assembleias legislativas das regiões autónomas", sublinhando, por fim, que, na redação da LFP dada pela Lei 4/2015, de 10 de abril, diferentemente, é feita alusão expressa à inclusão, em anexo, daquelas subvenções nas contas das estruturas regionais referida no n.º 4.
Mais defenderam, que os factos praticados "o foram na convicção de se estar no estrito cumprimento da lei, não sendo censurável, atenta a complexidade da questão, tal eventual erro".
Neste ponto, cabe, antes do mais, retomar a redação da LFP aplicável no momento da apresentação das contas referentes a 2012, ou seja, 31 de maio de 2013 (n.º 1 do artigo 26.º da LFP).
Naquela data já se encontravam em vigor as alterações à LFP, introduzidas pela Lei 55/2010, de 24 de dezembro, em matéria de subvenções atribuídas aos grupos parlamentares e aos grupos parlamentares regionais, às quais se atribuiu, no âmbito dos Acórdãos n.os 296/2016 e 420/2016, especial importância, na medida em que respeitavam às relações a estabelecer entre as contas anuais dos partidos políticos e as contas dos respetivos grupos parlamentares, sejam nacionais sejam regionais. Quanto a esta temática, no Acórdão 420/2016, fez-se notar que, no que respeita à apresentação das contas anuais dos partidos referentes a 2012, e na sequência da prolação do Acórdão 801/2014 - que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das "normas constantes do n.º 8, do artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20 de junho, na redação que lhe foi dada pelo artigo 1.º da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, e do n.º 4, do artigo 3.º, da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, na numeração que lhe foi atribuída pela Lei 1/2013, de 3 de janeiro" -, foi repristinada a situação anterior àquela declaração de inconstitucionalidade (artigo 282.º, n.º 1, da Constituição), mantendo-se, assim, "para o ano de 2012, o regime vigente antes da entrada em vigor da Lei 55/2010". Todavia, este aresto foi apenas proferido em 27 de junho de 2016, não sendo, pois, razoável exigir que os recorrentes antecipassem, no momento da apresentação das contas de 2012 e em que já se encontrava em vigor uma nova redação da LFP, a declaração de inconstitucionalidade que determinou a repristinação do regime vigente antes da entrada em vigor da Lei 55/2010, de 24 de dezembro, e dela não retirassem os critérios legais subjacentes ao dever de organização contabilística.
Acresce que, não obstante se considerar que o BE não podia ignorar a jurisprudência deste Tribunal a respeito da natureza das subvenções públicas atribuídas aos grupos parlamentares, que vinha sendo excluída do financiamento dos partidos qua tale (cf. Acórdãos n.os 296/2016, 420/2016, 265/2015, 314/2014, 711/2013, 394/2011, 498/2010, 515/2009, 26/2009, 375/2005), não se pode deixar de reconhecer que as dúvidas na interpretação da LFP, que foram subsistindo no seio dos partidos políticos (cf. Acórdãos n.os 314/2014 e 711/2013), assumiram especial relevo face à redação dada à LFP pela Lei 55/2010, de 24 de dezembro, e relativamente à qual este Tribunal não se pronunciara até ao momento da apresentação das contas de 2012. De facto, aquela lei operou, no plano substantivo, uma relevante modificação da LFP, identificando, como parte integrante das contas dos partidos políticos, as subvenções públicas dos grupos parlamentares (cf. artigo 12.º, n.os 8 e 9, da LFP, na redação dada pela Lei 55/2010, de 24 de dezembro). Por outro lado, não é alheia a este contexto de dúvida uma outra modificação empreendida por aquela lei, no plano adjetivo, e que se traduziu na atribuição de competência exclusiva ao Tribunal Constitucional para a fiscalização das contas relativas às subvenções públicas auferidas pelos grupos parlamentares. De facto, se é certo que, como se referiu, esta norma atributiva de competência, plasmada no n.º 8 do artigo 5.º da LFP, na redação que lhe foi dada pela Lei 55/2010, de 24 de dezembro, foi, pelo Acórdão 801/2014, declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, o que determinou a repristinação do regime vigente antes da entrada em vigor dessa lei, não menos certo é que a mesma se encontrava ainda em vigor à data da apresentação das contas de 2012, na medida em que aquele aresto só posteriormente foi proferido.
Além do mais, como adiantou este Tribunal no referido Acórdão 420/2016, a solução que, na sequência daquela declaração de inconstitucionalidade, se encontrou para alcançar a redação da LFP aplicável à data da apresentação das contas de 2012 "tem repercussões restritas ao juízo relativo à regularidade das contas", antecipando, desde logo, que em causa estava um mero "juízo objetivo sobre a regularidade" das contas de 2012, pois não era ainda o momento para a "avaliação sobre o comportamento dos partidos políticos no processo de elaboração e prestação de contas, nem a sua eventual justificação". Asseverou o Tribunal naquele aresto que "outro poderá vir a ser o julgamento a realizar, em momento oportuno, em matéria de responsabilidade contraordenacional".
Nestes termos, perante o acervo dos factos provados e atendendo ainda à redação das normas da LFP, referentes ao dever de organização contabilística, em vigor à data da apresentação das contas de 2012, bem como às vicissitudes inerentes à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão 801/2014, e consequente repristinação da versão da LFP anterior à Lei 55/2010, de 24 de dezembro, é de considerar que o partido e a sua responsável financeira, aquando da apresentação das contas referentes a 2012, atuaram no convencimento de que haviam observado, na sua elaboração, as melhores práticas de organização contabilística, e que, nessa medida, as contas cumpriam as exigências legais decorrentes da LFP. Assim, excluído fica o dolo na sua conduta, o que impõe a absolvição dos recorrentes, uma vez que a contraordenação em causa não é, como vimos, sancionada a título de negligência (artigo 8.º, n.º 2, do RGCO).
V - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar extinto, por prescrição, o procedimento contraordenacional relativamente às contraordenações previstas e punidas pelo artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP, por referência ao artigo 3.º, n.º 1, alínea b), da LFP;
b) Julgar procedente o recurso de contraordenação interposto pelo Partido Bloco de Esquerda e por Sara Rita Neto Rocha, enquanto sua responsável financeira pelas contas de 2012 e, consequentemente, absolver os recorrentes das contraordenações consistentes na violação dolosa do dever previsto no artigo 12.º, n.º 1, da LFP, puníveis nos termos do artigo 29.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma, revogando, pois, a correspondente decisão sancionatória da ECFP.
Atesto os votos de conformidade dos Conselheiros José António Teles Pereira e Lino Rodrigues Ribeiro nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei 10-A/2020, de 18 de março (aditado pelo artigo 3.º, do Decreto-Lei 20/2020, de 1 de maio). João Pedro Caupers.
Lisboa, 28 de abril de 2021. - Joana Fernandes Costa - Maria José Rangel de Mesquita - Assunção Raimundo - Gonçalo Almeida Ribeiro - Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete - Mariana Canotilho - Maria de Fátima Mata-Mouros - José João Abrantes - João Pedro Caupers.
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